Introdução
Nos últimos anos, a população brasileira tem vivenciado um processo exponencial de envelhecimento indo ao encontro da tendência mundial de transição demográfica 1. As estimativas da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios são que até 2025 a população de idosos com 60 anos ou mais, no Brasil, chegue a mais de 33 milhões de indivíduos 2. Além disso, os idosos buscam cada vez mais autonomia e isso é possível, principalmente, nos que praticam atividade física 3.
No entanto, muitas vezes essa parcela da população enfrenta uma percepção sociocultural negativa carregada de vieses, rótulos e prejulgamentos 4, o que muito difere de sociedades orientais onde eles são vistos com uma perspectiva de valorização e ocupam um novo papel social 5,6.
Essa percepção da velhice como condição incapacitante para o desenvolvimento de capacidades funcionais e sociais, estigmatizando o idoso como um fardo a seus entes e/ou cuidadores, apresenta-se como um dos grandes motivos que resultam na violência contra essa população vulnerável 7. Isso vem gerando preocupações em diversos setores sociais, especialmente na saúde pública 8,9. As mulheres apresentam maior vulnerabilidade sendo seu parceiro um dos principais agressores. A agressão verbal, psicológica e a física são as mais relatadas 7,10.
A violência é caracterizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como ato isolado ou repetitivo que gera algum dano ao idoso, seja de caráter físico ou psicológico, e praticado por um ente familiar ou qualquer pessoa que possua domínio sobre ele bem como a omissão diante desses casos 11. A OMS e Rede Internacional de Prevenção contra Maus Tratos em Idosos, através de um censo, classificou essa prática em sete tipos: os físicos, os psicológicos, a negligência, a autonegligência, o abandono, os abusos financeiros e sexuais 12.
Grande parte dos casos ocorrem dentro do ambiente doméstico 13,14, todavia, há relatos de casos ocorridos em Instituições de Longa Permanência para Idosos e no próprio convívio social 15. Alguns fatores contribuem com essas ocorrências, quando o familiar ou o cuidador passa por uma sobrecarga ocasionada pelo processo de cuidado com idosos portadores de doenças crônicas ou incapacidade funcional, gerando esgotamento físico, estresse e fadiga emocional 16. Diversas outras razões podem ser apontadas como a dependência financeira de uma das partes, o uso de abusivo de álcool e outras drogas e, por vezes, um ambiente familiar desestruturado com antecedentes de agressividade 17.
Logo os próprios familiares da vítima, levando-se em consideração o grau de dependência que se estabelece, são vistos como os principais agressores 18. Em uma revisão integrativa de literatura feita no Brasil entre 2005 e 2009, as mulheres foram mais agredidas que os homens, especialmente aquelas com idade igual ou superior a oitenta anos, deprimidas, confusas ou extremamente fragilizadas 14. Além disso, muitos idosos vitimados carecem de cuidado e acabam omitindo os maus-tratos por receio de perder o cuidador ou de sofrer retaliação 19.
Diante do quadro de violência, considera-se a viti-mização da pessoa idosa por eventos violentos como um fator extremamente degradante e que viola seu direito de dignidade. É necessário, pois, desenvolver trabalhos que busquem analisar a violência contra a pessoa idosa, tanto no que se refere à mortalidade quanto à morbidade 20.
Portanto, o presente estudo tem como objetivo analisar a morbimortalidade decorrente da violência e dos maus tratos contra idosos no Rio Grande do Norte (RN), no período de 2000 a 2010. Também visa analisar a distribuição espacial da morbimor-talidade por violência de indivíduos com 60 anos ou mais, residentes no estado, a fim de identificar clusters (aglomerados) que apresentem risco potencial de violência ou maus-tratos contra idosos.
Metodologia
Estudo observacional do tipo ecológico, tendo os 167 municípios do RN como unidade de análise. Foram avaliados os principais efeitos das agressões aos idosos (mortalidade ou morbidade) nesses locais. Os dados coletados correspondem ao período dos anos entre 2000 e 2010.
