Introdução
A terminologia "síndrome congênita do vírus zika" (SCZ) é utilizada para descrever vários sinais e sintomas associados à transmissão materno-fetal do zika vírus (ZV). É caracterizada por um conjunto de manifestações em neonatos que foram expostos a esse vírus durante a gestação, como a microcefalia, a diminuição do desenvolvimento cortical, a atrofia e a hipoplasia do cerebelo e do vermis cerebelar, artrogripose, polidrâmnio, entre outras 1-3, o que requer cuidados e uma atuação interprofissional para garantir a reabilitação, o tratamento e a efetivação do direito à saúde a essas crianças.
Diante da rápida disseminação do ZV e sua potencial associação com casos suspeitos de microcefalia e outros distúrbios neurológicos, a Organização Mundial da Saúde declarou a epidemia ZV como uma emergência de saúde pública de preocupação internacional em fevereiro de 2016 4,5. Casos de SCZ, principalmente de recém-nascidos com microcefalia, que poderiam estar associados com o ZV foram inicialmente notificados em dezembro de 2015 no nordeste do Brasil 6,7 e posteriormente foram identificados em outros países do mundo 8-10.
A realidade tem mostrado um panorama em que a epidemia de ZV destacou lacunas nos serviços de saúde e na assistência social para as famílias e as crianças com deficiências de desenvolvimento associadas à SCZ 11. Assim, tendo em vista a complexidade dessa síndrome, dificuldades e desafios têm sido vivenciados diante da estrutura atual dos sistemas de saúde e demais serviços sociais no Brasil 12 e em outros países 11 na promoção do direito à saúde que precisarão ser superados.
O direito pode ser entendido como um conjunto de normas e/ou leis que regulam o convívio do homem em sociedade 13. Enquanto direito de todos, o Estado brasileiro em seus três níveis de gestão precisa garantir a organização e a disponibilização de ações e serviços de modo a assegurar a atenção devida em saúde 14. Nesse sentido, a promoção do direito à saúde é compreendida como a garantia que esses preceitos legais referentes à saúde possam ser efetivados na prática.
Diante dos desafios, é notória a necessidade de adoção de políticas públicas ampliadas e exequíveis, que atendam às diferentes demandas advindas da SCZ 12 e auxiliem na promoção dos direitos à saúde em prol da cidadania dessas crianças, referida na Constituição Federal do Brasil 15.
Este estudo se justifica devido à pouca produção científica publicada sobre a promoção do direito à saúde de crianças com SCZ. Espera-se, com esta pesquisa, que sejam fornecidos subsídios para a formulação de políticas públicas que possibilitem minimizar e/ou vencer as dificuldades e fortalecer as facilidades na promoção desse direito, tendo em vista a efetivação do acesso aos serviços e às práticas de saúde. Nesse sentido, o objetivo deste estudo é descrever as facilidades e as dificuldades na promoção do direito à saúde de crianças com SCZ.
Materiais e métodos
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, realizada na cidade de Feira de Santana, Bahia, Brasil. Esse município apresenta uma configuração sociodemográfica e climática, que pode influenciar para a dinâmica de transmissão de doenças arbovirais, dentre elas destaca-se o ZV 16.
Até 25 de maio de 2018, Feira de Santana contabilizou 24 casos de microcefalia, dos quais 22 foram associados ao ZV (20 confirmados por imagem ou quadro clínico epidemiológico, dois pela detecção do ZV). Havia ainda mais 18 casos que aguardavam investigação e quatro classificados como inconclusivos 17.
O campo de estudo propriamente dito foram os locais onde as crianças com SCZ são acompanhadas, no que diz respeito ao processo de promoção, proteção e recuperação da saúde, sendo escolhidos os seguintes: Secretaria Municipal de Saúde (SMS), especificamente os serviços de Vigilância Epidemiológica (Viep), Central Municipal de Regulação (CMR) e Setor de Tratamento Fora do Domicílio (TFD); Centro Municipal de Referência de Endemias (CMRE-Centro de Arboviroses/Infectologia); três Unidades de Saúde da Família (USF), que possuíam em sua área de abrangência crianças com SCZ, com histórico de acompanhamento pelas equipes das referidas unidades e pela equipe do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf) e a Associação de Pais e Mães dos Excepcionais (Apae) de Feira de Santana.
