Introdução
A coronavirus disease 2019 (covid-19) consiste no maior desafio da saúde global no século XXI, com caráter pandémico desde março de 2020. Ao fim de janeiro de 2021, um ano após a descoberta do Sars-Cov-2, o mundo já contava com mais de 98 milhões de casos acumulados e 2 milhões de óbitos 1. Não obstante, a acelerada disseminação da doença desencadeou a saturação dos serviços de saúde em alguns países, como Itália, Espanha e Brasil, demandando uma série de medidas de contenção do vírus, a exemplo do distanciamento social, em alguns casos com lockdown2.
A Enfermagem, pelo caráter inerente de sua prática, está na linha de frente contra a covid-19, tanto no caso da assistência direta aos indivíduos infectados quanto na formulação e na execução de medidas de prevenção da doença e de promoção do bem-estar em meio a mudanças tão bruscas no cotidiano. Como atividade cientificamente constituída e socialmente referenciada, a Enfermagem deve buscar no corpo próprio de conhecimento e no diálogo com outras áreas o suporte necessário ao enfrentamento desse prolixo desafio.
Nessa perspectiva, ganham importância as teorias de Enfermagem desenvolvidas para orientar teórico-metodologicamente os trabalhadores da área em sua prática profissional. Faz-se mister a capacidade de leitura da realidade objetiva do processo saúde-doença, suas contradições e possibilidades de intervenção por parte da Enfermagem, no bojo de um trabalho coletivo de saúde, ainda mais considerando a complexidade social da pandemia.
A nosso ver, o materialismo histórico-dialético, tal qual formulado por Karl Marx e Friedrich Engels, lança os pilares teórico-metodológicos decisivos para entender a realidade social, com vistas à sua transformação radical 3. Não obstante, no âmbito da Enfermagem, a teoria da intervenção práxica da Enfermagem em saúde coletiva (Tipesc) 3 foi desenvolvida, com pioneirismo, tendo por base a teoria de Marx e Engels (embora com alguns limites, como apontaremos adiante). Por conta disso, coloca-se com potencial de entender e intervir na faceta social da pandemia, tanto no "calor" do momento quanto em uma perspectiva de médio e longo prazo, com vistas à mitigação das sequelas pós-pandemia e à prevenção de novas tragédias de saúde.
Diante disso, propomos este ensaio, com o objetivo de entender como a práxis da Enfermagem pode se efetivar no enfrentamento da covid-19, considerando as dimensões social e coletiva do processo. Para isso, desenvolvemos um estudo teórico-reflexivo, realizado em três etapas de investigação, materializadas nas três seções de discussão do artigo. Na primeira etapa, realizamos uma pesquisa bibliográfica sobre a Tipesc (como marco teórico-metodológico da intervenção práxica em Enfermagem), a fim de descrever, brevemente, seus fundamentos, suas fases e seus limites, segundo nossa análise crítica. Nas outras duas etapas, recuperamos o contexto da pandemia por meio da literatura e de documentos correlatos. O referido contexto é submetido a uma análise com base no materialismo histórico-dialético, o que perpassa o diálogo com a Tipesc, mas vislumbra a superação de alguns dos vieses teóricos-metodológicos desta última.
Tipesc: um encontro entre Enfermagem e materialismo histórico-dialético
As teorias de Enfermagem remontam ao período de modernização da práxis da profissão, revestindo-a de caráter científico e inserindo-a na divisão técnica do trabalho em saúde no capitalismo 4. Desde os primeiros passos científicos da área, cuja personagem emblemática foi Florence Nightingale, são formuladas teorias com o objetivo de fundamentar e sistematizar a prática, sobretudo na aproximação com o indivíduo assistido e o ambiente terapêutico, a exemplo da teoria ambientalista, proposta pela própria Florence 5.
