Introdução
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a pandemia da Covid-19 é atualmente considerada grave emergência em saúde pública. Seu início foi marcado por casos de pneumonia de etiologia desconhecida na cidade de Wuhan, na China, com rápida disseminação global e consequências negativas severas 1.
Nesse cenário, foram confirmados cerca de 9.473.214 casos do novo coronavírus e 484.249 mortes até 27 de junho de 2020 2. No Brasil, país sulamericano com transmissão comunitária da doença, foram confirmados 1.274.974 casos, com 55.961 óbitos no mesmo período e uma taxa de mortalidade de 26,6 % 3.
No Estado do Ceará, Nordeste do Brasil, até o dia 22 de junho, houve cerca de 93.140 casos e 5.685 mortes com taxa de letalidade de 6,7 %. Desse total de casos, 35.789 estão situados na cidade de Fortaleza, com incidência na área descentralizada de saúde de 1,247 % e total de 3.170 óbitos 4.
O novo coronavírus apresenta manifestações leves e graves, com alto risco de contaminação por meio de gotículas salivares e de fluidos corporais como sangue, urina, fezes e vômitos. A manifestação mais grave consiste na síndrome do desconforto respiratório agudo, com repercussões principalmente no aparelho respiratório, que pode culminar em óbito 5.
Na perspectiva obstétrica, a pandemia da Covid-19 levantou preocupações relativas especialmente à transmissão materno-fetal por via placentária, além de as pneumonias de causa viral serem consideradas uma das principais causas de morte gestacional no mundo 6.
No entanto, é importante também considerar como os profissionais de saúde, especialmente da enfermagem, ligados à linha de cuidado obstétrico estão enfrentando a realidade da pandemia do novo coronavírus, considerando os riscos inerentes e as repercussões na sua saúde.
A enfermagem, uma das profissões diretamente ligada ao enfrentamento da Covid-19, também é uma das principais categorias da saúde afetada pela pandemia, o que repercute no desenvolvimento de atividades assistenciais, no cuidado e na saúde física e mental desses profissionais. Esta última vem tendo destaque nesse cenário, e diversos estudos desenvolvidos na Alemanha, no Brasil, na China e na França vêm apresentando as consequências mentais e físicas do trabalho em saúde desenvolvido no contexto pandêmico, ressaltando o aumento de transtornos como insônia, ansiedade e depressão, e de lesões dermatológicas 5,7-9.
No contexto brasileiro, um dos estudos desenvolvidos acerca da prevenção à exposição ocupacional dos profissionais de saúde salientou o fornecimento de equipamentos de proteção individual (EPI) e o treinamento como medidas para diminuir a disseminação e a contaminação nessa população 5.
Além disso, informações sobre adoecimento e mortes referentes aos profissionais de enfermagem no Brasil atuantes no enfrentamento da Covid-19 vêm sendo divulgadas por conselhos de classe, órgãos epidemiológicos e noticiários, ressaltando uma importante faceta da pandemia na saúde ocupacional da enfermagem.
Até o momento, a mortalidade no Brasil referente ao profissional da enfermagem ressalta 21.770 casos e 220 óbitos, com a maioria destes últimos na região Sudeste. A região Nordeste está em segundo lugar com 50 mortes (22,7 % do total), e o Estado do Ceará com 752 casos em profissionais de enfermagem e 21 % de óbitos 10.
Nos últimos anos, a saúde ocupacional, em específico a dos trabalhadores da saúde, vem desenvolvendo-se como política de saúde pública, com planejamento de estratégias e condutas para a preservação do bem-estar profissional 11.
Nesse sentido, o desenvolvimento de estratégias preventivas em saúde ocupacional direcionadas à proteção de profissionais de saúde é importante para diminuir os riscos de morbidade e mortalidade causados pelo novo coronavírus entre os prestadores de cuidado intimamente ligados ao desempenho de atividades assistenciais 11,12. Além disso, o estímulo à proteção individual representa medida necessária para a manutenção da equipe de saúde e a diminuição de desgastes físicos, psicológicos e econômicos com internamentos nos sistemas de saúde e afastamentos ocupacionais 5,12.
Ademais, é relevante conhecer as condições de trabalho no Sistema Único de Saúde (SUS), tornando necessária a discussão acerca da temática, especialmente em situação singular como a vivenciada durante o enfrentamento do novo coronavírus 6. Diante disso, objetivou-se relatar uma experiência em saúde ocupacional da enfermagem em cuidados críticos obstétricos na pandemia da Covid-19.
