Introdução
Os tumores pediátricos, que acometem indivíduos entre 0 e 19 anos, correspondem ao percentual de 1 a 4 % do total de tumores malignos, na maioria das populações. Nos países em desenvolvimento, como o Brasil, o câncer pediátrico representa de 3 % a 10 % do total de neoplasias 1.
O tratamento do câncer infantil é prolongado e demanda, comumente, repetidas internações hospitalares 2,3. O hospital, apesar de expor a criança a procedimentos invasivos e experiências físicas e emocionais desagradáveis 3,4, também se configura como o local onde se espera alcançar a cura da doença por meio do tratamento proposto 5, adquirindo, assim, significados ambivalentes para os pacientes.
Além da hospitalização, a criança precisa lidar com as demandas e consequências do tratamento. Atualmente, as principais modalidades de tratamento oncológico são: cirúrgico, radioterápico e quimioterápico. A quimioterapia consiste no emprego de substâncias químicas que são capazes de exterminar o tumor ou impedir seu crescimento, atuando principalmente contra células que se dividem rapidamente, por atuarem na divisão celular 6. Embora eficaz, a quimioterapia exige uma reestruturação do cotidiano da criança, devido às frequentes internações; ao afastamento da família, do lar, da escola; aos efeitos colaterais das medicações, tais como náuseas, fadiga, alopecia e alteração do paladar, a qual acarreta, inclusive, em diminuição e modificação da alimentação 7.
Ao adoecer, a criança lida com quatro experiências estressantes: o adoecimento em si, o sentido que ela dá a essa doença, a busca por desenvolver estratégias de enfrentamento comportamentais e cognitivas e a implementação dessas estratégias 8. Visando a amenizar essas vivências estressoras e facilitar a adaptação da criança à nova situação, esta deve ser auxiliada a desenvolver suas estratégias de enfrentamento 4.
Um estudo que realizou meta-análise acerca do enfrentamento de crianças com câncer 9, indicou que o termo enfrentamento é geralmente definido na literatura como um processo cognitivo e/ ou comportamental que visa minimizar ou tornar mais fácil de tolerar situações estressantes, tais como o tratamento de neoplasias. O brincar pode auxiliar a criança a enfrentar situações estressantes, como o tratamento de uma doença grave e a hospitalização. Pode influenciar o equilíbrio entre a criança e o ambiente, favorecendo a sensação de controle da situação e promovendo saúde e bem-estar 10.
As crianças com câncer desenvolvem esforços constantes para enfrentar o adoecimento e a hospitalização, porém, em alguns casos, têm dificuldades para encontrar as estratégias eficazes para lidar de forma menos traumática com o tratamento. Os relatos dos pacientes que já desenvolveram algumas estratégias que favorecem o enfrentamento da quimioterapia podem direcionar de forma efetiva a intervenção dos profissionais de saúde com outras crianças que estão iniciando o processo de tratamento e/ou que ainda não tenham elaborado suas próprias estratégias 4. Nesse sentido, realizou-se uma investigação, norteada pela seguinte questão de pesquisa: quais as estratégias eleitas por crianças com câncer hospitalizadas para favorecer o enfrentamento da terapêutica quimioterápica? A partir desta pesquisa, identificaram-se as estratégias, merecendo destaque a contribuição do brincar, a qual será o foco deste artigo. Portanto, o objetivo deste estudo é compreender o brincar como estratégia para enfrentamento do tratamento quimioterápico em crianças.
Método
Estudo exploratório, com análise qualitativa dos dados, realizado no setor de oncologia infantoju-venil de um hospital universitário, público, do interior paulista. Foi aprovado pelo Comité de Ética da instituição onde a investigação foi realizada e, além do consentimento dos pais, os pesquisadores obtiveram o assentimento das crianças participantes.
A coleta de dados ocorreu no período de abril de 2010 a maio de 2011. Foram convidadas a participar da pesquisa todas as crianças entre 7 e 12 anos de idade, as quais possuíam diagnóstico de câncer, que se encontravam em tratamento quimioterápico há pelo menos 3 meses, e hospitalizadas no momento da coleta.