Sem ignorar o pioneirismo da teoria ambientalista, enxergam-se nela resquícios da perspectiva vocacional, reproduzindo os limites culturais da época (século xix), a exemplo das exigências de um determinado perfil moral para as estudantes que desejassem cursar Enfermagem 6. É no século xx que a Enfermagem estreita seus laços com outras áreas científicas e com a Filosofia, surgindo as primeiras teorias com caráter científico contemporaneamente hegemônico. Entre elas, destacam-se o pioneirismo da teoria do relacionamento interpessoal, de Hildegard Peplau 7, nos Estados Unidos da América, e, no Brasil, a teoria das necessidades humanas básicas, de Wanda de Aguiar Horta 8,9. Há uma ampla e plural gama de teorias, entre as quais podemos citar as de Dorothea Orem (teoria do autocuidado) 10, Ida Jean Orlando (teoria do processo de Enfermagem de Orlando) 11 e Madeleine Leininger (teoria da diversidade e da universalidade do cuidado cultural) 12, todas implementadas ao longo do século XX 6.
Indubitavelmente, essa pluralidade serviu para impulsionar o desenvolvimento da Enfermagem, embora ainda restando, como lacuna, tomar o processo saúde-doença como processo social objetivamente existente. Isso porque a maior parte das teorias se centra na dimensão individual desse processo ou, quando adentram a seara das relações sociais, partem de pressupostos da ciência positiva ou da fenomenologia 4.
Essa lacuna foi preenchida pela Tipesc, porquanto é uma teoria que se estrutura com base em uma perspectiva teórico-metodológica que toma as relações sociais como interação dialética entre subjetividade e objetividade, mas com prioridade ontológica para a objetividade, sempre considerada como fruto de múltiplas determinações históricas.
"Essas considerações acima remetem, por conta das possibilidades vislumbradas dentro do marco teórico-filosófico do materialismo histórico e dialético, à explicitação de uma teoria mais proximal do nosso objeto de intervenção [...]. Significa, portanto, ampliar a abordagem metodológica, que originalmente foi produzida [...], para uma retomada enquanto marco teórico-metodológico da questão da intervenção da Enfermagem no processo saúde-doença da coletividade" (3, p. 50).
A elaboração da Tipesc na Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP), Brasil, sob liderança da professora Emiko Egry, insere-se em um contexto de aproximação geral de algumas áreas da saúde com o materialismo histórico-dialético na América Latina, em especial com base nos escritos de Karl Marx 13,14. Entre elas, destaca-se a saúde coletiva, a exemplo da discussão sobre a determinação social do processo saúde-doença, com intelectuais como a mexicana (naturalizada) Asa Cristina Laurell 15 e o equatoriano Jaime Breilh 16.
É dessa aproximação entre saúde coletiva e marxismo que surge a premissa de que a determinação social da saúde não se resume a uma série de fatores sociais que podem, em algum nível, influenciar a saúde individual, mas que são desconexos entre si. Essa visão fragmentada é hegemônica no bojo da saúde pública e da epidemiologia tradicional, e traz contribuições importantes quando faz inferências entre os elementos sociais (saneamento básico, estilo de vida, violência etc.) e as doenças. Contudo, apresenta um claro limite, porquanto não consegue apreender as condições histórico-objetivas que produzem os supostos fatores, muito menos o fio condutor existente entre eles 17.
Para a saúde coletiva marxista, esse fio condutor é a contradição entre as forças produtivas e as relações sociais de produção, da qual se desdobram (nunca mecanicamente) as relações sociais ontologicamente secundárias 17. Por esse prisma, a saúde se constitui no bojo do conjunto das relações sociais como fenômeno coletivo, ainda que se expresse individual e biologicamente. Assim, demanda intervenções, por parte dos trabalhadores da saúde, que não sejam meras técnicas curativas, pois, ainda que elas sejam valiosas, não alcançam o cerne das dimensões social e coletiva.
Nessa perspectiva, inserem-se os trabalhos pioneiros de Egry 3,18, com a disciplina de Enfermagem em Saúde Coletiva, particularizando essa discussão no que diz respeito à práxis específica da área. O auge do diálogo entre saúde coletiva e marxismo se deu, no Brasil, na década de 1980, período em que a Escola de Enfermagem da USP se apropriou desse debate, culminando com a defesa de tese de livre-docência de Egry, em 1994, publicada como livro em 1996, sob o título Saúde coletiva: construindo um novo método em enfermagem3, quando surge a denominação "Tipesc".
