Introdução
A qualidade em serviços de saúde vem sendo discutida com maior ênfase desde o surgimento dos modelos de qualidade em 1940. Ao conceito de qualidade, atrela-se a percepção daquele que avalia ações e serviços 1-3. Por isso, medir a satisfação dos usuários nas instituições de saúde é algo apontado como necessário, uma vez que a percepção da qualidade está relacionada às expectativas dos usuários com base em suas experiências 1.
A satisfação dos usuários vivendo com HIV no que se refere à qualidade de ações e serviços para o cuidado dessa condição ainda é um aspecto pouco explorado no cenário nacional, embora seja considerada um instrumento relevante para avaliação das práticas em saúde. Destaca-se o registro de insatisfação por parte dos usuários em atendimento ambulatorial de um hospital referência estadual na Região Nordeste com os serviços e o atendimento oferecidos, sinalizando fragilidades no respeito à privacidade, relacionamento com profissionais, oferta de suporte e orientações para tratamento 2.
Estudos internacionais têm apontado que a percepção desses usuários sobre a satisfação em relação à qualidade dos serviços prestados pode variar em diferentes contextos 3-5, e que alguns fatores podem influenciar no resultado. Dentre os fatores relacionados mencionam-se: sexo, idade, tempo de convivência com o HIV, tempo de uso de terapia antirretroviral, estado marital, educação, religião, emprego e renda 6. Somam-se a estes os seguintes aspectos: estrutura e organização dos serviços de saúde, bem como a percepção da assistência recebida 2,7.
Diante do contexto histórico de marginalização do atendimento e sentimento de exclusão pelo estigma da doença 8, destaca-se que o entendimento dos possíveis fatores relacionados à satisfação das pessoas vivendo com HIV pode auxiliar profissionais e gestores dos serviços de saúde na implementação de práticas de cuidado inovadoras. Assim, aprimora-se a assistência prestada com base na percepção dos usuários que frequentam os serviços especializados em HIV e, ao atingir as necessidades e expectativas dessas pessoas de forma eficaz, as instituições de saúde estarão promovendo serviços de qualidade 1.
Nessa direção, este estudo tem por objetivo descrever as características dos usuários vivendo com HIV que utilizam um serviço de referência no Estado de Santa Catarina, Brasil, e comparar a satisfação entre os usuários da unidade ambulatorial e internação.
Método
Trata-se de um estudo de abordagem quantitativa com delineamento transversal, realizado em um serviço de referência no município de Florianópolis em Santa Catarina, Brasil.
O hospital possui porte médio, conta com 104 leitos ativos, sendo o atendimento totalmente público e gratuito. O ambulatório registra uma média de 2000 consultas por mês, sendo que 50 % destes atendimentos são de pessoas com HIV ou Aids. Além disso, tem uma média de 120 atendimentos de acidentes com material biológico ao mês. Em relação aos serviços de assistência direta a pessoas que vivem com HIV ou Aids, a instituição conta com duas unidades de internação com 26 leitos no total e com o Hospital-Dia (15 leitos, sendo 7 específicos para HIV/Aids). Além destes, as unidades de internação de tisiologia (20 leitos), pneumologia (24 leitos), isolamento (8 leitos) e UTI (9 leitos) dão suporte ao atendimento.
Os participantes foram 106 pessoas vivendo com HIV que frequentavam as unidades de ambulatório e de internação do serviço estadual de referência para doenças infecciosas e parasitárias, no Hospital Nereu Ramos, localizado na capital de Santa Catarina, Brasil. A seleção dos mesmos foi realizada por conveniência e os critérios de inclusão adotados foram: idade igual ou superior a 18 anos; ser usuário registrado no serviço de referência e ter diagnóstico de infecção pelo HIV há pelo menos um ano. Os critérios de exclusão utilizados foram: a avaliação subjetiva das pesquisadoras acerca da capacidade cognitiva dos entrevistados de compreensão do instrumento de coleta de dados e da capacidade de elaboração de respostas.
