Introdução
A transição demográfica ocorre na maioria dos países e é amplamente estudada em decorrência do impacto social. Caracteriza-se pela diminuição das taxas de mortalidade e fecundidade/natalidade, resultando no processo de envelhecimento demográfico. O Brasil vivencia um acelerado envelhecimento demográfico com um crescimento de mais de 4 % ao ano da população idosa, no período de 2012 a 2022; o número de idosos passará de 19,6 milhões, em 2010, para 73,5 milhões, em 2060 1.
O processo de envelhecimento pode causar prejuízos na capacidade funcional, estado cognitivo, aumento de múltiplas doenças crônicas e diferentes síndromes geriátricas que, na maioria das vezes, leva o idoso a ter uma condição de dependência e, eventualmente, à necessidade de auxílio de um cuidador 2-4.
O cuidador é a pessoa que assume a responsabilidade dos cuidados básicos de maneira contínua e/ou regular, que pode ou não ser um familiar. Além disso, assume todos ou a maior parte dos cuidados 5. Estudos demonstram que, na maioria das vezes, os familiares assumem os cuidados; são pessoas sem formação específica e que não recebem remuneração. Essa nova realidade pode acarretar em sobrecarga, pois o cuidador não possui uma profissão, há falta de tempo para o lazer e para o seu auto-cuidado, afetando diretamente a sua qualidade de vida e o cuidado prestado ao idoso 3,6.
A sobrecarga pode causar problemas físicos, psíquicos e de índole sócio familiar, sendo o estresse emocional uma das formas de expressão mais comuns tais como depressão, ansiedade e insônia 5,6. Assim mesmo, sua rede de apoio social pode ser afetada devido a restrições do próprio cuidado. A rede social é considerada como o grupo de pessoas ou a instituição que mantém contato ou vínculo com o indivíduo, produzindo um efeito positivo por meio de informações, auxílio material, emocional ou afetivo oferecido 7.
Com o crescimento da população idosa e os problemas de saúde do cuidador familiar causados pela prática do cuidado ao idoso, o estudo se torna relevante para que os profissionais da saúde identifiquem as necessidades do cuidador como também o potencial das redes sociais possibilitando, assim, a criação de vínculos de confiança que pode contribuir para a saúde dessas pessoas. O objetivo foi determinar a sobrecarga do cuidado e sua associação com a rede de apoio social e estresse emocional do cuidador principal do idoso atendido no serviço de atenção domiciliar (SAD).
Metodologia
Estudo quantitativo, analítico e transversal, realizado no SAD de um município do interior paulista, regulamentado pela Portaria GM/MS n.° 825 que o define como um serviço complementar para pacientes tanto de atenção básica quanto de emergência ou substitutivo aos cuidados prestados na hospitalização, realizado por equipes multiprofis-sionais de atenção domiciliar e equipes multipro-fissionais de apoio 8.
Para participar do estudo, foram estabelecidos os seguintes critérios de inclusão: idoso atendido no SAD, idade > 60 anos e possuir um cuidador. Os critérios para o cuidador foram: ter idade > 18 anos e ser considerado cuidador principal, que pode ser um familiar ou pessoa da comunidade, responsável pelos cuidados das necessidades de saúde, financeira, jurídica, social, motora, alimentar e habitacional do idoso, sem delegar a outrem essa tarefa 4.
A população do estudo foi determinada pelo tempo de coleta das informações, entre os meses de maio de 2017 a janeiro de 2018, totalizando 94 idosos com seus respectivos cuidadores. As entrevistas (com duração de 40 minutos) foram realizadas no domicílio do idoso com prévio agendamento por alunos de graduação e pós-graduação treinados.
Para a coleta das informações do idoso, utilizaram-se os instrumentos:
1. Perfil sociodemográfico, considerando dados como sexo, idade, estado civil e escolaridade.
2. Morbidades autorreferidas para quantificar as doenças.
3. Mini Exame do Estado Mental (MEEM), avaliar a função cognitiva 9, traduzido e validado para o português 10. As questões do teste avaliam: orientação no tempo e espaço, capacidade auditiva e visual, compreensão, linguagem e orientação, cognição e capacidade motora. O escore varia de zero até 30 pontos. Os pontos de corte foram 20 pontos para analfabetos, 24 para aqueles com 1 a 4 anos de escolaridade, 26,5 com 5 a 8 anos de escolaridade, 28 para aqueles entre 9 e 11 anos de escolaridade e 29 para aqueles com escolaridade superior a 11 anos 10.
