Introdução
Os estabelecimentos penais são utilizados pela justiça para a reclusão e a detenção de indivíduos que praticaram crimes. No Brasil existem diversos regimes de cumprimento de pena, destacando-se o regime fechado (estabelecimento de segurança máxima ou média), semiaberto, colônia agrícola, industrial, ou estabelecimento similar, e regime aberto. A maior parte das pessoas privadas de liberdade está detida no regime fechado, ou seja, cerca de 75 % da população carcerária se encontra em presídios e penitenciárias 1,2.
Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN) realizado em 2016, o Estado de São Paulo possui 240.061 indivíduos privados de liberdade 3, os quais vivem em ambientes que apresentam uma superpopulação em condições insalubres, com pouca ventilação e hábitos de higiene pessoal inadequados 4,5.
De acordo com a Lei 7.210/1984, grande parte dessa população recebe atendimento ambulatorial médico, farmacêutico, odontológico e de enfermagem no próprio estabelecimento penal. Quando o local não fornecer as condições necessárias à pessoa privada de liberdade, esta deverá ser encaminhada a outro serviço de saúde, desde que haja autorização da direção do estabelecimento penal. Desta forma, as emergências, os casos de alta complexidade ou as especialidades são encaminhados para locais de referência, conforme descrito no Plano Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional 6,7.
No sistema penitenciário, doenças como infecções sexualmente transmissíveis (1ST), Acquired Immunodeficiency Syndrome (AIDS), tuberculose, pneumonias, dermatoses, transtornos mentais, hepatites, traumas, doenças parasitárias, diarreias infecciosas, hipertensão arterial e diabetes acometem estes indivíduos com maior frequência 1,7,8. Apesar da elevada ocorrência de lesões de pele entre os privados de liberdade, não foram encontrados estudos epidemiológicos sobre essas lesões no sistema penitenciário.
As feridas podem ocorrer em qualquer fase da vida e estão presentes em todos os níveis de assistência 9-11. Podem causar desconforto, interferir na qualidade de vida do paciente e na rotina dos familiares devido à dor, dificuldade de cicatrização, odor e mudança de rotina, quando há necessidade de realizar curativos frequentemente 10,12,13.
Atualmente no Brasil, as feridas afetam um elevado número de pessoas e constituem um sério problema de saúde pública 9. Diante da insuficiência de dados sobre o tema no sistema prisional, este é um estudo preliminar sobre a realidade dessa população, onde também há pessoas com feridas que necessitam de cuidados rotineiros, assim como a população em geral. O objetivo do estudo é realizar levantamento de dados clínicos e epidemiológicos dos pacientes com feridas em uma unidade do sistema prisional no Estado de São Paulo.
Materiais e métodos
Trata-se de um estudo retrospectivo e descritivo em que foram levantados os prontuários de pacientes privados de liberdade atendidos no ambulatório da Penitenciária "Nestor Canoa" de Mirandópolis, localizada no interior do Estado de São Paulo, durante um período de 12 meses. O estudo foi iniciado após aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da UNIFESP (CAAE 59996916.0.0000.5505) e pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, sob parecer CAAE 59996916.0.3001.5563.
A Penitenciária "Nestor Canoa" de Mirandópolis está situada na região oeste do Estado de São Paulo. Nessa unidade, 2172 pessoas do gênero masculino cumprem pena em regime fechado e esta possui uma equipe de saúde para atendimento ambulatorial composta por um farmacêutico (que atualmente exerce a função de diretor de saúde), dois médicos, um dentista, sete agentes penitenciários, que se revezam a cada 12 horas de trabalho no setor de saúde, dois enfermeiros e dois auxiliares de enfermagem.
A coleta de dados deste estudo foi realizada de acordo com as etapas descritas a seguir: iniciou-se uma busca no livro de registro de atendimento diário efetuado pelo setor de saúde com a finalidade de identificar os pacientes que apresentaram lesões no período em questão. Posteriormente foram levantados os prontuários dos pacientes e coletados os dados demográficos como cor da pele, idade, escolaridade, bem como doenças e tipos de lesões que caracterizaram as feridas.
