Introdução
O câncer é uma condição crônica distribuída globalmente 1 e que representa um importante problema de saúde pública, independente das condições de desenvolvimento local 2. Ele representa a segunda causa de mortalidade no mundo atualmente e, de acordo com perspectivas futuras, em torno do ano de 2020, será considerada a primeira causa de morte no Brasil 3. A estimativa para o Brasil para os anos de 2018 e 2019 é de mais de 600 mil novos casos de câncer, cerca de 70 % deles excluindo os cânceres de pele não-melanoma 4.
Em particular, os tumores de cabeça e pescoço possuem forte relação com questões de desenvolvimento, graças aos principais fatores de risco associados, como o tabagismo, o etilismo e exposições ocupacionais 5. A maior parte origina-se, com exceção dos tumores de pele, na mucosa das vias aerodigestivas superiores, principalmente da boca, faringe e laringe 6. Destaca-se nessa região anatômica o câncer da cavidade oral e laringe como os mais incidentes no país. De acordo com a estimativa do Instituto Nacional de Câncer (INCA), para o biênio 2018-2019 são esperados 14.700 novos casos de câncer da cavidade oral e 7670 novos casos de câncer de laringe na população brasileira 4. Cabe ressaltar que o câncer de cabeça e pescoço são mais expressivos em regiões de baixo desenvolvimento socioeconômico, estando tal fato relacionado com os hábitos de vida que culmina em uma exposição prolongada aos fatores de risco e também com o diagnóstico tardio e dificuldade de acesso ao tratamento adequado, justificando sua alta letalidade 7.
Muitos pacientes hospitalizados por câncer apresentam sintomas que variam no que se refere à gravidade, frequência e duração. Verifica-se, na população em geral, a presença da proliferação marcante de ideias relacionadas à incurabilidade do câncer e sintomas desagradáveis em relação à doença e ao tratamento 8. Isso ocorre principalmente quando há tumores de cabeça e pescoço que impactam a qualidade de vida dos pacientes dado o seu caráter, muitas vezes, incapacitante e mutilador 9.
Cada sintoma em oncologia é um fenômeno dinâmico e, por isso, deve ser constantemente reavaliado para que as intercorrências sejam controladas oferecendo alívio e conforto 10. Pacientes com sintomas não controlados têm importantes perdas na qualidade de vida especialmente aqueles identificados e tratados tardiamente 11. A avaliação dos sintomas constitui, assim, um desafio nos cuidados de enfermagem devido ao curso evolutivo do câncer e da complexa relação entre a doença e os sintomas 12. É importante reconhecer que o estudo acerca dos sintomas mais prevalentes em oncologia torna-se de grande importância na prática clínica, pois permite a antecipação de problemas potenciais e permite planejar a gestão dos sintomas de forma resolutiva 13; além disso, possibilita considerar o cuidado individualizado e centrado no paciente, uma prática recorrente da enfermagem. Nesse contexto, o objetivo do presente estudo é avaliar os sintomas mais frequentes apresentados pelos pacientes com câncer de cabeça e pescoço e fatores associados.
Metodologia
Estudo quantitativo, transversal para o qual se utilizou um conjunto de dados sobre a prevalência de sintomas entre pacientes com tumores de cabeça e pescoço atendidos no INCA. Cabe ressaltar que este hospital trata pacientes de diferentes origens socioeconómicas e geográficas.
A amostra consistiu no universo de pacientes adultos internados no setor de cabeça e pescoço ou acompanhados no ambulatório, durante o período de março a novembro de 2016, totalizando 77 pacientes. Os critérios de inclusão foram pacientes (homens ou mulheres) com idade igual ou superior a 18 anos, portadores de neoplasias de cabeça e pescoço, internados ou em acompanhamento ambulato-rial no setor de cabeça e pescoço do HCI/INCA.
A coleta de dados ocorreu por meio da aplicação da escala Memorial Symptom Assessment Scale (MSAS) aos pacientes em forma de entrevista individual, após prévia informação sobre os objetivos da pesquisa, concordância em participar do estudo e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. A abordagem ao paciente ocorreu no momento em que não era necessária a interrupção de suas atividades de rotina de exames e/ou tratamento, para não haver prejuízo na conduta clínica em detrimento da pesquisa. Devido ao déficit educacional característico da maioria dos pacientes acometidos por esse tipo de neoplasia, optou-se pela aplicação do instrumento na forma de entrevista, substituindo a autoaplicada, conforme recomendação do estudo anterior da primeira etapa da validação do instrumento 14.