4. Índice de Katz que avalia as atividades básicas da vida diária (ABVD) 11 e adaptado para o Brasil 12. O índice tem uma pontuação de zero(considerado totalmente independente) a seis (dependência total) e avalia funções como banhar-se, vestir-se, alimentação, ir ao banheiro, transferência e continência 12.
5. Escala de Lawton e Brody mensura as atividades instrumentais da vida diária (AIVD), engloba atividades sociais mais complexas 13 e validado ao contexto brasileiro 14, avaliando atividades como usar o telefone, transporte, fazer compras, preparar alimentos, realizar tarefas domésticas, manuseio de medicação e de dinheiro. Possui uma pontuação que varia de sete (maior nível de dependência) a vinte e um pontos (independência completa) e categoriza o idoso em dependência total (7 pontos), dependência parcial 8-20 e independência (21 pontos) 14.
Para o cuidador, utilizaram-se os seguintes instrumentos:
6. Perfil sociodemográfico considerando dados como sexo, idade, estado civil, escolaridade, parentesco e viver com o idoso.
7. Escala de sobrecarga de Zarit que avalia o impacto percebido do cuidar sobre a saúde física e emocional, atividades sociais e condições financeiras 15, traduzida e validada para o Brasil 17 e contém 22 itens. Cada pergunta da escala apresenta cinco alternativas de resposta para avaliar como cada afirmação afeta a pessoa, representadas por: nunca, raramente, algumas vezes, frequentemente e sempre. O último item representa o quanto o cuidador está se sentindo cansado mediante a tarefa de prestar cuidado representado por: nem um pouco, um pouco, moderadamente, muito e extremadamente. A escala apresenta um escore de 0 a 88 pontos e quanto maior a pontuação obtida, maior a sobrecarga percebida 16.
8. Self-Reporting Questionnaire (SRQ-20) detecta o desconforto emocional na população geral 17 e validado para o Brasil 18. Composto por 20 questões que compõem a escala tendo duas possibilidades de resposta (sim/não) desenhado para abordar sintomas emocionais e físicos associados a quadros psiquiátricos. O escore varia de 0 a 20 sendo utilizado o ponto de corte de 7/8 pontos e quanto maior a frequência de respostas positiva, maior o nível de estresse emocional.
9. Instrumento de Medida da Rede e Apoio Social, combinação de dois instrumentos, o Medical Outcomes Study 19 e o Social Network Index 20. Traduzido para o Brasil e validado com cuidadores familiares 21 e com trabalhadores 22. O instrumento é composto por 24 questões divididas em dois blocos: as questões do 1 a 5 referem-se à rede social e as questões 6 a 24 ao apoio social. As respostas podem variar de um (nunca) a cinco (sempre) e a soma dos pontos totalizados nas respostas é dividida pelo número máximo de pontos possíveis em cada dimensão, resultando em uma razão (total de pontos obtidos/pontuação máxima da dimensão multiplicado por 100) e que quanto maior o escore obtido, maior o nível de apoio social 22.
Para a análise das informações, foi utilizado o programa Microsoft Excel® para a tabulação dos dados em dupla digitação e, a seguir, realizou-se uma análise de consistência para a sua comparação. Posteriormente, os dados foram exportados ao programa estatístico Statistical Package for the Social Sciences v. 22.0. Utilizou-se a estatística descritiva, para as variáveis categóricas o uso de frequências e para as numéricas, medidas de tendência central (média e mediana) e de dispersão (desvio padrão).
Para analisar a relação entre a sobrecarga e as variáveis independentes, foi utilizada a classe de Modelos Lineares Generalizados e em todas as análises, o nível de significância de 5 %. A variável de análise foi o escore de sobrecarga que assume valores inteiros de 0 a 88 pontos; quanto maior a pontuação, maior a sobrecarga do cuidado, e foi assumido que ela segue uma distribuição Gama com função de ligação logarítmica.
As variáveis independentes relacionadas com o idoso foram: idade (em anos), escolaridade (em anos), estado cognitivo (com ou sem déficit), número de morbidades, escores das escalas de Katz e Lawton e Brody. As variáveis independentes relacionadas com o cuidador foram: idade (anos), estado conjugal (com companheiro/sem companheiro), escolaridade (0-8, 9-12, > 13), grau de parentesco (esposo/a, filho/a, outros), vive com o idoso (sim/não), presença de estresse emocional (sim/ não) e os escores da escala de apoio social, de 20 a 100 pontos, dos domínios: material, afetivo, social, emocional e informação.