Método
Trata-se de relato de experiência situacional do enfermeiro no contexto do processo de trabalho de profissionais de enfermagem atuantes em unidade de terapia intensiva (UTI) materna, durante os eventos decorrentes da pandemia da Covid-19. O relato de experiência consiste de método para a produção do conhecimento cientifico atrelado à captação da realidade para seu melhor conhecimento 13.
A maternidade pública que se enquadra como cenário para o relato é referência em cuidados críticos em complicações obstétricas no Estado do Ceará, sendo a única UTI com essa configuração no Estado. Possui cinco leitos, com atuação de equipe multiprofissional formada por médico intensivista obstetra, enfermeiro obstetra intensivista e técnico de enfermagem.
Destarte, a maternidade sede do relato foi uma das escolhidas para compor os leitos de UTI exclusivos de gestantes e puérperas com suspeita ou confirmadas de Covid-19 no Ceará, sendo instituição pública federal. A partir disso, ocorreu o início do remodelamento da infraestrutura e do fluxo da unidade, através do distanciamento dos leitos e da modificação de locais de isolamento de aerossóis para locais de isolamento de UTI tipo Covid-19.
O relato foi realizado entre 25 de março e 5 de maio de 2020, período em que ocorreu maior número de casos de Covid-19 na cidade de Fortaleza 4. A descrição da experiência de cuidado é realizada concomitantemente às reflexões sobre as complicações físicas e mentais decorrentes das práticas de saúde durante a pandemia do Sars-Cov-2.
Embora se trate de relato de experiência profissional de enfermagem, em que não há identificação dos profissionais envolvidos nem aplicação de entrevistas ou de questionários/formulários, o anonimato do profissional relator foi mantido em todo o estudo, bem como os demais aspectos éticos contido na Resolução 466/2012, que rege pesquisas em saúde com seres humanos no Brasil 14.
Resultados e discussão
O relato segue as principais implicações na saúde dos profissionais atuantes em UTI materna: lesões dermatológicas e escassez de EPI, e sofrimento mental e psicológico decorrente do medo de contaminação e deterioração das relações sociais.
Lesões dermatológicas decorrentes da utilização de EPI pelo enfermeiro em UTI materna
Após o reconhecimento pela OMS a partir de março de 2020 da pandemia do novo coronavírus, considerando-se sua expressiva capacidade de transmissão, propagação e alta letalidade 1, o Brasil iniciou a implementação de fluxos de funcionamento em todo o sistema de saúde para o seu combate. A partir dessa realidade, evidenciou-se o desenvolvimento de ações estratégicas de enfrentamento, com a organização dos equipamentos de saúde para o atendimento da demanda e a capacitação profissional para seu enfrentamento 5,12.
Seguindo as transformações estruturais da unidade, iniciaram-se treinamentos da equipe acerca da paramentação e retirada dos EPIS pelos profissionais de saúde. A Comissão de Controle de Infecção Hospitalar da instituição de saúde desenhou uma estratégia de treinamento por turnos de trabalho para evitar aglomerações de funcionários, mas, diante das constantes mudanças nos processos de treinamentos decorrentes das contínuas evidências científicas, inúmeras dúvidas surgiram entre os profissionais de saúde que poderiam comprometer as práticas da equipe.
Do mesmo modo, ocorreu o remodelamento dos processos de cuidados com a equipe médica e de enfermagem para a capacitação com base em modelos de prevenção de contaminação. Nesse âmbito, os cuidados obstétricos críticos envolviam procedimentos extremamente ligados ao risco de contaminação, como a intubação endotraqueal e a ventilação manual antes da intubação 15.
O profissional enfermeiro na unidade de saúde esteve continuamente envolvido no remodelamento das ações assistenciais e de cuidado obstétricos relativos à intubação endotraqueal, com a participação durante os procedimentos cirúrgicos, como cesariana e os cuidados de enfermaria, portanto diretamente exposto à contaminação.
Destarte, uma das primeiras dificuldades foi a não realização dos treinamentos com todos os membros da equipe da unidade intensiva, o que leva à insegurança e à deficiência na uniformidade dos procedimentos, das condutas e dos protocolos. Não houve diferenciação de categoria profissional: médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem sofreram deficit nas capacitações e, consequentemente, na uniformidade dos treinamentos, o que aumenta os riscos na saúde ocupacional dos profissionais de enfermagem e da equipe de saúde.
Além disso, com o aumento expressivo de casos, a unidade foi organizada para que os profissionais ficassem minimamente seis horas com o uso de todos os EPIS, o que causou comprometimentos físicos e mentais 7-9,16.