Foram utilizadas como técnicas de coleta de dados a entrevista semiestruturada e a observação sistemática. As entrevistas seguiram um roteiro elaborado pelas pesquisadoras com temas orientadores sobre o acesso ao direito à saúde de crianças com SCZ, sendo utilizado, neste recorte, as respostas relativas às facilidades e às dificuldades na promoção do direito à saúde de crianças com SCZ. As entrevistas foram realizadas individualmente, pela primeira autora deste estudo, entre março e julho de 2019, em uma sala reservada no local de trabalho/atendimento dos participantes, e uma foi realizada no domicílio da responsável, após a leitura e a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. As entrevistas foram gravadas com o uso de gravador digital portátil e, logo depois de sua realização, transcritas por uma das pesquisadoras. A pergunta orientadora deste estudo foi "Quais as facilidades e as dificuldades vivenciadas pelas crianças com SCZ para a obtenção do direito à saúde?".
Os participantes do estudo foram constituídos de três grupos: grupo I - sete mães/pais ou responsáveis das crianças com SCZ; grupo II - seis profissionais de saúde e dos serviços sociais, e grupo III - oito gestores dos serviços do Sistema Único de Saúde do Brasil, totalizando 21 participantes. Tal amostragem foi delimitada pelo critério de saturação das falas, discutido entre as pesquisadoras, que diz respeito à interrupção da inserção de novos participantes no estudo, quando os dados coletados apresentam uma regularidade ou repetição no conteúdo 18.
Os participantes foram selecionados a partir dos critérios de inclusão: grupo I, maiores de 18 anos e que as crianças sob sua responsabilidade estivessem cadastradas na Viep como caso associado e/ou confirmado de SCZ; grupos II e III, respectivamente profissionais de saúde e gestores que estivessem no serviço há pelo menos seis meses, de modo a possibilitar que tivessem maior conhecimento sobre a realidade pesquisada, independentemente do vínculo empregatício.
Quanto à observação sistemática, foi realizada pela primeira autora de modo não participante, a partir de um roteiro elaborado com tópicos sobre a organização dos serviços de atendimento de crianças SCZ, no que diz respeito ao seu acolhimento, a relação profissional-usuário, as facilidades e as dificuldades vivenciadas pelas crianças SCZ para a obtenção do direito à saúde. Foram 20 observações nos ambientes onde as crianças com SCZ são atendidas - recepções, salas de espera, consultórios, auditório da SMS -, após o consentimento dos responsáveis e profissionais envolvidos, seguindo os mesmos critérios descritos anteriormente para a seleção dos campos deste estudo e dos participantes, com duração total aproximada de 30 horas. As anotações eram feitas ao final do turno de sua realização, no domicílio da pesquisadora, para evitar constrangimento ou mudança de atitudes pelos participantes.
O método de análise de dados utilizado foi a análise de conteúdo temática, considerando-se as falas convergentes (ou semelhantes) e diferentes, sem perder de vista as divergências e as complementariedades. Para trabalhar os dados, seguiram-se os momentos propostos por Minayo 18: ordenação, classificação e análise final dos dados. A partir desses dados, foram elaboradas duas unidades temáticas descritas nos resultados.
Os participantes são nominados por um número nos fragmentos das suas falas a partir da ordem de realização de cada entrevista, com a respectiva inicial da letra do grupo ao qual pertencem, como no exemplo: grupo I, ent. 1 R (responsável); grupo II, ent. 8P (profissional de saúde/ social); grupo III, ent. 2c (gestor).
Foram seguidas as recomendações da Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (19), sendo a pesquisa iniciada após a aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Feira de Santana, conforme o Parecer 3.153.876/2019 (Certificado de Apresentação de Apreciação Ética 03644818.7.0000.0053).
Resultados
A caracterização dos grupos dos participantes da pesquisa é descrita nos parágrafos seguintes.