A pesquisa foi aprovada pela Secretaria da Saúde do Município de Ribeirão Preto, São Paulo, e pelo Comitê de Ética da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto-USP número 02.2016.020176.0. Na visita a cada domicílio, os cuidadores e os idosos foram informados dos objetivos da pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido correspondente a sua pesquisa em duas vias, sendo que uma cópia foi entregue ao idoso, outra ao cuidador e uma terceira ficou com o pesquisador.
Resultados
No perfil sociodemográfico do idoso, verificou-se predomínio do sexo feminino, idosos com 80 anos ou mais com idade média 79,55 (DP = 8,86), casados e com escolaridade de 1 a 4 anos com média 3,22 anos (DP = 3,18).
Quanto ao cuidador, houve predomínio do sexo feminino, menores de 60 anos com idade média de 56,99 (DP = 14,82), casados, escolaridade de 9 a 12 anos, parentesco filhos e a maioria vive com o idoso (Tabela 1).
Na avaliação do idoso com o MEEM, verificou-se que 83,9 % apresentaram déficit cognitivo. Por outro lado, na aplicação da escala SRQ-20 ao cuidador, encontrou-se que 34 % destes foram categorizados com estresse emocional.
A análise descritiva das variáveis dos instrumentos utilizados para a avaliação do idoso (ABVD, AIVD e morbidades) e do cuidador (escala de Zarit e instrumento de medida de rede e apoio social) pode ser visualizada na Tabela 2.
Na análise de regressão, verificou-se que para cada ponto a mais nas AIVD, há uma redução de 5,5 % na sobrecarga. Por sua vez, o cuidador com estresse emocional possui uma média de 56,61 % a mais de sobrecarga do que cuidadores sem estresse emocional. E para cada ponto a mais no domínio interação social positiva do instrumento de medida de rede e apoio social, há uma redução de 0,44 % na sobrecarga (Tabela 3).
Discussão
Dos idosos atendidos no SAD, a maioria era do sexo feminino e considerada mais velha, sendo que resultados similares foram encontrados em estudos nacionais 3-4 e internacionais 23-24.
O elevado número de idosos com idade avançada e do sexo feminino está relacionado com dois fatores: primeiro, com o processo de envelhecimento, caracterizado pelo crescimento acentuado da população com 80 anos ou mais; segundo, com o predomínio do sexo feminino, justificado pela maior longevidade feminina, em média sete anos a mais que os homens 6, e a viuvez, devido à maior exposição do sexo masculino a fatores de risco à saúde 25. Estudos destacam que a viuvez é um reflexo de aspectos culturais em que o homem se casa novamente após tornar-se viúvo, ao passo que a mulher permanece sem companheiro 6.
Houve predomínio dos idosos que estudaram entre 1 a 4 anos, resultados similares foram encontrados em estudos brasileiros 2,4. É preciso ressaltar que a população idosa teve pouco acesso à escola e o estudo não era priorizado, influenciando negativamente na necessidade de cuidado, pois, alguns estudos demonstram que quanto menor a escolaridade, maior dificuldade para seu autocui-dado 4.
Em relação ao cuidador, verificou-se que os resultados foram similares a estudos nacionais e internacionais; houve predomínio do sexo feminino 25, menores de 60 anos 24-26, casados 27, com estudos de 9 a 12 anos 24, eram filhas 7,25 e viviam com o idoso 4,27.
O papel de cuidadora principal ainda é determinado por aspectos socioculturais no qual a mulher assume este papel, responsabilizando-se pelos cuidados do idoso e dos cuidados relacionados com a família. Os cuidadores com maior escolaridade cuidam do idoso levando em conta a exigência de tarefas consideradas mais complexas 26. Por outro lado, morar com o idoso pode ser uma situação desfavorável para o cuidador, expondo-o por mais tempo aos efeitos negativos do processo de cuidar, ao passo que para o idoso, esta situação pode ser favorável, tendo em vista o atendimento imediato de suas necessidades 4.
Verificou-se que a maioria dos idosos apresentou déficit cognitivo, resultado menor foi encontrado em outro estudo 28. O comprometimento cognitivo possui uma forte associação com a longevidade, quando a velocidade do processamento no cérebro diminui, acelerando o desenvolvimento da demência, levando-o à dependência funcional progressiva nas diferentes atividades cotidianas 29 o que aumenta a demanda de cuidados 3.
No presente estudo, observou-se que os idosos possuem a mesma média nas ABVD do estudo realizado com os idosos que apresentam dependência cognitiva e/ou funcional atendidos no domicílio 2, porém uma média inferior em idosos de um ambulatório de geriatria 25.
