Introdução
O movimento estudantil (ME), ao longo da história, tornou-se um dos mais importantes movimentos sociopolíticos do Brasil, com um histórico ensejado por lutas sociais no país 1. No período do Governo Militar (de 1964 a 1985), os movimentos com essa característica repercutiram em conquistas como a democratização da saúde e a garantia dos direitos sociais, instituídos na Constituição Federal de 1988 2. Dessas representações, o ME assume protagonismo como catalisador dos processos de lutas sociais, não necessariamente vinculado ao caráter institucional desses movimentos.
No mesmo período, embora alimentado desde a década de 1960, o Movimento de Reforma Sanitária Brasileira (MRSB) foi impulsionado e permitiu uma agenda política estratégica entre os grupos sociais, em que as mobilizações em defesa da saúde universal e contra a mercantilização da saúde foram fortalecidas. Ressalta-se a criação de instituições comprometidas com a garantia do acesso universal e equitativo da assistência à saúde, como é o caso do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) 3, mediante ações políticas centradas em um projeto inclusivo e solidário, tendo a saúde como direito universal de cidadania 4.
Uma das maiores conquistas do MRSB foi, indiscutivelmente, o Sistema Único de Saúde (SUS), organizado pelos princípios da universalidade, da equidade, da participação social, da descentralização da atenção e dos serviços de saúde, e da integralidade 5, feito do povo e para o povo, garantido por lei, por meio da Constituição Federal de 1988 6, a constituição cidadã. Resultado da luta e da união dos movimentos sociais e de saúde, o SUS, que, nesses 30 anos, entre perdas e ganhos, vem se mobilizando em prol de sua consolidação e enfrentando concepções reducionistas dos direitos sociais, contraditórias à sua visão epistemológica.
Mais incisivamente desde 2017, a despriorização do SUS e os abalos sobre a sustentação dos direitos sociais têm impactado na consolidação de uma gestão democrática em saúde. Desde o impeachment da presidenta Dilma, em 2016, por exemplo, com a lógica de austeridade fiscal, o neoliberalismo exacerbado e a priorização das demandas do mercado repercutiram na tomada de decisões que desrespeitam o pacto social entre gestão e democracia, como a Emenda Constitucional 95 (EC-95/2016), que congela o orçamento público para saúde por 20 anos 7.
Em 2019, a concepção de balbúrdia1 8 sobre a atuação de professores e estudantes das universidades públicas brasileiras e o contingenciamento orçamentário das universidades federais, seguidas de reflexões e tensionamentos pela reorientação da educação libertadora, do saber científico e popular, configuram uma nova estética política que afeta de modo direto a formação profissional e científica, bem como o desenvolvimento humano de atores nesses espaços de aprendizagem política e social.
Diante desse cenário, dos déficits e dos cortes, a necessidade de atuação enquanto sujeitos de transformação social e militantes do ME requer a união de forças para que o Estado democrático de direito, conquistado após 21 anos de regime autoritário, não se perca 9. Precisamos refletir que nós mesmos somos atores da história 10, somos parte de uma luta contínua de construção crítica e reflexiva a fim de orientar um modelo de sociedade participativa e conscientemente responsável por seus atos; somos corresponsáveis pelas mudanças ocorridas independentemente de seus pressupostos ideológicos.
Desse modo, a partir da inferência vivencial de que estamos em tempos de adversidades e acreditando que, enquanto movimento, a reforma sanitária brasileira (RSB) é inconclusa, não finalizada com a institucionalização do SUS, mas decorrente do sentimento constante de militância, este artigo tem o objetivo de refletir sobre as contribuições do ME para a RSB, pressupondo seus aspectos histórico-dialéticos e os traços da contemporaneidade.
Meandros do movimento estudantil e reforma sanitária brasileira
Considerada subversiva pela Ditadura Militar, a União Nacional dos Estudantes (UNE), desde 1937, vem impulsionando a mobilização de estudantes por avanços nas políticas públicas. No âmbito do MRSB, o aporte das universidades tem um reflexo fundamental, em que, em ação conjunta de professores e estudantes, conseguiram mobilizar movimentos de articulação no locus, a partir de discussões sobre os aspectos sociais e políticos da produção de saúde 11.