Todas as crianças convidadas aceitaram prontamente participar do estudo. Realizou-se, com cada participante, uma entrevista semiestruturada, de forma lúdica, no próprio quarto da enfermaria oncológica em que a criança se encontrava internada, especificamente, utilizando-se o leito ou a mesa de cada participante. Para tal, utilizou-se um fantoche confeccionado pela própria criança, para representá-la, e outros bonecos confeccionados previamente pela primeira autora deste estudo, visando a despertar o interesse e curiosidade dos participantes e incentivando-os a se engajarem ativamente na pesquisa. Para potencializar a característica lúdica da entrevista e facilitar a expressão da criança, a pesquisadora utilizou um avental colorido como cenário, elaborado especialmente para este fim. Foi dada a oportunidade às crianças de escolher participar da pesquisa na presença dos pais no momento da coleta de dados, embora alguns participantes tenham se sentido à vontade para permanecer na companhia apenas da pesquisadora durante a entrevista.
As entrevistas, mediadas pelo uso dos fantoches, iniciaram-se com uma questão norteadora abrangente: "Conte-me como tem sido o seu tratamento aqui no hospital". Como se tratou de uma entrevista semiestruturada, não se seguiu estritamente um roteiro de perguntas, porém, a partir das respostas das crianças, outras questões foram abordadas e aprofundadas pela pesquisadora, relacionadas ao conhecimento do diagnóstico, à hospitalização, contato com equipe multiprofissional, atividades cotidianas e religião. Desta forma, partindo-se dos próprios discursos das crianças, foram abordadas a terapêutica quimioterápica hospitalar, a dor e efeitos colaterais e suas consequentes estratégias de enfrentamento. O tempo de duração das entrevistas variou de 14 a 31 minutos e foi necessário apenas um encontro com cada criança para explorar o fenómeno investigado.
Como recurso auxiliar, também foram consultados os prontuários clínicos dos participantes para a coleta de dados demográficos e da terapêutica, tais como data de nascimento, informações acerca do diagnóstico, história da enfermidade atual, tempo de quimioterapia, outros tratamentos atuais ou aos quais a criança já havia sido submetida.
Foi realizada a análise de conteúdo dos dados obtidos, do tipo temática indutiva 11, com base nos seis passos descritos pelos autores, a qual consiste em uma forma de análise dirigida pelos dados, uma vez que a identificação dos temas não é conduzida por interesses teóricos do pesquisador. Inicialmente, foi realizada a transcrição das entrevistas e a imersão nos dados, a partir da leitura exaustiva dos discursos das crianças. Na sequência, identificaram-se códigos, que foram então agrupados em temas de análise, os quais foram posteriormente revisados e nomeados, dando origem às categorias de análise. Os depoimentos dos participantes foram analisados em um nível latente, não explícito, que vai além do conteúdo semântico dos dados, identificando o significado que se encontra também "nas entrelinhas" do que foi dito 11.
Dentre as categorias temáticas elaboradas, identificamos as seguintes estratégias de enfrentamento desenvolvidas e utilizadas pelas crianças com câncer, hospitalizadas, em tratamento quimioterápico: i) conhecimento e compreensão do diagnóstico e seu tratamento; ii) o vínculo afetivo entre a equipe de saúde e as crianças; iii) medidas farmacológicas e não farmacológicas para o alívio de náuseas, vómitos, alopecia e dor; iv) alimentação: o prazer proporcionado pelo controle da situação; v) religião e esperança de cura; e vi) distração e brincadeiras: a melhor parte da hospitalização. Ao relatarem suas vivências durante a quimioterapia, e o que os auxiliavam a enfrentar esse tratamento e suas consequências, grande destaque foi dado pelas crianças ao brincar, caracterizado como a melhor parte da hospitalização e, portanto, foco deste artigo.
Resultados
Participaram da pesquisa 10 crianças (5 meninas e 5 meninos) que possuíam diagnóstico de: Osteos-sarcoma (n = 3), Leucemia Linfóide Aguda (n = 2), Linfoma Não-Hodgkin (n = 2), Sarcoma de Ewing (n = 1), Rabdomiossarcoma (n = 1) e Meduloblastoma (n = 1). O tempo entre o diagnóstico do câncer e a coleta de dados variou de 4 meses a 2 anos e 9 meses, e as crianças, além de realizarem quimioterapia, haviam sido submetidas a cirurgias (n = 7), radioterapia (n = 2) e ao transplante autólogo de medula óssea (n = 1).
Em seus discursos, os participantes referiram grande incómodo com a ociosidade enfrentada nas hospitalizações. Durante as internações, a pouca oferta de atividades e brincadeiras e a dificuldade para locomoção em virtude da necessidade de estarem dependentes das bombas de infusão de medicamentos, associadas à fadiga e mal-estar geral provocados pelo adoecimento e tratamento, contribuíram para a ociosidade enfrentada e referida pelas crianças com câncer hospitalizadas, como ilustrado nos dois depoimentos que seguem:
Ai, [é chato] porque às vezes não tem nada pra fazer [menina, 12 anos].
