Introdução
Segundo o inquérito nacional, produzido pela Sociedade Brasileira de Nefrologia em 2018, estima-se que existam 133.464 pacientes em diálise no Brasil, com uma incidência anual de 42.546 pacientes. A taxa de prevalência estimada teve um aumento de 58 % nos últimos dez anos (405 pmp/2009 vs 640 pmp/2018), com maior concentração na região Sudeste (738 pmp), seguida do Centro-Oeste (648 pmp), do Sul (622 pmp), do Nordeste (530 pmp) e do Norte (448 pmp). Além disso, ressalta-se que a faixa etária mais comprometida ficou entre 45 e 64 anos (41,5 %), e a taxa estimada de mortalidade foi de 19,5 % 1.
Dessa forma, a doença renal crônica (DRC) é um problema de saúde pública que se caracteriza pela lesão do parênquima renal e/ou pela piora da função renal por período igual ou superior a três meses, o que resulta na diminuição da filtração glomerular 2. Destaca-se que essa diminuição da taxa de filtração quando chega a valores muito baixos, < 15 mL/min/1,73m2, determina a falência funcional do rim, ou seja, o estágio mais avançado da contínua perda funcional observada na DRC 3. Além disso, leva à necessidade da terapia renal substitutiva (TRS), cuja principal forma de realização (92 %) no Brasil é a hemodiálise (HD) 1. Em consequência da perda das funções renais, esse tratamento é realizado durante quatro horas por dia, de três a quatro vezes por semana, com o intuito de fazer a remoção de resíduos por meio da filtração de sangue 4,5.
A HD é de suma importância para esses pacientes, pois aumenta a sua sobrevida 6. Entretanto, na HD, é comum a existência de intercorrência, como hipotensão, hipertensão, cefaleia, câimbras, náuseas, êmese e calafrios 4,7. Destaca-se que elas estão relacionadas com as condições clínicas do paciente, à qualidade da diálise e ao desequilíbrio no volume de água e de eletrólitos. Com isso, a intercorrência durante a HD interfere diretamente na qualidade de vida do paciente renal 8, além de exigir a atenção da equipe de enfermagem e de outros profissionais de saúde que o acompanham para se diminuírem a possibilidade de interrupção do tratamento e, consequentemente, a taxa de morbimortalidade 4.
O conhecimento sobre o perfil e condições clínicas do paciente são tão importantes quanto o domínio das técnicas/procedimentos do tratamento que ele requer, pois essas informações, em especial das intercorrências, permitem a equipe de enfermagem e a outros profissionais de saúde proporcionarem melhor assistência, orientação e acompanhamento a esse paciente a fim de se evitarem ou minimizarem as complicações no andamento de sua TRS. Nesse sentido, o objetivo do presente manuscrito é analisar as intercorrências durante a sessão de HD em um hospital público de referência.
Materiais e métodos
O presente estudo é do tipo descritivo, de abordagem quantitativa, com característica longitudinal retrospectiva 9. O estudo foi realizado no setor de nefrologia do Hospital Regional do Baixo Amazonas do Pará - Dr. Waldemar Penna (HRBA), um hospital público de referência, localizado no município de Santarém (Pará, Brasil). Participaram do estudo os prontuários de pacientes que realizaram a TRS de agosto de 2008 a dezembro de 2017. Quanto à amostra do estudo, foram analisados prontuários de 142 pacientes; destes, 63 prontuários foram selecionados por atenderem aos critérios de exclusão e inclusão.
Como critério de inclusão, adotaram-se os prontuários de pacientes de ambos os sexos que realizassem HD no setor de nefrologia do HRBA, bem como os prontuários de pacientes que deram o seu consentimento para o acesso ao prontuário por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Para os pacientes não localizados (devido ao óbito ou à transferência), utilizou-se o Termo de Fiel Depositário para ter acesso ao prontuário. Já como critério de exclusão, retiraram-se os prontuários dos pacientes que não apresentaram as informações do primeiro ano de tratamento em HD (65 exclusões), bem como os prontuários com informações parciais ou comprometidas (13 exclusões) e o prontuário de paciente menor de idade (1 exclusão).
