Introdução
Apesar da grande evolução das últimas décadas, nomeadamente no que se refere à disparidade de estratégias disponíveis para lecionar, o ensino ainda vive alicerçado em metodologias tradicionais, nas quais o estudante é o elemento passivo da aprendizagem. Esta realidade ainda é amplamente utilizada na formação dos profissionais de saúde, em que se recorre a metodologias de ensino-apren-dizagem conservadoras, centradas na exposição do professor e na memorização de informações pelos estudantes 1,2. Algumas variáveis dificultam a incorporação de novas estratégias no ensino de enfermagem, designadamente a tradição, a cultura e a resistência à própria mudança 3. A própria cultura tradicionalista do ensino de enfermagem constitui um dos maiores obstáculos e resistência à mudança, pelo que urge questionar se os métodos tradicionais são a única forma de ensinar 4.
Alguns autores salientam que os educadores de enfermagem sentem a necessidade de tentar, ao longo das poucas horas de contacto que possuem, explanar todo o conteúdo, pensando que, se não o fizerem, o estudante não vai aprender 3,5. À luz do desenvolvimento atual, é necessário integrar um novo paradigma de ensino que enfatize o processo de ensino-aprendizagem, e não apenas o conteúdo, promovendo a autoaprendizagem 6. O foco deverá ser promover no estudante o desenvolvimento de competências, alicerçadas num processo de construção de saberes refletido com a implicação do próprio sujeito. Porém, as estratégias tradicionais, em geral, conduzem a uma dissociação entre o conhecimento teórico fornecido de modo passivo e o contexto em que se inserem 1,2. É imperativo rever as metodologias utilizadas na formação dos enfermeiros a fim de agregar a teoria e a prática, assim como, o contexto de cuidados e o ensino 1. O recurso à inovação e à criatividade, por meio dos jogos, pode constituir uma estratégia para ir ao encontro destes objetivos 3,7-37. Os jogos têm vindo a ser utilizados em diversos formatos 14,15,18 e em diversas áreas, nomeadamente adaptados à simulação no ensino de enfermagem 16,17.
Novos métodos podem e devem ser utilizados para melhorar a aprendizagem e o ensino dos enfermeiros, designadamente os jogos. As estratégias lúdicas proporcionam uma base a partir da qual se pode projetar novas atividades em sala, que abordem de outra forma os conteúdos previamente ensinados ou até mesmo como estratégia de avaliação 5. O jogo contempla todos os critérios para garantir uma aprendizagem eficaz 38. Eles são experimentais, são uma forma de motivar; com eles, esperam-se aprendizagens dos participantes que durem além do jogo em si 39. Conforme nos referem alguns autores: Why can't learning be fun?3,40.
Cientes da necessidade de reflexão sobre o tema, recorreu-se a uma revisão integrativa da literatura para identificar e analisar a utilização desta estratégia na formação dos enfermeiros por meio do que é referido na produção científica internacional ao longo dos últimos anos.
Metodologia
Com a finalidade de agrupar o conhecimento existente sobre a utilização de jogos na formação em enfermagem, recorreu-se a uma revisão integrativa. A revisão integrativa é um dos métodos mais amplos, pois permite a inclusão de diversos tipos de estudos, fornece o acesso rápido aos resultados relevantes de pesquisas que fundamentam a tomada de decisão, proporcionando um saber crítico. A síntese dos resultados de pesquisas relevantes agiliza a transferência de conhecimento novo para a prática 41.
Na primeira etapa, formulou-se, como questão norteadora da pesquisa: qual o conhecimento produzido na literatura científica sobre a utilização de jogos na formação em enfermagem? Para responder à questão, realizou-se uma busca bibliográfica em índices on-line, designadamente a Scopus, por meio dos descritores e boleanos que se seguem: (Game OR Board game OR Gamification OR Playful Strategies OR Gaming) AND (Nurse OR Nursing OR Nursing interventions OR Nursing Education).
Após a identificação do tema e a seleção da questão de pesquisa, foi definido o fluxograma de identificação e inclusão dos estudos segundo o modelo Prisma (Figura 1), com base nos critérios de inclusão e exclusão de estudos.