Essa teoria assume caráter peculiar no bojo do conjunto científico da Enfermagem, pois prioriza o coletivo, sem esquecer do individual; pensa a saúde, sem ignorar que a doença está a ela dialeticamente articulada. Além disso, toma as possibilidades de intervenção práxica como fruto da apreensão das contradições da realidade social, em um horizonte de intervenção de um coletivo de trabalhadores de saúde sobre a saúde de coletividades, mas sem considerar estas últimas como meros objetos de intervenção; ao contrário disso, conferindo-lhes protagonismo no processo.
Ao mirar a determinação social da saúde, a Tipesc não resume a sua preocupação aos fatores que, estatisticamente, mais se associam com algum agravo de saúde; para além disso, preocupa-se com as contradições que subjazem a esses fatores, em especial com as contradições centrais advindas do mundo do trabalho (forças produtivas e relações sociais de produção).
Assim, o enfermeiro, mesmo quando se debruça sobre casos muito singulares, deve procurar intervir (sempre coletivamente) tendo em vista as dimensões estruturais (universais), particulares e singulares do processo a ser transformado, transitando dialeticamente entre as possibilidades explicitadas pela realidade objetiva.
Convêm algumas ressalvas, pois, apesar de estar ancorada no materialismo histórico-dialético, a Tipesc apresenta limitações no que diz respeito a uma fiel apreensão desse marco teórico. Aqui, apenas destacaremos uma limitação de fundo, que distorce a postura metodológica da teoria marxiana. Ao que nos parece, para se legitimar no rol das teorias da Enfermagem, a Tipesc procura estruturar, lógico-formalmente, etapas a serem seguidas: captação da realidade objetiva; interpretação da realidade objetiva; proposta de intervenção da realidade objetiva; intervenção na realidade objetiva; reinterpretação da realidade objetiva 3,18,19.
Essa aproximação com a sistematização tradicional da prática da Enfermagem contraria uma premissa fundante do método de Marx:
"Se por método se entende, como é o sentido mais comum que este conceito adquiriu a partir da perspectiva gnosiológica moderna, um conjunto de regras e procedimentos previamente estabelecidos, que podem ser apreendidos separadamente do objeto e que serão aplicados na realização do conhecimento, então, de fato, não existe método na perspectiva de Marx" (20, p. 72).
Isso quer dizer que a impostação metodológica marxiana propõe uma postura do sujeito em face do objeto de investigação e intervenção que respeita a primazia ontológica deste último, buscando apreender suas determinações essenciais. Para essa perspectiva, ao contrário da ciência hegemônica, não é o sujeito, consultando parâmetros universais de sua razão, quem define o que é o objeto (portanto, quem também define, antecipadamente, os passos para conhecê-lo), mas é a contínua aproximação com o objeto (desconstrução e reconstrução) que demanda caminhos a serem percorridos, porque estão constituídos no próprio processo. Obviamente, existem parâmetros ontometodológicos apreendidos a partir de análises anteriores do ser social e que, por isso, podem ser recuperados para a análise de particularidades. Porém, esses parâmetros não podem ser reduzidos a etapas análogas àquelas do método científico moderno (hegemônico) 20.
A própria Emiko Egry resgata boa parte desses referenciais ontometodológicos nos capítulos 1 e 2 de sua obra 3, a exemplo das categorias universal, particular e singular; da relação essência-fenômeno e da historicidade e dinamicidade da realidade. Também faz críticas às posturas racionalistas, positivistas e funcionalistas que colocam a lógica como definidora apriorística da realidade. Alerta, até mesmo, para o cuidado de não tomar as fases da Tipesc de forma hermética. Contudo, direciona seus esforços para descrever uma operacionalização da Tipesc que recai no tradicional formato das teorias que "beberam das fontes" que ela critica.
Aliás, o risco de cair nas armadilhas do formalismo da ciência tradicional (especialmente no seu viés positivista), já se mostra desde a introdução da obra considerada a principal referência da Tipesc, uma vez que a autora busca o objetivo de "torná-la [a Tipesc] operacional (aplicável)" (3, p. 16), o que denota o viés lógico-formal que busca formular preceitos prévios para, em seguida, aplicá-los. Isso fica ainda mais evidente e grave no capítulo 3, quando a autora demarca as categorias e os temas que para ela devem, minimamente, ser apreendidos em cada etapa.