É a falta [de atividade], porque não tem nada pra fazer! [menino, 12 anos].
Esta ociosidade se contrapõe às brincadeiras, que se configuram, na opinião das crianças, como a melhor forma de ajudar a passar o tempo no hospital, mas que, entretanto, ainda não ocorrem com a frequência que desejariam:
Pesquisadora: [...] Então nunca tem nada pra você fazer aqui?
Criança: Só de vez em quando. [...] Uma brincadeira [menino, 12 anos].
Ah, pra distrair, às vezes, eu leio um gibi, desenho, pinto [menina, 12 anos].
Os participantes chegaram, inclusive, a referir que as brincadeiras oferecidas durante a internação consistiam no único aspecto positivo do fato de estarem hospitalizados por conta do tratamento oncológico, como exemplificado no trecho abaixo, extraído do diálogo:
Pesquisadora: Tem alguma coisa boa no tratamento que você está fazendo?
Criança: Ai, é que dá pra desenhar... Essas coisas [menina, 12 anos].
As crianças valorizaram a existência de brinquedos próprios do hospital, mas buscando maior semelhança com o ambiente domiciliar e aumento das opções para distração, os participantes relataram trazer seus brinquedos preferidos, de casa para o hospital:
Eu trago [para o hospital] meu coelhinho, eu trago minhas bonecas, minhas panelinhas, minhas coisas de escola, eu trago muitas coisas [...] pra 'mim' brincar. Às vezes, aqui tem brinquedo, mas tem várias coisas que eu tenho que aqui não tem [menina, 10 anos].
Ah, trago para o hospital [cita alguns nomes] minhas bonecas [menina, 9 anos].
Ao referirem-se aos recursos lúdicos e tipos de brincadeiras possíveis de serem realizadas no contexto hospitalar, destacou-se a preferência das crianças, especialmente das mais velhas, por jogos no videogame e computador, sendo este último, associado ao uso da internet e das redes sociais:
Eu trago [para o hospital] o compu tador, eu me distraio mais com ele! Eu escuto música, jogo. Faço tudo pela internet [menino, 11 anos].
Ai, mais pelo computador mesmo [mantém amizades], porque as pessoas que eu conheço pela internet, aí eu converso mais [menina, 12 anos].
Em relação ao local que possuem para brincar, além do próprio leito ou quarto da enfermaria, as crianças referiram-se ao parque e ao jardim, no pátio externo do hospital, e à sala de recreação hospitalar, na qual, no período da tarde, é oferecida recreação, sendo disponibilizados alguns jogos e atividades gráficas:
[...] eu vou lá embaixo onde tem parquinho pra brincar! [menina, 7 anos].
[Eu vou] lá na salinha [sala de recreação hospitalar], pra brincar, de vez em quando [menino, 12 anos].
Entretanto, relataram que o fato de precisarem, grande parte do tempo, ficar conectadas à bomba de infusão de medicamentos, limitava o acesso a estes locais:
Quando eu faço quimioterapia, aí eu fico muito na bomba, assim, aí eu não posso [sair do quarto]. Mas quando eu só faço medicamento, aí eu saio, vou lá embaixo [no pátio externo] [menina, 12 anos].
Os participantes dessa pesquisa referiram-se também à intervenção da terapia ocupacional, como diretamente responsável pelas atividades lúdicas, expressivas e artesanais oferecidas. Tais atividades foram apontadas como estratégias favorecedoras do enfrentamento da hospitalização, uma vez que, em suas opiniões, possibilitaram distração, uma sensação subjetiva de passagem mais rápida do tempo e maior aproximação do cotidiano vivido no contexto extra-hospitalar.
Ah, às vezes eu faço alguma atividade [da terapia ocupacional]. Aí o tempo passa e aí é bom [...]. Gosto mais de pintar, mexer com tinta, essas coisas assim [menina, 12 anos].
Eu pinto, eu desenho, eu faço quadro. A gente brinca, a gente faz bonecos, faz várias coisas! [referindo-se aos atendimentos de terapia ocupacional]. Eu gosto [...] porque ajuda a passar a hora e você até esquece, às vezes, que 'tá' aqui no hospital [menina, 10 anos].