Ademais, pode-se ressaltar que os cuidados obstétricos críticos envolvem particularidades que aumentam os riscos aos profissionais, como a exposição à perda sanguínea no pós-parto; portanto, o uso contínuo de todos os EPIS pela equipe torna-se extremamente necessário 17.
Entre as dificuldades relacionadas ao uso dos equipamentos estão o aumento do peso dos equipamentos de segurança no corpo e o uso dos aventais impermeáveis extremamente desconfortáveis e sem troca da transpiração, o que acarreta desgaste físico maior, tornando a jornada de trabalho ainda mais cansativa. Da mesma forma, as máscaras faciais, necessárias para evitar a contaminação dos profissionais por gotículas e aerossóis, estão sendo relatadas como a causa de cefaleia e lesões na pele, principalmente na parte frontal da face, no nariz e nas orelhas 16.
Outrossim, o uso de sapatos fechados de material impermeável por longos períodos pelos profissionais e a constante necessidade de realizar procedimentos sem descanso culminam em relatos de lesões e dores na região plantar. Ainda, o uso contínuo de luvas, a constante lavagem das mãos e o emprego de antissepsia com álcool vêm motivando o aparecimento de alergias e ruptura da pele nos cuidadores. Disúria e constipações intestinais pela demora nas eliminações fisiológicas são relatadas devido ao uso por períodos prolongados dos EPIS - para que não haja retirada constante e consequente risco de contaminação.
Nessa perspectiva, as experiências relatadas são similares aos achados de um estudo na China acerca de lesões dermatológicas associadas ao uso de protetores respiratórios e faciais. A pesquisa evidenciou aumento expressivo na ocorrência de queimaduras, prurido, descamação, eritema, maceração, pápulas, fissuras, erosão, vesículas e úlceras em ponte nasal, mãos, bochecha e testa 16.
Outro desafio identificado à medida que a pandemia progride é a escassez de materiais de proteção, o que demonstra a faceta da precarização das condições do trabalho em saúde 5. Há casos de adaptações nos equipamentos, o que acarreta preocupação aos profissionais sobre a eficiência deles para o cumprimento de seu objetivo, que é a proteção dos envolvidos nos procedimentos.
Saúde mental dos profissionais de enfermagem na pandemia da Covid-19
O aumento progressivo e rápido de pacientes graves ocorre simultaneamente ao crescente número de afastamento de profissionais da UTI materna pela Covid-19, o que revela outro impacto da pandemia: a sobrecarga de trabalho para os profissionais de enfermagem substitutos que efetuam assistência à população. Além disso, mesmo com as substituições, surgiu outro grande desafio: a falta de profissionais capacitados para assumirem setores que exigem qualificação e experiência em cuidados críticos. A UTI materna é um desses setores, que está relacionada especificamente à saúde reprodutiva da mulher, com profissionais especializados na área obstétrica 18.
A utilização dos equipamentos de proteção da vida do profissional perpassa o receio de contaminação pessoal para o risco de contaminação da família, culminando no afastamento do convívio familiar e no sofrimento psicológico amplificado. Nesse cenário, outra problemática é o aumento da discriminação da sociedade com o estigma de contágio por meio de profissionais da saúde, o que pode ocasionar isolamento das relações sociais, discriminação, aumento da violência e problemas mentais 7,8.
Diante dessa realidade, uma pesquisa acerca da saúde mental de trabalhadores da área da saúde em Wuhan, China, constatou 34,4 % de distúrbios mentais leves, 22,4 % de distúrbios moderados e 6,2 % de distúrbios graves após a epidemia em profissionais que atuaram na assistência a pacientes contaminados 19. São achados preocupantes que podem ser expressivamente similares aos relatos dos profissionais na experiência de combate à pandemia.
Destarte, além do sofrimento psicológico, do desgaste mental e físico, há cada vez mais exigências e sobrecargas aos profissionais de enfermagem para a melhoria da gestão de cuidados e a liderança das equipes de saúde atuantes no enfrentamento da Covid-19 5,7. Essas exigências já faziam parte do cotidiano dos profissionais nesse cenário, visto que a morbidade e mortalidade maternas são consideradas problemas de saúde pública em todo o mundo 17. No entanto, a pandemia agravou a situação, com a necessidade urgente de medidas mais cautelosas para o cuidado dispensado a essas mulheres em situação de vulnerabilidade intensa 6.
Além disso, vale lembrar o sofrimento cotidiano experienciado pela necessidade constante de atualização profissional nas evidências científicas acerca dos desdobramentos do contágio pela Covid-19, com as diversas dúvidas suscitadas acerca de sintomas, consequências corporais e tratamentos 8. Isso tem exigido maior tempo dedicado a estudos domiciliares, novos treinamentos e modificação dos protocolos de atendimento, em uma situação de desgaste mental intensa, o que amplia o cansaço dos profissionais.
