Introdução
Dados mais recentes do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (2017) evidenciam que o Brasil possui a quarta maior população carcerária por habitante do mundo, com 666 detentos para cada 100 mil habitantes, o que indica um aumento de 258 % em apenas 20 anos 1.
O cenário é preocupante, pois a população carcerária está submetida às condições que a deixam vulnerável à aquisição e transmissão de doenças, devido às estruturas inadequadas, como celas superlotadas com condições insalubres e precárias, à subnutrição, ao uso de drogas lícitas e/ou ilícitas, à higiene insuficiente e à assistência médico-jurídica fragilizada 2,3.
Legalmente, desde 1984, é assegurada ao detento uma assistência à saúde de caráter preventiva e curativa, que abrange o atendimento médico, farmacêutico e odontológico, através da Lei de Execução Penal 7.210, de 11 de julho, em seu artigo 14. Portanto, nos casos em que o estabelecimento penal não prover condições estruturais/instrumentais para uma assistência médica, esta deverá ser referenciada para outro serviço resolutivo 4.
Associado a isso, a Portaria Interministerial 1.777, de 9 de setembro de 2003, aprova o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP), que ressalta o direito dos detentos a uma assistência à saúde de forma integral, de acordo com algumas diretrizes estratégicas, como: prestar assistência integral resolutiva, contínua e de boa qualidade às necessidades de saúde; reduzir os agravos mais frequentes; definir e programar ações e serviços consonantes com os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS); implementar a intersetorialidade; democratizar o conhecimento do processo saúde/doença, dentre outras 2.
Nesse contexto, a enfermagem possui um papel bastante relevante, pois colabora para a recuperação de vida dos indivíduos reclusos, através de uma sistematização de enfermagem individual, integral e equânime, livre de qualquer tipo de preconceito e discriminação, obedecendo aos preceitos éticos inerentes de sua atividade profissional 5.
Considerando que a população carcerária está vulnerável a diversas situações que afetam a saúde, o presente artigo tem como objetivo analisar as principais patologias que acometem os detentos de um Complexo Prisional de Recife (estado de Pernambuco, nordeste do Brasil), refletindo, à luz da literatura, sobre as concepções de enfermagem que permeiam tais agravos.
Materiais e método
Trata-se de um estudo documental, de natureza exploratória e descritiva, com abordagem qualitativa, realizado em um Complexo Prisional Estadual localizado em Recife, Pernambuco (PE), Brasil.
Os documentos são importantes fontes de dados, pois armazenam informações que são relevantes para a caracterização de uma determinada situação. Considerar a pesquisa documental pelo cunho qualitativo é propor novos enfoques para uma problemática. Três aspectos principais delinearam o estudo para se refletir nas concepções de enfermagem: a escolha dos documentos, o acesso a eles e a sua análise 6.
A população estudada foi de pessoas privadas de liberdade, atendidas no ambulatório do Complexo Prisional, durante o ano de 2015. Esse ano foi considerado turbulento, pois 15 tentativas de fuga foram registradas juntamente com diversas rebeliões que incluíram armas de fogo e morte de detentos e vizinhos da localidade. Tal fato justifica o interesse em investigar as condições de saúde dessa população, que se encontrava em alta vulnerabilidade.
A amostra foi composta por 113 prontuários. Os critérios de inclusão foram os diários dos detentos que receberam qualquer tipo de assistência à saúde no ambulatório durante o ano de 2015 e que estavam em regime fechado. Foram excluídos da pesquisa os prontuários dos detentos em liberdade condicional e os prontuários atendidos com anos maiores ou menores que 2015.
Foi elaborado um questionário semiestruturado padronizado para nortear o levantamento das informações dos prontuários. Ele foi composto por 32 questões objetivas, as quais corresponderam a: idade, tabagismo, realização de algum tratamento de emergência ou ambulatorial, doenças notificáveis pelo Ministério da Saúde, doenças prévias e medicações que fazem uso.
A coleta dos dados foi realizada nos meses de setembro a outubro de 2016, após a assinatura da carta de anuência e a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Salgado de Oliveira (Universo), sob o n.° de Caee: 59636916.1.0000.5289. Depois da coleta de dados, estes foram formatados e analisados utilizando o EpiInfo 2007; foi realizada análise descritiva para a caracterização das variáveis para, posteriormente, ser feita uma análise à luz da literatura científica.