Definiram-se, como critérios de inclusão, artigos científicos primários que detalham a utilização de jogos na formação em enfermagem, publicados entre os anos de 2010 a 2016, com texto completo disponível, utilizando como idioma inglês e português. Os critérios de exclusão foram os artigos de revisão, assim como os que não respondiam à questão de pesquisa.
Dos 58 artigos identificados, após as diferentes etapas, a amostra final foi constituída por 10 artigos que atenderam aos critérios de inclusão 2,42-50.
Os estudos selecionados foram classificados de acordo com os sete níveis hierárquicos de evidência adequado à produção de conhecimentos científicos na enfermagem 51. O estudo respeitou os princípios éticos, uma vez que foram respeitados os direitos autorais das pesquisas recolhidas.
Apesar de não haver um padrão específico para a análise dos dados, os elementos essenciais devem observar padrões e temas, fazer comparações e contrastes, discernir padrões comuns e incomuns, identificar fatores intervenientes e construir evidência segundo um processo lógico 51. A análise dos dados foi realizada por meio de leitura crítica e qualitativa que permitiu identificar divergências e convergências, possibilitando a construção de quatro categorias: tipologia de jogo, áreas temáticas do jogo, âmbito de aplicação dos jogos e metodologias de avaliação da estratégia. Para facilitar a análise e a discussão, os artigos foram codificados.
Resultados
No Quadro 1, apresenta-se sumarizada a amostra de estudos que compôs a revisão, com a seguinte informação: código, referência, local de realização do estudo, paradigma metodológico, população, amostra, objetivo e nível de evidência do estudo.
O estudo indicia uma maior concentração das produções no ano de 2015, sendo escassa nos anos anteriores. Em relação ao idioma, apenas 2 dos estudos estão disponíveis em português.
Quanto ao tipo de periódico, 6 dos artigos são publicados em revistas específicas no âmbito da enfermagem. Com relação ao país de publicação, 2 dos 10 estudos apresentados são oriundos do Brasil, o restante encontra-se condensado na Europa (Figura 2).
A abordagem quantitativa foi utilizada em 7 dos estudos, qualitativa em 2, e 1 com uma abordagem triangulada. A amostra variou entre 8 e 201 participantes. Em 9 artigos os participantes eram estudantes da graduação de enfermagem.
A análise de dados em uma revisão integrativa deve utilizar rigor metodológico, nomeadamente, a análise dos estudos selecionados, a identificação e a categorização das principais ideias, de modo a que os resultados possam representar efetivas contribuições para a prática do cuidado baseado em evidências e para a construção e consolidação da teoria 52. Da análise dos estudos apresentados, emergiram quatro áreas: tipologia de jogo, áreas temáticas do jogo, âmbito de aplicação dos jogos e metodologias de avaliação da estratégia (Figura 3).
Tipologia de jogo
No que se refere à tipologia de jogo utilizada, nos artigos em análise, são descritas essencialmente a simulação e a imaginação (2,46-48, 50), assim como a utilização de jogos virtuais 43,45,49,50. No âmbito da simulação, alguns combinam as estratégias de simulação com as de componente virtual 46,48,50, outros têm associado outro tipo de estratégia, nomeadamente o role-play2,47 e workshops42. Um outro estudo incorpora a utilização de um jogo de tabuleiro 44.
Áreas temáticas do jogo
Os resultados da pesquisa indicam áreas temáticas muito diversas no âmbito da prestação e processo de cuidados. No estudo de Koivisto et al. 46, o jogo consiste em cenários de pacientes, em que são criados eventos em torno de um problema clínico específico. Ao longo do qual, o estudante deve avaliar as necessidade do paciente e tomar decisões sobre intervenções. No final do jogo, os alunos recebem feedback sobre o seu desempenho.
No estudo de Chen et al. 47, os alunos desempenham o papel de idoso durante um jogo de simulação de envelhecimento em laboratório, o Medication Geriatric Game® (GMG), nomeadamente com experiências dos idosos no sistema de saúde.