No grupo I, responsáveis, sete entrevistadas são do sexo feminino e um do sexo masculino, na faixa etária de 26 a 37 anos; quatro contam com ensino médio completo; duas, ensino médio incompleto; uma tem ensino fundamental completo e uma, incompleto. Cinco entrevistadas são donas de casa, um é chefe de cozinha e uma é cabeleireira. Três informaram ser atendidas apenas no CMRE e as outras cinco são acompanhadas também na Apae.
No grupo II, profissionais de saúde, cinco eram do sexo feminino e um do sexo masculino. No que diz respeito ao local de trabalho, um atende no CMRE, um no Nasf, e quatro na Apae, com tempo de atuação que variou de 7 meses a 13 anos. A faixa de idade dos entrevistados foi de 26 a 40 anos, sendo dois fisioterapeutas, uma psicóloga, uma fonoaudióloga, uma terapeuta ocupacional e uma assistente social.
O grupo III foi composto por oito participantes, sendo sete do sexo feminino. A faixa de idade variou entre 31 e 52 anos. Foi representado por quatro assistentes sociais, três enfermeiras e um educador físico, os quais atuam no cargo pelo período entre 6 e 28 anos. Dois entrevistados atuam na Apae e seis, na SMS (Viep, TFD, CMR e Atenção Básica).
Duas categorias foram construídas de forma indutiva, segundo a visão dos grupos pesquisados: "Facilidades na promoção do direito à saúde" e "Dificuldades na promoção do direito à saúde".
Facilidades na promoção do direito à saúde
As facilidades para a promoção do direito à saúde das crianças com SCZ dizem respeito ao direito à saúde ser uma garantia legal, à marcação de consultas/exames ser realizada por funcionária do CMRE, à existência de profissionais comprometidos, ao acesso à informação pelas famílias, à priorização do acesso às crianças, à disponibilização de transporte e à existência de uma rede de apoio familiar.
O fato de o direito a saúde ser legitimado na Constituição brasileira 15 se constitui em uma facilidade à sua garantia e para sua efetivação para todos os cidadãos, inclusive para as crianças com SCZ, apesar de ser salientado que nem sempre o que consta na legislação é efetivado:
[...] uma das coisas [...] que já existe é a legislação que assegura, mas há uma distância muito grande entre o que está na lei e o que está escrito na prática. (ent. 5G)
Iniciativas pessoais de alguns trabalhadores da saúde têm facilitado o acesso aos serviços, à marcação de consultas/exames e ao direito à saúde das crianças com SCZ:
O que [nome da funcionária do CMRE] aqui me ajuda. Tipo marcação de consulta, correndo atrás de um exame aqui pela secretaria, essas coisas para mim eu considero fácil [...] (ent. 6R)
[...] [funcionária do CMRE] que é a que trabalha com a doutora [nome da infectologista], que ela, graças a Deus, é um anjo na vida da gente, ali o que precisa sempre [ela] procura [...] (ent. 9R)
A existência de profissionais comprometidos, que buscam resolver as demandas apresentadas pelas crianças com SCZ, pode se constituir em um aspecto facilitador na garantia do direito à saúde das crianças:
[...] a gente tem uma equipe sensibilizada, [...] tem o apoio da gestão, mesmo diante das dificuldades, [...] a gente sempre tenta as alternativas e aos poucos a gente vem conseguindo [...] garantir um espaço maior com a assistência, [...] acesso aos profissionais [...] (ent. 1 7G)
Complementando, é salientado o apoio da Viep e da infectologista enquanto facilidade na promoção do direito à saúde:
Graças a Deus foi fácil, com a doutora [nome da infectologista], ela tem ajudado bastante, foi através dela que eu consegui ter acesso aos exames mais rápido. (ent. 12R)
[...] existe uma facilidade, que essa parte da Vigilância Epidemiológica, que é esse pessoal aí, junto com a doutora [infectologista] que atende essas crianças. (ent. 19R)
O acesso à informação sobre a SCZ pelas famílias das crianças e sobre os cuidados necessários para o seu desenvolvimento também se constitui em um ponto facilitador:
[...] conhecimento é tudo. A partir do momento que a mãe sabe qual o seu dever e o seu direito já facilita [...] (ent. 7P)