Durante a análise das informações coletadas, foi utilizado o software Excel (Microsoft). Os dados foram analisados por meio da estatística descritiva com frequência absoluta e relativa. Para descrever os valores da caracterização dos pacientes, foram utilizadas tabelas.
Foram analisados 52 prontuários de pacientes privados de liberdade, cuja idade variou entre 20 a 69 anos, com média de 37,21 anos. A amostra foi composta por homens de cor branca, o que corresponde a 51,92 %; cor parda, 42,31 % e cor negra, 5,77 % do total. A escolaridade predominante foi ensino fundamental incompleto, o que corresponde a 50,00 % da amostra (Tabela 1).
Na Tabela 2, estão registradas as doenças dos pacientes privados de liberdade. Dentre as doenças, a lesão medular estava presente em 41,67 % dos prontuários levantados e hipertensão arterial e insuficiência venosa foram encontradas em 16,67 % dos prontuários. Doenças como diabetes, HIV e sífilis também foram encontradas no levantamento, embora se apresentassem em número menor, ou seja, em 8,33 % dos prontuários.
As lesões levantadas nos prontuários de pacientes privados de liberdade foram distribuídas em: 22,95 % de queimaduras, 21,31 % de lesões por pressão, 16,39 % de lesões traumáticas e 11,48 % de feridas operatórias. Abscessos infectados com perda de tecido também foram reportados em 9,84 % dos casos, celulite bacteriana e deiscência de ferida operatória em 4,92 % deles, assim como a erisipela e a dermatite periestomal com um índice de 3,28 %. Neste levantamento, foi encontrado apenas 1,63 % de lesão por amputação com deiscência de ferida operatória (Tabela 3).
Discussão
A população prisional foi incluída no Sistema Único de Saúde em 2003 com a instituição do Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário pelos Ministérios da Saúde e da Justiça, por meio da Portaria Interministerial n.° 1777/2003, posteriormente revogada pela portaria Interministerial n.° 1 de 2 de janeiro de 2014, ampliando as ações de saúde para a população privada de liberdade 1,7. A Secretaria do Estado da Saúde e a Secretaria da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo elaboraram o Plano Estadual de Saúde no Sistema Penitenciário também em 2003. Tais ações se justificam pela exposição da população presa a inúmeros fatores de risco, além da quantidade significativa de casos de IST/AIDS, tuberculose, pneumonias, dermatoses, transtornos mentais, hepatites, traumas, diarreias infecciosas, entre outros 1,7,8.
Embora a legislação existente proteja a saúde do privado de liberdade, ainda há muitos problemas de saúde, assim como a falta de tratamento adequado e poucas oportunidades de prevenção de doenças 8,14,15. Neste estudo, além da caracterização da amostra, foram identificadas as doenças de base e os tipos de lesões.
A amostra foi composta por 100 % de indivíduos do gênero masculino, sendo 51,92 % da cor branca. O INFOPEN mostrou características similares quanto ao gênero. Entretanto, com relação à cor, a população prisional no país é composta por 53 % de negros e 46 % brancos 3.
Quanto ao baixo nível de escolaridade, os dados identificados em 50 % da amostra apontam para as precárias condições de vida associadas à baixa renda financeira que resultam em dificuldade de acesso às escolas. Segundo dados divulgados pelo INFOPEN 3, o perfil sociodemográfico da população carcerária mostra que 49 % possui entre 18 e 29 anos, 53 % é negra e 51 % possui até o ensino fundamental incompleto. De acordo com tal publicação, uma das formas de prevenção da criminalidade seria manter os jovens na escola.
As doenças mais frequentes em pacientes com lesão de pele encontradas no estudo foram sífilis, hiv, insuficiência venosa, diabetes, hipertensão arterial e lesão medular. Em 16,67 % dos pacientes, a insuficiência venosa e a hipertensão arterial estavam presentes, seguido de diabetes mellitus, HIV e sífilis, cada um representando 8,33 %. No estudo clínico-epidemiológico de pacientes com feridas crônicas na população em geral doenças como hipertensão e diabetes foram encontradas associadas às feridas 9.