Resultados e discussão
No presente estudo, foram investigados 113 prontuários de detentos atendidos no ambulatório em um Complexo Prisional Estadual da cidade do Recife-PE durante o ano de 2015. Na Tabela 1, observa-se o perfil social e da saúde levantado dos prontuários.
Com relação à faixa etária, verifica-se que 66,37 % têm 18 a 31 anos, o que corrobora com um estudo realizado na cidade de Belo Horizonte no ano de 2010, no qual 80 % das pessoas que foram privadas de liberdade novamente possuíam até 30 anos de idade 7.
Dados oficiais do Departamento Penitenciário Nacional 1 do Ministério da Justiça e Segurança Pública evidenciam que, em 2016, a população privada de liberdade do Brasil estava em torno de 726.712, distribuída em diferentes estabelecimentos penais que compõem o sistema penitenciário brasileiro. Ressalta-se ainda que 55 % dos detentos são formados por adultos jovens (idade até 29 anos). Realidade que pode ser evidenciada, inclusive, em estudo realizado nas penitenciárias femininas do estado da Paraíba 8.
Grande parte dos jovens ingressou na criminalidade ainda durante a adolescência, sendo eles os mais envolvidos em crimes violentos. Esses jovens são, em sua maioria, advindos de estratos sociais de populações pobres, comunidades marginalizadas e com baixo nível educacional 2,7.
Com relação à variável tabagismo, pode-se notar que 70,80 % da população não faz uso de tabaco. Sobre o atendimento de emergência, verificou-se que 92,92 % receberam algum tipo de tratamento emergencial e 7,08 % não receberam. Dentre os detentos, 98,23 % deles não possuem doenças interrogadas.
A alta taxa de atendimentos emergenciais justifica-se pelas torturas e agressões físicas que os detentos sofrem nas prisões. Tais práticas podem ocorrer tanto por parte dos agentes penitenciários que introduzem a "correção", após uma tentativa de fuga ou rebelião, quanto por parte de outros detentos, principalmente atos violentos, como tentativas de homicídios, abusos sexuais, espancamentos e extorsões 9.
A violência se relaciona diretamente com a estrutura social, econômica e política, e agrava-se com as exclusões e desproteções sociais, ameaçando a integridade física e mental do sujeito. Os profissionais de enfermagem se sentem ameaçados em atuar em ambientes violentos e refletem a ansiedade, o medo e a insegurança sobre como agir diante de determinadas situações. No entanto, estudos evidenciam que os profissionais perpassam tais limitações e promovem o cuidado em saúde de acordo com as necessidades apresentadas, da forma mais efetiva e eficaz 10.
Outro aspecto que prejudica a atuação dos profissionais é a quantidade de enfermeiros inferior do que a real necessidade. As condições de trabalho devem ser analisadas, pois alguns incentivos podem ser ofertados para motivar tais profissionais, como o acesso informatizado à rede de prestadores, segurança, contrarreferência e incentivos financeiros de trabalho 11.
De acordo com Oliveira 5, destacam-se alguns fatores que favorecem a contaminação e disseminação de doenças infectocontagiosas no sistema prisional, tanto para a população privada quanto para os funcionários do estabelecimento e a comunidade extramuros: demora na identificação dos portadores da doença; isolamento daqueles portadores da doença; alta rotatividade de detentos; celas pequenas e pouco ventiladas, e tempo de encarceramento.
Na Tabela 2, pode-se detectar as doenças prévias dos detentos atendidos no ambulatório do complexo prisional. Com relação à incidência de transtornos mentais, os detentos estão vulneráveis a fatores que contribuem para a ocorrência, principalmente, de ansiedade e depressão, como a privação da liberdade e a mudança do seu ambiente social. As situações adversas vivencia-das podem desencadear nos indivíduos respostas e reações distintas, adaptativas ou aquelas que submetem os detentos a riscos ainda maiores. Em um estudo 12 realizado com presidiários de Santa Catarina, foi relatado que os sintomas de depressão não têm relação direta com os transtornos mentais específicos, mas sim com condições insalubres, superlotação, celas mal iluminadas e ventiladas com odor fétido, má alimentação, sedentarismo e violência 13.