[...] elas [responsáveis] recebem muita orientação, [...] facilita de certa forma elas entenderem o prognóstico e o que que elas precisam fazer agora [...] (ent. 8P)
Do mesmo modo, outra entrevistada demonstra o acesso à informação como aspecto facilitador:
[...] buscar pelo direito, porque é constituído e procurar estar sempre se informando, buscando as informações, o acesso à saúde mesmo em si. (ent. 20G)
A priorização do acesso aos serviços às crianças com SCZ é evidenciado nas falas como uma facilidade na promoção do acesso aos serviços pelos gestores, que é um direito à saúde:
[...] chegou, sendo menos de um ano de idade ou até um ano de idade a gente tem prioridade, não tem fila [...] (ent. 3G)
[...] essas crianças elas têm uma certa prioridade em relação à Central de Regulação. Em relação aos órgãos, é, em Salvador, o Cepred, Instituto dos Cegos, o Sarah [...], elas têm "porta aberta", foi dada uma certa prioridade para essas crianças [...] (ent. 4G)
De modo convergente, os profissionais também apontam a priorização como uma facilidade:
[...] Todas as crianças que nasceram com deficiências têm direitos, mas, quando vão em busca do BPC [Benefício de Prestação Continuada] [...], passa por uma perícia maior [...]. Mas [...], pela questão da zika, ela já é aprovada [...] (ent. 13P)
[...] é dada uma preferência para eles. Paciente com microcefalia tem preferência [...] (ent. 15P)
A disponibilização de transporte específico para crianças com SCZ e do passe livre interurbano para os deslocamentos necessários foi uma facilidade referida:
[...] teve também o passe livre, [...] aquela garantia do transporte, a ida e vinda, tanto da criança quanto do acompanhante, de livre acesso gratuito, para ir até o serviço [...] (ent. 2G)
O transporte de microcefalia [...] é separado [...] pega em casa e deixa em casa, [...] outros pacientes que não é especial, são pacientes que podem pegar ônibus [...] (ent. 21G)
A rede de apoio familiar (colaboração emocional, psicológica e de cuidados do pai, avós, amigos entre outros) e o aspecto emocional das mães também podem se constituir em aspectos facilitadores:
[...] a mãe de [nome da criança] em que [...] o aspecto familiar, a rede de apoio, as questões econômicas são melhores você vê um desenvolvimento melhor [da criança] [...] nas terapias [...] (ent. 14P)
Outra entrevistada também tem uma fala semelhante à importância do apoio da família:
[...] eu sou uma pessoa privilegiada, porque eu tenho apoio da minha família e tem o apoio do pai, o que era para ser uma coisa normal. [...] a primeira ajuda que você precisa ter é da família para você ter equilíbrio psicológico, emocional [...] (ent. 19R)
A realização da observação sistemática possibilitou identificar aspectos convergentes com as falas anteriores, como a solicitação de documentos das crianças pela funcionária do CMRE para realizar agendamentos de consultas; vínculo, acolhimento e compromisso dos profissionais de saúde nos diversos serviços observados; realização de orientações em rodas de conversas promovidas pela Apae e pela SMS, as quais promovem o acesso à informação e o empoderamento das famílias.
A rede de apoio familiar constitui em um fator facilitador para a promoção do acesso ao direito à saúde das crianças. Contudo, foi observado que alguns pais e mães que também fazem parte dessa rede abandonam seus lares após o diagnóstico da SCZ.
Dificuldades na promoção do direito à saúde
As dificuldades para a promoção do direito à saúde das crianças com SCZ descritas pelos participantes deste estudo foram a demanda por serviços/consultas/exames ser maior que a oferta; o tempo destinado para as atividades de estimulação precoce e a sua frequência ser menor que a necessária; a inexistência de um espaço de referência para o atendimento interprofissional das crianças; a inclusão escolar das crianças; o transporte insuficiente; a aquisição de cadeira de rodas, órteses e próteses.