No presente estudo foram encontrados 10 tipos de lesões, sendo destacadas as queimaduras como as mais frequentes (22,95 %), seguido de lesão por pressão (21,31 %) e lesão traumática (16,39 %).
Quanto às queimaduras, estas podem estar associadas à execução de trabalhos diários realizados na unidade prisional. Essas lesões foram detectadas em privados de liberdade que estavam desenvolvendo atividades laborais na cozinha. Em consonância com os resultados, o estudo que avalia o perfil clínico e epidemiológico das queimaduras através da revisão da literatura ressalta que parte dessas queimaduras acontece em virtude de manuseio de líquidos superaquecidos 16.
De acordo com a literatura, as queimaduras podem causar complicações clínicas, deformidades e deficiências limitantes e ainda atingir o paciente psicológica e socialmente. A epidemiologia destas lesões pode estar relacionada com crises sociais, práticas culturais e até com circunstâncias individuais. Grande parte das queimaduras ocorre em homens, tem natureza acidental e pode ser atribuída à exposição de atividades que demandam um esforço físico maior e apresentam risco elevado de acidentes 16.
Na Penitenciária "Nestor Canoa" de Mirandópolis, os privados de liberdade realizam atividades laborais na limpeza interna e externa; jardinagem; capi-nagem; manutenção e atividades de fabricação de prendedores de roupas, pulseiras femininas e cozinha. Importante ressaltar que a cozinha dessa unidade prisional é de grande porte e industrial, com estrutura para atender aproximadamente 2200 privados de liberdade e com probabilidade de ocorrer acidentes. As lesões apresentadas localizavam-se nos membros superiores (10,44 %) e ocorreram em privados de liberdade que realizavam atividades laborais na unidade prisional.
As lesões por pressão evidenciadas durante a coleta de dados foram identificadas nos prontuários de cinco pacientes privados de liberdade que sofreram lesão medular, resultando em um total de 13 lesões. De acordo com as informações levantadas, havia lesões recidivadas, localizadas em diferentes partes do corpo, lesões recentes e lesão por pressão em pacientes provenientes de outras unidades prisionais.
Os privados de liberdade portadores de deficiência física não possuem proteção nas proeminências ósseas, hidratação de pele nem superfície de apoio adequada para cama ou cadeira de rodas. Eles ficam expostos a fatores como umidade, cisalha-mento e são auxiliados pelos privados de liberdade em sua cela sem o preparo e orientação adequados. Esses fatores podem contribuir para desenvolver lesão por pressão. Além disso, a lesão medular, por apresentar como consequência o comprometimento da percepção sensorial e mobilidade física prejudicada, pode contribuir para o aparecimento de lesão por pressão.
Em estudo de avaliação epidemiológica das lesões traumáticas da medula espinhal realizado no Irã, os autores relataram as complicações mais prevalentes como a infecção do trato urinário, seguida por lesão por pressão estágio 3 e 4, (37,5 %) e, quanto à etiologia da lesão medular, foi atribuída como causa a violência com 3,8 % 17.
No Brasil foi realizada uma pesquisa sobre as características sociodemográficas das pessoas com lesão medular. O ferimento por arma de fogo representou 15,4 % dos casos e as lesões por pressão foram descritas como uma complicação secundária de incidência elevada 18. Outro estudo realizado no Brasil também demonstrou que a etiologia principal da lesão medular foi o ferimento por arma de fogo e a ocorrência elevada de lesões por pressão 19.
Em um estudo para determinar o valor preditivo dos fatores de risco de Braden em pacientes ambu-latoriais com lesão medular, a região sacral foi identificada em 60,7 % dos casos como o local com maior número de lesões por pressão 20.
Pacientes que permanecem em cadeira de rodas por períodos prolongados possuem maior risco de desenvolver lesão por pressão 21. As orientações e medidas preventivas podem contribuir para a prevenção dessas lesões e a manutenção da integridade cutânea.
