Introdução
O câncer ocupa a segunda principal causa de morte em todo o mundo. Em 2018, estimou-se que 9,6 milhões de pessoas tenham morrido em decorrência da doença 1. Para o triênio 2020-2022, no Brasil, são estimados 625 mil novos casos para cada ano 2. Já, para o ano de 2025, esse problema tende a se tornar ainda maior, sendo esperados mais de 20 milhões de novos casos de câncer, se nenhuma estratégia de controle for adotada 3. Na região Sudeste do país, encontram-se 60 % dos casos incidentes, o que reafirma a necessidade de fortalecer as ações de vigilância do câncer nessa região 2.
Apesar de muitos tipos de neoplasias serem passíveis de ações preventivas e de detecção precoce, seu controle e prevenção ainda constituem um desafio à saúde pública, principalmente nos países em desenvolvimento 3, em que se observa uma mortalidade proporcionalmente mais alta, se comparada com os países desenvolvidos, como consequência das dificuldades de acesso à saúde e de diagnóstico em tempo oportuno 4. Nesse contexto, os sistemas de informação em saúde são importantes recursos para identificar a situação dos perfis de doenças e os atendimentos em saúde, bem como para avaliar a eficácia das ações em saúde 5.
As informações acerca do perfil clínico, assistencial e epidemiológico dos atendimientos aos pacientes oncológicos é capaz de auxiliar órgãos públicos e gestores a direcionarem as intervenções com base nas concretas necessidades do contexto identificado. Nesse sentido, os registros hospitalares de câncer (RHC), que reúnem dados de atendimentos ocorridos na maioria das unidades de saúde do Sistema Único de Saúde do Brasil, com uma crescente completude de seus dados nos últimos anos 2, constituem-se uma importante fonte de informação.
Os registros eletrônicos de saúde já foram introduzidos em diversos países, subdesenvolvidos e em desenvolvimento. Trata-se de importantes instrumentos que permitem avaliar e identificar a situação de saúde, bem como os riscos e a susceptibilidade da população de uma determinada região 6.
Os RHC detêm extrema importância para monitorar as neoplasias e avaliar o impacto positivo no seu controle 2. O conjunto de dados disponibilizados pelos RHC tornam possível o conhecimento sobre a configuração assistencial oferecida aos pacientes oncológicos e é de grande valia para os profissionais de saúde, devido à sua relevância para promover a qualidade assistencial e gerencial do câncer, e auxilia a tomada de decisões quanto aos recursos, à terapêutica e às ações que deverão ser adotados em uma instituição de saúde 2,6-8.
Tendo em vista o aumento da incidência de câncer em todo o mundo, é de interesse da sociedade e de profissionais de saúde que haja um conhecimento detalhado do perfil de atendimentos de pacientes, para que, assim, as ações planejadas e estratégicas sejam implementadas com base nas necessidades dessas instituições. Considerando a ausência de estudos específicos desse recorte regional, o estudo de dados provenientes do RHC configura-se como uma alternativa acessível e segura.
Em face disso, este trabalho teve como objetivo conhecer a configuração epidemiológica dos atendimentos oncológicos em uma macrorregião de saúde brasileira, do estado de Minas Gerais, entre 2008 e 2017.
Materiais e métodos
Trata-se de um estudo de abordagem quantitativa, transversal, exploratório e descritivo. Contemplaram-se informações de instituições hospitalares distribuídas por cinco municípios-polo que compõem a macrorregião de saúde sul do estado de Minas Gerais: Poços de Caldas, Pouso Alegre, Varginha, Passos e Alfenas, os quais foram representados por letras (A, B, C, D e E, respectivamente).
Utilizaram-se dados secundários de domínio público obtidos por meio de consulta ao "tabulador hospitalar" integrador RHC do sistema de informação de registro hospitalar de câncer, do Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (Inca) 9. Foram considerados dados de 2008 a 2017, por ser o primeiro recorte temporal em que se observa o registro hospitalar de câncer simultâneo em todas as unidades notificadoras da macrorregião de saúde do estado de Minas Gerais estudada. Os dados foram coletados pelos próprios pesquisadores, com a utilização de computadores conectados à internet, no mês de novembro de 2018.
As variáveis de estudo relacionadas à pessoa e ao lugar incluíram: sexo; faixa etária; raça/cor; escolaridade e estado conjugal. No que se refere aos aspectos clínicos, atentou-se para: localização primária do tumor; estadiamento do tumor; primeiro tratamento recebido; estado da doença no final do primeiro tratamento e razão para não tratar.