A demanda por serviços/consultas/exames maior que a oferta foi uma dificuldade encontrada:
[...] a gente tem [...] o Centro Especializado em Reabilitação, a gente atende hoje deficientes intelectual e físico, mas só é para quatrocentos. [...] a gente está tentando para ver se conseguia ampliar para oitocentas, nós atendemos cerca de mil e duzentas pessoas com deficiência aqui na Apae, a gente recebe um recurso para quatrocentas, então sempre acaba ficando uma defasagem [...] (ent. 3G)
Desse modo, a oferta de serviços ante a grande procura pode não ser adequada e, algumas vezes, o tempo e a frequência de atendimento precisam ser reduzidos devido a essa realidade:
[...] uma criança ter um atendimento de fisioterapia por semana a gente não está dando a oportunidade dessa neuroplasticidade de fato acontecer, [...] nesse caso eles precisavam de quantidade e eles não têm [...] (ent. 8P)
[...] vinte minutos é muito pouco e é uma vez na semana, se a gente pudesse seriam duas vezes na semana, mas [...] a gente não trabalha somente com a zika [...] (ent. 13P)
A inexistência de um espaço específico no município para o atendimento das crianças com SCZ, a partir de uma equipe interprofissional, constitui-se em um limite para a garantia do seu direito à saúde, fazendo com que os familiares/responsáveis pelas crianças busquem serviços diversos espalhados na rede:
[...] essas crianças fazem um acompanhamento em tal lugar, daqui a pouco o exame é em outro, daqui a pouco o acompanhamento psicológico é em outro, [...] elas ficam rodando muito dentro da própria rede [...] (ent. 16G)
A garantia da inclusão educacional também é necessária para a promoção dos direitos de crianças com SCZ, o que foi considerado uma dificuldade:
[...] tem algumas mães que estão em dificuldade, teve mães mesmo que tirou a criança da escola, por conta de inclusão, [...] a criança tem que ficar com uma pessoa do lado, o tempo todo [...] e aí a escola tirou essa pessoa e a professora não dava conta dela na sala de aula [...] (ent. 7P)
Outra dificuldade apresentada diz respeito ao deslocamento e à disponibilização de transporte para a realização de consultas e/ou procedimentos:
[...] eu estou brigando para conseguir um carro para me levar para São José e não consigo. Você passa na Secretaria de Saúde e tem carro estacionado e eles não disponibilizam nenhum [...] (ent. 1 R)
Já estava marcada, mas ele só não conseguiu o agendamento do carro. [...] Aí eu perdi a consulta [...] (ent. 12R)
A dificuldade de crianças com SCZ conseguirem as cadeiras de rodas acaba limitando ainda mais o deslocamento e a acessibilidade:
[...] cadeira de roda é uma dificuldade para conseguir, a gente dá entrada esse ano, vem receber dois, três anos depois, [...] três anos com certeza ela vai estar maior e mais gordinha, então aquela medida que foi para aquela cadeira já não vai servir [...] (ent. 10R)
[...] porque eu fiz o pedido no Cepred, mas a demanda é muita e essas coisas assim demora mesmo. [...] O ano passado, em agosto do ano passado, quase um ano e até agora nada [...] (ent. 11R)
A dificuldade em conseguir órteses e próteses também foi descrita pelos profissionais de saúde:
[...] quando precisa de órteses, próteses é uma dificuldade ainda muito grande [...], eles ficam muito tempo esperando e às vezes, assim, quando chega, [...] já não está mais no tamanho adequado, a órtese já não serve mais [...] (ent. 18P)
A partir da observação, foi perceptível que, devido à demanda ser maior que a oferta de serviços, o tempo destinado para as atividades de estimulação precoce tem sido de aproximadamente 30 minutos, as quais são realizadas na Apae uma vez por semana para as crianças com SCZ. Foi observada também a dificuldade de transporte para o deslocamento de profissionais do Nasf que realizam atendimentos domiciliares e o das mães para terapias/serviços no próprio município e em municípios de referência.