Os dados foram coletados de julho a dezembro de 2013, tendo como instrumento de coleta de dados um formulário com questões fechadas, abrangendo características sociodemográficas, clínicas e relacionadas à satisfação das pessoas vivendo com HIV no que tange à organização e/ou utilização dos serviços de saúde. A equipe para a coleta das informações foi composta por uma acadêmica de enfermagem e três enfermeiras, previamente treinadas para aplicação do instrumento.
A coleta dos dados se realizou no ambulatório e na unidade de internação. Após apresentação da finalidade e procedimentos da pesquisa, obteve-se o consentimento dos participantes (registrado em documento), e em seguida iniciava-se a coleta, em dois momentos. No primeiro momento, os usuários com HIV foram abordados no serviço ambulatorial, sendo convidados a participar da pesquisa enquanto aguardavam atendimento em sala de espera. Os que aceitaram participar eram encaminhados para uma sala reservada, onde se realizavam as entrevistas individuais, com os pesquisadores fazendo a leitura das questões e possibilidades de respostas. No segundo momento, foram convidados os usuários da unidade de internação, sendo seguido o mesmo protocolo de coleta de dados utilizado na etapa anterior, buscando preservar sua privacidade, aplicando o instrumento somente quando o usuário estivesse sozinho.
As variáveis utilizadas no estudo referem-se aos aspectos sociodemográficos (idade, identidade de género, estado marital, escolaridade e atividade laboral); clínicos (tempo de infecção pelo HIV) e atrelados à satisfação (disponibilidade dos cuidados para o tratamento do HIV; oportunidades/liberdade para falar sobre necessidades de cuidado do HIV; oportunidades/liberdade para dar sugestões para a melhoria no serviço -profissionais, outros usuários-; satisfação com as relações pessoais no serviço -profissionais, outros usuários-; satisfação com o acesso ao serviço; satisfação com o cuidado recebido).
Os dados coletados foram analisados por intermédio de estatística descritiva (médias, frequências e percentuais) e, para comparação entre proporções utilizou-se o teste do Qui-Quadrado. O nível de significância estatística foi estabelecido em 0,05, e as análises foram executadas pelo programa Statistical Package for the Social Science (SPSS)®, versão 20.
O estudo atendeu às normas apresentadas na Resolução n.° 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde 9 e teve aprovação do Comité de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, sob o Parecer de número 167.681/2013.
Resultados
O total de participantes do estudo foi 106; 67 eram usuários do serviço ambulatorial e 39, do serviço de internação. As características sociodemográficas (idade, identidade de gênero, estado marital, escolaridade, atividade laboral) e o tempo de infecção pelo VIH estão apresentados na Tabela 1 e Tabela 2.
A média de idade do total de participantes foi de 42,78 (± 12,3 anos). Houve predomínio de pessoas do gênero masculino (66 %) e do estado marital solteiro (38,68 %). Em relação à escolaridade, percebeu-se que a maioria dos participantes tinha ensino fundamental incompleto e poucos possuíam ensino superior.
No que concerne à atividade laboral, identificou-se que os usuários que frequentavam o serviço ambulatorial eram, na sua maioria, ativos economicamente, porém esse número diminui quando comparados aos usuários que se encontravam internados. A mesma comparação foi evidenciada em relação às pessoas aposentadas. Por fim, aponta-se uma proximidade no número de pessoas consideradas inativas/desempregadas em ambos os serviços.
Os dois grupos estudados foram homogêneos em relação às variáveis sociodemográficas. No entanto, em relação ao tempo médio de infecção pelo HIV, o mesmo foi maior nas pessoas que estavam utilizando o serviço de internação.
