Introdução
O cenário mundial vivencia uma transição demográfica marcada por uma diminuição no número de jovens e um aumento considerável de idosos. Tal fato reflete no percentual de idosos, que passou de 10 % em 2000 para 12,3 % em 2015. Países em desenvolvimento concentram o maior número de idosos, com perspectivas de aumentar ainda mais, de modo que em 2050 estima-se que 80 % dos idosos estejam vivendo em países que hoje têm menores índices de desenvolvimento, como os da América Latina, Ásia e África 1.
A região Nordeste no Brasil conta com aproximadamente 5441 milhões de pessoas acima de 60 anos, ficando atrás apenas da região Sudeste. A Bahia é o Estado que concentra o maior número de idosos na região, representando 10,7 % do total da população 2.
Esse expressivo número de idosos no Brasil repercute em diversos aspectos, inclusive na conformação dos arranjos familiares, já que se observa, com frequência, o surgimento de famílias intergeracionais, ancoradas na corresidência 3, e marcada pela convivência entre idosos, filhos, genros, noras, netos e bisnetos, além do cônjuge, quando não vivenciam a viuvez 4.
Arranjo familiar pode ser compreendido como diferentes configurações familiares que emergem na sociedade, com laços consanguíneos ou não, convivendo sob o mesmo teto, de forma que o modelo de organização, a função dos papéis familiares e as relações de afeto determinem a configuração na qual está inserida 5. Destaca-se que os arranjos familiares se modificam ao longo dos anos em decorrência de uma série de fatores históricos, sociais, culturais, políticos e econômicos 6.
Assim, dar voz aos familiares, valorizar suas concepções e identificar motivos que levaram a corresidência com idosos emerge como estratégia relevante para se conhecer a realidade vivenciada por esses familiares, subsidiar o cuidado no âmbito da saúde da família bem como para se apreender o fenômeno em estudo, já que a longevidade permite a convivência prolongada de três ou mais gerações, levando familiares a participarem ativamente da vida de seus idosos.
Compreender a corresidência familiar com o idoso como um fenômeno social e mediado por ações e interações, comportamentos e atitudes, faz considerar que os princípios do Interacionismo Simbólico (IS) podem ser utilizados como arcabouço teórico para mediar a discussão desse estudo. Essa corrente teórica baseia-se na interação humana, uma vez que, se busca compreender as características simbólicas da vida social, além de procurar entender significados que indivíduos atribuem a certo contexto 7.
Considerando esta contextualização, o estudo apresenta como questão norteadora: Quais fatores contribuem para a conformação de arranjos familiares com pessoas idosas? Tal inquietação justifica-se pela importância dos profissionais de saúde, sobretudo de enfermagem, de reconhecer os desafios enfrentados por familiares ao atender as demandas de cuidado apresentadas pelo idoso. Além disso, espera-se que conhecer a realidade dessas famílias os instiguem a inseri-las como objeto de trabalho, de modo a subsidiar sua abordagem assistencial.
Destarte, este estudo objetivou conhecer fatores que contribuem para a conformação de arranjos familiares com pessoas idosas, já que em épocas anteriores, não houve um contato tão prolongado e intenso entre as gerações no mesmo domicílio como na atualidade.
Materiais e métodos
Trata-se de um estudo descritivo, exploratório, com abordagem qualitativa e fundamentado no referencial teórico do is, que parte de três premissas:
A primeira é que o ser humano orienta seus atos em direção às coisas em função do que estas significam para ele... A segunda é que o significado dessas coisas surge como consequência da interação social que cada qual mantém com seu próximo. A terceira é que os significados se manipulam e se modificam mediante um processo interpretativo desenvolvido pela pessoa ao defrontar-se com as coisas que vai encontrando em seu caminho (8, p2).
O cenário do estudo foi o domicílio de 15 famílias, cadastradas em uma Unidade de Saúde da Família (USF) de um bairro periférico, do município de Guanambi-Bahia, Brasil. Colaboraram com a pesquisa 19 familiares de idosos.