Com isso, embora haja ressalvas realizadas pela própria autora 3 sobre o não "engessamento" das etapas e para evitar o funcionalismo, ela traz elementos que induzem a uma apropriação funcionalista do marxismo, "fraturando" a práxis em, de um lado, preceitos e etapas teóricas a priori construídos logicamente e, de outro, a operacionalização de tais preceitos e etapas.
Sobretudo na seara profissional, considerando a divisão social do trabalho no capitalismo, o materialismo histórico-dialético não pode ser entendido como mais um método na "estante dos métodos" a ser escolhido para operacionalizar o fazer profissional, mas tão somente como a forma de compreender as raízes do ser social, com vistas à transformação societária via luta de classes, o que pode, de diferentes maneiras, correlacionar-se com as profissões, inclusive com a Enfermagem. Para tanto, deve-se observar os parâmetros ontometodológicos, assim como considerar um ponto de partida; isto é, a esfera fenomênica socialmente dada, mas no sentido de buscar suas origens, natureza e função social, no "laboratório" da história.
Considerando essas ressalvas (sobre os limites da Tipesc), aqui apenas sumariamente apontadas, buscamos seguir com a análise da pandemia de covid-19, dialogando criticamente com a Tipesc, mas valendo-se de seus pressupostos em vez da sistematização que propõe; esta última, a nosso ver, colidente à natureza do materialismo histórico-dialético. Esse caminho pode contribuir para o avanço da apreensão de como a Enfermagem pode atuar em favor de uma intervenção práxica, no horizonte de transformação da sociedade, ainda que em dimensões particulares, a exemplo da saúde coletiva.
A realidade objetiva da covid-19 na sua dimensão estrutural
A nosso ver, um parâmetro importante para a análise da face social da pandemia de covid-19 é a categoria da totalidade. Isso não significa que ela só possa ser explicada pelo estudo de todos os elementos da sociedade, tarefa impossível no processo de conhecimento; porém, significa entendê-la como produto histórico-social, que tem sua singularidade, mas que se conecta à universalidade de seu tempo. Nessa conexão, a apreensão de um maior número possível de particularidades entre o singular e o universal permite ao sujeito cognoscente avançar em direção ao que o objeto de estudo e/ou intervenção é "em-si".
Diante disso, Emiko Egry 3, muito mais do que as etapas que propõe, contribui para a intervenção práxica da Enfermagem ao incorporar a categoria da totalidade desde as descobertas de Marx.
"Para ser apreendida na totalidade da intervenção da enfermagem na realidade objetiva, ela deve ser aproximada através de desdobramento da realidade em três dimensões: a dimensão estrutural, a dimensão particular e a dimensão singular" (3, p. 84).
Apreender essas dimensões em face do caráter dialético da história (como síntese de contradições) é peremptório para evitar o entendimento de totalidade como a mera união mecânica das partes. Em vez disso, a teoria marxiana já demonstrou que
"a totalidade não é um todo já feito, determinado e determinante das partes, não é uma harmonia simples, pois não existe uma totalidade acabada, mas sim um processo de totalização, a partir das relações de produção e de suas contradições" (3, p. 82).
Considerando esses parâmetros, apresentamos uma análise da pandemia de covid-19 tendo em vista as suas conexões na totalidade social, sobremaneira com aqueles elementos mais universais, a partir das relações de produção. Nesse percurso, ganha tônica a apreensão das contradições que subjazem e tensionam o processo histórico-social da pandemia e como elas podem estar plasmadas na intervenção práxica da Enfermagem.
Diante disso, cumpre considerar a covid-19 para além do conjunto de sintomas que se desenvolvem no indivíduo ou do tipo de terapêutica implementada a partir disso. E preciso considerar o curso dos processos sociais mais gerais que construíram a base da pandemia.
Sobre a determinação social da pandemia, já é possível identificar suas raízes predominantes em alguns processos: acredita-se que o Sars-Cov-2 tinha seu ciclo original restrito ao âmbito selvagem, mas alcançando o ser humano em razão das transformações ambientais que exigem a adaptação de diversas espécies, aumentando a chance de novas doenças advindas da vida selvagem em deterioração entre os seres humanos. Convém destacar que essas alterações estão organicamente articuladas à direção tomada pelo agronegócio, sua cadeia produtiva em nível mundial em torno da produtividade crescente em detrimento, muitas vezes, dos limites naturais 21.