Os resultados dos fatores relacionados à satisfação estão apresentados na Tabela 3. Levando em consideração esses aspectos, evidenciou-se que a maioria dos participantes estava satisfeita com o serviço. Não houve diferença entre os grupos na comparação entre os fatores relacionados à satisfação, exceto para a variável Satisfação com o cuidado recebido, que apresentou um número de participantes satisfeitos significativamente maior no grupo "ambulatório". Ressalta-se ainda que, embora os resultados não tenham evidenciado diferença significativa entre os grupos para a variável oportunidades/liberdade para dar sugestões para a melhoria do serviço, verificou-se um maior percentual de participantes insatisfeitos no grupo "ambulatório".
Discussão
As características sociodemográficas apresentadas no presente estudo ratificam a mudança no perfil das pvha nos últimos anos 10. Os dados apontaram um predomínio de homens, solteiros e a média de idade entre os participantes de 42,78 (± 12,3 anos).
Ao se discutir vulnerabilidade ao HIV no contexto brasileiro, menciona-se que os indivíduos menos escolarizados, os homens e os mais velhos estão mais vulneráveis 7. No entanto, também se destaca uma tendência ao processo de feminização da epidemia nos últimos anos, ou seja, maior incidência de casos de HIV no sexo feminino 10. Tal achado não foi ratificado neste estudo, uma vez que a maioria dos participantes se autodeclarou do gênero masculino, corroborando, assim, com outras realidades 5,11.
O predomínio de participantes que cursaram apenas o ensino fundamental reforça a evidência de que o HIV vem atingindo as pessoas de baixa escolaridade 12. Esses achados caracterizam o fenómeno de pauperização da aids demonstrado na literatura atual 12.
Em relação à situação profissional, 44,34 % dos participantes do estudo referiram estar ativos economicamente, mas aproximadamente 35 % estavam desempregados ou inativos. Entre os participantes que estavam no setor de internação, o percentual de participantes desempregados ou inativos foi ainda maior (38,5 %), sugerindo que as complicações da doença e a necessidade de internações possam comprometer as atividades profissionais destes indivíduos. Esses resultados corroboram com outros estudos realizados em países em desenvolvimento 5,13, que também apontam percentuais altos de desempregados ou freelancers.
O percurso dos usuários nos serviços de saúde está norteado por algumas necessidades, dentre elas, a comunicação entre usuários e equipe de saúde, o acesso e o cuidado recebido 14. Neste estudo, os participantes mostraram-se satisfeitos em relação à disponibilidade dos cuidados e à rede de serviços para o tratamento do HIV. Em estudo realizado em outra realidade, na República Islâmica do Irã, houve insatisfação dos participantes com relação a este aspecto 15.
A avaliação da qualidade do atendimento para as pessoas vivendo com HIV pode ser identificada por meio da verificação dos aspectos atrelados à satisfação em relação ao atendimento prestado, sendo que há oportunidades/liberdade para falar sobre necessidades de cuidado do HIV /Aids, bem como para dar sugestões de melhoria do serviço é fator primordial para o alcance dessa satisfação 16.
A maioria dos entrevistados relatou estar satisfeita em relação à oportunidade/liberdade para dar sugestões de melhoria no serviço. Isto leva-nos a crer que os serviços de referência em HIV/Aids necessitam avaliar tal aspecto em suas práticas de cuidado, uma vez que se trata de um relevante indicador de qualidade, o qual pode ser capturado por meio dos relatos dos pacientes, muitas vezes, pouco valorizados na prestação dos serviços de saúde 16.
No que tange às relações pessoais, os participantes de ambos os grupos (ambulatório e internação) apontaram que a relação estabelecida, tanto com os profissionais quanto com outros usuários do serviço, foi satisfatória.
A avaliação do processo de atendimento de alguns serviços de saúde sob a ótica dos usuários identifica os aspectos comunicação/interação e profissional-cliente como itens necessários para a avaliação da qualidade dos serviços de saúde 17. Esta mesma avaliação apontou como satisfatória a relação usuário/equipe de saúde, porém destacou que, para o alcance do nível ideal, faz-se necessário aprimorar o fornecimento de informações e as ações voltadas para segurança do usuário 18.