Não existe no município pesquisado um serviço de referência disponibilizado pela gestão municipal para o atendimento interprofissional das crianças, ainda que as terapias sejam desenvolvidas na Apae. Apesar de a inclusão escolar das crianças ter sido referida como aspecto dificultador, discussões entre SMS, Secretaria de Educação e famílias das crianças com SCZ foram realizadas, com vistas a orientá-las sobre a rede de ensino e facilitar o acesso. Com relação à aquisição de cadeira de rodas, bem como de órteses e próteses, observou-se que a gestão e os profissionais de saúde têm buscado identificar os motivos para a sua demora junto ao centro de referência em Salvador.
Discussão
A garantia legal do direito à saúde a todos os cidadãos foi uma facilidade apresentada pelos participantes. Acrescentam-se outros instrumentos legais existentes antes da SCZ e que poderão amparar essas crianças, como o Estatuto da Criança e do Adolescente 20, a Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência 21 e a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, Lei 13.146 de 2015 22, que reforçam a necessidade de que lhes sejam asseguradas a promoção da qualidade de vida e a assistência à saúde.
A legislação existente poderá se constituir em um aspecto facilitador ao garantir a saúde enquanto direito; contudo, é necessário que seja realmente efetivada e que esforços e vontade política sejam empreendidos para que não fique apenas na teoria. Essa implementação poderá se iniciar a partir das ações realizadas pelos trabalhadores de saúde que atendem as crianças com SCZ e de práticas - disponibilização para a marcação de consultas/exames, comprometimento e responsabilização em atender as crianças - que busquem colaborar para a resolubilidade e a humanização da assistência prestada.
A qualidade do atendimento interpessoal dos profissionais de saúde constitui-se em um aspecto essencial da satisfação do paciente/usuário 23. Assim, o relacionamento profissional-usuário e a atenção dispensada nesse encontro poderão possibilitar práticas de acolhimento e escuta que coadunam para a satisfação com os serviços ofertados, sendo importante intensificar ações de educação permanente destinadas aos servidores de saúde, com vistas a promover a resolubilidade e a humanização da assistência.
Além disso, a criação de estratégias, como a marcação de consultas pela funcionária do CMRE, identificadas neste estudo tem facilitado o acesso aos serviços de saúde e, consequentemente, poderá contribuir para a promoção desse direito, o que pôde ser observado em um estudo 24 no qual foram encontradas dificuldades para que os cuidadores de crianças com microcefalia relacionada à infecção congênita conseguissem agendar consultas com especialistas. Mesmo diante dessas dificuldades, muitas vezes as mães são as responsáveis por marcar consultas para acessar os serviços 25.
O acesso à informação sobre a SCZ e a comunicação entre profissional e familiares têm se constituído em uma facilidade para a promoção do direito à saúde das crianças. A comunicação clara e respeitosa deve estar centrada em atitudes acolhedoras e empáticas entre os envolvidos. Em outro estudo 25, foi identificado que a comunicação entre profissionais de saúde e mães de crianças com SCZ às vezes acontecia de maneira desrespeitosa, sem reconhecer as restrições econômicas e de acesso à informação que as famílias enfrentavam. Nesse sentido, é importante valorizar o trabalho interdisciplinar de saúde materno-infantil com capacidade e preparação para atender às necessidades especiais de crianças com SCZ 26, bem como fortalecer o comprometimento, a comunicação e a responsabilização dos profissionais para melhorar a qualidade do trabalho e as relações interpessoais. Além disso, eliminar as barreiras de acesso a partir de programas, políticas públicas que o facilitem 24. A priorização do acesso aos serviços às crianças com SCZ enquanto facilidade poderá favorecer a promoção do direito à saúde, conforme preconizado na legislação 15,20,21, pois possibilita que as crianças tenham atendimento oportuno quando necessário.
Ainda no que diz respeito ao acesso, destaca-se que o transporte foi descrito enquanto aspecto facilitador e dificultador na promoção do direito à saúde das crianças com SCZ. Dificuldades também foram encontradas em estudos anteriores 25,27, em convergência com este estudo, em manter e ter disponível o transporte regular para o deslocamento e o tratamento das crianças com SCZ, o que nos faz perceber que, apesar de ter sido descrito enquanto uma facilidade, em outras realidades, tem sido frequentemente um entrave para a promoção do direito à saúde das crianças com SCZ.
