Introdução
Partimos da conceituação de sujeito que se expressa por meio das modalidades: epistêmica, ideológica e militante. A primeira vinculada ao sujeito que contém suas particularidades e utiliza teorias e métodos a fim de analisar o que lhe é de interesse; a segunda modalidade afirma que cada indivíduo tem escolhas e as faz de acordo com sua visão de mundo; por fim, a relacionada à militância, atrelada a poder e a imprevisibilidade 1.
Neste artigo, debruçamos na modalidade de sujeito militante, que exerce algum tipo de poder ou contrapoder na Enfermagem brasileira, e partimos do questionamento de como se constitui um militante político no campo da profissão de enfermeira(o), visto que a formação é socialmente constituída de características que advêm do contexto histórico e social, e, muitas vezes, também está interligada a símbolos e características provenientes da religião católica ou à identidade militar.
Como referencial teórico-filosófico do estudo, para analisar a constituição do sujeito militante, adotamos Michel Foucault, que, por meio de sua obra, possibilitou a análise do sujeito, seja pelo discurso, pelo saber, pelo poder, seja pela ética e pela sexualidade. Para tanto, destacamos alguns enunciados que subsidiam tal afirmação:
a) de acordo com Fonseca 2, tanto as práticas de saber como as de si e de poder constituem o sujeito, sua subjetivação ou assujeitamento, que se conforma na hermenêutica do sujeito e se constitui na circularidade dos processos de objetivação e subjetivação;
b) a problematização de Foucault 3, ao discutir as Ciências Humanas e trazer a complexidade do objeto e do contexto, a positividade dos saberes, o encadeamento dedutivo linear, a relação de elementos descontínuos, mas análogos, e a reflexão filosófica do homem alienado e das formas simbólicas;
c) para Pez 4, a constituição do sujeito acontece a partir de mecanismos de objetivação e subjetivação, descritos em processo e recursos de adestramento para tornar o homem/a mulher dócil e útil. Já com relação aos mecanismos de subjetivação, podemos destacar quando o sujeito tem uma identidade atribuída como sua 5;
d) conforme Brunni 6, o sujeito está em processo de construir-se e assume um caráter processual, histórico e socialmente determinado, contudo pode se contradizer a espaços de libertação e reconstrução de práticas revolucionárias de alteração de si próprio e do mundo que o cerca.
No Brasil, são recentes os estudos sobre o engajamento militante. A maioria das pesquisas existentes data da década de 1990 e é proveniente das áreas de Educação e Ciências Sociais. Isso se constitui em uma fragilidade, para que seja traçado um panorama aprofundado na temática de engajamento político no país, o que dificulta a identificação de características importantes dessa área do saber 7-10. Observamos que houve o declínio da militância política na década de 1980, em especial das formas de representação política nos sindicatos e nos partidos, fruto da individualização da sociedade, do fortalecimento do neoliberalismo e dos escândalos dessas entidades 11.
O estereótipo do militante está muito influenciado como um lugar masculino, impróprio, rebelde e perturbador. A partir desses fetiches políticos, são conseguidas a alienação política e a delegação política, passando a existir uma pessoa fictícia, um corpo místico encarnado, denominado "mandatário" 12. Para Pudal 13 e Portugal 14, a militância apresenta, entre suas configurações, a do herói, marcada por influências do militante sindical e comunista. Na área da Enfermagem, a militância política é compreendida, por Geovanini 15 e Almeida 16, como prática revolucionária e transformadora do mundo que o cerca, essencial para o reconhecimento do cuidado em Enfermagem na sua dimensão emancipatória, de reconhecimento da autonomia do outro e de si, que, ao mesmo tempo que altera o ser cuidado, altera o cuidador, a enfermeira, o técnico ou o auxiliar de Enfermagem.
Por sua vez, ao considerarmos o referencial teórico de Foucault, entendemos que a conceituação de tecnologias de si, apresentada por ele, reforça a ideia de que existem mecanismos constitutivos do sujeito militante e que estes estão relacionados ao "livre-arbítrio", às escolhas, às pulsões e aos aprendizados. Isso possibilita uma autodeterminação enquanto pessoa, ao mesmo tempo que esse ser é determinado pelo social e se expressa, neste estudo, na constituição de sujeitos militantes 3,17,18.
Desse modo, a partir da questão de pesquisa - como se constituem enfermeiras militantes? -, este artigo analisa as tecnologias de produção e os aspectos constitutivos de enfermeiras militantes, aqui entendidas como a maneira pela qual os indivíduos se relacionam consigo e tornam possível a relação com o outro.
Materiais e método
Trata-se de um estudo qualitativo, baseado no método de história oral 5, que se caracteriza por uma abordagem sistemática por meio de coleta, organização e avaliação crítica de dados que têm relação com ocorrências do passado. Alguns passos são considerados essenciais à produção de um trabalho histórico: 1) definição, justificativa e delimitação do tema; 2) objetivos da pesquisa; 3) quadro teórico e hipóteses; 4) coleta de dados e fontes; 5) crítica e validação dos dados, e 6) análise e interpretação dos dados 19.