A amostra foi composta por idosos com 60 anos ou mais, residentes no estado do RN, que faleceram ou foram internados em função de violência ou maus tratos no período analisado.
Os dados foram coletados por meio do Departamento de Informática do sus (DATASOS), originários do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) e do Sistema de Informações Hospitalares (SIH). Esse sistema é abastecido por meioda inserção dos dados coletados na Declaração de Óbito (DO) e pelo SIH na Autorização de Internação Hospitalar (AIH). Tais informações estão disponíveis em domínio público e não existe identificação nominal sendo sua coleta por meio de dados agregados, impossibilitando qualquer identificação pessoal que possa gerar algum dano físico ou moral.
Utilizou-se como variável de desfecho as taxas ajustadas de mortalidade por agressões (TMtA) e morbidade por agressões em idosos (TMbA), separadas por sexo, e constituindo um total de 4 variáveis. A TMtA é obtida através da razão de óbitos de idosos do sexo masculino por causas externas, entendidas a partir da Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-IO) do grupo de causas X85 a Y09 onde se encontram apenas causas de agressões, auto ou heteroinfligidas, em cada município do RN, num determinado período e a população idosa masculina no referido lugar no mesmo período, por mil habitantes. No que tange à TMbA, o cálculo é realizado por meio da razão entre o número de internações hospitalares por agressões em idosos do sexo masculino em cada município do RN, no período determinado, e a população idosa masculina nessa localidade no mesmo período, por mil habitantes. Posteriormente, os mesmos cálculos foram realizados considerando os óbitos e as internações hospitalares por causas externas em idosos do sexo feminino e a população idosa feminina, para mortalidade e morbidade respectivamente. As taxas foram ajustadas utilizando o programa Epidat 4.1.
Os quantitativos populacionais utilizados para os cálculos das variáveis de cada município foram obtidos no próprio site do DATASÜS, provenientes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A coleta dos dados sobre mortalidade e morbidade, bem como suas taxas, foram realizadas através do software TABWIN, entre janeiro e fevereiro de 2015. Analisar os coeficientes e taxas gerados permitiu verificar as mudanças ocorridas no perfil epidemiológico da morbimortalidade por agressões a idosos no estado, em períodos variados e determinar as características geoespaciais de cada uma delas.
Foi utilizada a base cartográfica (shape) disponível no site do IBGE. Logo após a coleta, foi realizada uma análise de cunho exploratório para a construção dos mapas temáticos para as variáveis de mortalidade e morbidade por agressões em idosos, dividido por sexo, com a utilização do SIG Terra-view 4.2.0. A escala em cinza foi a escolhida para apresentar os dados, utilizando um sistema degradê para diferenciar os municípios, onde a cor mais escura representa os municípios que apresentaram um indice maior de violência.
A partir do uso do Terraview 4.2.0, foi gerada a autocorrelação espacial através do Índice de Moran Global (I) que apresenta variáveis que vão de - 1 a 1. Valores próximos de zero apontam inexistência de autocorrelação espacial, valores positivos apontam autocorrelação espacial positiva e valores negativos indicam autocorrelação negativa. Após essa etapa, foi verificada, a partir do padrão de distribuição, a formação de clusters com a utilização do Índice de Moran Local-LiSA (Ii), visando mapear a intensidade dos aglomerados. O valor de p < 0,05 foi considerado como estatisticamente significativo. O mapa representativo dessa situação é o Moran Map.
A metodologia utilizada para este estudo baseou-se no protocolo já utilizado em outro artigo desenvolvido pelo grupo. Esse protocolo mostrou ser eficaz e apropriado para a construção deste estudo, favorecendo a coleta e organização dos dados por meio de uma experiência exitosa 21.