A demanda por serviços/consultas/exames ser maior que a oferta foi uma dificuldade apresentada pelos entrevistados. Estudo 28 relata que os usuários têm se deparado com dificuldades para acessar os serviços de saúde de média e alta complexidade, sendo destacada a demanda por esses serviços ser superior à sua oferta. Estudo 25 realizado com mães de crianças com SCZ e profissionais de saúde, em Pernambuco e no Rio de Janeiro, Brasil, demonstrou que a assistência à saúde era insuficiente, fragmentada, caracterizada por atrasos e dificuldades no agendamento e na realização de consultas e/ ou procedimentos, o que indica que os serviços disponibilizados têm sido escassos ante a sua procura, o que também pode estar relacionado à oferta insuficiente de serviços. Faz-se necessário o comprometimento dos usuários/responsáveis, profissionais e gestores da saúde de modo a operacionalizar o acesso enquanto um direito de cidadania 28, bem como a criação de estratégias que proporcionem uma assistência integral, contínua e de qualidade às crianças com SCZ 24.
A demanda maior que a oferta dos serviços de saúde pode estar contribuindo para que o tempo destinado para as atividades de estimulação precoce e a sua frequência sejam menores que o necessário, dificuldade apresentada neste estudo para a promoção do direito à saúde das crianças com SCZ, um dos pontos negativos também referido por mães, em um Núcleo de Estimulação Precoce de uma policlínica no interior do Ceará, Brasil 27. A SCZ acomete principalmente o sistema nervoso central, apresentando manifestações anatômicas e neurológicas específicas, com graus variados de alterações funcionais (disfunções neurológicas, problemas de motilidade gastrointestinal, complicações respiratórias, entre outras) que colaboram para o retardo no desenvolvimento neuropsicomotor das crianças 29.
A estimulação precoce busca promover o desenvolvimento neuropsicomotor, cognitivo, sensorial, linguístico e social, evitando ou amenizando eventuais prejuízos, a partir de uma abordagem interprofissional, do acompanhamento e da execução de intervenções clínicas e terapêuticas em criança de alto risco ou com doenças orgânicas, como a SCZ 27. Quando realizada nos primeiros anos de vida, tais ações são de extrema importância para o desenvolvimento das habilidades da criança, as quais podem ser estimuladas a partir das práticas de profissionais de saúde e da família ou cuidadores em casa 27.
Como as crianças com SCZ têm múltiplas vulnerabilidades, elas provavelmente apresentem limitações na realização de habilidades funcionais 30. A atuação de profissionais de maneira precoce poderá auxiliar a otimizar o funcionamento motor e cognitivo 31, devendo ser realizada com a frequência e a duração necessárias para que a eficácia dos atendimentos e os progressos no desenvolvimento da criança sejam alcançados. A disponibilização de tais serviços em um centro de referência poderá facilitar o acesso ao direito à saúde das crianças com SCZ.
De acordo com um estudo 32, as crianças com paralisia cerebral têm necessidades complexas de assistência à saúde e frequentemente requerem cuidados interdisciplinares. Do mesmo modo, as crianças com SCZ apresentam deficiências variadas e graves 29, necessitando de serviços de saúde e cuidados interdisciplinares frequentes. Reitera-se que essas crianças precisam ter acesso a um centro de referência multiprofissional. Estudo 33 revelou o desejo dos pais de crianças com SCZ de receber tratamento e apoio em um único lugar, pois a busca pelos serviços de reabilitação em diferentes espaços é uma verdadeira barreira para as famílias.