Além disso, a correlação do trabalho desenvolvido pela terapia ocupacional com o brincar foi referida como o fator que as crianças mais gostam no tratamento hospitalar. Particularmente, as opções de brincadeiras oferecidas pela terapeuta ocupacional, como jogos e pinturas, foram citadas como as de maior preferência dos participantes, como ilustrado no exemplo a seguir:
Pesquisadora: O que você mais gosta nas pessoas que trabalham aqui no Hospital?
Criança: Das brincadeiras. [E então se refere à terapeuta ocupacional da equipe de saúde] [menino, 12 anos].
O trabalho voluntário desenvolvido por graduandos, caracterizados como palhaços, vinculados a um projeto de extensão universitária na clínica pediátrica, foi citado pelas crianças como um diferencial da instituição onde a pesquisa foi realizada:
Pesquisadora: Já veio alguém aqui brincar com você?
Criança: Já. Veio quando eu estava internado. As palhaças [...] Nenhum deles [outros hospitais] teve um animador no quarto, pra dar uma alegrada nas crianças [menino, 11 anos].
Em relação à televisão como fonte de distração, as crianças mostraram-se divididas em suas opiniões. Algumas consideraram este recurso um facilitador da passagem do tempo no hospital, mas sem muitos atrativos:
Dormir e assistir TV [referindo-se ao que tinha para fazer] [menina, 7 anos].
Já outras crianças referiram que a televisão não as auxiliava:
Pesquisadora: Televisão ajuda a passar o tempo no hospital?
Criança: Não! Não é brinquedo! [menina, 7 anos].
Pesquisadora: [...] Você gosta de assistir televisão, aqui?
Criança: Hum, hum [respondendo negativamente com a cabeça]. Você fica assistindo televisão e você fica pensando. Ah, e também tem vez que não passa nada de bom, nem tem nada pra fazer. Aí, é ruim [menina, 12 anos].
Discussão
As crianças com câncer submetidas à quimioterapia, devido ao risco de infecções, são isoladas em casa e no hospital, o que leva a um intenso sentimento de solidão e de perda de uma infância normal 12,13. Além disso, por permanecerem longos períodos no leito, recebendo medicações, sentem-se entediadas e ociosas 12. Entretanto, atividades lúdicas e prazerosas também podem ser desenvolvidas no ambiente hospitalar, minimizando a dor e o sofrimento 14.
O brincar pode assumir, para as crianças hospitalizadas, as funções de: distração dos procedimentos e rotina hospitalares; redução de sintomas de ansiedade; aproximação do cotidiano domiciliar; alívio para o ócio e tédio 2; alívio do sofrimento; melhora da qualidade da internação 15. Para brincar, as crianças referiram somar os recursos lúdicos oferecidos pelo hospital aos seus próprios brinquedos. Este achado confirma os de outros estudos 2,16, nos quais crianças com câncer também referiram que levar seus próprios brinquedos para a internação tornou o ambiente hospitalar similar a estar em casa, e relataram ainda que brinquedos disponibilizados pelo próprio hospital são importantes por possibilitarem a escolha entre várias brincadeiras.
Dentre as opções de atividades lúdicas, destacaram-se os jogos virtuais e uso de recursos da internet como preferidos pelas crianças. Um dos marcos do mundo contemporâneo é a velocidade da comunicação possibilitada pelo ambiente virtual da internet. Por meio dos computadores e internet, a criança com câncer pode manter seus vínculos pessoais e comunicar-se com pessoas de várias localidades 17. Essa interação, possibilitada pelo universo virtual, pode auxiliar essas crianças a enfrentar o isolamento e ociosidade decorrentes da quimioterapia, já que permanecem longos períodos em isolamento no hospital, com limitação de movimentos por estarem ligadas à bomba de infusão e pela fadiga, efeito colateral das medicações 18.
Os jogos eletrónicos também se apresentam como opções adequadas às necessidades das crianças em tratamento quimioterápico, uma vez que não contribuem para exacerbação de sintomas e piora do quadro clínico e, por outro lado, permitem que a criança fantasie e participe virtualmente de ativi apenas para tratamento dades típicas da idade escolar, suspensas temporariamente por conta do tratamento, como por exemplo, brincar com bola, andar de patins, bicicleta e praticar esportes como o futebol 3,5,19.
Ter um espaço onde as crianças com câncer possam experimentar interações não baseadas em medicações, exames e procedimentos é fundamental. Em geral, espaços como a brinquedoteca ou sala de recreação, são identificados como a parte boa, saudável, do hospital, devido às possibilidades de brincadeiras oferecidas. A lei n.° 11.104, de 21/03/2005, determina que todos os hospitais, públicos ou privados, que possuem crianças internadas, disponham de brinquedotecas em suas dependências 20. Entretanto, apesar da legislação vigente, é comum, ainda hoje, que estas instituições não possuam espaços humanizados, com brinquedos e ambientação voltados à população infantil 19.