Resultados
Foram analisados 242 casos de mortalidade, sendo 218 (90 %) óbitos masculinos e 24 (10 %) óbitos femininos. No que tange à morbidade, foram inclusos 307 eventos notificados, desses 261 (85 %) do sexo masculino e 46 (15 %) do sexo feminino. A população masculina variou positivamente em 37 239 indivíduos no período do estudo, o equivalente a 32,63 %. No ano 2000, o total de idosos masculinos inseridos na análise foi de 114 119 e, no último ano, de 151 358. No que se refere à população idosa feminina, houve variação positiva de 40,34 %, sendo o total no primeiro ano de 136 475 e no ano de 2010, de 191 532. Para efeitos de ajustes de taxas, considerou-se a população do meio do período, ou seja, a população do ano de 2006.
A análise sobre a morbidade feminina em idosos por agressões no RN, no período 2000 a 2010 e de acordo com o Moran Local, apresentou valor de p = 0,16, isto é, não houve significância estatística para a formação de clusters que indique autocorrelação espacial.
No mapa, percebe-se a ocorrência de um agregado desfavorável distribuído nas regiões leste e no Agreste Potiguar (Figura ID). De acordo com a Figura 1C, observa-se que as TMbA femininas são predominantemente baixas no estado, entre 0,01 a 0,09.
A mortalidade feminina por agressões no RN, no período de 2000 a 2010, na análise do Moran Local mostrou valor de p = 0,28, isto é, não houve significância estatística para formação de clusters que indique autocorrelação espacial. Entretanto, observa-se a ocorrência de agregados desfavoráveis nas regiões Leste e Central Potiguar (Figura 1B). A partir da Figura 1A, percebe-se que a maior parte dos municípios apresentam baixas TMtA, entre 0,01 a 0,10.
No que se refere ao estudo da morbidade masculina em idosos por agressões no RN, no período 2000 a 2010, a análise de Moran Local para morbidade apresentou valor de p = 0,32, isto é, não houve significância estatística para a formação de clusters. No entanto, observa-se uma área de agregados desfavoráveis nas regiões Leste, Oeste e Central (Figura 2D). De acordo com a Figura 2C, observamos que a TMbA masculina no RN é, em sua maioria, baixa tendo grandes áreas representadas por taxas entre 0,01 e 0,48.
Diante da observação da mortalidade masculina em idosos por agressões no RN, no período 2000 a 2010, a análise de Moran Local para mortalidade apresentou valor de p = 0,28, não havendo significância estatística para a formação de clusters. No entanto, observa-se uma área de agregados desfavoráveis nas regiões Oeste e no Agreste (Figura 2B). A Figura 2A mostra a TMtA masculina predominantemente baixa, entre 0,01 e 0,55 na sua maioria.
Discussão
No estudo da morbimortalidade em idosos por agressões no RN, separado por sexo, no período de 2000 a 2010, observa-se que a análise geoespacial das taxas de morbidade e mortalidade foi estatisticamente não significativa, logo não foi possível identificar clusters. Embora p não tenha apresentado valor significativo, pôde-se comprovar a existência de agressões contra os idosos e inferir a possível formação de aglomerados, porém a subnotificação dos casos de violência dificulta a análise real da situação.
Tal subnotificação pode ocorrer por diversos motivos como medo (por parte dos idosos) de realizar a denúncia 19, despreparo do profissional de saúde em identificar a violência 22 e o uso de dados secundários, como será abordado adiante.
Diante disso, é importante enfatizar que os dados sobre mortalidade são prontamente registrados e encontram-se disponibilizados através de uma plataforma do MS. Tais informações são agrupadas no SIM, sistema de informação desenvolvido em 1975. Durante os anos seguintes, o sistema passou por mudanças que levaram ao seu aprimoramento, podendo ser citados: a criação do modelo atual da declaração de óbito e o surgimento de um novo aplicativo informatizado em 1999; a introdução do Programa de Redução do Percentual de Óbitos com Causa Mal Definida no Plano Plurianual 20042007; a padronização do formulário "Investigação da causa do óbito" e, em 2008, a criação do projeto que possibilitou a implantação de autópsia verbal no Brasil, sendo esse um método de investigação dos óbitos de causa mal definida 21.