Além disso, a incerteza com relação ao futuro da criança 30, o apoio limitado do cônjuge, a necessidade de recursos financeiros e a estigmatização do filho pela comunidade se constituem em uma tensão adicional para as genitoras das crianças SCZ, causando mudanças intensas, repercussões sociais e mentais nas suas vidas 34. Contudo, em pesquisa 35, as mães relataram apoio e suporte dos companheiros a partir do diagnóstico de microcefalia de seus filhos. O apoio social (dos companheiros e dos familiares) e a espiritualidade são determinantes nos mecanismos de enfrentamento dos cuidadores 34. Assim, a existência de uma rede de apoio familiar poderá, entre outras contribuições, colaborar emocional, psicológica e financeiramente os genitores das crianças com SCZ, diante das transformações que uma criança com deficiência pode promover em seu contexto, e ser um aspecto facilitador na promoção do direito à saúde.
Para a efetivação do direito à saúde, não é preciso apenas o acesso a serviços e aos mecanismos de enfrentamento dos cuidadores citados anteriormente, a aquisição de dispositivos assistivos, como cadeira de rodas, órteses e próteses, é necessária e tem sido considerada como uma dificuldade. Essa barreira também foi identificada em outro estudo 33, contudo destaca-se que a utilização de recursos de tecnologia assistiva tem sido incentivada, buscando-se aumentar as capacidades funcionais de crianças com deficiência em seus diferentes contextos de vida, e o seu acesso é um direito garantido na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência 22.
Diante do possível comprometimento cognitivo, que pode variar de atrasos leves no desenvolvimento a déficits motores e intelectuais graves 30, há a necessidade também de disponibilização de acesso aos serviços educacionais. Contudo, salienta-se que a inclusão das crianças no ambiente escolar foi uma dificuldade apontada para a promoção do direito à saúde das crianças com SCZ. A efetivação do princípio da integralidade e do direito à saúde, "depende de dispositivos interseto-riais que articulem atenção especializada à saúde, reabilitação, atenção básica, além da inclusão no ambiente escolar" (36, p. 2), pois a educação poderá minimizar os preconceitos sociais, ao propiciar a inserção das crianças com SCZ.
Para que haja o adequado desenvolvimento das crianças que apresentam alguma deficiência, a exemplo das crianças com SCZ, faz-se necessário priorizar as políticas públicas e responsabilizar os governos para garantir que os serviços intersetoriais sejam capazes de atendê-las juntamente com as suas respectivas famílias 37, o que poderá contribuir para a promoção da saúde enquanto direito de cidadania.
As limitações deste estudo estão relacionadas ao fato de ter sido pesquisado em um município específico. Além disso, por se tratar de uma investigação qualitativa, impossibilita a mensuração e a generalização dos fatos investigados. Entretanto, salienta-se que os resultados encontrados poderão ser equivalentes ou parecidos com o vivenciado em outros contextos, bem como colaborar e/ou estimular estudos, ações e reflexões futuras, que busquem contribuir para a promoção do direito à saúde das crianças com SCZ.
Conclusões
Mesmo com o aparato legal do direito à saúde, há dificuldades para sua efetivação. As facilidades relacionadas ao comprometimento dos profissionais poderão contribuir para a qualificação dos serviços realizados, bem como para a satisfação dos usuários e a promoção do direito à saúde das crianças com SCZ. O acesso à informação e aos serviços disponibilizados (consultas, exames e transporte), bem como a existência de uma rede de apoio familiar foram facilidades identificadas que podem colaborar para a efetivação do direito à saúde diante das necessidades apresentadas pelas crianças.
Todavia, a realidade estudada ainda apresenta dificuldades na promoção do direito à saúde das crianças com SCZ (a demanda por serviços/consultas/exames maior que a oferta, o tempo e a frequência insuficientes para as atividades de estimulação precoce, a inexistência de um espaço de referência para um atendimento interprofissional e especializado, a inclusão escolar, a disponibilização de transporte, a aquisição de cadeira de rodas, órteses e próteses) para as quais são necessários investimentos em recursos humanos, materiais e organizacionais de modo a serem minimizadas/ sanadas, buscando-se a promoção do direito à saúde de maneira integral.
A descrição das facilidades e das dificuldades na promoção do direito à saúde de crianças com SCZ poderá contribuir para o acesso aos serviços e às práticas de saúde, mediante uma política de saúde efetiva à realidade apresentada, colaborando para uma maior qualidade de vida.