Foram incluídos pacientes internados em investigação ou tratamento de tumores malignos de cabeça e pescoço. Foram excluídos os pacientes menores de 18 anos e aqueles que apresentavam distúrbios cognitivos capazes de comprometer a veracidade das respostas, como neoplasia ou metástase para SNC.
Para a coleta de dados adicionais, foi empregado um formulário próprio de dados sociodemográficos e clínicos que incluíam idade, sexo, estado civil, nível de escolaridade, raça, diagnóstico primário e presença de metástase, e local de tratamento (ambulatorial e internação). A variável idade foi transformada em categorias (20 a 39 anos, 40 a 59 anos e 60 anos ou mais).
O questionário administrado para a avaliação dos sintomas foi o Inventário de Avaliação de Sintomas (MSAS). O MSAS é uma ferramenta de avaliação de 32 itens desenvolvida para medir a prevalência e as três características associadas (frequência, gravidade e angústia) aos sintomas físicos e psicológicos experimentados pelos pacientes oncológicos na semana anterior à entrevista. A pontuação do sintoma representa a média das três dimensões do sintoma, sendo que os escores mais altos representam frequência mais alta, maior gravidade e maior sofrimento associado.
Os aspectos relacionados aos sintomas são avaliados ao agregá-los em dimensões de avaliação. O instrumento, por exemplo, pode ser dividido em subescalas que avaliam sintomas psicológicos (PSYCH), com seis itens; PHYS H que avalia sintomas físicos de alta frequência, com 12 itens, e PHYS L que avalia sintomas físicos de frequência relativamente baixa, com 14 itens. Ainda há uma quarta subescala contendo 4 sintomas psicológicos e 6 sintomas físicos que avalia o índice global de sofrimento (GDI - Global Distress Index) que pode apresentar variações significativas quando aplicada, por exemplo, a pacientes ambulatoriais e internados e pode ser considerada a subescala mais útil, clinicamente falando.
Finalmente, há um último índice que consiste na média entre os três domínios e todos os itens (TMSAS). As subescalas e seus respectivos itens estão descritos na Tabela 1. Vale destacar que o escore das subescalas representa a média dos itens que as compõem. O MSAS tem bons resultados para confiabilidade e validade na população de câncer, conforme descrito em estudo anterior (15).
Quando um sintoma é experimentado, o escore para o mesmo é determinado pelos escores médios da intensidade, frequência e incômodo ou, quando aplicável, apenas pela escala de intensidade e incômodo. Dessa forma, cada subescala foi obtida e a sua associação com variáveis clínicas (como a ocorrência de metástase e a localização do tumor) e sociodemográficas (como a idade, o sexo e a escolaridade) foram mensuradas e foi avaliada a significância estatística a um nível de 95 %. As variáveis categóricas foram avaliadas através do teste de qui-quadrado e as variáveis contínuas através do teste de ANOVA.
Com relação aos aspectos éticos, este estudo seguiu as orientações da Resolução n° 466/12, do Conselho Nacional de Saúde/Ministério da Saúde, obtendo autorização do Comitê de Ética e Pesquisa do INCA (protocolo n° 841.470).
Resultados
A população do estudo é predominantemente masculina (675 %), sendo pouco mais da metade em uma faixa etária de 60 anos ou mais (55 %). A maioria (60 %) declarou-se da raça branca. Houve predomínio do nível fundamental de escolaridade (60 %) e 2,5 % dos entrevistados eram analfabetos. Quanto ao estado civil, observou-se maior prevalência de indivíduos casados, representando 60 % da população. Em relação à localização do tumor, houve predomínio de boca (30 %), seguido de laringe (22,5 %). Dos entrevistados, 78,8 % estavam internados e 92,5 % não apresentaram metástases (Tabela 2).
De uma forma geral, pode-se perceber que, na variável frequência, a categoria 2 (que representa "às vezes") foi a resposta mais recorrente dos pacientes para a maioria dos sintomas, quando presentes. Ainda nesta variável, a categoria menos citada foi a 1 (que representa "raramente"). Com relação à variável intensidade, duas categorias foram igualmente citadas pelos pacientes entrevistados: a categoria 1 (que se refere a "leve") e a categoria 2 (que se refere a "moderada"). Por fim, na variável incómodo, a categoria mais prevalente foi aquela que se refere às muito impactantes (Tabela 3).