Embora essa articulação tenha se sustentado em segmentos da classe média, incluindo estudantes, intelectuais e profissionais da saúde, ainda que de forma sucinta, articulada aos movimentos urbanos e sindicatos, não se ignora o alcance de uma das políticas sociais mais exitosas implementadas no Brasil, o SUS 2.
No entanto, precisamos descaracterizar o ME como principal articulador no MRSB, embora venha sendo uma das variáveis de sua sustentação. É preciso visualizar o caráter social aplicado a esse movimento e aos objetivos alcançados, como (re)orientador de uma lógica institucional que o ME promulga por derivar, quase que essencialmente, de espaços universitários 2.
Assim, é preciso compreendê-lo sumariamente como uma práxis diluída por desejos de transformação, caracterizado por pessoas em papéis estudantis, apreendidos pelo desejo de conquistas comuns ao interesse social. O fato de o MRSB ter se consolidado, ao final da década de 1980, como algo representado por académicos, e podemos citar Sérgio Arouca como principal propulsor dessa percepção, o movimento e a própria reforma carregam traços da micropolítica, mediatizado por desejos de base social carregados por anseios de igualdade 7.
A discussão aqui presente se sustenta, portanto, na persistência do ME como potentes atores e autores da RSB por uma reforma social e contínua, que incide sobre os modos de vida das pessoas, no seu fazer saúde, um MRSB que busca fugir da reforma parcial em que se tornou, como defende Paim 2.
Os MES vêm sendo atuantes na construção do processo de reforma desde sua concepção. Vale ressaltar que as pautas da reforma sanitária se atualizam cotidianamente. Diante disso, podemos afirmar que esses movimentos estiveram presentes no disparar da reforma até os dias atuais e que também foi se transformando e se atualizando 2.
A 8a Conferência Nacional de Saúde (CNS) em 1986 7 teve a participação de cinco delegados representantes do ME, espaço em que ocorreu o amadurecimento da incorporação da saúde enquanto direito vital, e de onde saíram importantes direcionamentos para a instituição do sistema de saúde universal, mediante discussões sobre saúde com contribuições da universidade.
Em meio a essa efervescência do movimento de construção da RSB neste mesmo ano, estudantes do curso de medicina no estado do Ceará conseguiram se articular e fundar a Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (Denem), uma entidade que nasce para fortalecer a luta em defesa do SUS 12. Essa mesma entidade lança, para o ano de 2019, a campanha "Estudantes em luta pelo SUS e para além do SUS", rumo à 16a Conferência Nacional de Saúde-2019 13.
Mostra-nos, portanto, que o ME, apesar de todas as dificuldades e resistências, tem posturas decisivas, desde os embates políticos para a incorporação da "saúde" na Constituição de 1988, como direito de todos os cidadãos e dever do Estado 4, até a construção participativa nas CNS.
É fato que o ME precisa constantemente ser renovado para se reaproximar de suas bases, se oxigenando para novas estratégias de luta 1. Nesse sentido, ressalta-se que não se deve limitar aos espaços institucionais. O ME deve ser construído em todos os espaços onde têm estudantes com voz ativa e presente nos processos de construção da formação, assim como nas causas e nas lutas sociais.
Em 2016, mediante a fragilidade do Estado de direito e das ocasiões políticas que reorientaram o Estado democrático, a classe estudantil, a dos trabalhadores e a do movimento sem-terra, entre outras organizações sociais, mobilizaram o "Fora Temer", espalhando nos movimentos de rua, nas casas das pessoas, tendo um posicionamento da universidade, por meio do ME nos eventos científicos nacionais e internacionais, no trabalho, no lazer e em outras instâncias da vida cotidiana 14. Durante esse mesmo período, os atos e a ocupação dos espaços públicos ganharam força e proporção expressivas, após ser lançada a EC-95/2016, como já mencionado anteriormente, que congelou os investimentos públicos por 20 anos 15.
Diante desse cenário de instabilidade política e económica, deparamo-nos hoje com tendências ideológicas principiadas pela redução dos direitos sociais e do ensejo capitalista aplicado à organização político-social. Em 2019, é anunciado o contingenciamento de 30 % no financiamento das universidades federais, impactando de modo direto a produção do fazer saúde e o incremento da produção científica no Brasil 8.