As brinquedotecas consistem em espaços preparados especialmente para estimular a criança a brincar livremente, onde são disponibilizados diversos materiais lúdicos. São ambientes seguros e acolhedores onde ocorrem inúmeras brincadeiras, as quais favorecem a continuidade do desenvolvimento integral da criança, incluindo suas habilidades físicas e cognitivas, criatividade, autoestima, aprendizado de regras, superação de desafios e socialização 21. A falta de uma brinquedoteca ou de espaços lúdicos disponíveis para as crianças que se encontram internadas pode contribuir negativamente para o enfrentamento do tratamento quimioterápico durante as hospitalizações.
O local da infusão da quimioterapia também deve ser um ambiente lúdico, apresentando características de uma brinquedoteca, sem deixar de corresponder às exigências legais e sanitárias de um serviço de quimioterapia antineoplásica. Estes espaços, denominados quimiotecas, foram desenvolvidos apenas para tratamento ambulatorial, entretanto, acredita-se que as crianças que se encontram internadas também possam se beneficiar de um ambiente lúdico e, ao mesmo tempo, preparado para que possam receber ali a infusão da quimioterapia 19.
O cuidado integral ao paciente inclui a ambientação do hospital, o qual deve ser um local acolhedor e lúdico. Essa transformação do espaço hospitalar favorece a adesão ao tratamento e preserva os direitos das crianças 19,22.
Dentre as diversas possibilidades de uso do brincar enquanto estratégia terapêutica ou de distração, destacou-se, dentro da equipe de saúde, a atuação dos terapeutas ocupacionais. Embora as crianças deste estudo tenham se referido às atividades lúdicas oferecidas nos atendimentos terapêuticos ocupacionais apenas em termos de distração e satisfação, não se pode esquecer o caráter terapêutico que as brincadeiras assumem nesse contexto.
O brincar favorece a continuidade do desenvolvimento neuropsicomotor de crianças adoecidas 23. Através das brincadeiras, a criança recebe estímulos potencializadores de sua criatividade e autoestima, expressão de sentimentos e aquisição e aprimoramento de habilidades motoras e cognitivas 8,23,24. A utilização da arte e atividades lúdicas expressivas com crianças com câncer, hospitalizadas, favorece a autoexpressão e a resolução de problemas e auxilia a criança a enfrentar procedimentos invasivos e dolorosos 25. Assim, o brincar deve ser utilizado como recurso terapêutico, uma vez que favorece o desenvolvimento de estratégias positivas para lidar com o adoecimento e hospitalização, contribuindo para que a criança elabore e enfrente a situação vivida 6,15,26.
A terapia ocupacional fundamenta-se na compreensão de que o engajamento em atividades estrutura a vida cotidiana e se relaciona com a saúde e o bem-estar 27. Desta forma, o terapeuta ocupacional busca, a partir de suas intervenções, favorecer o desempenho das atividades que são significativas na vida da criança, dentre elas o brincar, que assume ainda a importância de desenvolver as habilidades de desempenho (motoras, cognitivas, sensoriais, emocionais e sociais) necessárias para a realização das tarefas e auxiliar na regulação emocional da criança adoecida.
Ao atuar com pacientes com câncer, inclusive em vigência de quimioterapia, a prática da terapia ocupacional contribui para aumentar o desempenho funcional e o engajamento social e auxiliar no controle da dor, influenciando de forma positiva na saúde mental do paciente, sua satisfação e qualidade de vida, em geral 28.
As crianças deste estudo se referiram ainda à importância do trabalho desenvolvido por alunos de graduação, voluntários, que se caracterizam como palhaços, parodiando a vestimenta, acessórios e a rotina de procedimentos médicos e de enfermagem comuns ao cotidiano hospitalar. Estes palhaços realizam suas intervenções com o objetivo de modificar o humor da criança hospitalizada, dos seus familiares e dos profissionais de saúde; de favorecer a adaptação aos termos técnicos e procedimentos; e minimizar a ansiedade dos pacientes e acompanhantes 14. Acredita-se que esta atuação contribua para o enfrentamento do adoecimento e da hospitalização, uma vez que favorece a adaptação dos pacientes ao ambiente hospitalar e preserva momentos de autonomia e prazer. Outras iniciativas dessa natureza apresentam propósito similar e, ainda, oferecem às crianças, através de recursos lúdicos e recreativos, informações sobre seu estado de saúde e sobre os procedimentos realizados 15.