Os sintomas mais prevalentes foram boca seca (62,5 %), tristeza (60 %), preocupações (53,75 %), nervosismo (48,75 %) e tosse (46,25 %). Os sintomas menos prevalentes foram problemas com atividade/desejo sexual (3,75 %), alterações na pele (3,8 %), problemas para urinar (6,25 %), coceira (7,5 %) e inchaço nos braços ou pernas (8,75 %). Vale salientar que há muitos pacientes que relatam não ter os sintomas. No entanto, entre aqueles que apresentam sintomas, identificou-se relativa gravidade, pois a média dos itens, seja para intensidade, frequência ou incómodo, aumenta consideravelmente ao se analisar apenas o grupo com sintomas separadamente (Tabela 4).
Não houve diferença entre os tipos de cânceres avaliados. Para faixa etária, identificou-se uma diferença estatisticamente significativa para a subescala de sintomas físicos de baixa frequência (PHYS-L) ( p < 0,01), com ocorrência de maior queixa de gravidade entre os jovens, e diminuindo progressivamente com o aumento da idade. Uma associação semelhante foi observada para idade e a escala geral (TMSAS), com significância limítrofe (p = 0,06). Para a escolaridade foi observada significância limítrofe para a escala física de alta frequência (PHYS-H) ( p = 0,07), sintomas psíquicos (PSYCH) ( p = 0,06) e escala geral ( p = 0,07), havendo maior queixa de gravidade entre pessoas com baixa escolaridade, diminuindo progressivamente com o aumento da escolaridade e aumentando novamente no nível superior. Com relação ao tratamento, a queixa de maior gravidade se mostra significativamente diferente na escala global (GDI) (p = 0,02), com queixa maior dos pacientes ambulatoriais, em comparação aos internados. Houve diferença, ainda, entre o grupo com e sem metástase, havendo significância limítrofe (p = 0,06) na escala de sintomas físicos de baixa frequência, com queixa maior entre pacientes sem metástase (Tabela 5).
Discussão
Os tumores de cabeça e pescoço são reconhecidos por causar alterações físicas, motoras e sensoriais importantes nos pacientes, reduzindo dramaticamente sua qualidade de vida e apresentando impacto negativo em sua saúde mental 16. Dessa forma, é importante a avaliação da ocorrência, da intensidade e frequência dos sintomas, independente do estadiamento e do tipo de tratamento 17.
Com relação à localização do tumor, assim como em outros estudos 4-6, prevalecem a cavidade oral e a laringe como as mais preponderantes da região da cabeça e pescoço. Além disso, os resultados obtidos com relação a sexo e idade corroboram o encontrado por outros autores 4, 5. Demonstram também a prevalência maior em um nível socioeconómico mais baixo, onde os indivíduos têm nenhuma ou pouca escolaridade, confirmando o apresentado em outros estudos 5-7 em que o câncer de cabeça e pescoço é mais preeminente em regiões com baixo nível socioeconómico. Cabe destacar que a relação dos sintomas e das variáveis sociodemográficas também possui relação com os fatores de risco. Nesse caso, os três principais fatores de risco para uma série de tumores dessa localização são o tabagismo, o etilismo e a exposição ocupacional. Sabe-se, contudo, que a distribuição destes fatores de risco muda de acordo com sexo, idade e escolaridade 18. Nesse sentido, o reconhecimento precoce dos sintomas em grupos que possuem este perfil permite o diagnóstico em estágios iniciais, reduzindo a mortalidade 5.
Pacientes com câncer frequentemente relatam sintomas decorrentes da doença em si ou relacionados à toxicidade dos tratamentos oncológicos. Esses sintomas, quando não identificados e tratados precocemente, estão associados à redução da sobrevida, da qualidade de vida e da capacidade funcional destes indivíduos 17.
De fato, reconhece-se que o tratamento oncológico pode ser igualmente danoso ao corpo quando comparado à própria doença, causando debilidade importante aos pacientes 18. A radioterapia é o principal tratamento eficaz para pacientes com câncer de cabeça e pescoço, entretanto, esses pacientes experimentam frequentemente sintomas múltiplos induzidos pela radiação. Esses sintomas relacionados com o tratamento, tais como mucosite, boca seca e problema de deglutição, têm influência prejudicial sobre os pacientes 19.