Nesse sentido, importantes articulações levaram milhares de estudantes, professores e trabalhadores às ruas em 2019 para fazer resistência ao sentimento de desmonte e sucateamento das universidades. Todavia, a resposta ao movimento foi de isolamento à causa, adotando respostas autoritárias e politicamente descabidas.
Contudo, salientamos a fragilidade desse movimento quando nos referimos à diluição de interesses políticos aplicados às entidades representativas, por vezes centralizadas em pressupostos partidários e politicamente institucionalizados, o que retoma a necessidade de encará-lo como princípio de uma causa, o catalisador de processos de mudanças e o potencializador de uma organização social.
De toda forma, defendemos a ideia de que não existe, em qualquer movimento democrático, neutralidade. Todos somos orientados por uma base ideológica e precisamos ser coerentes com ela, de forma que nossa prática não contradiga nosso discurso. Temos o dever de não nos omitir. O grande questionamento é se o uso dessa liberdade é inclusivo ou excludente 16.
Esses movimentos representam a relevância da organização e da unificação do ME contra importantes retrocessos políticos instituídos em desfavor dos direitos sociais. Assim, escolas, universidades, organizações sociais, entidades de classes e demais movimentos organizados têm papel fundamental na construção do pensamento crítico, de modo que a representação de entidades estudantis instiga o protagonismo, a responsabilidade social, a formação cidadã e o pensamento político crítico-reflexivo.
Dessa forma, percebemos que, seja o ME institucionalizado por meio dos centros acadêmicos e diretórios centrais estudantis e outros coletivos organizados nos espaços extrauniversitários, seja originado nas ruas e em outros espaços de ensino, precisa estar unido a fim de colaborar com as transformações sociais que implicam o fazer político em saúde e continuar a fazer história no âmbito da construção contínua da RSB.
Assim, apreendemos que a luta pela construção de um sistema de saúde universal constitui-se como um significativo ponto de encontro entre as múltiplas expressões de MES, em que as diferentes concepções e olhares dos atores envolvidos impactam em expressões singulares. Nesse sentido, o ME é polifónico e assume multiplicidades de vocalizações ao expressar-se, uma vez que habita territórios físicos distintos, é interseccionalizado por diferentes contextos e fluxos.
Projetos e iniciativas de indução de mudanças na formação em saúde no espaço universitário
O ambiente acadêmico pode ser um espaço fértil para a construção e a produção de conhecimentos, que proporciona e estimula o desenvolvimento profissional, social, humano e político de futuros profissionais. Algumas das iniciativas nesse espaço de formação podem ser vistas em grupos de pesquisa, extensões universitárias e na iniciação científica 17, como podem ir além dos espaços da universidade, indo ao encontro de espaços de lazer, de produção de vínculos e convívio com a comunidade.
No campo político, é notável a contribuição intelectual e social na formação do discente. Alguns pesquisadores relatam que esse campo desenvolverá um olhar crítico sob diversos panoramas, sociais ou biológicos, por meio de evidências científicas 17. Nessa direção, a iniciação científica também cumpre com o seu papel social de despertar uma visão ampla de construir ferramentas que facilitarão inúmeras vertentes no campo de atuação prática. Assim, o ensino na universidade tem uma força de grande magnitude 18.
Destacamos aqui também a importância de investimentos contínuos e efetivos no desenvolvimento científico e tecnológico do nosso país, para que possamos avançar não só no campo da saúde, como também nas diversas outras áreas, em busca da qualidade do cuidado ofertado aos usuários do SUS e da transformação social.
A pesquisa assume papel fundamental na reorientação da formação, uma vez que é capaz de estimular os diversos atores envolvidos a construir conhecimentos a partir de um processo reflexivo e crítico, com o objetivo de atender as demandas sociais, produzindo respostas ou estratégias de enfrentamento para os problemas de vida e saúde, além de estimular a responsabilidade social 19.
A extensão universitária, por sua vez, busca articular a universidade e a comunidade com indisso-ciabilidade entre o ensino e a pesquisa 20. Os estudantes a partir da extensão têm a oportunidade de potencializar saberes prévios associando teoria com prática e reconhecendo a importância e a corresponsabilidade do saber popular na construção do cuidado e das políticas públicas de saúde.
O seguimento da matriz curricular do curso de formação sem as atividades extracurriculares não abrange informações ou caminhos suficientes que deem empoderamento para o aluno contribuir nos espaços de participação, como é o caso da construção de políticas sociais e públicas 21.