A história oral é um método de pesquisa que visa a uma maior ligação entre pesquisador e pesquisado, o que propicia mais interação e desvelamento do sujeito e do objeto pesquisado por meio do diálogo 8. O objeto de estudo deve estar correlacionado ao uso de procedimentos, técnicas e, de forma mais ampliada, de formulações teóricas e filosóficas da investigação 20.
A técnica utilizada para a coleta de dados foi a entrevista semiestruturada, que objetivou identificar e selecionar as(os) enfermeiras(os) presidentes da Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn) e do Sindicato dos Enfermeiros do Estado da Bahia (seeb), além de enfermeiras(os) com uma carreira voltada para a militância.
A coleta se dividiu em dois momentos. O primeiro foi identificar as(os) enfermeiras(OS) que exerciam o mandato presidencial na ABEn, seção Bahia, ou no seeb, a fim de que essas pessoas indicassem outras, que seriam integradas na pesquisa mediante os seguintes critérios de inclusão: ser enfermeira(o); militar por questões políticas específicas da profissão, pela valorização, pela visibilidade, pelo respeito e pelo reconhecimento profissional, por, no mínimo, um ano, de forma sistemática, regular e reconhecida socialmente; assumir e participar de movimentos e mobilizações sociais e públicos na Enfermagem. Como critério de exclusão: limite de cinco tentativas de contato para marcar a entrevista. Duas pessoas foram excluídas da pesquisa após esses critérios serem aplicados.
Em decorrência do auge dos movimentos sociais, a época escolhida e utilizada como recorte temporal foi a década de 1980. Além disso, esse período favoreceu a expressão da militância política 14,21, com registro amplo de movimentos políticos na Bahia, o que justifica esse lócus como recorte espacial.
Foram entrevistados 10 enfermeiras e um enfermeiro. A fim de proteger a identidade dos entrevistados, foi utilizado, como pseudônimo, "Rosa dos Ventos", seguido de numeração referente à ordem em que as entrevistas foram realizadas.
O método da hermenêutica dialética, baseado na sociologia compreensiva, foi utilizado para a análise dos dados, que conta com a teoria da experiência e a teoria da reconstrução. A experiência do indivíduo na militância serviu de guia para a análise, pois, ao militar, as enfermeiras se destacam e se opõem à fragilidade imposta na identidade e na construção histórica da profissão 21-24.
O software NVivo 10 para Windows foi utilizado para organizar as falas por núcleos de sentido. Após essa etapa e a partir da confrontação do referencial teórico-filosófico com as possibilidades apontadas no software NVivo, elaborou-se o Quadro 1, o qual mostra as categorias e subcategorias da análise.
Nota. ... intervalo entre as entrevistadas 2 e 11.
Fonte: adaptação de Silva, Nascimento e Alencar 10.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal da Bahia-Escola de Enfermagem, sob o protocolo n.o 28775614.2.0000.5531 (Certificado de Apresentação para Apreciação Ética), de 27 de maio de 2014. O processo de pesquisa obedeceu aos preceitos éticos preconizados em resolução sobre ética em pesquisa.
Resultados
A produção de sujeitos políticos está relacionada à militância política. Como se observam no Quadro 2, a vivência comunitária mostra como a Enfermagem se vincula a vivências e práticas diárias dessas enfermeiras; a vivência familiar apresenta como se dá a influência desta no ato de militar; a vivência dos movimentos sociais abarca a relação dessas mulheres com a política; a vivência na militância profissional traz como, de fato, elas se constituem militantes; por fim, o convívio com as diferenças éticas e sociais mostra como esse leque de convivências impacta na militância e na Enfermagem.
No Quadro 2, encontram-se as falas das participantes e destacam-se os fragmentos que têm mais impacto para o objeto pesquisado.
Discussão
Considerando os enunciados do Quadro 2 e a compreensão do sujeito feita por Fonseca 2 e Almeida 16, observam-se, em Foucault, antes do sujeito, processos de subjetivação e de assujeitamento. O primeiro constituído pelas linhas de força que os indivíduos fazem dobrar sobre si mesmos, e o segundo pelas composições de forças conjugadas nos dispositivos de poder-saber.
Conforme os enunciados discursivos, a constituição de sujeitos militantes ocorre na vivência comunitária (Rosa dos Ventos 1, 3 e 6), na vivência familiar (Rosa dos Ventos 3, 10 e 11), nos movimentos sociais (Rosa dos Ventos 6, 9, 10 e 11), na militância profissional (Rosa dos Ventos 9 e 11) e no convívio com as diferenças éticas e sociais (Rosa dos Ventos 1, 4, 6, 8 e 10).
Os discursos apontam para a constituição de sujeitos militantes fora dos espaços instituídos da sala de aula e destacam o convívio com as diferenças éticas e sociais na Escola de Enfermagem como elemento gerador de militância e de exercício da cidadania ou da submissão dos sujeitos ao sistema econômico e social, conforme Pereira e Almeida 25,26.