A média obtida para as AIVD foi semelhante à de um estudo realizado em idosos atendidos em um programa de assistência domiciliar, obtendo um escore médio de 10,36, equivalente a uma dependência parcial 25. A perda da capacidade funcional é um processo natural do envelhecimento que pode ocorrer de maneira gradativa em ambos os sexos, comprometendo as atividades avançadas da vida diária, posteriormente as atividades instrumentais e, por último, as atividades básicas 30. Assim, é essencial a mensuração da capacidade funcional, pois ela indica a independência e autonomia que o idoso possui para realização das atividades rotineiras.
Quanto à média das morbidades do idoso, foi menor quando comparado com outro estudo 3. As doenças crônicas surgem ao longo da vida, inclusive durante o envelhecimento, e afeta a qualidade de vida devido à redução da resiliência homeostática e a incapacidade de recuperar os parâmetros fisiológicos normais 31.
Em relação à média de sobrecarga do cuidador, o resultado foi similar a estudos nacionais em que predominou a sobrecarga moderada 3,6. A sobrecarga gerada pelo ato de cuidar está relacionada com o desgaste físico emocional, a desestruturação familiar, o isolamento social e a perda da identidade do cuidador, tornando relevante a avaliação da sobrecarga para planejar cuidados e oferecer apoio adequado a esse indivíduo e à família 7,24.
As médias dos domínios do instrumento de medida de rede e apoio social foram semelhantes a outros estudos 6,8. Destaca-se que o escore mais baixo nas médias foi na dimensão interação social positiva, o que revela que o cuidador muitas vezes não tem com quem compartilhar momentos de relaxamento e desenvolver atividades agradáveis devido às exigências advindas do cuidado, tornando-os propensos a isolamento social, interferindo negativamente na saúde e nos cuidados prestados 6.
Assim mesmo, a sobrecarga esteve associada à dependência das AIVD. Esse dado, assim como em outros estudos, demonstra que quanto maior a dependência do idoso, maior a sobrecarga do cuidador 4,27.
Outra variável que apresentou associação com a sobrecarga foi o estresse emocional. Resultado similar foi verificado em um estudo que indica que a sobrecarga é um fator de risco para o desconforto emocional e o cuidador pode desenvolver dores de cabeça, insónia, tristeza, ansiedade, entre outros sintomas 4.
Em relação ao cuidador, o desconforto emocional foi menor quando comparado com um estudo realizado com cuidadores de idosos com demência em que manifestaram emoções negativas 32. Distúrbios psicossomáticos podem ser resultantes do estresse emocional, devendo os profissionais estarem atentos a sintomas como cansaço mental, baixa concentração, falha da memória, apatia e indiferença emocional, os quais também são comuns em condições de ansiedade ou depressão 7.
Identificou-se associação do domínio interação social positiva com a sobrecarga. Ter companhia para relaxar e se divertir constitui um aspecto importante para diminuir a sobrecarga 6.
A rede de suporte social é fundamental para que o cuidador tenha acesso a este no processo de adoecimento. Cabe aos enfermeiros planejar o cuidado do idoso no domicílio, como centro, porém o cuidador também deve ser assistido considerando a responsabilidade no processo desse cuidado.
Conclusão
Verificou-se predomínio do sexo feminino, idosos com 80 anos ou mais, casados, com baixa escolaridade. Quanto aos cuidadores, a maioria era do sexo feminino, com uma escolaridade alta, casados, filhos/as e viviam com o idoso. A sobrecarga do cuidador esteve associada à dependência funcional do idoso para as AIVD, o estresse emocional e o domínio social.
Entre as limitações do estudo, encontrou-se que não foi possível generalizar os dados à população idosa atendida no SAD e seus respectivos cuidadores, uma vez que não foi realizada uma amostragem e a dificuldade de localizar publicações sobre a rede de apoio social do cuidador de idosos atendidos no domicílio.
Portanto, é fundamental que os profissionais dos serviços de atenção básica, sobretudo os que realizam a atenção domiciliar, devem considerar a família também como parte do cuidado. Cabe destacar a atenção aos fatores sociodemográficos, à saúde física e mental do idoso, assim como identificar o potencial da rede de apoio social, com a finalidade de estabelecer planos de cuidados específicos ao cuidador e ao idoso, focando em ações intersetoriais e interdisciplinares, promovendo a saúde do idoso e seus familiares de maneira integral.