Introdução
O motorista de ônibus, no exercício profissional, depende do seu corpo e de suas emoções - sua interioridade e subjetividade -, e do que é externo a si - o próprio ônibus, os colegas de profissão, os passageiros, o tempo e o trânsito. Nesse contexto, esse profissional enfrenta, diariamente, uma infinidade de questões e adversidades 1, muitas delas relacionadas à saúde.
A saúde é um direito e, ao mesmo tempo, uma conquista 2. No entanto, observa-se que o motorista de ônibus, devido ao baixo nível de escolaridade e à consequente baixa renda, não cuida de sua própria saúde ou não tem acesso à atenção à saúde.
Os estresses vivenciados no cotidiano - advindos do trânsito e das pessoas - podem causar distúrbios cognitivos 3 e reduzir a capacidade de operar veículos com segurança, já que esse trabalho está diretamente ligado aos aspectos psicológicos de memória e atenção. Além disso, os participantes deste estudo relataram, com o maior número de queixas, dores lombares. Também, dores no ombro, frequentes nos motoristas 1, o que confirma o fato de que as partes mais utilizadas do corpo nessa ocupação - região dos braços e adjacências, e coluna-são as que mais sofrem com a rotina 3.
Nesse contexto, é importante considerar o impacto dessa ocupação no corpo do trabalhador. Para Maurice Merleau-Ponty, filósofo e psicólogo, o corpo, enquanto parte material de nós mesmos, não é somente massa biológica, mas também é existência enquanto relação com o mundo 4. O corpo próprio fenomenológico e o corpo cuidado da Enfermagem necessitam atenção para se manterem ativos no trabalho diário de transportar pessoas. Isso seria um motivo justificado para que, como educadores em saúde, os enfermeiros pudessem avançar e promover programas de controle da pressão arterial 5,6, prevenção de doenças ocupacionais 7 e acidentes 8-10, controle de agravos de longa duração, de controle de peso, além de encaminhar os motoristas de ônibus que apresentam demanda psíquica ao setor de recursos humanos, para que haja atendimento psicológico 11.
Contudo, este estudo tem como objetivo compreender a percepção dos motoristas de ônibus quanto à sua vivência no trabalho e aos impactos sofridos pelos seus corpos. Além disso, pretende-se demonstrar que a inserção do enfermeiro do trabalho pode contribuir para ações preventivas e para melhoria da saúde mental desses trabalhadores, já que esta influencia diretamente o estado emocional do sujeito 12.
Métodos
A fenomenologia desvela o mundo vivido do sujeito e descreve esse mundo com o intuito de propor melhorias. Além disso, considera a percepção do sujeito e o fenômeno a partir de quem o vivencia. Neste caso, o intuito do pesquisador é conhecer a perspectiva do sujeito que participa do estudo.
O verbo principal da análise qualitativa é "compreender" 13. Quatro aspectos interessam ao pesquisador na pesquisa: o espaço vivido ou a espacialidade; o corpo vivido ou a corporeidade; o tempo vivido ou a temporalidade; a relação humana vivida ou o relacionamento. A existência humana é marcada pela consciência de si e em si. Portanto, compreender, a partir da percepção das pessoas, o "estar" no mundo, o que pensam, veem, ouvem, sentem.
Por meio da apresentação da proposta do estudo e da leitura e explicação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), a fim de orientar sobre possíveis questionamentos, e de acordo com as especificações éticas e legais do Ministério da Saúde, foi apresentado o roteiro de entrevista semiestruturada. Os encontros aconteceram na empresa de ônibus. Os motoristas que aceitaram participar, após a explicação dos objetivos da pesquisa e a assinatura do TCLE, foram encaminhados para o local apropriado para a entrevista na empresa.
A principal fonte de dados na abordagem pautada no fenômeno é a entrevista fenomenológica 14, em que pesquisadores e participantes são coparticipantes. Buscou-se acessar o mundo dos participantes e como essas experiências foram vividas; foram feitas 24 entrevistas, com duração aproximada de 60 minutos cada; não houve perda amostral. Os participantes autorizaram o uso de gravador mp3.
Os critérios de inclusão da pesquisa foram: motoristas com mais de dois anos de experiência, treinados em mais de dois cursos da área do transporte, que não tivessem se ausentado do trabalho por mais de cinco anos pelo Instituto Nacional do Seguro Social; os critérios de exclusão foram: motoristas que tivessem outra profissão e motoristas que não quisessem responder à entrevista fenomenológica.