Foram incluídos, na coleta, dados de atendimentos a casos analíticos e não analíticos, haja vista o interesse em não perder nenhum atendimento realizado nas instituições de estudo. Para o armazenamento e análise dos dados, utilizou-se do software Microsoft Excel ® , versão 2013. A partir desse arquivo, realizou-se a análise descritiva das distribuições de frequência, com a apresentação de frequências simples e relativas, fundamentadas teoricamente na epidemiologia e na estatística descritiva.
Conforme o definido pela Resolução 466, de 12 de dezembro de 2012 10, ressalta-se que, em razão de o estudo utilizar apenas dados de domínio público de acesso irrestrito e sem identificação de indivíduos, não foi necessária a apreciação por comitê de ética em pesquisa.
Resultados
Foi identificado um registro de 54.206 atendimentos no período de 2008 a 2017 no integrador RHC. Em relação à caracterização sociodemográfica das pessoas atendidas, verifica-se um discreto predomínio do sexo masculino (53,38 %), grupo etário entre 60 e 79 anos (49,95 %), brancos (79,08 %), ensino fundamental incompleto (48,36 %) e casados (57,34 %).
Considerando-se os aspectos clínicos assistenciais, observa-se uma grande heterogeneidade de grupos de localização primária dos tumores, sendo mais frequentes os cânceres de pele, o que representa um percentual de 22,35 % dos atendimentos oncológicos. Em seguida, encontram-se os cânceres nos órgãos genitais masculinos, com uma frequência de 17,05 %. Tal distribuição, segundo o município da unidade hospitalar dessa variável, pode ser visualizada na Figura 1.
Ap. resp.: aparelho respiratorio; SNC: sistema nervoso central; SNA: sistema nervoso autônomo. Fonte: elaboração própria a partir dos dados do Inca.
A Tabela 1 mostra os números de atendimentos de acordo com o estadiamento do tumor por grupo, segundo o município da unidade hospitalar. O estadiamento I foi o mais frequente, o que denota 20,98 % dos atendimentos.
Os resultados quanto ao primeiro tratamento recebido e ao estado da doença após o primeiro tratamento podem ser visualizados nas Tabelas 2 e 3.
Constatou-se que a cirurgia constitui o tipo de tratamento recebido predominante (30,79 %), enquanto 31,59 % atendimentos apresentaram doença estável no final do primeiro tratamento.
A Tabela 4 expõe as razões mais frequentes para não realizar o tratamento depois da opção "não se aplica" foram: doença avançada, falta de condições clínicas ou outras (6,97 %).
Discussão
Neste estudo, focou-se na apresentação da epidemiologia do câncer de um determinado recorte geográfico brasileiro e apresentaram-se os dados mais recentes disponibilizados pelo RHC.
Em relação à localização primária dos tumores por grupo, 22,35 % constituíram neoplasias de pele. Da mesma forma, no Brasil, bem como na região Sudeste, o câncer de pele apresenta a maior incidência, tanto no sexo feminino quanto no masculino.
No Brasil, para cada ano do biênio 2018-2019, foram estimados 165.580 casos novos de câncer de pele não melanoma, dos quais 80.410 são apresentados entre as mulheres e 85.170, entre os homens 2.
Os cânceres de pele podem ser divididos basicamente em: não melanoma, o mais frequente e de maior relevância epidemiológica, porém menos agressivo; melanoma, de maior gravidade e importância clínica. Devido ao seu menor impacto clínico, nota-se uma grande subnotificação do tipo não melanoma nos RHC no mundo 2.
A neoplasia de pele não melanoma é curável na maioria dos casos, sobretudo se diagnosticada e tratada em fases iniciais. Contudo, devido à sua alta incidência, a mortalidade não chega a ser tão baixa. No ano de 2015, verificaram-se 1.137 óbitos no sexo masculino e 821 no sexo feminino; números mais elevados do que para o câncer de pele melanoma, para o qual foram identificados, nesse mesmo ano, 1.012 casos de morte em homens e 782 entre as mulheres 2.
Os números crescentes de câncer de pele não melanoma no contexto global podem estar associados ao envelhecimento e ao crescimento populacional 11. A radiação solar se constitui como um importante fator de risco, e pessoas de pele mais clara apresentam maior predisposição genética, além disso esse câncer está associado ao estilo de vida e à atividade laboral a que diferentes populações se submetem 2. Nessa vertente, destaca-se a importância de se direcionarem ações de controle efetivo desse tipo de neoplasia, bem como de se considerar seu impacto na saúde pública.
