Introdução
Em 1988, foi promulgada, no Brasil, uma nova Constituição Federal, vigente até os dias atuais. Com ela, assegura-se a saúde como direito de todos e dever do Estado, o que se concretiza com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), no qual o acesso deixou de ser restrito a uma parcela da população, vinculada ao setor produtivo, e tornou-se mais acessível a todos 1. Como forma de garantir o acesso aos serviços de saúde de modo equânime, integral e universal, surgiram programas voltados para a atenção primária à saúde (APS), como a Estratégia Saúde da Família (ESF) 1,2. Com essa expansão assistencial, o modelo tradicional, voltado para a cura, foi modificado a fim de proporcionar, sobretudo, a promoção da saúde 3.
A aps, por ser a "porta de entrada" dos usuários nos serviços do sus 4, exerce importante papel na redução de doenças e de outros agravos que levam a internações desnecessárias 5. Diante da relevância da APS, é reconhecida a necessidade da avaliação constante do seu funcionamento, para a qual se utilizam indicadores de mortalidade e morbidade, sendo as hospitalizações por Condições Sensíveis à Atenção Primária (CSAP) um exemplo deste último 6.
As hospitalizações por CSAP são decorrentes de problemas de saúde evitáveis, que não careceriam de internação, tendo em vista que deveriam ser contemplados pela resolutividade da APS 7. A taxa de hospitalizações por CSAP representa um indicador do desempenho da APS 8, tanto de acesso como de qualidade dos serviços primários de saúde, e também é utilizada como medida de eficácia de novas políticas de saúde da APS 7.
Em estudo ecológico, foi verificado um crescimento da cobertura da esf no Brasil entre 2006 e 2016, a qual passou de 45,3 % para 64 %, respectivamente, o que representa um avanço de 18,7 pontos percentuais. Além disso, todas as regiões brasileiras apresentaram tendência crescente. Apesar da tendência crescente da Região Nordeste, no Piauí, estado em que a cidade de Teresina se encontra, a cobertura da ESF se manteve estável, a qual, em 2006, era de 95,2 % e, em 2016, 98,7 % 9.
A taxa nacional de hospitalizações por csap teve uma redução estimada de 45 %, passando de 120 para 66 internações por 10.000 habitantes, de 2001 a 2016. Essa alteração foi associada com os avanços da cobertura da ESF 1. Mesmo com a redução das taxas, observa-se elevado número de internações por gastroenterites, que corresponde à condição responsável pela maior parte das hospitalizações por CSAP na Região Nordeste do Brasil. Em segundo lugar, estão as doenças respiratórias. Ambas as condições apresentam determinantes modificáveis que podem ser evitados mediante a atuação da APS 10.
Somada à redução das internações por CSAP, houve um declínio da taxa de mortalidade infantil, o que também pode estar correlacionado com o aumento do acesso aos serviços primários em saúde 11. Entretanto, mesmo com a redução considerável da taxa de mortalidade infantil, quando se compara a países mais desenvolvidos, ainda transparece a necessidade de melhorias 12.
As taxas de hospitalizações por CSAP, por sua vez, tendem a refletir essas diferenças 13. Assim, é fundamental a observação cautelosa dessas internações e, portanto, da efetividade da APS 6,14, a qual prioriza as crianças, devido à vulnerabilidade e ao predomínio de doenças de apresentação aguda nesse grupo 6.
Em linhas gerais, é de grande pertinência a análise das hospitalizações por CSAP; a partir dela, é possível obter informações importantes a fim de proporcionar melhorias na APS e, por consequência, reduzir as hospitalizações por CSAP na população infantil. Este estudo tem como objetivo analisar a evolução temporal das hospitalizações, de crianças menores de cinco anos, por condições sensíveis à atenção primária em Teresina-pI, no período de 2003 a 2012.
Materiais e métodos
Trata-se de um estudo retrospectivo, descritivo e quantitativo, realizado a partir de dados secundários da Rede Interagencial de Informações para a Saúde (Ripsa), a qual possui como função disponibilizar dados básicos, indicadores e análises sobre as condições de saúde e suas tendências. Entretanto, apesar de terem sido extraídos no ano de 2019, referem-se ao período de 2003 a 2012, tendo em vista que os dados estão disponíveis e calculados apenas até esse período.