A profissão tem sido compreendida como uma prática tecnicista, em que seus agentes estranham seu objeto e em que, muitas vezes, não são apropriados sua história de vida, o mundo do trabalho e a capacidade de refletir criticamente sobre a profissão. São facilmente dominados pelo capital e pelo biopoder, chegando ao ponto de não compreenderem a Enfermagem como trabalho 17,27-30.
Estudos na área reforçam que a formação em Enfermagem é centrada no modelo clínico, no qual a doença é vista como um conjunto de sintomas, biologicista, altamente especializada, fragmentada, com fragilidades na dimensão política da formação e em seu entendimento 17,23-30. Nesse contexto, a noção desse sujeito constituído se dá em ato na participação em movimentos sociais, como o estudantil, o da Juventude Católica, os movimentos que buscavam a reforma da educação, agrária e os de democratização do país (Rosa dos Ventos 6, 9, 10 e 11).
Nos discursos, são apontados outros espaços da vida que não partiam de discussões teóricas e práticas do ensino em Enfermagem, como produtores de sujeitos militantes. Nesse sentido, destaca-se a participação no movimento estudantil como espaço de formação política (Rosa dos Ventos 6 e 11).
Os aspectos constitutivos de enfermeiras militantes são identificados por meio de vivências comunitárias, na igreja, nas comunidades rurais e na universidade; da vivência familiar, na convivência com o avô, o pai ou o marido; de vivências nos movimentos sociais, com destaque para o movimento estudantil, como o grande gerador/catalisador de militância política; de vivência na militância profissional por meio da ABEn, do Sindicato ou do Conselho. Corroborando com Mansano, que aborda a multiplicidade de vivências como fator determinante para a criação do que é em parte subjetivo e em parte objetivo, e inclui o contexto social e a heterogeneidade como constituintes desse processo 31.
Nessa direção, saberes que tenham vinculação com modelos ideológicos mais democráticos e abertos podem contribuir para a identidade profissional e ir ao encontro da constituição de sujeitos militantes, confluindo, conforme Collière 32, para o modelo de enfermeiras(os) que utilizam uma pluralidade de teorias e o pensamento dialético para apreender os paradoxos cotidianos.
Por fim, as histórias orais de vida capturadas em trechos esboçam uma história das diferentes maneiras nas quais as(os) enfermeiras(os), em nossa cultura, elaboram um saber sobre militância política. Além disso, permitem analisar a Enfermagem em uma perspectiva foucaultiana, seus jogos de verdade, suas curvas de visibilidade, reconhecendo que tudo é passível de questionamento, análise e coconstrução 33.
Ainda para Foucault, uma única forma de historicidade que compreende as estruturas econômicas, as estabilidades sociais, a inércia das mentalidades, os hábitos técnicos, os comportamentos políticos acabam por submeter os sujeitos a transformações semelhantes, como vistas na Enfermagem. Isso supõe ainda que a própria história pode se articular em grandes unidades-estágios ou fases-que detêm em si mesmas seu princípio de coesão 34.
Conclusões
Ao analisar os aspectos constitutivos de enfermeiras(os) militantes, identificamos que ocorre a partir de vivências comunitárias, na igreja, nas comunidades rurais e na universidade; da vivência familiar, na convivência com o avô, o pai ou o marido; de vivências nos movimentos sociais, com destaque para o movimento estudantil, como o grande gerador/catalisador de militância política; por fim, da vivência na militância profissional, por meio da ABEn, do Sindicato ou do Conselho.
Ao olhar para a constituição de sujeitos militantes sob a ótica da hermenêutica dialética, encontramos a convergência interna entre as subcategorias apontadas, a produção de sujeitos militantes e as categorias analíticas deste estudo. Identificamos que o fenômeno ocorre fora do espaço formal de ensino.
Com esses resultados, comprovamos o pressuposto defendido, aqui formulado como síntese, de que a constituição de sujeitos militantes ocorre na história de vida das pessoas, com o convívio com as diferenças, a partir de vivências com coletivos, experiências com entidades representativas e de implicações com o campo profissional escolhido, com a sociedade e com o mundo. Em especial, fora dos espaços tradicionais de formação, a qual se torna elemento inibidor da atuação política das enfermeiras. Contudo, as transformações nas políticas e nas práticas educativas na perspectiva sociológica, antropológica e filosófica colaboram para a constituição do sujeito militante.
Válido destacar que o estudo é uma possibilidade para a análise dos processos formativos em Enfermagem, dado que a constituição de sujeitos políticos corresponde a dois dos quatro pilares da formação, o saber conviver e o saber ser, apesar da fragilidade na dimensão política da formação e dos determinantes de contexto destacados.
Nessa possibilidade, está a centralidade do conhecimento emancipatório na formação dos profissionais de Enfermagem. A formação não ocorre só pela e na escola: a formação se dá no andar a vida. O conhecimento emancipatório se dá por meio de saberes, práticas e vivências ativadoras da condição de sujeito, já destacadas acima.
Por fim, este estudo aponta para as trajetórias de vida de 11 militantes da Enfermagem, profissionais que escolheram defender a Enfermagem como trabalho e indicar caminhos para a esfera governamental, para as entidades representativas da Enfermagem e para o coletivo de trabalhadores.