Introdução
A global strategy for women's, children's, and adolescents' health (2016-2030): survive, thrive, transform abrange as diferentes necessidades da população de mulheres, crianças e adolescentes que vivem com o vírus da imunodeficiência humana (HIV). Destacam-se os temas prioritários como o teste para diagnóstico, o tratamento e a prestação de serviços ao adolescente com HIV 1.
Esta estratégia foi lançada em 2010 pela Organização das Nações Unidas e atualizada em 2015 quando reafirmou os adolescentes como centrais para tudo o que a estratégia pretendia alcançar e entre as metas foi incluído o objetivo de avançar a redução dos efeitos da aids até 2030. Além disso, ratificou a necessidade de acesso universal a serviços e tratamento, insumos e intervenções direcionados aos adolescentes e à população jovem 1.
Quanto ao tratamento, as prioridades incluíram estratégias de monitoramento para melhorar a adesão e de fatores que poderiam impactar o seu sucesso 2. Tais questões levam em consideração que, na adolescência, a supressão viral foi altamente variável 3 e depende da adesão ideal à terapia antirretroviral (TARV) 4.
Estudos destacam temas potencialmente importantes para a adesão à TARV entre adolescentes, o que inclui o impacto de fatores como o conhecimento do status sorológico 5 e a estrutura familiar 6. Além disso, os jovens submetem-se à TARV para minimizar as interferências da doença em seu cotidiano a fim de prolongar a vida e viver com qualidade para conseguir um trabalho, estudar, programar o casamento e criar os filhos 7,8.
Outros aspectos importantes são a via de administração dos medicamentos, o número de doses, os efeitos colaterais, a ingestão de medicamentos fora do domicílio 9-11 e os cuidados da saúde. Portanto, pode-se dizer que algumas atitudes relacionadas à medicação tangenciam o âmbito individual e as relações sociais estabelecidas pelo jovem 6.
Evidências indicam que as interveções para a promoção da adesão são necessárias devido ao fenômeno ser multifacetado, pois envolve: as biopolíticas locais e globais 12; a presença de barreiras e facilitadores para a adesão 13; os fatores relacionados ao uso do preservativo 14; a sociabilidade e a subjetividade dos jovens e adolescentes que vivem com HIV 15-17. Mas, se mantém a indicação da necessidade de estudos que contemplem a especificidade da população em questão 18.
Assim, a atenção em saúde para esses jovens deverá considerar as especificidades da dimensão biológica da infecção, da fase do desenvolvimento humano e as dimensões social e existencial do indivíduo. Esta última indica a utilização da abordagem da fenomenologia em investigações qualitativas em que se busca a compreensão de vivências 19. Os resultados de uma investigação fenomenológica poderão subsidiar um cuidado que contemple as singularidades e as necessidades específicas dos jovens, considerando os significados atribuídos por eles na vivência do uso da TARV. Assim, tem-se como objetivo compreender as vivências dos jovens quanto ao uso da TARV para o HIV.
Método
Estudo qualitativo, com abordagem fenomenológica, fundamentado no referencial teórico-filosófico-metodológico de Martin Heidegger. A fenomenologia enfatiza a existência humana e compreensão do objeto de estudo em si mesmo: a vivência dos jovens em TARV para o HIV. O referencial heideggeriano atende à necessidade de desvelar os significados do ser, compreendendo-o como um ser que existe e que se relaciona e se manifesta no mundo da vida.
O estudo foi desenvolvido em um hospital universitário na região sul do Brasil, que é referência na assistência a pessoas que vivem com HIV. Os critérios de inclusão foram: diagnóstico de infecção pelo HIV, idade entre 15 e 24 anos e em uso de TARV. O critério de exclusão foi o jovem não saber do seu diagnóstico, sendo esta informação colhida junto ao familiar que o estivesse acompanhando na consulta. Aos menores de 18 anos, foi solicitado o consentimento do responsável e, posteriormente, o seu assentimento. Àqueles entre 18 e 24 anos foi solicitado seu consentimento diretamente. A pesquisa atendeu à resolução n° 466/12 do Conselho Nacional de Saúde/Brasil com aprovação do Comitê de Ética da Instituição.
