Introdução
Os estudantes do ensino superior militar, particularmente durante o primeiro ano da Academia Militar, são confrontados com inúmeros desafios e mudanças com implicações quer nos seus níveis de sucesso e de satisfação, quer na vida em geral. O facto de estarem inseridos numa instituição altamente estruturada que exige o cumprimento de normas, apelando paralelamente a elevados padrões de conduta ética e moral, potencia o aparecimento de reações de stress. O acesso ao novo sistema de ensino implica, inevitavelmente, múltiplas mudanças. É necessário conciliar motivações e interesses pessoais com novos contextos de vida, ao nível familiar, social e académico. Para alguns, o contexto é propício para a exploração de novos ambientes e para a construção de novas relações. Para outros, é interpretado como potencialmente ansiogénico e gerador de situações indutoras de stress, uma vez que a formação exige elevado grau de especialização.
O recurso último à violência é uma das competências que tornam peculiar e única a essência dos militares. No entanto, o militar só poderá ter um desempenho eficaz com treino e formação superior considerável, o que acarreta elevado desgaste, com impacto na satisfação. Esta competência não é meramente técnica, que advém do treino militar, mas uma habilidade intelectual extraordinariamente complexa que requer estudo e formação abrangente (Huntington, 1996)1.
Nuankaew, Nuankaew, Bussaman e Tanasirathum (2017) referem que o desenvolvimento pessoal com que o estudante universitário se depara é um bom indicador de uma adaptação académica positiva. A adaptação inicial envolve o lidar com a mudança do contexto civil para o militar, dos hábitos de estudo, da vida diária e sobre si mesmos (Pascarella e Terenzini, 2005), bem como autodisciplinar-se. As exigências podem refletir-se por meio de níveis moderados de stress que são mediados pelos seus recursos e pelo nível de maturidade psicológica. A teoria da conservação de recursos (Hobfoll, 1988, 1989, 2001) constitui um importante eixo de suporte ao considerar os processos ambientais, culturais e sociais, bem como os processos pessoais e internos, não esquecendo a sua lógica interacional.
Apresentam-se dois estudos que procuraram caracterizar os fatores que colocam maiores dificuldades na adaptação aos alunos (estudo 1) e predizer o sucesso académico (estudo 2), respetivamente com os seguintes objetivos: 1) identificar e compreender as variáveis que colocam maiores dificuldades de adaptação aos cadetes no contexto da cultura organizacional militar e 2) conhecer as variáveis que melhor expliquem os resultados ou o sucesso académico.
A avaliação dos fatores que geram maior conflito interior e exterior é um passo para lidar com as variáveis que podem contribuir para o sucesso ou insucesso no nível individual e académico. Com o intuito de caraterizar o processo de adaptação no ensino superior militar, aborda-se, em particular, a cultura militar como elemento contextual, caraterizado por determinados stressores académicos (Almeida, Ferreira e Soares, 2003) , capaz de induzir percepções de autoeficácia com impacto no sucesso académico. Assim, os princípios epistemológicos subjacentes à construção do objeto do estudo conduziram a delimitação da temática à cultura militar e aos stressores que a caraterizam, à autoeficácia e ao sucesso académico em alunos do ensino superior militar (Academia Militar).
Cultura em instituições militares
A concepção de Althusser (1971) relativa aos aparelhos de Estado pode ser usada para o entendimento da educação bélica. A proposta desse filósofo que mais se aproxima do ensino militar, quando apresenta "a ideia de que a escola é uma instituição destinada a preparar os indivíduos de acordo com os papéis que devem desempenhar na sociedade, sendo um deles o de agente da repressão e os processos de inculcação da ideologia dominante", aplica-se à pedagogia castrense em que "o modelo de administração escolar, basicamente de cunho fayolista, imprime no psiquismo discente as idéias de racionalização, previsibilidade e controle" (Ludwig2, 1998, pp. 33, 34).
A partir desse raciocínio, entende-se que as forças armadas funcionam pela ideologia, simultaneamente para assegurar a sua própria coesão e reprodução dos valores que projetam no exterior. Não há aparelho puramente ideológico, mas a "escola, seja ela civil ou militar, é um espaço dinâmico político por excelência. Ela é politicamente determinada, o seu processo educativo é político e os seus resultados também são políticos" (Ludwig, 1998, p. 7). Assim, ela denota as relações de força vigentes na sociedade.