As neoplasias de órgãos genitais masculinos também constituíram expressivas localizações primárias neste trabalho (17,05 %). Esses achados demonstram similaridade com as vertentes brasileiras, já que, seguido do câncer de pele não melanoma, a neoplasia de próstata apresenta-se como a mais comum entre os homens no Brasil (31,70 %), com estimativa de 68.000 novos casos dessa patologia no biênio 2018-2019 2.
Em 2017, houve 1,3 milhão de casos incidentes de neoplasia prostática em todo o mundo e 416 mil óbitos pela doença 11. Sabe-se que, para esse tipo de tumor, perde-se uma taxa de 6,69 anos potenciais de vida, com concentração dos óbitos entre 60 e 69 anos 12, o que sinaliza a importância de direcionar as prioridades de saúde para esse contexto.
Aspectos relacionados ao estilo de vida, como a falta de atividades físicas e o excesso de peso, representam uma forte influência sobre alguns tipos de câncer, como o de próstata 13. Logo, aponta-se para a necessidade de se direcionarem ações de educação em saúde pautadas na prevenção desses hábitos de vida prejudiciais e de risco para o câncer, bem como de alimentação saudável, redução do etilismo e tabagismo, adesão e frequência de realização de exames de rastreamento oncológico, ou seja, controle dos fatores de risco e adesão às estratégias de prevenção e rastreamento 14.
No tocante ao estadiamento de tumores, na presente análise, observa-se a predominância do estádio I (20,98 %) e II (19,39 %), que, embora sejam recentes, levam a sugerir que as ações do sistema de saúde quanto ao rastreamento e ao diagnóstico precoce na região requeiram maiores aprimoramentos, a fim de que os tumores possam ser diagnosticados ainda in situ.
Esses achados foram consistentes com os resultados de um estudo realizado em Cuba 15, com 6.794 mulheres que foram submetidas a testes citológicos de colo de útero, em que evidenciou a predominância dos estádios I (37 %) e 11 (46 %). Também com os resultados de um estudo realizado no Canadá 16, o qual verificou que 34 % das mulheres com neoplasia de mama foram diagnosticadas em estágio I.
Todavia, estudo realizado em Martinica, região administrativa da França 17, utilizou dados de registros de câncer de base populacional e identificou resultados ainda mais preocupantes no que concerne ao diagnóstico em estádios avançados do tumor, com predomínio de estágio m e IV (62,4 %), que se referem a tumores regionais e metastáticos, respectivamente.
Atentando-se para outros estudos realizados no Brasil, na região Sul do país, verifica-se a predominância de estágios m e IV (46,4 %) entre 2005 e 2011 18. Entretanto, convém ressaltar que não foram publicadas análises mais recentes dessa região de mesmo delineamento epidemiológico; portanto, deve-se considerar que, desde o período de estudo até a atualidade, recursos e estratégias podem ter sido implementados a fim de contribuir para o diagnóstico de estadiamentos mais precoces. Não obstante, observa-se, em outras análises, que mulheres tratadas na região Sudeste apresentam menores chances de serem diagnosticadas tardiamente, em comparação com as demais regiões brasileiras 19.
As variações geográficas quanto ao perfil do câncer podem estar associadas à disponibilidade de serviços de triagem e diagnóstico do câncer. Contudo, a adesão a esses serviços remete a aspectos como o sexo do indivíduo 13. Além disso, sabe-se que o estadiamento do câncer está associado ao nível de escolaridade, como foi observado em um estudo populacional realizado no sul da Índia, no qual se verificou que pacientes analfabetos ou com ensino fundamental apresentavam maior chance de ter câncer avançado de colo de útero, mama e cavidade oral, ao se compararem com indivíduos com maiores níveis escolares 20. Tal dado aponta a necessidade de se direcionar as ações educativas para grupos populacionais com menor nível de instrução, com o objetivo de incentivar a procura em tempo hábil pelos serviços de saúde 20,21. Nesse sentido, incluem-se os pacientes atendidos no recorte geográfico estudado, em que se identificou que 48,36 % têm ensino fundamental incompleto.
Dentre as diversas formas de tratamento oncológico, as mais utilizadas são a cirurgia, a radioterapia e a quimioterapia, que são definidas de acordo com as características, a extensão e o tipo histológico do tumor, com a opção por uma modalidade de tratamento isolada ou de forma combinada. O presente estudo identificou a cirurgia como a modalidade terapêutica mais empregada, a qual é adotada principalmente em estágios iniciais, quando a doença é localizada 22.