Os participantes foram convidados enquanto aguardavam a consulta, recebiam esclarecimento acerca da pesquisa e era garantindo o sigilo do diagnóstico. A produção dos dados foi realizada por meio da entrevista fenomenológica 20,21, no período de março a junho de 2015. A técnica permitiu desenvolver um encontro individualmente estabelecido com cada jovem. O início da entrevista ocorria com uma conversa informal (aspectos do cotidiano) e quando o jovem se mostrava mais à vontade, era perguntado acerca dos cuidados com a sua saúde e, depois: como é para você tomar os medicamentos para o HIV (OU AIDS, doença, problema, vírus - conforme nomeada pelo jovem)? E, qual o significado de tomar esses medicamentos?
As entrevistas foram gravadas (mediante concordância), transcritas conforme a fala original e codificadas com a letra J (jovem) seguida de números (ex.: J1). Participaram dez jovens e esse número foi determinado pela suficiência de significados, a partir da análise concomitante com a etapa de campo, que indicou o quantitativo de entrevistas necessário para responder ao objetivo da pesquisa. Para a análise, pautada no referencial de Martin Heidegger, foram desenvolvidos dois momentos metódicos: compreensão vaga e mediana e hermenêutica 22.
O primeiro iniciou com a leitura exaustiva do texto das entrevistas, quando os pressupostos foram mantidos em suspensão, de modo a compreender aquilo que estava sendo significado e não por categorias predeterminadas pelo conhecimento prévio. A compreensão dos significados expressos pelos participantes descreve o fenômeno como este se mostra 22. Então, por meio da leitura atenciosa, foram identificadas as estruturas essenciais que foram agrupadas e constituíram as unidades de significação (US). A partir das três US, desenvolveu-se o segundo momento metódico, a hermenêutica (análise e discussão dos dados), com a interpretação dos significados à luz dos conceitos (sentidos) heideggerianos, sendo mantida a suspensão de pressupostos.
Resultados
Entre os dez jovens participantes do estudo, sete eram do sexo feminino e três do sexo masculino (entre 16 e 23 anos); todos residiam com seus familiares e estudavam ou trabalhavam; dois eram casados, dois namoravam e os demais estavam solteiros; três tinham filhos. Quanto à categoria de exposição ao HIV, quatro foram por transmissão horizontal e os demais por transmissão vertical. As us foram:
US 1. Medo de contar o diagnóstico e de morrer, justificado nas experiências familiares ou sociais
A possibilidade de reações negativas, tais como abandono, desprezo ou preconceito, é a causa do medo de revelar o diagnóstico. Por isso, compreendem ser importante revelar para as pessoas certas, em que confiam e os apoiam. A lembrança da perda dos pais (pela AIDS), dos hábitos dos pais de não tomarem os medicamentos, faz com que sintam medo de morrer.
Ninguém sabia [na escola]! [...] Ele [namorado] não acreditou [...]. Deu medo, achei que ele não ia aceitar. Ela [cunhada] era a única que tinha [AIDS] na família e ela cuidava de mim, ela já faleceu. [...] Meu irmão também faleceu [de AIDS] (J1). Eu cheguei e contei [para o namorado]; [...] E ele aceitou (J2).
A perda dos meus pais por causa dessa doença. Aí sempre me bate isso [tristeza] porque eu tenho medo de morrer (J3).
Ninguém sabe, só a minha família e as professoras do colégio [...] os namoros não duram até a ponto de tu falar [que vive com HIV]. [...] Tem que usar [os antirretrovirais]. [...] Porque a minha irmã morreu, porque ela não tomava (J4).
Ele [namorado] se sentiu assim premiado, ele disse assim: "Que confiança que tu tem em mim?!" [...] Minha mãe biológica tem [AIDS]. [...] Só que ela não se trata, tá sempre doente e eu não... não acho legal (J6).