Ainda que estudos de revisão sistemática quanto à eficácia das intervenções comportamentais ou educacionais na prevenção de lesões por pressão não tenham demonstrado evidências suficientemente positivas 22, alguns deles recomendam e reconhecem as intervenções educacionais como ações que desempenham um importante papel na prevenção das lesões por pressão 23. Além disso, ressaltam a importância do profissional de saúde na motivação e conscientização do paciente quanto ao risco de desenvolver a patologia 24.
No presente estudo, a principal localização das feridas ocorreu nos membros inferiores com um índice de 32,83 %, decorrentes de ferimentos por arma de fogo, sendo necessárias intervenções cirúrgicas. Na região sacra foram encontradas lesões por pressão que ocorreram em pacientes com lesão medular, da ordem de 10,44 %.
Quanto às lesões traumáticas, estas foram encontradas nos prontuários de 10 pacientes e correspondem a 16,39 % do total das lesões identificadas. Tais lesões possuem diferentes etiologias e podem estar associadas a procedimentos inadequados realizados pelo próprio privado de liberdade que os pratica, muitas vezes, sem observar as condições assépticas, na tentativa de melhorar a ferida. Relatam deixar as lesões abertas e em exposição ao sol para secar; também utilizam fumo sobre a lesão, açúcar, teias de aranha, creme dental e pimenta; tentam extrair secreções e tecidos com lâminas de barbear e cortador de unhas. Quando esses pacientes procuram o ambulatório, apresentam lesões infectadas com características como edema, exsu-dato purulento, hiperemia e tecidos desvitalizados.
Dentre várias crenças e costumes, encontram-se registros sobre diversas substâncias comumen-te utilizadas no tratamento de feridas. Por vezes, antes de procurar o serviço de saúde, preferem a utilização de recursos populares optando, por exemplo, pela utilização de extratos de plantas, frutos, cascas, chás, alho, limão, mamão, aveia, alho, azeite e alecrim 25,26. O uso dessas substâncias sobre as lesões pode estar associado a uma questão cultural, visto que esta prática está registrada há muitas décadas e é de amplo conhecimento em diversas regiões por todo o mundo 26.
Os abscessos com perda de tecido (7,88 %) levantados neste estudo, chamam a atenção por estarem localizados no deltoide e relatarem o uso de este-roides anabolizantes injetáveis no local.
Estudo realizado em atletas após o uso de esteroi-des e anabolizantes demonstrou efeitos colaterais locais, decorrentes de sua aplicação pelo próprio usuário, o que possibilita acarretar lesão tendínea, fratura por estresse, lesão neurológica, celulite, necrose tecidual, abscesso, piomiosite e até mesmo, em casos mais graves, a fasceíte necrotizante, relatada em 27,28 % dos casos 27,28.
Os abscessos cutâneos e a infecção dos tecidos moles também podem estar associados a drogas injetáveis, como a heroína, segundo relatado em 28,30 % dos estudos 29,30. Ainda que existam políticas internas e vistorias para combate às drogas, essas substâncias ilícitas ainda são encontradas e apreendidas no âmbito prisional.
É importante ressaltar a necessidade de novos estudos que contemplem amostras maiores do sistema prisional para contribuir com os achados atuais. No entanto, ainda assim foi possível detectar a deficiência de políticas internas do sistema prisional no país no que se refere à prevenção de lesão por pressão e condutas padronizadas para o tratamento de feridas. A partir deste estudo, destaca-se a importância da elaboração de protocolos que incluam avaliações periódicas com a equipe de saúde e a padronização de escalas de predição, integrados a ações educativas e de autocuidado que previnam as lesões por pressão nos pacientes com lesões medulares e mobilidade física prejudicada.
Conclusão
A ocorrência de feridas se deu entre os pacientes privados de liberdade do gênero masculino, mais frequentemente em brancos, com idade média de 37,21 anos, ou seja, indivíduos adultos jovens, com baixo nível de escolaridade. Entre as doenças encontradas, destacou-se a lesão medular. Os tipos de lesões mais frequentes foram as queimaduras e as lesões por pressão. Embora se trate de um estudo primário realizado em uma única unidade prisional, os dados levantados demonstraram que as lesões de pele fazem parte da realidade da população prisional, e tenta chamar a atenção para a promoção de políticas públicas em relação a esta população prisional.