Os critérios de inclusão dos colaboradores foram: i) familiares que conviviam no mesmo domicílio do idoso cadastrado na USF selecionada; e ii) que possuíssem capacidade preservada de comunicação verbal. Como critérios de exclusão: i) crianças, ou seja, familiares com idade inferior a 12 anos, por entender que esses não possuem grau de compreensão para responder ao instrumento; e ii) famílias que por três vezes consecutivas não foram encontradas no domicílio.
As famílias foram intencionalmente selecionadas, a partir dos cadastros dos enfermeiros e dos agentes comunitários de saúde da respectiva USF. Considerou-se família aquela formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade, ou vontade expressa 9.
A coleta das informações ocorreu através de um roteiro de entrevista semiestruturado, contendo dados sociodemográficos e perguntas direcionadas ao objeto do estudo tais como: 1. O que levou você a morar com a pessoa idosa ou o que levou o(a) idoso(a) a morar com você? 2. Você cuida dos idosos que moram aqui? 3. O que significa para você cuidar da pessoa idosa? 4. O que você faz no dia a dia para cuidar da pessoa idosa? 5. O que mudou na sua vida desde que você passou a cuidar da pessoa idosa? 6. Como é para o(a) senhor(a) a convivência cotidiana com uma pessoa idosa no domicílio? Estas entrevistas foram gravadas em dispositivo eletrônico e realizadas por meio de visitas domiciliares. O objeto de estudo foi investigado até o aparecimento de um ponto de saturação.
A análise das informações desenvolveu-se pela técnica de análise de conteúdo temática, que se estrutura em torno de três etapas: a pré-análise, a exploração do material ou codificação e o tratamento dos resultados, inferência e interpretação 10.
A pré-análise consiste na etapa de organização e sistematização das ideias iniciais, a partir da escolha dos documentos, formulação de hipóteses, objetivos e a elaboração de indicadores que fundamentaram a interpretação final. Na segunda etapa, os dados brutos são transformados, de forma organizada através de operações de codificação. A codificação compreende a escolha de unidades de registro e a escolha de categorias. Na terceira e última fase é possível propor inferências e realizar interpretações, com o intuito de obter resultados válidos e significativos 10.
A maioria dos procedimentos de análise qualitativa organiza-se em torno de categorias, que consiste na classificação dos elementos segundo suas semelhanças e por diferenciação, com posterior reagrupamento, em função de características comuns. Neste estudo, utilizou-se a categorização temática, pois permite analisar a descrição do conteúdo que emerge das entrevistas. Sua escolha deveu-se, ainda, ao fato deste tipo de análise ser amplamente aplicável nas ciências sociais, em estudos que busquem respostas às entrevistas individuais 10.
O estudo obedeceu aos preceitos éticos da Resolução n.° 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde, sendo aprovado pelo Comité de Ética em Pesquisa da Universidade Federal da Bahia, sob o parecer 1.239.431/2015. Foi obtida a autorização dos colaboradores, que assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Para manter o sigilo e anonimato esses foram codificados com letra maiúscula C (colaboradores), seguida por número ordinal (C1, C2.., C22).
Resultados
Entre os familiares, 13 eram do sexo feminino e seis do sexo masculino; a faixa etária variou de 13 a 75 anos; em relação à cor, 15 se autodeclararam pardos e quatro se consideraram brancos. No que tange ao estado civil, 10 colaboradores eram solteiros, seis casados e três divorciados. Predominou a religião católica, com 15 familiares, seguido de quatro evangélicos.
A predominância do nível de escolaridade em ordem decrescente foi oito colaboradores com ensino fundamental incompleto, quatro analfabetos, quatro com ensino médio incompleto e três com ensino médio completo. No tocante à renda familiar mensal, 14 declararam renda de até dois salários mínimos, 3 de até três salários e apenas 2 com renda por vezes inferior ou igual a um salário.
A fim de se conhecer os arranjos familiares obtidos fez-se necessário apresentar a Tabela 1 com a conformação desses, na qual foi possível observar a coabitação entre familiares e pessoas idosas em um mesmo domicílio.
Considerando os aspectos supracitados, os familiares foram estimulados a relatar os fatores que contribuíram para conformação desses arranjos familiares, e a partir da análise de conteúdo temática apreendida nos depoimentos foram delineadas quatro categorias temáticas, apresentadas a seguir.