Neste estudo, foram utilizados números absolutos e taxas de internação por condições sensíveis à atenção primária, estratificados por ano de ocorrência, sexo, grupo de causa sensível e por faixa etária. Destaca-se que as hospitalizações por csap foram analisadas em dois grupos etários: crianças menores de um ano de idade (do nascimento até 11 meses e 29 dias) e crianças entre um e quatro anos de idade (dos 12 meses até 59 meses e 29 dias). Além disso, ressalta-se que, quanto às CSAP, utilizou-se a lista nacional do Ministério da Saúde do Brasil (MS), divulgada pela Portaria 221, de 17 de abril de 2008, a qual é composta por 19 categorias 15.
Foram consideradas as taxas de hospitalizações por CSAP de crianças menores de cinco anos residentes em Teresina, capital do estado do Piauí. Segundo o censo de 2010, este estado possui uma população de 59.111 crianças menores de cinco anos. O seu índice de desenvolvimento humano, do ano de 2010, foi de 0,751 16. O município de Tere-sina adotou a ESF como modelo prioritário de atenção e possui cobertura de 100 % da população.
A coleta dos dados foi realizada por um dos autores do estudo. Ressalta-se que os dados coletados se encontram prontamente calculados na plataforma Ripsa, que pode ser acessada através do site do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde do Brasil. A extração dos dados se deu da seguinte forma: acessou-se a seção de indicadores e dados básicos do Brasil (2012); em seguida, a subseção indicadores de morbidade e, posteriormente, o tópico taxa de internação hospitalar (sus) por causas selecionadas. Após a coleta, os dados foram dispostos em gráficos e tabelas, pois se encontram calculados e prontos para a utilização.
Este estudo não foi submetido a um Comitê de Ética em Pesquisa, apoiando-se na Resolução 510, de 7 de abril de 2016, do Conselho Nacional de Saúde, do MS, tendo em vista que se trata de estudo realizado com dados secundários, que não permite a identificação dos indivíduos, disponíveis de forma on-line e gratuita, em plataforma de domínio público. Apesar disso, adverte-se que todos os princípios éticos e legais contidos em resoluções nacionais e internacionais foram respeitados.
Resultados
No período estudado (de 2003 a 2012), a taxa de hospitalizações por CSAP em Teresina-P1 teve um decréscimo de 71,88 %, entre crianças menores de cinco anos. Em crianças menores de um ano, esse indicador reduziu de 1.007,43/10.000, em 2003, para 287,23/10.000, em 2012, o que corresponde a um declínio de 71,49 %. No grupo etário de um a quatro anos, as hospitalizações por CSAP, em 2003, foram de 534,14/10.000 e, em 2012, de 147,95/10.000, o que expressa uma redução de 72,30 % (Figura 1).
A Tabela 1 apresenta a distribuição por faixa etária e os grupos de causas de hospitalizações por CSAP, com um total de 19 categorias, elaboradas de acordo com a lista da Classificação Internacional de Doenças (CID-10). Dentre essas categorias, as gastroenterites infecciosas e suas complicações compõem a maior parte das hospitalizações. No total, ocorreram 13.939 casos em crianças menores de cinco anos por gastroenterites infecciosas e suas complicações, o que corresponde a uma taxa de 208,93/10.000. Observa-se que crianças menores de um ano apresentaram taxa maior (289,84/10.000) do que crianças com idade entre um e quatro anos para esse grupo de causas.
O grupo das pneumonias bacterianas representou a segunda maior causa de hospitalizações, com 5.157 casos em crianças menores de cinco anos, correspondente a uma taxa de hospitalizações por CSAP de 77,30/10.000. Em crianças menores de um ano, ocorreram 1.682 internações por pneumonias bacterianas, o que configura taxa de hospitalizações por CSAP de 128,09/10.000. Na faixa etária de um a quatro anos, ocorreram 3.475 casos por esse grupo, o que corresponde à taxa de hospitalizações por CSAP de 64,85/10.000 (Tabela 1).
Na Tabela 2, observou-se, em todos os anos analisados, o predomínio de hospitalizações por CSAP no sexo masculino. Em 2012, foram observadas as menores taxas de hospitalizações CSAP em ambos os sexos.