Porém, isso por si só não pode ser tomado como cabal para que uma nova doença se torne pandêmica, tampouco gerar as implicações econômicas e sociais trazidas pela covid-19. Entre outras questões, a dinâmica pandêmica se constitui sob o processo de "mundialização do capital". Para sermos sintéticos, trata-se da configuração das relações capitalistas contemporâneas, comumente designadas pelo termo "globalização" 22,23.
Esse processo, em que pesem as interações promovidas pelos povos, em termos de comunicação e disseminação de conhecimento, não pode ser considerado como neutro, advindo, simplesmente, da evolução tecnológica a serviço do conjunto da humanidade. Ao contrário disso, tal evolução é carregada de tensões, direcionada à competitividade característica da referida configuração e, portanto, lastreada em relações desiguais que geram mais desigualdades.
Esse caráter fica explícito, sobremodo, no abismo que se cria entre nações de capitalismo avançado e nações de economia dependente, quando estas últimas se inserem de modo desfavorável na dinâmica internacional e permanecem, sob outros moldes, em uma situação de subordinação disfarçada de emancipação política. Não obstante, passo a passo, a mundialização provoca a dissolução das fronteiras para a circulação de capital, muitas vezes colidindo com os interesses internos de algumas nações, mas que se efetiva a partir desse sistema de hierarquização internacional 22,23. Contudo, qual a relação dessa dinâmica com a saúde? Especificamente, como isso determina a dinâmica pandêmica?
O processo de mundialização foi responsável pela concretização de uma nova perspectiva de tempo e espaço a fim de atender às demandas de alta rotação do capital. Entre outras formas de expressão, esse processo fica visível no intenso trânsito de pessoas e mercadorias pelo mundo, percorrendo grandes distâncias em pouco tempo. Essa dinâmica, associada ao alto potencial de transmissibilidade do Sars-Cov-2, determinou que, apenas dois meses depois dos primeiros casos em Wuhan, China, a covid-19 se tornasse uma pandemia 23.
Convém destacar que essa dinâmica espacial não diz respeito apenas ao trânsito de pessoas e de objetos, mas também de ideias, sobretudo com a hegemonia de culturas constituídas sobre o valor da competitividade. No cerne dessas culturas, valores ligados ao individualismo geralmente se sobressaem, o que pode estar ligado ao desprezo pelas medidas de contenção do vírus, quando alguns indivíduos alegam não serem de grupos de riscos e que, por essa razão, não deveriam se preocupar 23.
Além disso, as diferenças socioeconômicas que se acentuam entre países pobres e países ricos determinam que os efeitos da pandemia sejam mais graves ou duradouros nos países pobres, até porque, nesses países, a população tem piores condições de seguir as medidas de prevenção, a exemplo de estrutura para higiene rigorosa (água potável, sabão, álcool 70 % etc.) ou estabilidade empregatícia e econômica para manter o distanciamento social, ficando em casa 24.
Essas questões estruturais devem ser levadas em conta pelos enfermeiros quando deparam com casos particulares concretos, na assistência direta ou indireta às coletividades. Mediações como classe social, etnia/raça, gênero e território devem ser consideradas para a averiguação das iniquidades de saúde, não apenas como variáveis de análise, mas também como expressões de contradições sociais a serem interpretadas do ponto de vista do processo histórico que as produziram.
Trata-se de elementos mais gerais que contribuem para entender a pandemia em face da totalidade, mas que apenas assumem concretude se observadas as contradições que lhes constituem. Considerando a dimensão estrutural, podemos apreender, ao menos, contradições de três naturezas:
1) As contradições econômicas, sobretudo visíveis pela determinação recíproca entre pandemia e economia, estão na base da dinâmica pandêmica da covid-19, conforme demonstramos, mas a pandemia trouxe novas implicações econômicas que intensificam os problemas sociais e fazem com que os indivíduos e as coletividades tenham maiores dificuldades em lidar com a doença 23.