US 2. Tomar os remédios é "complicado", mas "tem que tomar para ficar bem e cuidar do outro" e para isso, buscam estratégias
Os jovens relataram que tomar os medicamentos é ruim e complicado, alem dos efeitos colaterais como enjoo (náusea), tem os horários controlados para lembrar. Mas, eles se empenham para seguir o tratamento, tendo como motivação o outro (filho, namorada). Para não esquecerem, contam com auxílio de outras pessoas (mãe, cônjuge, ex-marido, avós, irmãos, padrasto e amigos), e utilizam o despertador do celular ou estar com os medicamentos próximos de si.
[...] [A médica disse] que eu ia ter que tomar remédio, que eu tinha que fazer o tratamento todo [...] é ruim, porque dá enjoo [...] eu esqueço às vezes, ela [mãe] me lembra, meu namorado também [...]. Botar o celular para despertar (J1).
No início [...] foi um sacrifício. [...] Tem que ter horário controlado. [...] Me deu reação, enjoo, náusea e tudo. [...] Tenho que tomar para ficar forte para cuidar do meu filho. [...] Deixo o remédio do lado da cama [para lembrar] (J2).
É complicado! Tu tem que estar se lembrando toda hora [...] os efeitos colaterais deles são muito fortes. [...] Eu tomava o remédio e o meu estômago ficava todo embrulhado [...]. Quando eu comecei a namorar eu comecei a pensar mais nela, eu falava para ela “eu tomo mais os remédios por tua causa” (J3).
Tudo pro meu bebê nascer sem o vírus dependia de mim (J5).
Mas eu preciso sempre tomar esses remédios [...] eu boto pra despertar [o celular] (J6).
Descobri que tinha que tomar remédio foi outro choque [...]. Era ruim, porque dá ânsia de vômito, dá dor de barriga [...]. E, se tu não tomar, a tua imunidade vai baixando [...]. Se eu não quero por mim, pelo menos pelos meus filhos, minha família (J8).
US 3. Tomar os medicamentos é algo normal, tornando a vida diferente
Os jovens tentam se instruir quanto ao tratamento, procurando informações, acompanhando os resultados dos exames e tirando dúvidas com o serviço de saúde. A fala acerca de tomar os medicamentos é contraditória à anterior (US 2), uma vez que os jovens relataram que é complicado devido aos efeitos colaterais, mas com o tempo tomar os remédios é normal, é algo que incorporaram no dia a dia, estão acostumados. Utilizando os medicamentos, eles sentem-se como se não tivessem o HIV, mas lembram disso quando vão ao médico, fazem exames ou tomam os remédios. Percebem os medicamentos como uma oportunidade de se tornarem saudáveis. Entretanto, quando comparam a sua vida com a vida de outras pessoas, relatam que têm limitações para alguns comportamentos/atitudes nessa fase (ex.: sexo com camisinha, responsabilidade com horários e rotinas de cuidado) e mostram que, apesar de parecer normal tomar os medicamentos, a vida deles é diferente.
Eu sempre quero ver como que está a minha carga viral [...] se está boa ou não está boa, se abaixou ou aumentou. [...] Normal [tomar os antirretrovirais] (J2).
Todo dia ter que tomar, tem que lembrar toda hora certinho (J3).
Para mim é tranquilo [tomar os antirretrovirais]. [...] A diferença de uma pessoa que não tem é que a gente tem que fazer o controle a cada 6 meses. [...] Uma pessoa normal, é que não tem uma doença igual à minha que é crônica, diferente (J5).
É bom, normal, tranquilo [tomar os antirretrovirais]. [...] Porque eu não sinto nada [...] até esqueço [que vive com HIV], só me lembro que tenho, quando venho aqui [no serviço] e tomo remédios. [...] Ainda bem que tomo esses remédios, porque posso ser uma pessoa saudável [...] saber a importância dos remédios, e que foi ali [no hospital] onde eu aprendi (J6).
Normal, como se fosse tomar um remédio para dor de cabeça (J8).
Às vezes eu apago isso [que vive com HIV] pra tentar levar uma vida normal [...] uma vida normal sem doença, sem pensar que tem doença [...] tu viver, ter amigos, [...] ter um trabalho bom, ter uma família (J9).