Os recursos disponíveis no ambiente também são extremamente importantes para ajudar a criança a distrair-se durante os longos períodos de espera e aborrecimentos no hospital 7. Entretanto, observa-se que, para as crianças, os brinquedos contribuíram de forma mais significativa que a televisão para o enfrentamento da hospitalização. Do mesmo modo, em outro estudo 29, as crianças com câncer, quando questionadas acerca de quais estratégias de enfrentamento positivas faziam uso durante a hospitalização, em sua grande maioria citaram o brincar, enquanto que um número um pouco menor de pacientes referiu-se também a assistir à televisão.
Desta forma, acredita-se que, embora existam outros recursos para distração, as brincadeiras ganham destaque na preferência das crianças. Acredita-se ainda que o brincar foi facilmente identificado como recurso de distração pelos participantes devido à objetividade desta característica. Entretanto, faz-se importante enfatizar que o brincar adquire também funções mais subjetivas como uma das estratégias favorecedoras do enfrentamento da quimioterapia durante as internações, uma vez que aproxima o contexto hospitalar do cotidiano domiciliar e apresenta-se como facilitador da permanência da criança no hospital, caracterizando-se, para as crianças dessa pesquisa, como a melhor parte do tratamento.
Considerações finais
O brincar se configurou como estratégia eficaz para auxiliar crianças no enfrentamento da quimioterapia, realizada em regime de internação. No contexto estudado, o brincar auxilia as crianças a enfrentar a ociosidade imposta pela pouca oferta de atividades no ambiente hospitalar e pela constante necessidade de manterem-se conectadas às bombas de infusão de medicamentos.
Os brinquedos contribuíram para minimizar as barreiras existentes entre o hospital e a vida cotidiana. Estes serviram como elementos de ligação com o ambiente familiar -no caso das crianças que levaram seus brinquedos de casa- e com o meio, quando escolheram jogos virtuais ou navegar pela internet.
A existência de um espaço para brincar mostrou-se essencial para favorecer o enfrentamento de quimioterapia, tornando o ambiente hospitalar mais acolhedor e contribuindo para o desenvolvimento do cuidado integral dos pacientes. Embora as brinquedotecas sejam os locais idealizados para o desenvolvimento de práticas lúdicas, identificou-se que, na ausência destas, as crianças encontram diversão em outros espaços, como pátios, jardins e salas de recreação. Reforça-se a importância do investimento, por parte dos gestores dos hospitais, em brinquedotecas, espaços e materiais lúdicos de forma geral e na contratação de pessoal qualificado para conduzir e facilitar o brincar de crianças hospitalizadas, inclusive em tratamento oncológico. Dentre os profissionais que podem favorecer o brincar durante as internações, destacou-se a atuação dos terapeutas ocupacionais, entretanto outros profissionais, como os enfermeiros, podem incorporar o brincar ou o brinquedo terapêutico em suas práticas, com diferentes objetivos.
No âmbito da enfermagem, os enfermeiros se beneficiam com as possibilidades do brincar como estratégia de enfrentamento do tratamento quimioterápico, na medida em que a amplitude do fenómeno aqui apresentada fornece aos enfermeiros oportunidades para utilizar o brincar em sua prática clínica, qualificando o cuidado.
Neste estudo, devido ao número limitado de crianças em tratamento quimioterápico, na faixa etária eleita, durante o período estabelecido para a coleta de dados, foram incluídos participantes que se encontravam em distintos momentos do tratamento. Acredita-se que pesquisas futuras, que se proponham a acompanhar as crianças durante as etapas de seu tratamento, possam contribuir para a continuidade da construção do conhecimento acerca das estratégias de enfrentamento da quimioterapia durante as hospitalizações. Outros estudos também podem ser desenvolvidos com o intuito de investigar as estratégias de enfrentamento utilizadas por adolescentes com câncer, sendo necessário, para tanto, a eleição de técnicas para a coleta de dados que sejam atrativas e adequadas à etapa de desenvolvimento em que se encontram.
Acredita-se, por fim, que a partir da experiência das crianças deste estudo, outras possam ser auxiliadas pela equipe multiprofissional de saúde a também fazer uso do brincar como estratégia de enfrentamento, minimizando, assim, as repercussões inerentes ao tratamento oncológico hospitalar.