Os depoimentos revelam que a conformação de arranjos familiares com pessoas idosas no domicílio relaciona-se ao fato da pessoa idosa passar a viver só e demandar cuidados em determinada fase do seu ciclo vital. Diante dessa situação, a família se sente no dever de cuidar, fornecer suporte e evitar a solidão da pessoa idosa, optando pela corresidência intergeracional, como mostram as falas:
Se fosse para eu morar em outro lugar eu ia, mas, ela ia acabar ficando sozinha. Tenho que ajudar a cuidar, estar perto dela [C8: filha].
Ela morava sozinha na zona rural; ela é minha sogra. O filho acabou trazendo para vir morar com a gente, para ela não ficar sozinha e, também, para ser cuidada [C2: nora].
A condição de morar sozinho pode levar a pessoa idosa a vivenciar inúmeros sentimentos e a enfrentar diversas situações, principalmente pela falta de contato com o familiar. A corresidência se torna, então, um instrumento facilitador para as trocas entre as gerações, proporcionando amparo em caso de problemas e evitando o isolamento social da pessoa idosa 11.
Observa-se que, o fato da filha e nora coabitarem com a pessoa idosa que morava só, e sentirem-se no dever de prestar o cuidado, passa a ter um significado conforme as expectativas sociais passadas de geração em geração, ou seja, o de dar continuidade à tradição familiar do cuidado intergeracional.
Assim, assumir o cuidado não é um ato pensado, uma possibilidade, mas, sim, uma imposição de tarefas ocultas pré-concebidas entre os membros familiares 12. Nesse contexto, o IS encontra aderência à compreensão do fenômeno em estudo, já que esse referencial considera que o comportamento de uma pessoa diante de determinadas situações ocorrerá de acordo com os significados e interpretações adquiridos por ela ao longo dos anos, ou seja, o cuidado à pessoa idosa, nessa categoria desvelado por evitar a solidão desses indivíduos, é resultado dos significados construídos e das interações estabelecidas.
O IS parte da premissa de que a maneira das pessoas agirem em relação às coisas e os significados formados desse processo são decorrentes da interação estabelecida entre os seres humanos.
Outro aspecto que favorece a corresidência é o falecimento do cônjuge, como se observa nas falas:
Mãe faleceu e ele ficou sozinho. Achávamos ele muito triste lá, sozinho o tempo todo, com muita dor de cabeça. Certo dia eu falei: pai, você quer vir morar comigo? Ele respondeu que sim e veio morar comigo [C1: filha].
Meu pai faleceu e ela morava sozinha. Eu a trouxe para morar comigo. Ela também já vinha adoentada [C13: filha].
A viuvez, muitas vezes, leva a pessoa idosa à condição de viver sozinha 11. Um número considerável de pessoas idosas passa a vivenciar a solidão emocional em decorrência da perda do companheiro. Essa perda muitas vezes se torna insustentável, fazendo com que o idoso recorra à família como a principal rede de apoio 13.
Com a morte do cônjuge, a pessoa idosa necessita adaptar o ambiente em que vive, reestruturar a composição familiar no espaço doméstico, ou, até mesmo, mudar para outros locais. Nesse sentido, verifica-se que as transições nos arranjos familiares é fruto de eventos que ocorrem no curso de vida dessas pessoas e se relacionam à natureza das trocas sociais, aos recursos financeiros, à saúde, às características demográficas e às necessidades da pessoa idosa 14.
Pesquisadores pontuam que o ato de cuidar perpassa pelo dever e obrigação moral, muitas vezes imposto socialmente. Destarte, observa-se que esse cuidado se baseia em valores sociais e culturais construídos a partir da interação entre os familiares 15. Assim, a coabitação de familiares com pessoas idosas torna-se fundamental no processo de transferências intrafamiliares de apoio e suporte. Reitera-se que essas se baseiam no processo de interação construído ao longo do tempo e têm por base o significado que as coisas representam para esses familiares.