A análise dos dados transcritos a partir das entrevistas respeitou os quatro passos 15 da análise em fenomenologia: 1) realização da leitura criteriosa das entrevistas transcritas, considerando a fala do entrevistado; 2) a partir do conhecimento do método fenomenológico, identiicação dos sentidos que se repetem nas transcrições dos demais entrevistados sobre o fenômeno pesquisado; 3) adaptação da fala do entrevistado para a linguagem científica, com a conservação da evidência do fenômeno descrito; 4) realização da síntese dos sentidos que se repetiram nos discursos dos participantes, com a integração das unidades dos significados, o que pode levar à compreensão do cerne do fenômeno.
Os entrevistados foram identificados como "motorista", seguido da respectiva idade, o que garantiu o anonimato externo e a pronta identificação por parte da pesquisadora. Foram selecionados trechos da transcrição considerados importantes para compreender as percepções dos motoristas, com o objetivo de transformar em dados fenomenológicos e apresentar os resultados compatíveis a unidades de significado. Os dados foram reunidos pelo conteúdo em destaque, com a compreensão dos motoristas e o desenvolvimento da análise, o que garantiu a singularidade das vivências (16), com subsídios nos conceitos do pensamento fenomenológico.
Resultados
Desvelaram-se duas categorias: As relações interpessoais no trânsito impactam diretamente o estado físico e psicológico e A relação com o tempo influencia o comportamento dos condutores. Todos os entrevistados relataram o uso de remédios de ação anti-inflamatória e analgésicos uma vez por semana. A maioria dos motoristas trata doenças crônicas com medicamentos. Nenhum participante realiza acompanhamento psicológico; há o interesse e o desejo, porém é relatado que a rotina de trabalho inviabiliza a terapia. A média de idade é de 41,6 anos; participaram do estudo 22 homens e duas mulheres (Tabela 1).
Com o estresse ocasionado pelo dia a dia da profissão e, muitas vezes, sem os devidos cuidados físicos, emocionais e psíquicos, o motorista de ônibus sofre afetações no corpo e no humor e, com frequência, no inal da jornada de trabalho, ingere medicamentos por conta própria (Tabela 2).
Essa profissão, devido às cobranças impostas e à exposição a ambiente, pessoas e situações que, muitas vezes, são desconfortáveis, acaba por levar os motoristas a sentirem os reflexos de sua rotina no corpo, com a manifestação de doenças e sintomas (Tabela 3).
As relações interpessoais no trânsito impactam diretamente o estado físico e psicológico
Na primeira categoria, pode-se compreender que o passageiro e as relações interpessoais no contexto da mobilidade urbana são inerentes ao serviço de transporte coletivo, influenciando a percepção do trabalhador sobre o trânsito e sua saúde.
A pessoa pode correr perigo dependendo da nossa condução no trânsito. Tem pessoas educadas que aliviam seu dia, aí vem atrás de quem foi estressado com você e coloca a mão no ombro e diz "não liga não". (Motorista de 37 anos)
É estressante por causa do passageiro enjoado, isso estressa o motorista. Aí no outro dia o passageiro dá sinal para você de novo, aí pergunto "ué"?: aí ele responde "o outro motorista me deixou a pé"; com aquele assunto se torna meu amigo, aí vou conversando aí se torna meu passageiro, ele vai ser seu cliente. (Motorista, de 44 anos)
As pessoas fazem coisas que não devem, jogam o carro em cima de você, normal, né? As vezes tenho dificuldades no trânsito, porque tem outras pessoas irresponsáveis, que não têm a responsabilidade que nós temos, aí bebe, e não têm noção, as pessoas estão displicentes não têm cuidado com a vida, com os pedestres, com o auto de passeio. (Motorista de 51 anos)
O condutor sabe o que ele está fazendo, os motoristas de carro, moto, eles não querem saber, eles querem ser os primeiros, não se preocupam se vão bater, se vão atropelar eles aí; é fácil culpar a gente por qualquer avaria que venha acontecer. (Motorista, de 35 anos)
Eu sou daquele que, se ficar quieto, aí, aquela coisa fica remoendo. Aí, então, é por isso que eu pego e falo "Aí, sai!". Aí, já estou pronto pra outra. E, pra sair o estresse mesmo, legal, eu tenho que sair de dentro do carro e chegar no ponto final. Sair de dentro do carro, ficar ali uns cinco a sete minutos fora do carro. (Motorista de 49 anos)
Os modos das pessoas, a educação, essas coisas. Tem pessoas aí que são horríveis. Mas, sendo a minha profissão, eu não tenho muito o que falar, porque é a profissão que eu escolhi. Vamos dizer, a pessoa pode estar nervosa, estressada, o que for. Eu tenho que me adaptar a isso, né? Mas só que eu também sou um ser humano. (Motorista de 48 anos)
A relação com o tempo influencia o comportamento dos condutores
A segunda categoria corresponde a como o tempo influencia o comportamento dos condutores. O trânsito fere, mata, amputa, mas também beneficia. Você chega onde você tem que chegar.