Pra mim já é normal [tomar os antirretrovirais], mas a minha vida é meio diferente [...] porque te limita pra fazer várias coisas, que nem transar, não pode transar sem camisinha. Diferente só por ter que tá todo dia tomando remédio (J10).
Discussão
A hermenêutica heideggeriana possibilitou desvelar o sentido do ser do jovem com HIV a partir da compreensão de suas vivências e significados do uso da TARV para o HIV, que apontaram seus modos de ser no cotidiano. Os jovens se mostraram no modo de ser, de ser-com nas relações que estabelecem com as pessoas a quem confiam o diagnóstico; o sentido heideggeriano do temor, devido à possibilidade do preconceito e ameaça da morte, e o da ocupação com os afazeres e obrigações inerentes à terapia. Outro sentido é do falatório quando repetem aquilo que escutam dos profissionais e da curiosidade quando permanecem em busca de saber mais quando tudo parece ter sido compreendido.
A hermenêutica também possibilitou desvelar o sentido da ambiguidade observada entre as US 2 e US 3. Isso porque na fala dos jovens há um discurso contraditório: ato de tomar os remédios é complicado (no início), mas também é normal (acostuma). O complicado se refere aos desafios de seu cotidiano e o normal está estabelecido em sua vida pela facti-cidade da condição crônica da infecção pelo HIV.
Esses sentidos constituíram o foco da análise hermenêutica, em que o modo de ser desses jovens foi descrito por meio dos seus afazeres com relação à vivência tendo HIV e fazendo TARV. Os jovens se mantêm ocupados com os afazeres e as obrigações relacionadas a essa vivência e buscam estratégias para manter a rotina de tomar os remédios corretamente, o que está expresso nos depoimentos quando relatam que têm que tomar nas horas certas, independente dos efeitos colaterais. Tais estratégias também são apontadas em estudo realizado na África do Sul o qual mostra que o uso de alarmes de telefones celulares e o apoio de familiares e amigos foram facilitadores da adesão à terapia 23.
O envolvimento com o tratamento mantém o jovem ocupado para poder lidar com o que lhe vem pela frente. A ocupação designa hábitos, um modo de ser predominante e prescritivo, em que o ser faz sempre as mesmas coisas, ou seja, repete suas ações no cotidiano, cumprindo tarefas 22. No cotidiano, o humano se manifesta por meio do modo de ser habitual, de tal forma que quase sempre, e na maioria das vezes, o ser do humano se mantém o que mostra que todos nós estamos lançados no mundo da vida 22. A expressão estar-lançado indica a facticidade de ser entregue à responsabilidade, ou seja, àquilo que não temos escolha e do qual não podemos escapar, indicado pelo jovem como a obrigação do tratamento, que tem a dificuldade de tomar os medicamentos, mas tem de fazer para manter sua saúde.
Mesmo sentindo-se na obrigação de realizar o tratamento, os jovens devem ter a oportunidade de considerar os riscos e benefícios com relação ao mesmo e tomar decisões à luz da sua realidade (individual e coletiva). Para isso, é dever dos profissionais de saúde assegurar que essa escolha seja significativa e informada 24.
Apesar de considerarem complicado ter que controlar os horários, além dos efeitos colaterais, os jovens tomam os remédios por um motivo maior, para manter a saúde e, inclusive, cuidar dos filhos. A TARV independente dos efeitos colaterais, muda o modo de vida das pessoas, proporcionando-lhes maior força de vontade para seguirem adiante após sentirem melhora da sua condição de saúde 25. Ter filhos também é um motivo para utilizá-la o que possibilita o cuidar do outro 26.
Dessa maneira, os jovens apontam a importância das relações estabelecidas, o ser-com que é um modo de ser-no-mundo-com-os-outros. O ser-com indica a natureza relacional do humano demonstrando que todo ser é sempre relacional em um mundo que é compartilhado 22. No modo de ser-com o jovem se comporta, essencialmente, em função dos outros. O ser se lança para fora do seu lugar, de ser cuidado, e assume uma posição de responsável pelo outro, tomando conta e realizando as atividades por ele. Assim, o envolvimento no mundo de cuidados possibilitou seu bem-estar no cotidiano. Nesse processo relacional, destaca-se o apoio da família e dos pares, bem como a questão da espiritualidade, que contribuem para a aceitação do diagnóstico mediado pelo apoio emocional 25.