Ano | Masculino | Feminino | Total |
---|---|---|---|
2003 | 660,48 | 588,57 | 625,44 |
2004 | 496,71 | 459,56 | 478,64 |
2005 | 463,89 | 431,09 | 44797 |
2006 | 415,64 | 378,17 | 397,14 |
2007 | 392,81 | 369,99 | 381,55 |
2008 | 368,24 | 313,73 | 341,34 |
2009 | 351,68 | 285,19 | 318,87 |
2010 | 387,61 | 337,02 | 362,88 |
2011 | 245,46 | 218,59 | 232,32 |
2012 | 197,05 | 153,72 | 175,87 |
Total | 402,03 | 357,12 | 380,02 |
Fonte: Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde. Dados extraídos em janeiro de 2019.
Discussão
As taxas de hospitalizações por CSAP são de grande relevância para a análise do funcionamento da APS, uma vez que possibilitam identificar as mudanças no modelo assistencial, como aquelas provenientes de investimentos financeiros e da implantação de programas 2. As hospitalizações por CSAP vêm sofrendo declínio no Brasil 17, embora não tenha ocorrido de forma proporcional em todo o território 4,5.
O decréscimo dessas taxas traz benefício tanto para a população em geral como para os sistemas de saúde, embora isso não reflita necessariamente melhores resultados clínicos 4,18. Em contrapartida, os altos níveis de internações repercutem em custos elevados para o sistema de saúde, tendo em vista que são geralmente consideradas falha na resolutividade do atendimento 17,19. Nesse sentido, considera-se fundamental que os formulado-res de políticas públicas priorizem esforços a fim de reduzir o número desse tipo de internação 19, pois isso representa ganho substancial em termos de custos e sofrimento do paciente 20.
Neste estudo, também foi observado um decréscimo de 71,88 %, o que reflete taxas consideravelmente menores, quando comparadas à média de internações do país 17. Tal fato pode ser explicado pelo aumento da cobertura da ESF em Teresina-P1, ao longo do período analisado, pois se sabe que ela contribui para a prevenção e tratamento de doenças que comumente geram internações 1,4,21. Em estudo realizado na Bahia, foi demonstrado o declínio das hospitalizações com a ampliação da cobertura da ESF, além de fazer menção a mudanças nos fatores demográficos e socioeconómicos que aconteceram em paralelo à queda das hospitalizações por CSAP e, provavelmente, exerceram influência positiva 5.
A relação esperada entre indicadores de acessibilidade da APS e hospitalização por CSAP foi confirmada pela maioria dos estudos primários de uma revisão sistemática, tendo em vista que a maior parte dos estudos demonstrou que as taxas de hospitalizações por CSAP são menores em áreas de maior acesso à APS 22.
Teoricamente, a APS deve ser apta para a resolução de 85 % de sua demanda, porém são reconhecidos alguns fatores que contribuem negativamente, o que impede que essa meta seja atingida. São incluídas, nesse grupo, as dificuldades no acesso ao serviço, o que impossibilita o usuário de receber o cuidado inicial e usufruir dos benefícios da aps. Além disso, a postura ativa do indivíduo interfere diretamente na demanda, ao mesmo tempo que sofre influência de características do serviço, como a capacidade de solucionar os casos de CSAP e pelo acolhimento oferecido pelo serviço de saúde 23.
A resolutividade da APS depende de mudanças não só no próprio serviço, mas também de estratégias que levem ao esclarecimento dos usuários sobre o papel que ela desempenha. Esse tipo de atuação consiste em alertar sobre a importância de exercer uma postura ativa quanto aos cuidados com a saúde 23, o que permite uma ação precoce e, assim, evita complicações e maior demanda em emergências e hospitalizações 23,24.
Observou-se, neste estudo, maior frequência de hospitalizações por CSAP no sexo masculino, o que corresponde a pouco mais da metade dos casos, além de predominar em todos os anos analisados. Resultado semelhante foi apontado em estudo realizado em São José do Rio Preto, São Paulo, Brasil 25, e na Itália 26. Assim como em outras regiões 27, segundo o censo de 2010, o sexo masculino apresentou-se em maior número na população de menores de cinco anos 16, o que pode justificar a maior concentração de internações desse sexo.
Neste estudo, os grupos de causas de hospitalizações que prevaleceram foram o das gastroenterites e o das pneumonias bacterianas, o que corresponde às mesmas causas relatadas em estudo nacional 28. Em outro estudo, realizado no Ceará, as taxas de internações, em menores de um ano, por gastroenterites e pneumonias bacterianas tiveram uma redução de cerca de 77,5 % e 30,0 %, respectivamente. Apesar disso, essas causas permaneceram como principais responsáveis pelas internações de menores de cinco anos 29.