Esses dias eu falei para o cliente: "se acalma, rapaz, se eu chegar, você chega também". Hoje em dia, você entrar no trânsito de madrugada e sair à noite, sem nenhum arranhão, é um milagre que se repete todos dos dias. (Motorista de 46 anos)
Ninguém respeita ninguém. Ninguém tem educação, e educação no trânsito, se não tem, se tem mesmo, e ninguém respeita, né, avanço de sinal... Às vezes, o sinal amarelo, você está vendo o sinal amarelo lá na frente, e lá o sinal vai fechar, e vai avançar. E muitas vezes, a pessoa no amarelo, o pedestre já vai querer atravessar também. (Motorista de 41 anos)
Eu sinto ódio, dá vontade de você jogar para cima, mas vou segurando ali. Hoje foi um dia, o cara está vendo que eu vou sair, ele corta pela contramão, fica emparelhado comigo. Eu abro mão da preferência para não causar acidente. É nojento, é muita raiva que você passa. (Motorista de 57 anos)
Com o tempo vai mudando o nosso comportamento, vai tendo as sequelas do dia a dia, o estresse, as dores na coluna, as dores no joelho porque força muito, me atinge; também ter que dirigir e cobrar, depois, prestar atenção no trânsito, cuidar do idoso; isso tudo vai acumulando na mente, sem falar dentro de casa, afeta nossa família, porque às vezes você chega estressado. (Motorista de 43 anos)
Tem gente pra tudo quanto é lado, motorista desgovernado, tudo doido, e a gente tem que se manter sereno porque senão a gente acaba fazendo besteira. Acaba fazendo besteira. Mas o trânsito é muito louco, muito louco. Pra dirigir, tem que ter calma, muita calma e muita paciência nesse trânsito. (Motorista de 45 anos)
A minha tensão chega a ser apreensiva, chega a ser apreensiva. Eu estou ligado a toda hora, porque a toda hora pode acontecer qualquer coisa, [estala os dedos] assim, e você, com um veículo grande, as proporções são maiores, entendeu? Então, dentro do trânsito, eu sou, eu sou muito preocupado. (Motorista de 53 anos)
Tem que ir devagarzinho, deva-garzinho, e o carro da frente dele está longe, mas está ele deva-garzinho. Se você acende, piscar um farol, buzinar pra ele, manda passar por cima. E aí, a gente segura, liga o alerta pra dizer que o carro está lá na frente, vai lá na frente. Ligo o alerta, eu tento sair dele pra ir embora. (Motorista de 39 anos)
Muito carro, muito carro. Você não consegue... Se você parar ali, você tem que ficar ali parado que tem hora que você não consegue jogar pro outro lado. Se você, quando jogar a seta pra sair, os carros de passeio não deixam você sair. Então, eu tenho que continuar ali. Quando você consegue sair, eles aceleram o carro pra você não sair. (Motorista de 50 anos)
Se não tiver paciência, faz besteira. Tudo parado, não tem opção! É uma realidade muito difícil. O meu segredo é a paciência. Eu fico contando no dedo: um, dois, três, quatro, cinco. Volta de novo, porque senão você faz besteira. Não vai resolver ficar nervoso, vai ter um infarto ali, não vai adiantar nada. É aquilo: orar e vigiar. (Motorista de 48 anos)
Discussão
O trabalho do motorista de ônibus, indispensável para a manutenção da rotina urbana 17, merece ser observado de forma mais sensível. Esses profissionais transportam vidas por meio de um serviço de qualidade e, sobretudo, realizado com segurança. Cabe ressaltar a importância tanto do ser humano que desempenha esse trabalho e sua percepção acerca deste quanto a da organização institucional que o emprega e lhe confere (ou deveria) ferramentas necessárias e suicientes para que atinja seu potencial proissional e interpessoal, na convivência com outros indivíduos, com colegas de trabalho ou com usuários dos serviços rodoviários. As relações tecidas no contexto de trabalho podem favorecer o surgimento de sensações de bem-estar e, inversamente, de insatisfação e adoecimento 18.