Dificuldades financeiras de familiares
As falas revelam que filhos e netos coabitam com idosos devido às inúmeras dificuldades financeiras. Muitos destes não conseguem adquirir uma casa própria e residem, durante toda a sua vida com o idoso. Apesar da corresidência inicialmente surgir de uma necessidade do familiar, as falas nos remetem a pensar em uma solidariedade intergeracional, posto que os familiares são ajudados, mas, a pessoa idosa em algum momento também é auxiliada, como elucidam as falas:
Eu moro com minha avó, porque minha mãe não tem onde morar. A casinha de minha mãe ainda não saiu. Ela está sem trabalho [C9: neta].
Moro com mãe desde criança. A condição financeira foi fazendo com que eu ficasse aqui. Tenho que sair para trabalhar e mãe me ajuda ficando com os meninos. Aí quando chego, arrumo a casa. Eu ajudo ela e ela me ajuda [C8: filha].
Não tenho moradia. A condição é pouca para eu conseguir levantar uma casa. Eu tive que morar com minha avó. E assim a gente vai se ajudando. Eu faço comida na hora certa e lavo as roupas para ela. Neste momento estou sem trabalho [C19: neta].
Dificuldades financeiras potencializam as chances de familiares residirem com idosos. Em alguns momentos, esses se tornam fonte de ajuda econômica, ou, até mesmo, arrimo de família, contribuindo com os filhos e netos, a ponto de compartilhar sua renda com aqueles que não estão inseridos no mercado de trabalho. Os idosos também, por vezes, se beneficiam dos cuidados dos seus descendentes, uma vez que esses auxiliam nas tarefas diárias.
Na atual conjuntura, o idoso se apresenta como sustentáculo familiar, ou seja, sua renda é responsável pela manutenção da família 16, que muitas vezes vêm sua aposentadoria como a única fonte capaz de gerar renda. Estudo aponta que além da aposentadoria, os idosos complementam a renda familiar com trabalhos informais 17. Assim, a participação no orçamento familiar é uma das contribuições que o idoso desempenha no apoio às famílias 11.
A coabitação entre várias gerações é mais incidente entre famílias de idosos pobres. Existe um fluxo bidirecional de transferência de apoio, recursos e cuidados entre a pessoa idosa e seus familiares, configurando-se em importante estratégia de sobrevivência entre esses indivíduos 18. Entretanto, vale destacar que a coabitação aumenta o fluxo de ajuda financeira, porém, não garante apoio afetivo e amparo ao idoso em casos de dificuldade 19.
Destarte, a necessidade que o familiar possui de apoio funcional, emocional e principalmente financeiro, torna a pessoa idosa fonte direta de suporte, de modo que esses passam a se ajudarem na busca de um bem-estar coletivo.
Necessidades de cuidar da pessoa idosa
A necessidade de ofertar cuidados à pessoa idosa também se apresentou como fator contributivo para corresidência de familiares com pessoas idosas. Assim, idosos que apresentam fragilidades inerentes ao processo fisiológico de envelhecimento, limitações funcionais e problemas de saúde apresentam maiores chances de corresidirem com seus familiares, uma vez que necessitam de cuidados, como se observa nas falas:
As condições que ela morava na roça nos fez trazer ela para cá. Aqui é mais favorável à sua saúde, aqui podemos fazer de tudo por ela. Por conta da idade, ela precisa, pois já não anda assim direito, não tem tanto equilíbrio nas pernas [C3: neto].
Eu estou de perto, vendo a sua saúde, fazendo as coisas para ela na hora certa, a comidinha. Se eu não morasse com mãe, eu não ia poder cuidar dela. Morando aqui, eu sei de tudo que acontece com a saúde dela [C5: filha].
Eu preciso cuidar dela. É uma necessidade. Só tem eu para cuidar, preciso cuidar, porque ela tem problema de saúde, virou criança, pior que criança [C18: nora].
As falas demonstram que a corresidência possibilita aos familiares acompanharem o estado de saúde, bem como proporcionar melhorias na qualidade de vida da pessoa idosa. Neste contexto, verifica-se uma reversão de papéis, uma vez que as gerações mais novas passam a ter a responsabilidade de cuidar dos idosos que, no passado, lhes proporcionaram proteção e cuidado.