2) As contradições políticas se expressam no dilema neoliberal de várias nações, nas quais estavam em curso processos de priorização das medidas econômicas demandadas pela mundialização do capital em detrimento de políticas sociais progressivas, ao passo que a pandemia tornou evidente a fragilidade de tais políticas (sobretudo de saúde), exigindo intervenções estatais que escapam à rotina estabelecida no neoliberalismo 25.
3) As contradições culturais residem no fato de a doença, pelo seu caráter recente, demandar rigor e rapidez da ciência, mas tendo que conviver com perspectivas culturais negacionistas, que ignoram a própria ciência e relativizam a gravidade da pandemia, até mesmo propagando notícias falsas na internet 26,27.
E importante que as possibilidades de intervenção sobre a realidade objetiva considerem o maior número possível de contradições apreendidas. A seguir, prospectamos algumas tendências nesse âmbito.
Possibilidades no âmbito das intervenções práxicas em face da pandemia da covid-19
Apontamos algumas possibilidades tendo em vista os elementos gerais já apontados. Para tal, alguns pressupostos são importantes.
O primeiro se refere a que as propostas não podem ser um projeto isolado da Enfermagem. Elas devem fazer sentido no bojo de um coletivo de saúde, compostas de diversas áreas, voltadas para um coletivo social imerso nas contradições apreendidas. O segundo diz respeito a que a participação dessas coletividades sociais deve estar no centro da proposta, quebrando relações coercitivas do conhecimento científico sobre o conhecimento advindo das experiências populares, estabelecendo, em vez disso, um intercâmbio que conduza a uma validação consensual 28.
No caso aqui em questão, faz-se importante a participação das entidades coletivas envolvidas com as contradições econômicas, políticas e culturais, a exemplo de sindicatos, movimentos sociais, associações de bairro, grupos culturais, instituições de educação (formal e informal) e diversas formas de a sociedade civil se organizar.
É importante, nesse processo, a presença do conhecimento epidemiológico da realidade objetiva. Porém, não com base em uma epidemiologia "fria" e a-histórica, mas em uma que problematize suas variáveis a partir das contradições sociais que lhe subjazem, o que pressupõe o diálogo com os processos históricos particulares da realidade em xeque, inclusive na perspectiva dos grupos nela inseridos 29.
Com esse entendimento, as intervenções práxicas da Enfermagem ultrapassam o caráter técnico-assistencial. Assumem caráter amplo, sobretudo pelos embates sociais ante as contradições que ameaçam a saúde. Considerando esse coletivo formado por trabalhadores da saúde e pelos diversos grupos sociais, devem-se direcionar esforços no sentido das lutas por melhores condições sanitárias e por políticas públicas que contribuam para a promoção da saúde ou para a mitigação das consequências das doenças em nível coletivo 29.
As intervenções tomam forma de lutas, as quais, por sua vez, devem estar fundamentadas na validação consensual de conhecimentos diversos, deixando de serem meros atos rebeldes e se revestindo de organicidade, direção e clareza nas suas metas. A Enfermagem é parte importante do processo, até para que possa contribuir para a formulação de políticas públicas de saúde que incorporem as experiências e os resultados das lutas sociais, assim como para fazer a "ponte" com os demais enfermeiros inseridos em outras esferas da atenção integral da saúde, a exemplo da esfera hospitalar. A articulação orgânica entre todas as esferas da atenção à saúde e da promoção ao tratamento deve ser horizonte perseguido intervenção práxica em saúde coletiva, sempre com vistas à integralidade 30.
As ações de formulação e a gestão das políticas públicas não podem se distanciar da base das lutas sociais, em especial da luta de classes contra as desigualdades fundamentais da sociedade. Lembremos, por exemplo, das profícuas possibilidades criadas pelos movimentos das reformas sanitárias da Itália e do Brasil (décadas de 1970 e 1980), pautadas nessa base, com conquistas importantes, mas que, posteriormente, tomaram caminhos demasiadamente burocráticos, alijando sua base social da formulação e da gestão de políticas e ações 31.