O cotidiano relacional entre motoristas e clientes é um ponto de tensão diária. O comportamento do condutor é analisado regularmente pelo usuário do transporte que, muitas vezes, não o respeita, agredindo-o com palavras, críticas e destrato, o que impacta o psicológico e o físico do trabalhador. Por sua vez, a satisfação de conduzir, para muitos motoristas, supera as relações negativas e o destrato dos passageiros 19. Além de ser responsável por vidas que estão dentro do coletivo, o motorista de ônibus é responsável pela máquina que dirige, na visão organizacional. Diante de tantas responsabilidades e da exposição a agentes estressores, o trabalhador pode adoecer psiquicamente, portanto necessita atenção psicológica. Nesse sentido, o controle do estresse 20-25 gerado pela relação interacional entre os usuários do serviço de ônibus e os outros motoristas do mesmo transporte é visto como um aspecto transcendental do autocuidado 26.
Cabe ressaltar que ruídos 27, engarrafamentos, violência urbana, calor excessivo e conflitos com passageiros 28 são alguns exemplos dos contratempos vivenciados diariamente por motoristas de ônibus no Rio de Janeiro. O motorista sente o peso da responsabilidade de conduzir vidas 29 e o da permanência por horas dentro do ônibus, acompanhado, às vezes, da angústia por um problema pessoal ou pela falta de respeito dos usuários.
A relação com o tempo é dramática: a exigência de cumprimento das viagens programadas nem sempre pode ser seguida, pois as vias cada vez mais estão congestionadas. Exige-se uma coisa dos motoristas e passageiros: paciência. Nenhum dia é como o outro, a instabilidade, a surpresa, as variantes do trânsito desgastam a visão sobre a mobilidade urbana. Ainda que seja uma atividade remunerada, movimentar as cidades é tão relevante quanto medicar alguém.
O trânsito é um ambiente de convívio entre pedestres, carros, ônibus, motos e bicicletas que, como um todo, compõem a mobilidade urbana. Nesse contexto de condução de pessoas, os motoristas de ônibus podem sofrer alterações na saúde física e psicológica devido às condições ergonômicas 30, e aos possíveis conflitos interpessoais com clientes ou com outros motoristas. Diante de tantas exposições a agentes estressores, o trabalhador pode adoecer.
O modo de dirigir e a estrutura dos coletivos é, na sua maioria, a mesma mundo afora, e a proissão do motorista de ônibus dá-se no enlace entre as habilidades pessoais e a sociedade; o trabalho é individual, mas a responsabilidade é coletiva. Embora a poluição sonora, as alterações climáticas e a violência urbana sejam aspectos negativos, o motorista se adapta facilmente a essas condições de trabalho 31, deixando-as em segundo plano, já que seu foco está em prestar o serviço de transportar a população com segurança.
Nas empresas de ônibus, geralmente, há psicólogos que realizam o recrutamento de novos candidatos a motoristas e aos demais cargos da empresa, e um setor médico para a avaliação dos candidatos à contratação, para o recebimento de atestados e para a avaliação dos funcionários, o que inclui os motoristas. Entretanto, o setor não desenvolve medidas para melhorar as condições de trabalho e para analisar a saúde dos proissionais. Pode-se airmar que a atenção em saúde para esses trabalhadores impactaria positivamente a organização em geral.
Os sintomas gerados em decorrência do trabalho 32 não tratados podem se agravar e comprometer a vida do motorista de ônibus. Exigem-se ações e comportamentos dos trabalhadores dessa área. Contudo, não lhes são oferecidas condições favoráveis de trabalho, o que acaba por gerar mais problemas não só para eles, mas também para as empresas.
Pensar na saúde do trabalhador 33 não deveria ser considerado sinônimo de mais gastos, e sim uma forma de otimizar os serviços rodoviários, o que refletiria em melhores condições para as cidades como um todo.
Outro aspecto que influencia o comportamento no trânsito é a pressa que marca a vida contemporânea. O tempo parece passar com maior velocidade, e a sensação de perder tempo endossa o comportamento maleducado dos condutores. Os motoristas trabalham com uma estimativa de tempo para realizar suas viagens, o qual foi previamente estudado e calculado pelo setor de planejamento da empresa, que leva em consideração o número de ônibus, os horários de maior pico de passageiros e de utilização das vias. Ainda assim, as intercorrências diárias afetam o serviço e as emoções dos motoristas.
Diante do contexto apresentado, foi importante, para este estudo, as contribuições de Merleau-Ponty, que levam a uma compreensão da percepção fundada nos sentidos. Esse teórico vai além do intelectualismo, pois, para ele, a percepção tem uma corporeidade 34. A consciência não é automática; o movimento do sujeito diante do mundo faz esse mundo habitar no ser; a relação é de coexistência. O significado das experiências vividas pelos seres humanos para compreender os contextos sociais, culturais, políticos e históricos em que ocorrem é imprescindível para o estudo dos fenômenos.