Como a população estudada não pratica nenhum tipo de atividade física, os detentos possuem maiores chances de desenvolverem cardiopatias, aumentando de 20 a 30 % o risco de mortalidade 12. Em consonância, para reduzir a dermatite atópica, são necessárias duas práticas: melhorar a higiene e exposição ao sol, pois esta promove a síntese de vitamina D, que é responsável pela modulação de micronutrientes e diferenciação celular 14,28.
Destaca-se também o fato de que quase metade da população privada de liberdade (49,56 %) não possuía doenças prévias quando atendida no ambulatório do Complexo. Esse fato se relaciona com as subnotificações, problemática que dificulta a análise da situação de saúde dessa população e, consequentemente, prejudica o planejamento de estratégias e ações para o controle de doenças. Para Barbosa 20, mesmo havendo legislação específica que orienta os sistemas prisionais a prestar assistência à população privada de liberdade, e apesar de grande parte dos estados brasileiros já estar recebendo o financiamento previsto pelo PNSSP, muitos estabelecimentos prisionais não estão aptos a desenvolver serviços referentes à saúde 15,20.
Dessa forma, Alcantra et al. 16 e Mourão et al. 17 relatam que é relevante que haja melhoria no investimento de recursos humanos e financeiros, com o objetivo de ofertar aos milhares de indivíduos privados de liberdade o acesso à saúde, de modo que não seja visto como um privilégio ou compaixão, mas como um direito garantido pela Constituição. Assim, é necessário que o presídio ofereça uma assistência multiprofissional aos portadores de transtornos mentais, principalmente para a ansiedade e a depressão, com o objetivo de reduzir e prevenir sinais e sintomas 13.
A incidência de IST/Aids em detentos chega a ser o dobro da população que vive livre, pois o fato de estarem confinados favorece as relações homoafetivas sem o uso de preservativo, a violência sexual praticada por parte dos outros detentos, o compartilhamento de objetos perfu-rocortantes (agulhas usadas em tatuagens, piercings, lâminas de barbear), a restrição do espaço e da mobilidade, o que favorece a contaminação e disseminação de outras IST 18,19.
O PNSSP reconhece as seguintes áreas como prioritárias: diabetes, hanseníase, tuberculose, hipertensão e IST/Aids. O controle das endemias é de responsabilidade do enfermeiro, o qual desenvolve ações de promoção e prevenção da saúde. É preciso realizar a busca ativa, o diagnóstico precoce, a notificação compulsória, o tratamento supervisionado e a investigação dos comunicantes para a tuberculose e a hanseníase; atentar para a hipertensão e o diabetes, bem como realizar o tratamento adequado de tais casos. Para tanto, o acompanhamento clínico é fundamental. Em consonância, a presente revisão evidencia o alto índice de transtornos mentais registrados entre os detentos, agravo não considerado pela PNSSP 20.
A Tabela 3 evidencia as doenças notificadas nos detentos. Os dados estão em consonância com os evidenciados pelo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, no qual em primeiro se tem o HIV/Aids, em seguida sífilis, hepatites e tuberculose 21.
Um dos aspectos que justifica o alto índice de tais doenças e agravos são as condições precárias do encarceramento que a população privada de liberdade está sujeita: celas superlotadas, pouco ventiladas e iluminadas, associadas à má higieni-zação, ao sedentarismo e ao uso de drogas 3,22.
Outro aspecto é a dificuldade de adesão aos tratamentos, que favorece a sobrecarga nos serviços de urgência e emergência, assim como a assistência farmacêutica, colaborando para que o muní-cipio se torne bastante vulnerável. Vale salientar que os detentos não recebem nenhum tipo de informação a respeito das doenças infectoconta-giosas, o que leva a conceitos equivocados sobre transmissão, sintomas, tratamento e cura, principalmente da tuberculose. Atrelado a isso, é notório que medidas de educação e controle devam ser instituídas a essa população para reduzir a prevalência e o abandono ao tratamento, com a finalidade de reduzir as altas taxas de transmissibilidade 23-25.
Observa-se que 77,88 % da população privada de liberdade não teve nenhuma patologia notificada, fato questionável, uma vez que as más condições de permanência nas celas favorecem a transmissão de doenças. Pode-se ratificar ainda a problemática da subnotificação e a falta de registro nos prontuários. Manter a qualidade no registro das informações é viabilizar o monitoramento local dos casos e auxiliar a vigilância e controle dos agravos 15.