Soares et al. 2 criam um role-play que permite ao estudante o contacto simulado com situações problemáticas dos principais cenários de atuação profissional, nomeadamente a atenção primária, o setor hospitalar, a gestão e a educação.
No jogo sobre reanimação cardiorrespiratória de Boada et al. 48, o enredo do jogo gira em torno de uma situação de emergência representada em um ambiente virtual em 3D com a vítima, o ajudante e todas as ferramentas auxiliares que podem exigir uma situação de emergência. O artigo de Fernandes et al. 44 descreve a aplicação de um jogo de tabuleiro a enfermeiros para ensinar família em contexto hospitalar. Foss et al. 45 desenvolveram um jogo de computador sobre medicação que permite realizar cálculos de medicação e praticar unidades de medida padrão. No estudo de Mcla-fferty 42, são criados jogos de workshop sobre cuidados a pessoas idosas.
No jogo virtual desenvolvido por Chia 43, o aluno interage com o paciente para identificar as necessidades e prestar cuidados adequados, tais como a administração de oxigenioterapia e medicamentos. No estudo de Aljezawi e Albastawy 49, foi utilizado o formato de jogo Jeopardy sobre modelos de organização de atendimento ao paciente. Por último, o estudo de Koivisto et al. 50 desenvolve um jogo de simulação sobre diversos cenários de pacientes, que são eventos destinados ao redor de uma situação clínica específica, na qual o aluno é orientado para a recolha de informações, a identificação de problemas, a tomada de decisão e a avaliação.
Âmbito de aplicação dos jogos
No que se refere ao âmbito de aplicação, dos achados deste estudo realça-se a sua maior utilização ao ensino de enfermagem no âmbito da graduação 2,42,45-50. O estudo desenvolvido por Koivisto et al. 50, embora direcionado para o ensino, foi aplicado em um curso de outono de enfermagem cirúrgica. Por último, o artigo de Fernandes et al. 44 era direcionado para a assistência, e os participantes eram profissionais de enfermagem de diversos contextos clínicos hospitalares.
Metodologias de avaliação da estratégia
Nos estudos analisados, existe uma variabilidade de metodologias de avaliação das estratégias utilizadas, nomeadamente grupos focais após a intervenção 46, a utilização de pré e pós-teste 44,47, estudo experimental com grupo de controlo 48,49, teste sobre conhecimentos 45,50, avaliação da perceção e satisfação sobre a estratégia por meio de questionário 42 ou entrevista 43, ou sem mecanismo de avaliação 2.
Discussão
As estratégias lúdicas podem adquirir diversos formatos conforme é visível neste estudo, desde os jogos virtuais até aos jogos de tabuleiro. Segundo Jaffe 39, existem três categorias principais do gênero: jogos, simulação e simulação com jogo. DeYoung 53 denomina-os de estratégias de ensino ativas, as quais agrupam a aprendizagem cooperativa, a simulação, os jogos, o role-play, os estudos de caso e a aprendizagem baseada em problemas.
O jogo e a simulação são muitas vezes considerados como a mesma estratégia, mas embora eles estejam intimamente relacionados, eles não são o mesmo 3,40. Os exercícios de simulação, que podem não ser jogos, são categorizados pelo seu grau de fidelidade 53. Os simuladores são comu-mente descritos como de baixa, média ou alta fidelidade, seguem um continuum que começa com experiências de simulação de baixa, como o uso de role-play, podendo incorporar um manequim estático que não responde à intervenção. Ou subir no grau de realismo apresentado e pode envolver formadores de tarefas ou simuladores de moderada fidelidade, que fornecem algum feedback ao participante. Ou, por último, simulações de alta fidelidade, que preveem experiências clínicas simuladas mais intensas, utilizando uma tecnologia de computador realista e sofisticada 54. Os jogos têm vencedores, envolvem regras, colaboração dos membros e competição entre as equipes 3,40, podendo adquirir diversos formatos, alguns bem populares, tais como bingo, Jeopardy®, Trivial Pursuit®, Monopólio® ou, ainda, "Quem quer ser um milionário?" 3,39.