Cabe ressaltar que atualmente há diversos instrumentos para a avaliação de múltiplos sintomas, mas eles diferem em número dos sintomas avaliados, nível de medida (ordinal, nominal, contínua etc.) e o período de avaliação a que se referem (ex. as últimas 24 horas, a última semana, o último mês). Os mais frequentemente utilizados são: Symptom Distress Scale, MSAS, Rotterdam Symptom Checklist, Edmonton Symptom Assessment e, mais recentemente, o MD Anderson Symptom Inventory (MDASI) 17-20.
Muitos sintomas ocorrem de forma simultânea, em parte porque estão em uma cadeia de eventos de morbidade, parte por terem órgãos-alvo semelhantes 21. A respeito dessa proposta de análise, o conceito de clusters de sintomas tem sido indicado como uma nova direção para compreender melhor a complexidade dos sintomas múltiplos experimentados por pacientes com câncer. Os clusters de sintomas são definidos como grupos de pelo menos dois ou três sintomas simultâneos que estão relacionados entre si 20,21.
Xiao et al.19 identificaram dois clusters de sintomas para pacientes com câncer de cabeça e pescoço, o cluster específico e o cluster de sintomas gastrintestinais, ambos relacionados com o tratamento. O primeiro é composto de cinco sintomas muito específicos relacionados com o tratamento radioterápico: radiodermatite, disfagia, radiomucosite, boca seca e perturbação do paladar, e dois sintomas relativamente gerais: fadiga e dor. No cluster gastrointestinal, estão incluídos náusea, vômito e desidratação 19. Finalmente, outro estudo realizado por Hanna et al.22 utilizando o MDASI, identificou sono, aflição, fadiga, dor, tristeza e sonolência como os sintomas mais graves apresentados pelos pacientes com câncer de cabeça e pescoço (23), achados semelhantes aos encontrados neste trabalho.
Dessa forma, observa-se que a avaliação dos sintomas, especialmente quando analisados por agrupamentos, auxilia na previsão das complicações, permitindo a intervenção precoce e impedindo a redução da capacidade funcional dos pacientes. Esta ação assegura, em certa medida, a manutenção da qualidade de vida dos pacientes 24,25. Vale ressaltar que cabe ao enfermeiro o acompanhamento destes pacientes em sua rotina, de forma que sua participação no processo terapêutico é de enorme importância para o sucesso do tratamento. Finalmente, é importante compreender que, devido à natureza distinta dos cânceres de cabeça e pescoço principalmente por sua localização, os sintomas devem ser cuidadosamente avaliados. Entre outros, certos sintomas que são esperados em paciente de câncer de nasofaringe, são diferentes dos tumores de laringe. Neste aspecto, é importante particularizar os planos de cuidado, devido a essa heterogeneidade e, na tentativa de assistir o paciente de forma mais resolutiva, atendendo às suas necessidades específicas.
Conclusão
O presente estudo destinou-se a avaliar os sintomas mais frequentes apresentados pelos pacientes diagnosticados com câncer de cabeça e pescoço utilizando a escala MSAS. De fato, foi possível identificar quais conjuntos de sintomas foram mais frequentes e qual é o perfil dos pacientes que apresentam esses sintomas. Esse diagnóstico é útil ao considerar que sintomas não controlados influenciam negativamente na qualidade de vida, alterando o humor, ingestão alimentar e atividades da vida diária, além de prejudicar as relações sociais, familiares e de trabalho do paciente. Ainda que o presente estudo possua limitações, como o número insuficiente de pacientes participantes, e a não observação de certas localizações mais raras, como câncer de septo nasal, consideramos válida a evidência apontada, já que poucos são os estudos conduzidos em unidades de referência nacional com certa riqueza de informações.
Considerando-se a comum ocorrência de múltiplos sintomas no paciente oncológico, são necessários instrumentos capazes de avaliar de forma mais ampla tais sintomas. Essa afirmação se refere à utilização de instrumentos específicos que avaliam a qualidade de vida e, mais ainda, com módulos específicos para cada localização. Isso permite a identificação de padrões de manifestação de doença e quais dimensões do bem estar podem estar reduzidas nesses pacientes. Dessa forma, os profissionais de saúde entendem melhor a complexidade dos grupos de sintomas podendo assim orientar e desenvolver intervenções para gerenciar os mesmos.