Os dados sobre morbidade estão registrados no SIH, sistema que se iniciou em 1982, criado para substituir o Guia de Internação Hospitalar, e que possui dados desde 1984. Tal sistema é alimentado mensalmente pelas AIH enviadas pelas unidades hospitalares e processadas no DATASUS. Tem como marco a captação em microcomputadores em 1992, encerrando a era dos polos de digitação 23.
Contudo, ressalvas devem ser feitas à utilização de dados secundários, tendo em vista que esses estão propensos a falhas em seus registros. Sendo o SIM e SIH fontes de informações de dados secundários, o "p" insípido pode significar a subnotificação dos casos. Outra limitação deste estudo é a chamada falácia ecológica quando a análise de dados agregados pode não representar a realidade individual 21.
As equipes que integram as Estratégias de Saúde da Família possuem potencial para dar visibilidade a esse fenômeno, considerando que essas estabelecem vínculos com a comunidade e podem identificar os acontecimentos tanto no ambiente familiar quanto social e de assistência ao idoso. A realização de avaliações periódicas torna-se de suma importância para a averiguação dos casos de violência 22 para, dessa forma, agir tanto no tratamento quanto na sua prevenção.
A identificação e a posterior notificação às autoridades competentes de casos suspeitos de violência contra o idoso é de responsabilidade tanto ética quanto moral dos membros das equipes de saúde da família. Esse processo auxilia a investigação e ação dos serviços que cuidam da proteção desse idoso 24. O cuidado para com os cuidadores de idosos também é um ponto chave: estar atento às questões inerentes ao ato de cuidar e suas cargas emocionais, físicas e sociais é importante no âmbito da saúde coletiva. Compreender esses fatores pode vir a melhorar a qualidade de vida dos envolvidos nesse complexo relacionamento bilateral 8.
A literatura aponta que na América Latina, as mulheres estão mais suscetíveis a sofrerem algum tipo de violência e que parentes e companheiros estão entre os principais agressores, sendo a residência um local de risco 25,26.
Existe também uma carga diferenciada entre cuidadores formais (remunerados) e cuidadores informais (familiares), sendo que os formais apresentam mais satisfação com o trabalho enquanto os familiares apresentam uma carga emocional e de estresse bem mais elevada, relacionada com a atenção prestada ao dependente 20,27.
É fundamental capacitar a equipe de saúde para que perceba e notifique atos violentos praticados contra essa parcela da população 2,19. Um estudo feito com profissionais de saúde em São Paulo apontou que mais da metade dos entrevistados (53,57 %) testemunhou algum tipo de violência em seu local de trabalho, porém, apenas 7 % apontaram a notificação como sendo um procedimento a ser realizado 25. Obrigatoriedade da notificação pelos serviços de saúde, seja esse público ou privado, bem como dos serviços de Assistência Social e Educacional de casos suspeitos ou comprovados de violência praticada contra o idoso, ainda não é compreendido pelos profissionais que atuam nesses serviços 24.
Conclusões
A análise geoespacial da morbidade e da mortalidade em idosos por agressões no RN, no período de 2000 a 2010, não foi estatisticamente significativa, logo não foi possível identificar clusters. Embora o estudo não tenha mostrado valor de p significativo, pode-se comprovar a existência de agressões contra os idosos e inferir a possível formação de aglomerados caso haja a correta identificação e notificação dos casos de violência, levando em conta o considerável índice de subnotificação desse evento que é um dos fatores limitantes desse estudo.
Dessa maneira, torna-se importante estimular a população a denunciar casos de violência e de maus tratos contra os idosos tanto no domicílio como em ambiente público, bem como enfatizar a necessidade de rastreamento desses eventos pelos profissionais de saúde. Assim, além de auxiliar na minimização dos danos gerados e interromper a continuidade desse ciclo, contribui para a maior qualidade e fidedignidade das informações disponíveis.