São necessárias estratégias que extrapolem os muros da universidade para que os estudantes possam estar em contato com a realidade, possam problematizá-la e assim tomar consciência do mundo para serem mobilizados a transformá-lo individual e coletivamente. É nesse sentido que são e serão capazes de contribuir continuamente para que a RSB continue sendo algo permanente e concreto.
Podemos citar então iniciativas extracurriculares vinculadas diretamente às universidades como é o caso do Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (Pró-Saúde), o Programa de Educação para o Trabalho (PET-Saúde) e as iniciativas indiretamente articuladas com as Instituições de Ensino Superior, como é o caso do Projeto de Vivências e Estágios na Realidade do Sistema Único de Saúde (VER-SUS).
O Pró-Saúde visa à reorientação da formação profissional, a partir da integração ensino-serviço e do reconhecimento da necessidade de qualificar a formação para uma abordagem integral aos usuários do SUS com ênfase na atenção básica. Nesse contexto, os processos de reorientação da formação são estruturados por meio de orientação teórica que reconhece os determinantes sociais e biológicos dos processos de saúde-doença, e orientação pedagógica e desenvolvimento dos cenários de prática, com a utilização de metodologias ativas e a diversificação dos ambientes de aprendizagem 22.
O PET-Saúde permite o contato e a aprendizagem mútua entre estudantes, docentes e profissionais da assistência à saúde. Além disso, o contato com o cotidiano do SUS tem o potencial de ampliar a visão dos estudantes com relação à saúde e contribuir para a reorientação da formação em saúde e o aperfeiçoamento do SUS, por meio de reflexões, tensionamentos e críticas que possibilitam a construção de uma formação para o SUS 23.
O VER-SUS configura-se com um projeto protagonizado em âmbito local pelos estudantes desde a concepção, a organização, o planejamento, a execução e a avaliação. O VER-SUS permite uma total imersão em diversos campos regidos pelo sistema público de saúde, ampliando a visão do estudante sobre vertentes relacionadas ao que é direito de todos e dever do Estado. Durante esse estágio, o despertar pelo enfrentamento das adversidades impostas ao funcionamento da saúde no país mostra a característica de militância com voz ativa sobre mudança na sociedade. As universidades, ao permitirem a vivência da realidade, abrem os caminhos para reconhecimento do estudante como um ser ativo e participante na sociedade 24.
Esse projeto mobiliza os estudantes a defender o SUS e lutar por causas sociais, além de formar coletivos que se unem com esse mesmo objetivo. Precisamos de mais agenciamentos que sejam capazes de estimular nossos estudantes a reconhecer o seu papel social, de cidadão ativo e de construtores protagonistas da sociedade em que vivem. Não se deve mais ter espaço para a passividade, para a mera reprodução de conhecimentos. Nossos alunos devem ser pensantes e acima de tudo atuantes na sociedade em que vivem, na diária efetivação do nosso sistema público de saúde.
É então considerado como um espaço singular composto de sujeitos plurais de diferentes categorias, inseridos na realidade do SUS, revelando a potência do aprendizado dentro de um contexto de afeto, possibilitando a ampliação do olhar do acadêmico com relação à saúde e sua formação, e contribuindo para a construção de profissionais competentes, políticos e socialmente engajados, a partir da empatia, do acolhimento e da humanização pela formação de coletivos organizados 25.
Essas iniciativas podem provocar nos estudantes o desejo de militar em defesa da efetivação do SUS e da garantia da manutenção dos direitos sociais dos brasileiros. Nessa perspectiva, em meio aos desafios da atual conjuntura política e social, os estudantes representam resistência ao desmonte de importantes políticas públicas e luta para a defesa da construção de uma sociedade equânime e justa socialmente.
O desafio é que esses estudantes possam levar essa militância para seus futuros campos de atuação profissional. Eles podem também ter a capacidade de contagiar seus futuros colegas de trabalho e militar após as suas graduações.
O protagonismo do ME desperta e/ou aumenta a responsabilidade social do estudante 26. A meta é romper com a reprodução tecnicista que gera profissionais sem um olhar crítico às necessidades de saúde em âmbito coletivo. Profissionais que apresentam essa carência em sua formação correm o risco de serem inseridos no mercado de trabalho, seja na assistência, seja na gestão, sem perceber que um dos pilares da sua missão é ter ação contribuinte em seu futuro processo de trabalho 18.