A coleta de dados ocorreu nos prontuários dos pacientes que iniciaram seu atendimento/HD no hospital de agosto de 2008 a dezembro de 2017. Contudo, as informações sobre as intercorrências do paciente para o estudo foram coletadas no transcorrer do primeiro ano de tratamento (12 meses) de HD no hospital, a partir da sua admissão. Para a coleta de dados, foi elaborado um instrumento com informações sociodemográficas (sexo, estado civil, procedência e escolaridade) e clínicas (idade do paciente no diagnóstico e no ano coletado, doenças de base, comorbidades e intercorrências). O procedimento de coleta da intercorrência foi padronizado por trimestre, a fim de se organizarem melhor as informações. Essa coleta ocorreu no registro de intercorrência durante a sessão de HD (instrumento próprio do setor). Considerando que a HD é realizada três vezes por semana, sem absentismo do paciente durante um mês, o total mínimo de informações presentes no prontuário refere-se a 12 sessões. Com isso, as informações de intercorrências coletadas no trimestre continham dados de pelo menos um mês.
Os dados foram organizados e analisados com recursos da estatística descritiva (mínimo, máximo, desvio-padrão, média, frequência absoluta e relativa). Posteriormente, foi realizada a associação da quantidade de intercorrências com o sexo, a idade, as doenças de base e as comorbidades, por meio do Teste Qui-quadrado. Ressalta-se que, na associação das intercorrências com as doenças de base II, o termo "outras" representa todos os pacientes com doenças de base que não o diabetes mellitus ou a hipertensão arterial sistêmica. O programa BioEstat 5.3 foi utilizado para a aplicação dos recursos da estatística, com a adoção do nível de significância de p < 0,05.
Destaca-se que o presente estudo faz parte de um projeto temático que teve a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade do Estado do Pará, campus XII-Santarém (Certificado de Apresentação de Apreciação Ética n. 79547517.3.0000.5168).
Resultados
A Tabela 1 apresenta a caracterização sociodemográfica dos 63 prontuários de pacientes que fizeram parte da amostra do estudo. Nota-se predominância do sexo masculino (52,4 %), faixa etária com 60 ou mais anos (33,4 %), estado civil casado (23,8 %), escolaridade com ensino fundamental (incompleto/ completo; 22,2 %) e com procedência de Santarém (15,9 %). Contudo, chama-se a atenção para a frequência de dados não informados nos prontuários referentes ao estado civil (61,9 %), à escolaridade (65,1 %) e à procedência (44,4 %). Por fim, ressalta-se que a idade mínima encontrada foi de 21 anos, a máxima de 89 anos, e a idade média foi de 53,4 ± 14,1 anos.
1Alenquer, Rurópolis, Belterra, Curuá, Placas, Castanhal e Prainha; 2Macapá, Itapipoca e Uberlândia; 3Guiana Francesa.
Fonte: elaboração própria com dados da pesquisa.
Em relação com os dados clínicos, a Tabela 2 apresenta a distribuição das principais doenças de base encontradas na amostra, de forma geral e por sexo.
DM: diabetes mellitus; HAS: hipertensão arterial sistêmica.
Fonte: elaboração própria com dados da pesquisa.
Quando observada a distribuição das comorbidades, nota-se que a anemia foi a mais presente de forma geral e na distribuição por sexo (Tabela 3).
*Osteoporose, hérnia umbilical, hérnia inguinal direita, acidente vascular cerebral hemorrágico, gastrite, lúpus eritematoso, retinopatia diabética, coronariopatia, pneumonia e infecção do trato urinário.
Fonte: elaboração própria com dados da pesquisa.
Quanto às intercorrências observadas nos prontuários, foram relatados 45 tipos de intercorrências, contudo, na Tabela 4, estão apresentadas as 15 mais frequentes. Nota-se que a hipotensão foi a intercorrência mais presente de forma geral (12 %), bem como para os sexos masculino (13,1 %) e feminino (11,1 %).
*Epigastralgia, hiperglicemia, hipovolemia, tontura, tremores, prurido, fraqueza, palpitação, sudorese, astenia, torcicolo, dor nos membros inferiores, dor nos membros superiores, dor no hi-pocôndrio, dor no flanco, dor torácica, dor articular, algia ocular, pirose, dor no ombro, formigamento, vermelhidão nos olhos, dor na costa, dor no peito, algia corporal, dor no quadril costal direito, precordialgia, sonolência, dor sacral e dor pélvica.
Fonte: elaboração com dados da pesquisa.
A Tabela 5 apresenta a associação entre a quantidade de intercorrências e o sexo, a idade, as doenças de base e as comorbidades. Nota-se que nenhuma das variáveis apresentou associação significativa com a quantidade de intercorrências.
Discussão
Entre os 63 prontuários avaliados na pesquisa, observou-se uma discreta predominância para o sexo masculino, além disso a maioria tinha idade acima de 50 anos, com ensino fundamental e casado. A incidência maior de homens pode ser explicada pela não prevenção, porque culturalmente eles procuram pouco os serviços de atenção primária por motivos diversos, como a crença de o ambiente ser feminizado, uma vez que não são oferecidos programas direcionados a eles 10. Já a idade corrobora com o observado nacionalmente 1. Por sua vez, chama-se a atenção para a baixa escolaridade 11, pois pode ser um fator que contribui para a não adesão ao tratamento, como notado em um estudo realizado com hipertensos 12.