Da perspectiva do IS, os familiares constroem símbolos significantes para o cuidado que permeiam entre a retribuição, a responsabilidade e o dever moral para o cuidado. O estudo desvela que o ato de cuidar é resultado de uma construção social e representa, sob alguns aspectos, padrões interacionais e simbólicos.
Desse modo, a partir de fatos da vida cotidiana, o IS analisa a relação existente entre a sociedade e o indivíduo, o comportamento da mente e a construção de símbolos significantes 7.
Com o avançar da idade, a incapacidade funcional ou cognitiva torna a pessoa idosa mais carente de cuidado e, consequentemente, mais suscetível a novos arranjos domiciliares de suporte, passando a depender da ajuda de seus familiares 19. Nesse sentido, a pessoa idosa passa a depender da ajuda de seus familiares para o desempenho das suas atividades da vida diária 20, visto que as redes formais de apoio ao idoso ainda são incipientes.
É possível constatar, neste estudo, que o cuidado à pessoa idosa perpassa por gerações de filhos, netos e noras. Nesse pensar, o IS traz que o agir do ser humano é baseado na construção de significados e a interação social estabelecida entre esses indivíduos reflete no comportamento e no cuidado que familiares têm para com o idoso.
Observa-se, ainda, que o familiar percebe o idoso como uma criança, o que de certa forma pode interferir na conduta e no comportamento ao cuidar. O depoimento de C18 (nora) retrata a infantilização do cuidador com o idoso:
[...] é uma necessidade, preciso cuidar, virou criança, pior que criança [C18: nora].
A infantilização da pessoa idosa tem se tornado algo recorrente e a velhice passa a ser concebida como um retorno à infância. Essa visão infantilizada relaciona-se diretamente com a dependência física que a pessoa idosa tem para executar suas atividades cotidianas. No entanto, vale ressaltar que as experiências, vivências e capacidades da pessoa idosa são ignoradas, o que culmina na perda de autonomia desses indivíduos 21.
As famílias assumem cada vez mais a responsabilidade no cuidado domiciliar ao idoso, e nesse sentido, elas precisam de uma assistência adequada, visto que necessitam desenvolver habilidades e competências, bem como se reestruturarem para atender as demandas de cuidado a esses indivíduos.
Dessa forma, torna-se relevante que profissionais de saúde das ESF ofertem suporte às famílias, bem como lancem mão de estratégias que contribuam para a melhoria da qv do familiar cuidador, que repercutirá diretamente no cuidado prestado ao idoso. As equipes de saúde da família devem valorizar atividades de educação em saúde como grupos de convivência e de apoio, ensino do autocuidado e visitas domiciliares, para atentar as necessidades de saúde do cuidador familiar 22.
Avós como provedoras de cuidados aos netos
No contexto atual, as avós se tornaram fundamentais no apoio à família, uma vez que assumem os cuidados aos netos quando os pais encontram dificuldades para conciliar os compromissos profissionais com a criação dos filhos; se mostram ausentes (abandono) ou negligentes e, quando vivenciam conflitos conjugais insustentáveis.
As falas abaixo retratam o papel de provedor de cuidados que as avós têm desempenhado:
Minha mãe largou eu e meu irmão aqui (na casa da avó). Meu pai não criou a gente, me abandonou desde os seis anos de idade, nunca cumpriu nada. Eu não tive opção, tive que ficar com minha avó mesmo [C4: neto].
Minha mãe foi trabalhar e eu fiquei com minha avó. Fui criado por ela. Gosto demais dela, é uma mãe para mim. Moro com ela desde pequeno. Tenho pouco contato com minha mãe [C16: neto].
Meus pais brigavam muito, separavam direto um do outro. Eu era bem pequena e não tinha nem um mês de nascida, quando minha avó me levou para morar com ela. Já estou com 21 anos [C14: neta].
Os depoimentos evidenciam que as avós se tornam a rede de apoio concreta dos netos, que por algum motivo não dispõem dos cuidados dos pais. Essa participação nos cuidados dos netos nem sempre se configura em uma ação voluntária, a ser negociada entre os envolvidos, mas, em algo muitas vezes socialmente posto, devido à construção simbólica que as avós desempenham na sociedade perante seus netos.