Há, portanto, a necessidade de proporcionar espaços para a formação política do estudante e que as instituições sejam indutoras desse processo como um compromisso social e de exercício da cidadania 27. Infelizmente a visão tecnicista e o ensino conteudista muitas vezes são capazes de estabelecer limites para o autorreconhecimento como cidadão e ser ativo na sociedade, e os espaços de formação política trazem a filosofia de romper com essa fronteira de pensamento limitante.
Esses projetos e iniciativas sugerem a construção de uma nova sociabilidade militante no ME, em que os estudantes desenvolvam uma aprendizagem envolvida no movimento de defesa e construção do SUS como um projeto de sociedade. Irão então contrapor-se às práticas mais tradicionais da militância estudantil, reprodutora de um comportamento político institucionalizado e reproduzida em espaços como os partidos e sindicatos 28.
Tendências do movimento estudantil nas residências multiprofissionais em saúde coletiva
As residências multiprofissionais em saúde buscam qualificar a atuação de profissionais para o SUS, reorientar as práticas profissionais a partir da interprofissionalidade e intensificar uma visão ampliada sobre saúde e sociedade 29, colocando-se em constante contradição sobre o que acredita ser alcançável e as dificuldades operacionais do próprio sistema de saúde que as orientam. Desde já, posicionamo-nos a um discurso direcionado à importância das residências engajadas nas práticas da saúde coletiva, independentemente dos seus cenários de atuação.
Esse perfil de formação, centrado nas perspectivas da educação permanente e da formação/atua-ção para o SUS, considera a multidimensionalidade dos enfoques epistemológicos das categorias profissionais de saúde. Desse modo, demonstra que o residente é ator da produção de um olhar crítico, tecendo redes para a elaboração de políticas públicas, a partir da militância, de um olhar crítico de sociedade, participação social e das relações nos espaços da micropolítica 7.
Nesse ínterim, a imersão diária no SUS prepara o profissional em formação colocando-o nos diversos cenários de atuação como um potencial agente de transformação social, tecendo considerações construtivas para o fortalecimento da saúde e, a partir desse pensamento, dar-se-á continuidade à luta e à defesa de políticas que favoreçam o atendimento das necessidades da população 7.
Para tanto, é preciso estender os horizontes interpretativos da atuação da política e compreender que se faz nas mínimas relações entre os profissionais, e deles com a comunidade, com gestores e na intersetorialidade. Deflagram também os espaços de cogestão como dimensão para a formação política do residente, em que se discutam decisões mediante os acontecimentos nos territórios e nas relações com os usuários 30.
Ainda, compreender as dimensões sócio-históricas implicadas na construção das residências mul-tiprofissionais demanda a interpretação do avanço lógico das práticas profissionais e a ampliação de espaços institucionais na saúde. As residências multiprofissionais se reinventam e, nas multi-dimensões, configuram novas perspectivas de atuação, mediatizadas pelo movimento de serem diferentes, mesmo que desafiados pela lógica primária e ultrapassada do trabalho como meio para um produto bruto, sólido e minimamente humano ou abstrato.
O percurso é longo e a causa da defesa da democratização é nobre, e é por essa essência que existirão fatores que consolidam o arcabouço de produções ligadas à saúde pública e coletiva. Esses fatores são os movimentos ideológicos, movimentos sociais, ação política e produção de conhecimentos. O profissional em formação pode ir construindo e concretizando um posicionamento ideológico, fundamentado no social, com natureza descentralizada e militante. A partir disso, exercerá ações práticas que instiguem espaços de movimento social e como porta-voz de ação politizadora a partir da problematização da realidade 7.
A função desse indivíduo é indagar, refletir e pôr em prática a ação problematizadora. Assim, ele pode questionar as interferências sociais e políticas e as práticas de saúde erróneas que põem em ameaça o funcionamento homeostático da saúde para a população 14.