Dentre os grupos de causas evitáveis, o das gastroenterites representou a principal causa de hospitalizações, com um total de 13.939 casos, sendo que a maior parte aconteceu em crianças de um a quatro anos. De forma geral, as hospitalizações em menores de um ano apresentaram-se em menor número quando comparadas às hospitalizações na faixa de um a quatro anos. Esse declínio é esclarecido pela existência de programas, destinados a esse grupo populacional, que objetivam tanto o aumento da qualidade de vida quanto a redução da morbidade infantil 5,30, como o Programa Nacional de Imunização e Pré-Natal 5.
A APS dispõe de tecnologias de baixa complexidade e alta efetividade na prevenção de gastroenterites, além da capacidade de identificar manifestações iniciais dessa condição. A terapia de reidratação e a vacina oral contra o rotavírus são exemplos de medidas disponíveis na aps. No entanto, a classificação das gastroenterites como principal causa de hospitalizações por CSAP reflete falha no funcionamento do serviço, uma vez que este dispõe de métodos eficazes na prevenção. Ademais, a permanência do modelo assistencial voltado para práticas curativas também é um dos fatores que pode justificar as altas taxas de hospitalizações por CSAP, o que demonstra que o desenvolvimento de ações preventivas pela ESF ainda não foi consolidado efetivamente 6.
As pneumonias bacterianas foram a segunda maior causa de internações (5.157 casos) em menores de cinco anos, predominando na faixa etária de um a quatro anos (3.475 casos). Em algumas regiões do Brasil, essa causa permanece como responsável pela maior taxa de hospitalizações por CSAP 25,31. Embora as hospitalizações em menores de um ano tenham sido inferiores, quando comparadas às de crianças entre um e quatro anos, são valores que merecem certa preocupação, pois, nessa faixa etária, os riscos de complicação e mortalidade são maiores, em decorrência da imaturidade do sistema imunológico. Fatores como aleitamento insatisfatório e moradia em regiões com cobertura vacinal limitada contribuem para o aumento desses números 31.
A introdução de vacinas destinadas à imunização de pneumonias bacterianas, consolidou-se como uma importante estratégia de prevenção de formas graves dessa doença 32, por isso considera-se importante melhorar a cobertura vacinal para a doença pneumocócica a fim de reduzir hospitalizações por pneumonia bacteriana 33. Em estudo realizado em Ribeirão Preto-SP, um número significante de internações por pneumonias foi associado à vacinação incompleta, o que evidencia a necessidade de otimizar os programas voltados para a imunização 34.
É notado que as hospitalizações por csap são resultantes de vários fatores, desde a cobertura da ESF a aspectos demográficos e socioeconómicos 5. Desse modo, é necessária ação mais ampla que abranja todos os determinantes de internações conforme as carências do território, pois, como foi mostrado em alguns estudos 23,34, as características de cada região são diferentes e, por consequência, os motivos das hospitalizações por CSAP.
A limitação deste estudo está relacionada, sobretudo, ao fato de terem sido utilizadas informações secundárias; por isso, pode-se ocorrer imprecisão quanto aos dados fornecidos pela plataforma utilizada para a coleta das informações, especialmente, no que se refere à subnotificação.
Conclusão
Este estudo demonstrou que, apesar das flutuações existentes no período, as hospitalizações por CSAP tiveram declínio ao longo da década analisada. Além disso, houve predomínio de gastroenterites e de pneumonias bacterianas, ambas se apresentaram como condições sensíveis que poderiam ser evitadas ou até mesmo solucionadas se fossem aplicadas as medidas disponíveis e de baixo custo nos serviços primários de saúde.
Entende-se, com isso, que existe a necessidade de mobilização de gestores em prol da reorganização dos serviços primários de saúde, com o intuito de torná-los mais acessíveis e qualificados. Somado a isso, torna-se imprescindível a promoção de políticas públicas que visem a melhorias socioeconómicas, tendo em vista que interferem nas taxas de adoecimento e, por consequência, nas de hospitalizações. Por fim, o estudo é um importante subsídio para as pesquisas posteriores, pois incita ao aprofundamento quanto aos problemas determinantes para as hospitalizações por CSAP, que predominaram na capital do Piauí.