Entre as doenças de base encontradas no estudo, o diabetes mellitus associado à hipertensão arterial sistêmica (20,6 %) aparecem como a principal causa indutora da insuficiência renal crônica, seguidas do diabetes (17,5 %) e da hipertensão (17,5 %) de formas isoladas, o que mostra a elevada relação dessas doenças com o surgimento da DRC 1,13. Quanto ao sexo mais acometido pelas doenças, notou-se pouca diferença na distribuição, como visto em outro estudo, cujo sexo não mostrou relação de influência para a ocorrência dessas doenças 14. Além disso, as glomerulopatias encontradas no estudo estão associadas ao surgimento da insuficiência renal 7,15.
O alto índice das doenças de base indutoras para a DRC, principalmente o diabetes e a hipertensão, ambos evitáveis, evidencia a importância da atenção primária para a promoção da saúde, por meio de ações preventivas, com o intuito de evitar ou minimizar a lesão renal, que está relacionada com o aumento da mortalidade 13.
No que se refere às comorbidades em pacientes renais crônicos, a anemia está presente na maioria dos pacientes e com predominância para a população masculina 16, o que se assemelha aos achados deste estudo. A presença de anemia tem etiologias distintas, no entanto está relacionada mais comumente com a carência de ferro e com a deficiente produção de eritropoietina, cujas causa e consequência são, respectivamente, a função renal prejudicada e o processo de HD 17.
Sabe-se que o hiperpatireoidismo secundário (HPTS) apresenta gênese multifatorial. Contudo, fatores como hiperfosfatemia, aumento do paratormônio, cálcio reduzido e deficiência de vitamina D ativa também são identificados como causa do HPTS 18. Além disso, alterações metabólicas dos fatores supracitados (cálcio, fósforo, paratormônio e vitamina D) compõem a base fisiopatológica da osteodistrofia renal 19. Nesse sentido, vale ressaltar que os pacientes renais crônicos são comumente comprometidos pela doença mineral óssea (DMO), de modo que o HPTS pode ser o responsável pela DMO, visto que altera o metabolismo do cálcio e do fósforo 18. Sobre isso, um estudo realizado na Unidade de Diálise Renal, no interior do Rio Grande do Sul, com pacientes em tratamento na HD, demonstrou o acometimento por hiperfosfatemia desses pacientes 20, o que corrobora com este estudo. Já em relação com as outras comorbidades, estudos apontaram que pacientes com DRC estão sujeitos a adquirirem complicações como osteoporose, gastrite e retinopatia 21,22.
Um estudo realizado com 103 pacientes renais demonstrou que a hipotensão foi a principal intercorrência observada, em especial nas mulheres 23. A alta presença da hipotensão observada, no estudo acima e no presente estudo, pode ser justificada pela perda de líquido e minerais (cálcio e sódio) na HD 4.
O mal-estar, observado neste estudo e referido na literatura, é um sinal ou sintoma fisiológico apresentado pelos pacientes durante o próprio procedimento dialítico 7,24, geralmente decorrente do excessivo ganho de peso intradialítico, manifestado principalmente por meio da hipotensão, da hipertensão, das náuseas, dos vômitos, das câimbras musculares e da cefaleia 24. Além disso, notase a cefaleia bem presente, pois apresenta ligação com níveis diminuídos de magnésio e níveis elevados de sódio nos momentos anteriores e posteriores à diálise 25.
Um estudo realizado no Centro de Hemodiálise, em Minas Gerais, Brasil, apontou que o ganho excessivo de peso entre as sessões de HD pode ser a principal causa da hipertensão 26, que é uma intercorrência comum nesse tratamento 27. Outro agravo frequente durante a diálise, relacionado com a pressão arterial, é a crise hipertensiva, tendo como principais causas o excesso de sódio, a retenção de líquidos e o ganho de peso interdialítico 28.
A hipoglicemia notada no presente estudo e em outro realizado com pacientes dialíticos em Brasília, Brasil 29, bem como em um estudo realizado com pacientes diabéticos em HD 30, pode estar associada ao uso de uma solução dialítica que não contém ou é pobre em glicose.