Por sua vez, a busca incessante por novidades acerca da pandemia tem causado desconforto entre os profissionais de enfermagem, visto que há muitas notícias discrepantes ou até mesmo falsas sendo publicadas diariamente, em especial nas redes sociais. Portanto, essa situação exige do profissional cautela nas pesquisas na internet, bem como controle do tempo gasto nessa atividade 9,19.
O estudo evidencia as repercussões na saúde ocupacional da enfermagem, apontando a necessidade do desenvolvimento de medidas para a diminuição dos riscos de contaminação em curto e longo prazo decorrentes da pandemia do novo coronavírus, principalmente em uma área especializada como cuidados críticos maternos. Ademais, evidenciam-se experiências referentes a comprometimentos físicos e mentais que podem incidir na prática das atividades assistenciais obstétricas e ocasionar agravos à saúde do enfermeiro.
As singularidades da assistência crítica no âmbito materno-infantil tornam mais complexo o enfrentamento da Covid-19, o que exige diferentes estratégias do sistema de saúde com o intuito de organizar os pontos de atenção da rede para o desenvolvimento das práticas profissionais de enfermagem. Também torna necessária a discussão acerca do apoio aos trabalhadores após as fases críticas da pandemia, com a adoção de mecanismos de enfrentamento a distúrbios na saúde mental destes, a valorização do trabalho desenvolvido e a qualificação contínua das condições para as práticas profissionais.
Esses achados são similares aos evidenciados em outros espaços de cuidado crítico não obstétrico, relativos a riscos no desenvolvimento das atividades de saúde 20,21. A enfermagem apresenta semelhanças nesse quesito, no entanto a especificidade da área de cuidado obstétrico direcionado ao ciclo gravídico-puerperal como síndromes hipertensivas e hemorrágicas demandam olhares diferenciados nos cuidados ocupacionais, principalmente diante da pandemia da Covid-19 5,6,17,21.
Apesar das similitudes nos cuidados críticos da enfermagem entre as UTI obstétrica e não obstétrica, o contexto materno - a liberação de líquido amniótico, os processos de abortamentos, a realização de cesariana e a histerectomia que podem aumentar sangramentos vaginais, os riscos infecciosos inerentes aos procedimentos cirúrgicos - pode elevar os riscos de contaminação para o profissional enfermeiro 6,17,21. Além disso, o gerenciamento de riscos como a estratificação para a hemorragia pós-parto, a aplicação de protocolos direcionados para a sepse materna e a sistematização da assistência de enfermagem obstétrica ao paciente obstétrico grave e suas complicações são diferenciais dos tipos de práticas de enfermagem nos dois tipos de espaços de UTI 21-23.
Como limitações do estudo, encontra-se o fato de ser uma reflexão baseada em experiência em lócus específico, no entanto os cuidados críticos à mulher e os riscos ocupacionais aos profissionais da enfermagem em tempos da pandemia da Covid-19 estão sendo desenvolvidos de modo similar no SUS, considerando as mesmas normativas vigentes.
Este estudo aborda um relato da experiência da enfermagem em cuidados críticos maternos na perspectiva dos impactos na saúde ocupacional dos profissionais, o que reforça a necessidade de pesquisas na área, especialmente no concernente às vivências de trabalhadores em enfermagem em ambientes de cuidados críticos.
Conclusões
Durante a pandemia da Covid-19, diversos impactos na saúde mental e física dos enfermeiros ligados a cuidados críticos maternos vêm surgindo, com destaque para o aumento dos riscos de contaminação na prática obstétrica e a insuficiência de medidas de proteção adequadas. Portanto, esse cenário pode repercutir em sofrimento intenso e adoecimento, bem como no aumento do sofrimento psíquico e das lesões dermatológicas inerentes às atividades desenvolvidas, tanto para os profissionais de enfermagem como para as mulheres sob seu cuidado.
O estudo contribui para o conhecimento dos impactos da pandemia da Covid-19 relativo à saúde ocupacional na área especializada de enfermagem obstétrica intensiva, que levanta a necessidade de desenvolvimento de estratégias de proteção da saúde e da promoção do bem-estar desses profissionais.
A pandemia traz implicações a todas as áreas, principalmente a da saúde profissional, sendo afetada de forma especial a enfermagem, o que exige medidas urgentes para diminuir a morbimortalidade, aumentar a proteção dos profissionais e contribuir para a qualidade e segurança no desenvolvimento de práticas de saúde direcionadas ao público materno.