Além disso, é primordial que a organização política se dê internamente à Enfermagem, como categoria organizada para a luta por direitos, a exemplo da questão da proteção à sua saúde, especialmente sentida na linha de frente em emergências sanitárias. Nunca é demais lembrar que os trabalhadores da Enfermagem são os mais afetados pela covid-19 no mundo, tendo passado de 1.500 trabalhadores mortos, com destaque negativo para o Brasil, onde ocorreram pelo menos 500 óbitos, contabilizados ao fim de 2020 32. Assim, cabe aos trabalhadores da Enfermagem, por meio de seu instrumental teórico-metodológico e ético-político, atuar em associação, uns com outros, entendendo os limites e os desafios que se desenvolvem no âmbito do seu próprio trabalho 33.
Devem-se observar as potencialidades de mudanças na dinâmica das contradições apreendidas em sua interface com a saúde. Seja nas políticas públicas, com instâncias formais de participação social, seja no caminho inverso, com enfermeiros (e outros trabalhadores da saúde), participando dos movimentos sociais, essa avaliação deve ter caráter coletivo e histórico. Obviamente, deve existir um momento particular do processo, interno à equipe de Enfermagem, para que sejam problematizadas as repercussões positivas e negativas na sua cadeia da assistência profissional, incluindo as implicações para o tratamento das doenças, a recuperação e a reabilitação no âmbito individual 30.
Reflexões ulteriores devem agregar novos elementos à dimensão genérica aqui analisada, até porque ela é dinâmica. Assim, essas premissas mais gerais podem ser recuperadas como parâmetros de referência para as ações mais particulares. Dessa forma, a assistência de indivíduos adoecidos pode fazer sentido no interior de uma dinâmica mais ampla, soerguida de uma práxis socialmente referenciada, sem ignorar a importância do rigor técnico e da eficácia das intervenções curativas, mas revestindo-as de conteúdo humano-social que pode criar fatos ou elementos potencializadores da própria assistência técnica, nas conexões que apresentam com a totalidade das relações sociais.
Conclusões
No contexto de aproximação entre Enfermagem e materialismo histórico-dialético, a Tipesc se revela uma importante mediação teórica para entender a faceta social da pandemia de covid-19, em especial naquilo que diz respeito à intervenção práxica da Enfermagem em saúde coletiva. As reflexões que realizamos podem contribuir para entender as bases objetivas sociais da pandemia, suas contradições e possibilidades de intervenção. Além disso, podem contribuir para o avanço da apreensão ou efetivação do que seja uma intervenção práxica, aprimorando a própria Tipesc em face de seus vieses.
Cumpre observar os limites de uma intervenção profissional diante de processos estruturais, apenas equalizáveis na seara da luta de classes em face da esfera produtiva da sociedade. Contudo, entender a atividade humana sensível como práxis, nesse caso particularizada na Enfermagem, contribui para perceber as possíveis conexões da profissão com o horizonte de enfrentamento radical dos problemas sociais, principalmente na saúde.
Como horizonte de intervenção práxica, não se pode ignorar o potencial das lutas sociais e das políticas públicas, desde que estruturadas a partir de saberes consensualmente validados, sem que a ciência exerça violentamente soberania sobre os outros saberes. Além disso, não se pode perder de vista as lutas mais radicais (no sentido de ir às raízes) contra as desigualdades estruturais da sociedade, pois elas se traduzem em adoecimento e morte.
É preciso investigar e intervir tendo em vista as particularidades de cada caso, com as mediações de tempo, espaço, classe, gênero, etnia/raça etc. Além disso, as singularidades dos indivíduos envolvidos no processo, assim como as demandas das esferas de atenção à saúde de cunho técnico-assistencial, devem ser consideradas. A abordagem realizada neste artigo não aprofunda o debate sobre essas mediações particulares e singulares, o que consiste em limitação do estudo. Além disso, a realidade é dinâmica e, no caso da pandemia, tem se mostrado muito intensa, o que demanda reflexões futuras para atualizar e superar os limites da nossa análise, que foi realizada no curso da pandemia, sendo mais suscetível às variações dessa dinâmica. Apenas com a imersão no processo de investigação/intervenção é que as contradições podem ser, cada vez mais, apreendidas e enfrentadas. Nesse horizonte, pode-se contribuir para que a Enfermagem, no interior de um coletivo de trabalhadores da saúde, consiga apreender e transformar a dinâmica entre universal-particular-singular no processo saúde-doença em geral e, em particular, ante a covid-19.