As avós incorporam a responsabilidade materna, se sentindo mais mãe do que avós, atuando como mães substitutas e assumindo a responsabilidade integral por seus netos 23,24. Também assumem por sentirem pena das filhas por trabalharem muito, ou por estarem separadas, pela falta de tempo de cuidarem dos filhos 24, evidenciando uma forte solidariedade intergeracional entre mães e filhas 25.
Nesse contexto, autores pontuam que netos jovens, que vivem em domicílios de menor renda apresentam maiores chances de serem cuidados pelas avós, em contrapartida, as chances de os netos serem cuidados pelas avós diminuem com o aumento da escolaridade da avó 19.
Em virtude das diversas relações estabelecidas e das experiências familiares vivenciadas nos novos arranjos familiares, observa-se que o símbolo daquela avó na cadeira de balanço, contando histórias, significando apenas respeito e tranquilidade é descontruído, dando lugar a avó ativa, protagonista e responsável pelo cuidado e sustento dos seus dependentes. Na contemporaneidade, construiu-se um significado simbólico diferente para as avós idosas.
Nesse pensar, autores descrevem o símbolo como algo que vemos, que interpretamos, sendo esse responsável por dar sentido à ação individual e por possuir um significado que, por sua vez, é resultado da interação social 25.
Ressalta-se o problema social que permeia essa configuração familiar, uma vez que nem sempre as avós têm condição suficiente para o sustento e educação dos netos 26, já que arcar com as despesas do neto causa impacto na vida financeira destas pessoas, tendo que redistribuir sua renda 27.
Outro ponto a refletir é que, apesar de todas as atribuições e responsabilidades direcionadas às avós, vale pontuar a solidariedade que se estabelece entre as gerações, pois, para muitos idosos, conviver com seus netos é uma oportunidade de companhia e de reconhecimento pelos ensinamentos transmitidos.
Nesse sentido, autores acrescentam a importância dos idosos poderem desfrutar da companhia de seus netos. Essa se torna um dos principais benefícios da corresidência, permitindo que as pessoas idosas não se sintam sozinhas, mas amadas e respeitadas pelas gerações mais jovens 18. Assim, é imprescindível considerar que, não obstante a ênfase esteja voltada, na maioria das vezes, para benefícios na vida dos netos, a recíproca acontece, já que os idosos desfrutam da companhia dos netos.
Essa categoria revelou, então, que as modificações ocorridas no entorno familiar em virtude do envelhecimento populacional trazem o destaque para as avós como provedoras de cuidados dos netos e para o companheirismo entre gerações, apesar das dificuldades.
Conclusões
O estudo evidenciou que a coabitação de familiares com pessoas idosas é uma realidade de famílias com baixa renda e, se mostra fundamental para evitar a solidão da pessoa idosa, amenizar as dificuldades financeiras de familiares, suprir as necessidades de cuidados da pessoa idosa, bem como para a transferência de cuidados de avós idosas para seus netos.
Constatou-se também que, apesar das constantes mudanças ocorridas na conformação das famílias brasileiras, permanecem os significados simbólicos tradicionalmente atribuídos à família, ou seja, como a principal provedora de cuidados e como a responsável pela transferência de apoio informal a seus descendentes. Apreendeu-se, então, uma construção social que perpassa gerações.
Destarte, haja vista que o envelhecimento da população brasileira e a diversidade de arranjos familiares constituídos são uma realidade emergente no cenário contemporâneo, compreende-se a necessidade de mais pesquisas com foco nas transferências familiares intergeracionais, com destaque para as avós, que emergem como protagonistas na vida de seus netos.
Além disso, o estudo servirá para construção de um conhecimento teórico na área da saúde da família, bem como contribuirá para que profissionais de saúde, com destaque para enfermagem, se aproximem da complexidade que enlaça o contexto familiar, de modo a subsidiar sua prática assistencial, de ensino e pesquisa com famílias intergeracionais que convivem com pessoas idosas.
Assim, o estudo desvela que a conformação de arranjos familiares com pessoas idosas é resultado de uma construção social e representa, sob alguns aspectos, padrões interacionais e simbólicos.