O fato de que a residência seja oferecida nos cenários reais de produção da saúde potencializa a formação do profissional. O residente toma então a consciência crítica a partir da realidade em que está inserido. Ele é um protagonista que desenvolve atividades de assistência, planejamento, gestão e avaliação em e para o serviço. Durante sua vivência, esse profissional em formação também realiza produções acadêmicas e integra espaços de participação social como fóruns e encontros de residentes multiprofissionais em saúde que colaboram para a reflexão tanto das potencialidades como das fragilidades do sus. Tais características integram o conhecimento teórico com as ações nos serviços e nos espaços de atuação nas comunidades, o que pode gerar potenciais mediante atuação profissional e política.
Esse processo de formação não é isento de dificuldades. Diariamente, o residente desconstrói paradigmas culturais enraizados na sua prática assistencial. Obviamente, um programa de formação em saúde e/ou educação tende a ser aprimorado progressivamente, visto que lida com pessoas, e estas em sua essência são passíveis de fragilidades.
A efetivação de um programa de residência em saúde vai muito além do que promete um projeto político-pedagógico, porque os desafios que surgem são diversos em número e em complexidade, podendo ser também imprevisíveis. As pactuações que têm em vista soluções para o enfrentamento dessas dificuldades são essenciais e envolvem todos os atores no processo, a saber: preceptoria, tutoria, coordenação, colaboradores, usuários, profissionais de saúde pós-graduando/residentes 31.
Desse modo, a construção política com aspectos de militância na saúde deriva não apenas do profissional-residente, mas também da atuação e da motivação daqueles que ocupam funções pedagógicas de orientação docente, o que por vezes pressupõe a (re)construção de perspectivas políticas ou meramente a não geração desse potencial interpretativo, seja pela fragilidade pedagógica docente, do programa e do próprio residente, seja por questões orientadas estritamente ao usufruto do exercício de trabalho complementar aos sistemas locais de saúde que os residentes proporcionam.
Faz-se necessário intervir com mudanças estruturais no funcionamento dos serviços de saúde que oferecem programas de residência, visto que, muitas vezes, o residente se insere no processo de trabalho não como um aprendiz, mas como "tocador de serviço" ou "mão de obra barata". Assim, mudar essa lógica exige o protagonismo dos residentes na construção do seu processo de aprendizagem em serviço 32.
A produção de conhecimentos durante a formação em caráter de residência é uma das variáveis mais preponderantes para a construção do ser residente enquanto ser político. As tendências da prática mediante o exercício tecnocentrado pode exercer importante influência e tornar tímida ou desmerecida a atuação política. Contudo, na contramão e agindo de maneira subversiva, a formação transdisciplinar e descentralizada encontra no residente possibilidades para semear transformações dentro dos seus cenários de atuação e assim atuar como estratégia concreta para contribuir para a continuidade da RSB.
Fazer parte de um processo intensivo como esse repercute numa (trans)formação pessoal e profissional que leva ao reconhecimento da importância de se priorizar a saúde como direito de todos. O papel que a residência reflete no profissional se fortalece também nas devolutivas para a comunidade por meio dos produtos deixados como legado da residência para os serviços e os campos de atuação. Todas as iniciativas em prol de favorecer o serviço público têm sua parcela de contribuição na efetivação do sus.
Conclusões
"Desamarrem os laços Façam coisas pela liberdade Digam versos pela resistência"
(Música "Filhos de Ícaro", de Zé Ramalho)
Em tempo de adversidade, a universidade tem que se efetivar enquanto espaço de estímulo ao pensamento crítico e social. Encorajar o ME como símbolo da resistência é mostrar que nossos estudantes são importantes para a efetivação do sus como projeto político e social, assim como reafirma que não existe neutralidade e que todos nós somos seres políticos. Devemos então estimular o papel cidadão que cada um de nós ocupa na sociedade.
Precisamos salientar que existiram diversos ME, assim como várias reformas sanitárias, que foram modificando-se de acordo com o seu tempo, história, vivências, experiências e interesses. Defendemos, neste texto, aqueles que coadunavam sempre com o objetivo de democratização da saúde e de defesa da vida, alicerçados em princípios coletivos e com comprometimento ético-político de transformação da realidade social.
Colocamos em cena o potencial que todas essas iniciativas de formação referidas neste artigo, institucionalizadas ou não, têm para contribuir para a efetivação do sus, considerando a reforma sanitária como um movimento em desenvolvimento, uma vez que buscam a autonomia e o protagonismo discentes para a transformação da realidade social em que os estudantes vivem.