Com relação aos tratamentos medicamentosos, observou-se que 51,33 % dos detentos não informaram o uso de medicamentos, 31,86 % informaram não utilizar e 16,81 % que utilizavam. Dentre os medicamentos prescritos utilizados por essa população, estão: 0,88 % albendazol, carbamazepina e clonazepan; 7,08 % antivirais e 4,42 % fluconazol. Carbamazepina e clonazepan são benzodiazepíni-cos utilizados para tratar pacientes depressivos.
A Organização Mundial da Saúde aponta que a depressão será a segunda maior causa de incapacidades em 2020 27. Sua incidência entre a população privada de liberdade tem estreita relação com o ambiente recluso e isolado do sistema prisional que desencadeia sintomas como: ansiedade, depressão, agitação, insônia dentre outros transtornos psiquiátricos 28.
Devido ao ambiente insalubre, às baixas condições dos detentos e ao quantitativo de profissionais insuficiente para atender aos sistemas previ-denciários, as infecções virais e o abandono ao tratamento tendem a aumentar. Evidencia-se que, quando os detentos são cuidados por profissionais, frequentemente, eles se sentem bem, tendo a percepção de que o tratamento é para a sua saúde e para a saúde dos outros que convivem com ele 24.
Estudo realizado por Damas (2012), no estado de Santa Catarina, evidencia que, como o quantitativo de profissionais é reduzido, a dispensação ou administração de medicamentos se torna um entrave para a assistência à saúde, sendo essa atuação transferida para os agentes penitenciários ou até mesmo o medicamento é entregue ao próprio detento; uma ação perigosa que pode levar ao uso inadequado da medicação 28.
Conhecer as patologias da realidade que o enfermeiro está atuando orienta-o para a aplicação de um processo de enfermagem eficaz, planejando oportunidades direcionadas às necessidades reais da população privada de liberdade 30.
Estudo de revisão evidencia que as ações realizadas pelos enfermeiros no sistema prisional podem ser classificadas em três categorias: assistência voltada para os cuidados primários de atenção à saúde, que se referem à vigilância, promoção e prevenção da saúde dos detentos, por meio de um acompanhamento assistencial; cuidado aos pacientes crônicos, com maior ênfase para os hipertensos e diabéticos, e, por fim, gestão administrativa, categoria que preenche grande parte da disponibilidade do profissional. Observa-se que a educação em saúde não é incluída, o que demonstra uma fragilidade no sistema prisional 31.
O enfermeiro é considerado um exímio educador, que tem a capacidade de promover a autonomia e empoderar os participantes. Evidenciase que a utilização de metodologias ativas, como roda de conversas, proporciona maior reflexão e compreensão de assuntos que necessitam ser abordados pelos participantes.
O enfermeiro tem a capacidade de ampliar a sua perspectiva e reconhecer os fatores condicionantes e determinantes envolvidos no processo saúde-doença de cada realidade, o que fornece uma visão holística sobre o sujeito privado de liberdade, aspecto essencial para assisti-lo 31.
Conclusão
O cenário do sistema prisional é de condições subumanas, que fere com os direitos humanos básicos de cidadania. Nessa situação, a vulnerabilidade aumenta, e a emergência para a atuação de políticas, estratégias e ações que intervenham nesses locais é evidente. Para transformar essa realidade, são necessárias intervenções educativas com os detentos e um maior número de profissionais de saúde, principalmente enfermeiros, capacitados e sensibilizados para atuar nessa realidade, o que garantiria ações de promoção, prevenção e recuperação da saúde.
Com relação às dificuldades encontradas durante a revisão documental, destaca-se a escassez de trabalhos relacionados à temática na literatura científica, principalmente na área da enfermagem. Mais estudos nessa área poderiam contribuir substancialmente para a melhoria da assistência aos detentos e, assim, alcançar as metas propostas pelo PNSSP, bem como o desenvolvimento de uma assistência integral.
Portanto, é preciso potencializar as produções científicas relacionadas ao âmbito penitenciário e repensar a saúde do sistema prisional, buscando a garantia constitucional da saúde e as boas condições no ambiente dessa população, direitos assegurados pelo SUS.