Em contrapartida, um estudo realizado na Holanda destacou uma série de experiências negativas entre as relações das pessoas vivendo com HIV e os profissionais de saúde, dentre elas: interações sociais inábeis, culpa, pena, precauções excessivas e tratamento diferenciado, recusa ou relutância para prestar cuidados, encaminhamentos desnecessários, diagnóstico tardio, atrasos de tratamento, descuido com confidencialidade, experiência limitada com consequente limitação de conhecimento para cuidar dessa população, curiosidade a respeito de como o HIV foi adquirido, dentre outras 19. Isto ratifica a relevância de explorar os aspectos envolvidos na relação profissional-paciente, já que se trata de um indicador de desempenho 14.
Outro ponto a ser discutido é a questão do acesso, avaliada com frequência nos serviços de referência em HIV/Aids nos últimos anos 14-20. Os participantes deste estudo mostraram-se satisfeitos com o acesso, pois existe uma agenda diferenciada para consultas em ambulatório para as pessoas com HIV, com vagas reservadas em caso de urgência. O acesso é considerado um elemento essencial para um serviço de qualidade, e sua falta pode tornarse um grande obstáculo na prestação dos serviços de saúde dessa população, geográfica e economicamente, ou quando as necessidades de cuidado se apresentam e não encontram respostas ou condições de acesso nos serviços.
Dessa forma, o acesso universal aos serviços para tratamento e cuidado do HIV/Aids de forma equitativa e de alta qualidade é fator primordial para o enfrentamento da epidemia da Aids, sendo também considerado uma nova tecnologia de prevenção 21,22 e, por isso, vem sendo discutido mundialmente 23,24. Isto justifica as novas estratégias globais para controle do HIV no mundo, como é o caso da meta 90-90-90, a qual esclarece a necessidade de que, até 2020, 90 % das pessoas vivendo com HIV em todo o mundo devam estar diagnosticadas, tratadas e com supressão viral 25.
Além do acesso, o cuidado também é apontado como uma necessidade a ser compreendida na ótica dos usuários dos serviços de saúde para melhoria da assistência prestada 14-23. A satisfação das pessoas vivendo com HIV em relação ao cuidado recebido mostrou-se positiva e significativa tanto para os usuários do serviço ambulatorial, quanto do serviço de internação.
A satisfação com o cuidado recebido pode estar atrelada a uma concepção fragmentada dos usuários sobre o seu cuidado, uma vez que, mesmo diante de discussões aprimoradas em relação às redes de atenção em saúde, ainda vivenciamos uma fragmentação dos níveis de atenção, com a consequente fragilidade no sistema de referência e contrarreferência entre os serviços 14.
Uma percepção fragmentada do cuidado pode reforçar a percepção das pessoas vivendo com HIV de que a disponibilidade de cuidado é mais adequada nos serviços nos quais são prestados cuidados mais específicos, como no caso dos serviços de referência em HIV/Aids 14. Assim sendo, considera-se que os resultados desta pesquisa não refletem a satisfação dos usuários em relação aos outros níveis de atenção ou outros contextos e que novos estudos podem ser realizados, buscando conhecer a percepção do usuário em diferentes realidades. Aponta-se que a configuração atual da infecção pelo HIV como sendo uma condição crónica de saúde, bem como uma doença complexa, reforça que a atenção às pessoas vivendo com essa condição deve assumir um caráter interdisciplinar, com ações multiprofissionais, para que se possa alcançar a integralidade do cuidado.
Conclusão
A maioria dos participantes deste estudo foram homens, solteiros, com baixa escolaridade e em idade economicamente ativa, mostrando as variações do perfil epidemiológico das pessoas vivendo com HIV. A satisfação dessas pessoas com o serviço de referência demonstrou-se satisfatória na totalidade dos aspectos investigados. Tais aspectos podem estar vinculados aos indicadores de qualidade dos serviços prestados, tornando-se necessário explorá-los em outros contextos e, assim, contribuir para a integralidade do cuidado desta população.