Ao perceber o corpo, reconhece-se o simbólico no espaço em que está inserido. O que se aprende está associado ao que se percebe na organização corporal. O corpo físico aprende ao sentir e ao olhar. Desvelando o sentido em Merleau-Ponty 35, pode-se afirmar que o trabalho de dirigir e fazer acontecer a mobilidade urbana é sempre uma condição de possibilidade, e os participantes desta pesquisa mostraram clareza quanto a isso.
As exigências às quais os motoristas de ônibus estão submetidos vão além da empresa 36, do corpo, da mente: perpassam a educação individual. Nos relatos descritos neste artigo, é possível compreender que as afetações dessa vivência são sentidas pela falta de educação dos demais condutores; por exemplo, os veículos maiores devem salvaguardar os menores, exigência muitas vezes ignorada no contexto do deslocamento. Por sua vez, devido à falta de gentileza no contexto do trânsito, os motoristas de ônibus são prejudicados: demoram mais tempo, por exemplo, para retomarem o lugar na pista quando param no ponto para o embarque e desembarque de passageiros. Quem cuida, muitas vezes, não recebe a gentileza de volta.
Pode-se compreender, pelos relatos dos participantes da pesquisa, que é um desaio diário realizar as viagens. Embora seja notória a perda de espaço para outros meios de transportes e os fatores estressores descritos aqui produzam um misto de sensações, emoções e insatisfações 37, a importância do seu trabalho motiva o motorista todos os dias.
Em Merleau-Ponty, tem-se o espaço temporal como articulador das projeções perceptivas 38. Na manifestação do trabalho diário, o motorista de ônibus operacionaliza a tarefa de dirigir e está submetido a inúmeras projeções perceptivas dos clientes, dos demais motoristas e da própria empresa de transporte, justamente pelo tempo não ser uma linha, mas uma rede de intencionalidades.
A significação da vivência de ser motorista de ônibus se pauta no prazer de exercer seu ofício, no ato de olhar para dentro e buscar sua valorização, na constante e inafastável relação com o passageiro 39. As vivências cotidianas impregnam o discurso, e o reflexo de si no espelho é sempre voltado ao outro.
Seu corpo próprio obtém a visão consciente de si enquanto profissional: expressões carregadas de sentido como prazer e orgulho estão além das competências técnicas do dirigir; estão pautadas na experiência diária de cada ato que envolve a prática dentro do ônibus.
A repetição da experiência se transforma em vivência, a qual está para o corpo e para a consciência. A fenomenologia estabelece, a partir de uma análise essencial da consciência, os diferentes modos como as "coisas" são experimentadas 40. Pode-se afirmar, também, que está para uma representação do ser além da consciência; ser no ato da vivência.
Conclusão
É importante destacar a relevância do trabalho multidisciplinar nas garagens de ônibus, que age como um promotor de saúde para os motoristas: a enfermagem do trabalho pode atuar nas práticas preventivas em saúde, acompanhando as demandas sintomáticas desses profissionais, encaminhando-os para os serviços de atenção primária ou secundária à saúde. Os efeitos posteriores ao dia de trabalho poderiam ser analisados pelos educadores de saúde, como o controle da pressão arterial para elaborar planos de ação que envolvam não somente a Enfermagem, mas também o gerente que lidera os motoristas, a fim de melhorar essa relação, com a valorização dos profissionais e o aumento dos benefícios, mais do que as cobranças. Essas possibilidades poderiam evitar acidentes e ausências no trabalho. O enfermeiro no contexto organizacional é o profissional que indicaria a condição de saúde do motorista antes de ele desenvolver uma doença crônica. Enquanto a Psicologia, em consonância com tais práticas preventivas, poderia intervir na significação das demandas psíquicas e oferecer uma escuta qualificada e sensibilizada.
A partir dos relatos nas entrevistas, compreende-se que a profissão de motorista de ônibus gera impactos na saúde do condutor, e os comportamentos dos usuários e dos demais motoristas influenciam o psicológico desse trabalhador. O fator humano necessita de atenção, pois o corpo é parte do movimento, e o mundo é acessado por meio dele.
Dessa forma, o ser é, por ele mesmo, veículo de percepção, de sensação, de emoção, inserido no mundo da vida. Conduzir pessoas diariamente e lidar com o trânsito, na maioria das vezes caótico, requer, além de habilidades técnicas, o compromisso com cada vida que utiliza esse serviço. Desvela-se, a partir das falas dos participantes deste estudo, o não espaço. Assim, a negativa de um trânsito gentil interfere, diretamente, no fazer do motorista de ônibus.