Cabe ressaltar que, para além de sofrerem com os impactos da doença em si, as pessoas com câncer também vivenciam reações adversas provocadas pelo tratamento. Apesar das estratégias de controle desses efeitos, eles continuam sendo relevantes motivos para não realizar ou descontinuar a terapêutica 23. À vista disso, faz-se importante atentar-se para a avaliação e inclusão de alternativas inovadoras nos serviços de saúde que diminuam os impactos provocados pelos principais tratamentos oncológicos utilizados nesse recorte geográfico.
Em relação às razões para não tratar a doença, notou-se que a opção mais preenchida foi "não se aplica" (82,96 %), o que se configura como um fator positivo em relação ao atendimento oncológico, uma vez que esse percentual representa os atendimentos a pessoas que realizaram tratamento. Ademais, fatores como o abandono (0,31 %) e a recusa (0,35 %) foram pouco frequentes, o que sugere a adesão do paciente ao tratamento oncológico 24.
Um total de 3.778 pacientes atendidos não realizaram o tratamento devido à doença avançada, à falta de condições clínicas ou a outras razões, o que aponta para um possível diagnóstico em estadiamento avançado. Diversas são as condições que influenciam o diagnóstico tardio, como a própria negligência ou a não identificação dos sintomas pelo paciente e, sobretudo em redes públicas de saúde, a dificuldade e demora de acesso a consultas com profissionais especialistas, o tempo de espera para o agendamento de exames de imagens mais sofisticados, que, muitas vezes, são essenciais para a definição do estadiamento do tumor, e a definição do tratamento adequado 25.
Evidenciou-se que quantidade expressiva de pacientes atendidos apresentou doença estável no final do primeiro tratamento recebido (31,59 %), seguido por sem evidência da doença, que significa remissão completa (19,57 %), o que pode estar associado à eficácia do tratamento. Resultados similares podem ser observados em um estudo sobre o câncer do colo uterino realizado no Brasil, o qual apontou que 17,30 % dos pacientes se encontravam sem evidência da doença no final do primeiro tratamento recebido 19.
Observou-se uma lacuna no preenchimento em relação à variável estado da doença no final do primeiro tratamento recebido, uma vez que 19,27 % dos atendimentos se encontravam sem informação. Essa falha no registro é de notável importância, haja vista que a condição da doença após o tratamento constitui um aspecto de grande valia para ser registrado, pois oferece subsídios para identificar a eficácia da terapia inicial e direcionar seu seguimento 19.
Como limitações do estudo, cumpre assinalar que o RHC deixa de contemplar expressiva parte dos atendimentos realizados por sistemas de saúde privados 19, o que impossibilita obter esses dados para fins de monitoramento epidemiológico dos atendimentos oncológicos, aspecto que assinala a necessidade de refletir sobre essa lacuna.
Contudo, embora tal base de dados não contemple a contento aspectos relevantes como a abrangência e a velocidade, uma vez que determinados registros são disponibilizados em até três anos após a ocorrência do evento de interesse, outras características importantes como volume, variedade, veracidade, versatilidade e viabilidade estão presentes 25.
Uma vez identificadas as particularidades dos atendimentos aos pacientes com câncer no panorama estudado, espera-se suscitar a reflexão e sensibilizar os profissionais de saúde e gestores ante as necessidades da atenção oncológica, o que pode contribuir para a qualificação da assistência prestada, para a identificação das prioridades de investimento em prevenção, tratamento e atenção oncológica, e, por consequência, para o impacto positivo no enfrentamento do câncer no país.
Conclusão
O presente trabalho foi o primeiro a utilizar os dados do RHC para traçar a configuração epidemiológica dos atendimentos oncológicos na macror-região de saúde brasileira ora estudada. Os RHC concentram dados importantes referentes aos pacientes matriculados nos diversos hospitais com a oferta de atendimentos oncológicos, o que os tornam úteis para a avaliação da qualidade da assistência prestada.
Apesar de serem consideradas certas fragilidades referentes à completude e à velocidade no fluxo dos dados secundários sobre o câncer, acredita-se como de suma importância fomentar as pesquisas populacionais na área da oncologia, desenvolvidas a partir dos dados disponibilizados por instituições sérias e confiáveis, como o Inca no Brasil, bem como dar visibilidade e utilidade a elas.
Iniciativas como a aqui descrita, de pesquisar e apresentar o perfil dos atendimentos oncológicos, permitem explorar e conhecer as particularidades dos pontos de atenção à saúde e das pessoas neles atendidas, o que se traduz em oportunidades de melhorar a qualificação das políticas de saúde relacionadas ao controle do câncer, do cuidado ofertado às pessoas com tal doença, da gestão dos recursos e do planejamento em saúde voltado para a rede de alta complexidade oncológica do país.