Conforme ilustrado nestes resultados, atualmen-te é possível constatar a potencialidade dos jogos, como instrumento pedagógico, na aprendizagem das mais variadas áreas do conhecimento 55, qualquer conteúdo na enfermagem pode ser colocado em formato de jogo 5, até os assuntos considerados mais complexos e fastidiosos 3.
Neste estudo, o âmbito de aplicação das estratégias lúdicas surge essencialmente dirigida ao ensino do curso de enfermagem. Atualmente, para fins educacionais ou não, os jogos são uma forma de motivar, reforçar as competências e promover a colaboração por meio do seu formato experimental 39. Ele enquadra-se no ensino de enfermagem como uma estratégia voltada para a promoção da aprendizagem ativa 26, na qual o aluno se torna o centro do processo 34. Os achados deste estudo vão ao encontro dos resultados obtidos por Sobral e Campos 1 em uma revisão integrativa sobre a utilização de metodologia ativa pelos enfermeiros, em que refere que os trabalhos publicados estão, predominantemente, vinculados aos cursos de graduação, dado que, dos 28 estudos analisados, 23 eram no âmbito do ensino.
É esperada alguma transformação em qualquer estratégia de ensino; a utilização dos jogos também a pressupõem. Apesar da perceção imediata dos utilizadores dos jogos ser positiva 56, é necessário saber onde se consegue ultrapassar a barreira do entretenimento. Quando se cria ou utiliza um jogo, deve ser considerada a avaliação de determinados aspetos, nomeadamente no que se refere à sua validade, fiabilidade e utilidade 3,40. A estratégia lúdica deve ser testada e revista, se necessário 39.
Conforme referem alguns autores, na utilização de jogos em práticas formativas, são descritos poucos dados sobre o impacto, a médio ou longo prazo, no desempenho de profissionais de saúde, aspe-to esse recomendado pelos autores em futuros estudos 1,9,55-60. Blakely et al. 55, na análise realizada, sugerem que a eficácia do jogo educativo, como ferramenta de ensino, varia dependendo de onde a avaliação é realizada, assim como que métodos foram utilizados para avaliar a eficácia dos jogos. Neste percurso, são descritas diversas metodologias de avaliação dos jogos, salien-tando-se ainda a ausência de informação sobre os timings da aplicação desses mecanismos de avaliação.
Reconhece-se, assim como outros autores 1,55,58, que o conhecimento produzido pelas pesquisas analisadas apresenta lacunas sobre a temática, principalmente relacionada ao impacto dessas estratégias. Devem ser utilizados métodos baseados em evidências para a sua avaliação 58. São necessárias investigações sobre os processos de aprendizagem e os resultados de aprendizagem dos alunos e como essa aprendizagem terá impacto sobre os cuidados prestados 14. Embora a aquisição imediata de conhecimento seja relevante e seja passível de ser demonstrada, é a retenção das informações a longo prazo que é de maior relevância 55.
Conclusão
Em uma era em que tudo se encontra disponível à distância de um clique, em que a estimulação é constante, onde a tecnologia impera a um ritmo acelerado, aprender necessita de um novo formato. Os jogos colocam o sujeito da aprendizagem no centro do processo, como participante ativo. Sobre a tipologia de jogos utilizados, estes apresentam formatos diversos, desde simuladores aos jogos de tabuleiro, assim como com enfoque em áreas distintas do conhecimento em enfermagem.
Os achados deste estudo revelam que o âmbito de aplicação dos jogos é mais frequente no ensino inicial da formação do enfermeiro. Sobre as metodologias de avaliação, a pesquisa limitada disponível indica a necessidade de os jogos serem devidamente avaliados.
Este estudo apresenta como limitação o não alargamento a outras bases de dados, assim como à literatura cinzenta. Recomenda-se a continuidade da aplicação dessas estratégias, nomeadamente por meio do estudo do seu impacto nos cuidados, ligando o uso de jogos com os resultados no cuidado.