Outro sentido desvelado foi o temor que carrega a dimensão de ameaça de algo, aqui representada pelo preconceito. Então, nesse mundo compartilhado, o jovem tem medo de contar o diagnóstico, teme a possibilidade do abandono por parceiro, amigos e colegas da escola. Para Heidegger, a dimensão do temor é uma ameaça de algo que subitamente pode acontecer 22. Assim, o preconceito ainda não aconteceu, mas é algo conhecido pelo jovem. Sabe-se dos avanços do tratamento para o HIV, porém as crenças e atitudes que resultam em preconceito ainda são desafios, podendo ter consequências psicológicas e físicas para os jovens e suas famílias 27.
Os jovens preferem revelar o diagnóstico aos companheiros por conta própria, pois a proximidade da ameaça pode chegar ou não, e visto que os parceiros participam ativamente de seu cotidiano, fica difícil esconder a situação. Contudo, eles contam somente àqueles em quem podem confiar.
Assim, a ameaça traz consigo a possibilidade de não acontecer, o que não diminui nem resolve o medo, ao contrário, o constitui 22.
Além do temor de revelar o diagnóstico, os jovens também temem morrer. Diante do fato de que a AIDS é uma condição crônica, o risco de morte é uma possibilidade e configura-se como uma ameaça, o que também constitui um temor 22. Os jovens manifestam em seus relatos que eles têm medo de morrer por causa do HIV e que, se pararem de usar os medicamentos, isso pode vir a acontecer. Outro estudo também aponta o medo da morte em pessoas que vivem com HIV, ocasionado pela progressão da doença, o que gera sofrimento 28.
Assim, como ameaça, o risco de morte não se encontra em uma proximidade dominável, sendo percebida pelo jovem somente como próxima 22. Apesar da disponibilidade de tratamento e acesso a serviços de saúde públicos para atenção especializada para pessoas com HIV, a AIDS continua sendo responsável pela maioria das mortes em pessoas que vivem com o vírus 29. Este fato também justifica a percepção dos jovens em considerá-la como próxima de sí.
O temor também é percebido pelos jovens nesse cotidiano e acontece quando identificam o preconceito, quando ocorre a morte dos pais, irmãos, cunhada, amigos próximos, ou quando ouvem falar da morte de artistas conhecidos. Estes relatos denotam a familiaridade com algo conhecido que em algum momento fez parte do cotidiano deles, seja em experiências anteriores ou por meio daquilo que eles ouviram falar. Assim, a infecção pelo HIV e tais experiências constituem a percepção da possibilidade de morrer, mas eles compreendem que o uso da TARV os afasta de tal possibilidade.
Para utilizar a TARV corretamente, os jovens relatam que tomar os medicamentos é normal, mas que eles não têm uma vida normal. A interpretação quanto a este referencial mostrou que os participantes estão no modo de ser da ambiguidade; quando aparece a contradição, então, tudo parece ter sido compreendido, quando na realidade não foi, o que é identificado na fala e nas atitudes no mundo, com os outros e consigo 22. Os jovens relatam que tomar os medicamentos é normal, fazendo parte do seu cotidiano, mas que não têm uma vida normal. No pensamento heideggeriano, essa ambiguidade mostra a pretensão ou uma ilusão, um caráter de superficialidade.
A este sentido soma-se o fato de mostrar na reprodução o que ouviram dos familiares e da equipe de saúde (falatório) e por serem curiosos (curiosidade) com o tratamento. No modo de ser do falatório, os jovens assumem um discurso que é a repetição daquilo que ouvem acerca da terapia, repetem aquilo que escutam de discursos advindos das pessoas que os ajudam no tratamento e que repetem para si mesmos, lembrando e se esforçando para realizarem com seriedade a tarefa de tomar os medicamentos. Repetem o discurso biomédico que contém expressões indicativas da doença e do tratamento, as quais eles escutam no serviço de saúde ou leem e escutam na mídia ou recursos em que buscam outras informações acerca de sua condição sorológica e do tratamento. O falatório constitui o modo da compreensão cotidiana em que o ser cai na repetição daquilo que ouviu e passa adiante a notícia, não com o objetivo em si de falar, mas apenas de manter a comunicação 22. Assim, o jovem se apropria das palavras do outro e as utiliza em um discurso herdado para atender suas necessidades e explicar atitudes.