A presença das câimbras musculares é frequente durante as sessões de HD e está ligada a fatores como a própria qualidade desse tratamento, a condição clínica do paciente e o desequilíbrio hidroeletrolítico 8. No presente estudo, foi notada tal intercorrência (5,9 %), bem como em outro estudo que relatou a câimbra entre as três principais intercorrências 7. Para minimizar as câimbras, a reposição volêmica com soro fisiológico 0,9 % e/ou soro glicosado 50 %, conforme prescrição médica, podem ser condutas adotadas 27.
As intercorrências de náuseas e vômitos, notadas no estudo e em outros 5,23, podem ser decorrentes da hipotensão intradialítica, do distúrbio do sistema digestivo (gastroparesia) e da alta concentração de sódio e cálcio no dialisado 31.
A hipervolemia, observada na presente pesquisa, foi relatada em estudo realizado no Nordeste do Brasil, onde notaram que 82 % dos pacientes estavam com excesso de volume de líquido. Os autores ressaltam que as principais características definidoras dessa intercorrência foram azotemia, hematócrito diminuído, edema, eletrólitos alterados, oligúria, mudança na pressão arterial, ingestão maior que o débito e ansiedade 32.
Febre e calafrios foram notados e são relatados como intercorrências comuns, possivelmente por estarem associados às infecções nos acessos vasculares e às reações pirogênicas 31. Além disso, a diarreia pode estar relacionada com o tempo de tratamento hemodialítico 33 e ser um indicativo de infecção por parasitoses intestinais 34.
A dor em geral é algo frequente nos pacientes dialíticos e, segundo uma pesquisa realizada em pacientes renais no município de Ribeirão Preto (São Paulo, Brasil), as dores lombar e abdominal estão entre as principais intercorrências relatadas pelos pacientes 27.
Em um estudo realizado no Hospital das Clínicas de Porto Alegre, Brasil, os pacientes apresentaram 282 intercorrências, em 618 sessões dialíticas realizadas, uma presença média de intercorrência em 47,9 % das sessões. A partir desses resultados, os autores concluíram que não existe método dialítico isento de complicações, devido ao paciente em tratamento ter instabilidade hemodinâmica 35.
Isso, por sua vez, enfatiza o observado neste estudo, em que quase todos os prontuários apresentaram intercorrências, com exceção de dois prontuários que não obtiveram nenhuma intercorrência no período estudado.
O presente estudo demonstrou que a quantidade de intercorrências não se associou com o sexo, a doença de base, a idade e a comorbidade. No entanto, existem estudos que apontam que as mulheres apresentam mais intercorrências que os homens 23, e que os idosos em HD estão mais propensos a problemas cardiovasculares e cerebrovasculares 36. Além disso, destaca-se que o tratamento para a anemia, a depender da via utilizada, oral ou parenteral, pode ocasionar efeitos adversos, como a hipotensão 37. Assim, a presença do diabetes requer mais atenção da equipe de saúde quanto à solução dialítica para prevenir possíveis intercorrências, como a hipoglicemia 30. Já com os pacientes hipertensos, não só um cuidado maior durante a sessão de HD, mas também um processo de educação em saúde pela enfermagem para orientá-los quanto ao controle da ingestão hídrica, ao etilismo, ao tabagismo, ao sedentarismo e ao uso correto da medicação são importantes para evitar possíveis picos hipertensivos 28.
Por fim, destaca-se que prontuários são documentos importantes tanto para a equipe de saúde e seus gestores quanto para o paciente. Nesse sentido, o seu armazenamento, organização e registro devem ser realizados com atenção e cuidado, pois a qualidade desses documentos impacta no resgaste de informações para subsidiar ações de prevenção e promoção sobre uma determinada situação 38. Ressalta-se, também, que o limitado tamanho da amostra não permite fazer generalizações quanto aos dados apresentados.
Conclusões
Conclui-se, conforme os dados apresentados e os métodos propostos, que os prontuários dos pacientes analisados apresentaram diversas intercorrências durante a sessão de HD, com destaque para: hipotensão, cefaleia, mal-estar, hipoglicemia, câimbras, náuseas e vômito. No que tange às comorbidades, a anemia teve maior destaque. Além disso, não se notou associação entre a quantidade de intercorrências e o sexo, a idade, a presença de anemia e as doenças de base.
Outro fator importante observado nos registros dos prontuários foi a predisposição dos pacientes em desenvolverem DMO, visto que apresentam elevada frequência de hiperfosfatemia, ou seja, um dos fatores que pode levar ao hiperparatireoidismo secundário e, consequentemente, à DMO.
Por último, acredita-se que essas informações possam colaborar no trabalho da equipe de enfermagem e de outros profissionais de saúde em suas ações de assistência ao paciente renal crônico em HD.