É por meio do falatório que os jovens aprendem aquilo que foi repassado pela equipe de saúde e seus familiares e, ao pronunciarem, compreendem e interpretam com certa visão a importância de tomar os medicamentos de maneira correta, independente do que aconteça durante o tratamento. Assim, essa fala comum faz com que estes jovens se ocupem com o falado, transparecendo sua compreensão com relação ao que foi repassado pelas pessoas. Porém, tais informações (o falado) assumem um caráter autoritário e, com isso, o falatório parece assumir uma posição de verdade. Os jovens reproduzem e passam adiante o que ouvem, mesmo sem compreender a informação em sua totalidade. Na maioria das vezes, eles se contentam apenas em repetir e passar adiante, em uma atitude de quem entende que as coisas são como são porque assim se fala delas 22. Então, os jovens se restringem em saber sobre a doença somente aquilo que lhes dizem e acreditam que, repetindo as informações, já compreenderam tudo.
A importância do uso da TARV irá se constituir como algo familiar para os jovens, mas somente quando eles buscam compreender o seu tratamento, eles ficam sabendo do mesmo. Para Heidegger, essa procura de informações é o modo de ser da curiosidade 22. Os jovens se mostram curiosos com relação ao seu tratamento e, desse modo, eles se ocupam, buscam informações, explicações e conselhos com relação à TARV, informando-se sobre o mesmo. Uma das possibilidades de busca por informações é o uso da internet, a qual tem o potencial de formar opiniões, auxiliando nas decisões acerca do tratamento das pessoas vivendo com HIV 30.
Diante dos significados das vivências expressas pelos participantes quanto ao uso da TARV para o HIV, considera-se que a atenção à saúde deve preservar as múltiplas dimensões desse fenômeno, tendo em vista realizar uma atenção à saúde humanizado e integral, considerando a efetivação da adesão ao tratamento.
Conclusão
Ao considerar a dimensão existencial, ficou evidente que os participantes desta investigação mostraram o medo da revelação do diagnóstico e o de morrer. Também que, a partir do uso correto dos medicamentos, decorre a possibilidade da manutenção de sua saúde e com isso poderão cuidar dos outros e dos filhos. Indicaram que tomar os medicamentos é complicado devido aos efeitos e que também é normal, mas consideraram que eles têm uma vida diferente.
Foi possível compreender que esses jovens, em sua condição crônica de viver com o HIV, falaram de seu mundo da vida, e nos remetem para a necessidade de uma reflexão ampliada acerca da adesão ao tratamento para além de cumprir com as prescrições. Cabe destacar a necessidade de atividades que minimizem o medo da revelação do diagnóstico para outras pessoas, a ampliação das estratégias para a adesão à TARV considerando o fortalecimento das pessoas que apoiam os jovens no seguimento do tratamento. Para tanto, será necessário uma atenção à saúde que contemple as facetas desse fenômeno, reveladas nas vivências desses jovens, considerando não só a dimensão física e biológica, mas também a social, as singularidades, a subjetiva e a existencial. Cabe à enfermagem em equipe interdisciplinar desenvolver ações de cuidado dos jovens e suas famílias como consultas de enfermagem, sala de espera e grupos de discussão a partir dos significados que atribuíram as suas vivências, para reconhecer e valorizar suas demandas e necessidades de cuidado.
Como limite para a interpretação, tem-se que este estudo está circunscrito à realidade vivenciada por jovens em um serviço público vinculado ao Sistema Único de Saúde e de referência em HIV na Região Sul do Brasil, o que restringe a inclusão de jovens que acessam serviços particulares, uma vez que essas vivências podem ser distintas.