As teorias da reprodução podem ser usadas para o entendimento do fenómeno educativo militar, desde que se tenha em conta uma distinção importante entre o ensino civil e o bélico, pois os alunos civis são preparados para atuar diretamente no setor produtivo como força de trabalho. A teoria da violência simbólica de Bourdieu (1983) no que tange aos temas da imposição de um arbitrário cultural, do habitus, definido como um esquema de pensar, apreciar, perceber e agir, e o tipo secundário de trabalho pedagógico, destinado à conversão radical do indivíduo, aplica-se à prática pedagógica castrense.
O ensino de certas matérias também ocorre para que seja adquirida uma cosmovisão ordenada. A matemática ensinada aos cadetes encontra-se impregnada da inversão idealista que supõe ser o real determinado pela razão. Além disso, o formalismo e a tautologia dessa disciplina tendem a reforçar a concessão de ordem. A física aprendida pelos alunos é predominantemente a clássica, de cunho determinista. Os assuntos são apresentados aos alunos de forma pronta e acabada, como verdades inquestionáveis, separadas dos conflitos e contradições existentes no seio da sociedade e da comunidade científica. A história é transmitida como uma sucessão concatenada de causas e efeitos, cujos acontecimentos fortuitos são passíveis de serem entendidos como irrelevantes (Ludwig, 1998).
Cada ramo militar também tem o seu próprio conjunto de códigos morais (Kuehner, 2013), como a honra e a coragem. Cole (2014) descreve um conjunto de dimensões transversais à cultura militar (linguagem, hierarquia, sentido de regras e de obediência aos regulamentos, autoexpectativa e autossacrifício) que precisam ser observadas e compreendidas. A linguagem é um aspeto visível ao nível superficial do estilo de vida militar, com jargões próprios. A hierarquia é um importante aspeto cultural de nível superficial visível da comunidade militar. A classificação e a ordem são rígidas nas forças armadas, em que os membros da organização militar devem mostrar respeito e conformidade com seus superiores.
Essa estrutura autoritária também pode ser imitada na vida familiar da família militar (Hall, 2008). No geral, a classificação interna na organização militar determina quanto ganha financeiramente (Huebner, 2013), o nível de educação (ensino) militar que lhe é fornecido, o nível de acesso aos recursos organizacionais (Hall, 2008) e a quantidade e qualidade esperada de sua responsabilidade.
A posição social afeta a identidade e o senso de identidade dos membros da família de tal forma que a família do militar se identifica com a sua posição análoga na comunidade militar (Drummet, Coleman e Cable, 2003). Os profissionais externos que acompanharam os militares devem estar cientes de que a posição hierárquica pode influenciar não apenas o nível económico da família, mas também o seu nível de stress (Cole, 2014).
Indo mais além, a cultura militar incorpora um forte senso de regras e restrições como obediência, pois existem regras e expectativas claramente definidas para os militares e respetivas famílias, o que inclui diretrizes de etiqueta para cônjuges e filhos sobre trajes, maneirismos e comportamento em público (us Army War College, 2011). O seu comportamento dentro da estrutura militar é governado por uma complexa massa de regulamentos, costumes e tradições. O comportamento em relação à sociedade é guiado pela consciência de que as suas habilitações só podem ser utilizadas para fins aprovados pela sociedade por meio do seu agente político que é o Estado.
Outro aspeto invisível da cultura militar, característico de um nível emocional mais intenso, é o ethos do guerreiro. Normalmente, com exceção dos conscritos (serviço militar obrigatório), as forças armadas são constituídas por voluntários que aderem ao estilo de vida militar na intenção de organizar a sua carreira (Hall, 2008). Para esses membros, o conceito de ethos guerreiro prevalece na comunidade militar, pois os membros da instituição militar e as suas famílias, em geral, orgulham-se da sua capacidade de superar os desafios por si mesmos (Hall, 2008; Huebner, 2013; Cole, 2014), em tempos de guerra e paz (Park, 2011). No estudo de Cole (2014), mais da metade dos membros da família militar relatou estar satisfeita com o estilo de vida militar, enfatizando o seu compromisso de enfrentar e superar desafios (Cole, 2014).
A cultura militar também promove a noção de força e controle emocional (Halvorson, 2010), que, por sua vez, impulsiona o medo de parecer fraco (Huebner, 2013), especialmente em relação à saúde mental (Danish e Antonides, 2013). A noção de autossacrifício é profundamente sentida dentro da cultura militar. Guiados pelo ideal de que o indivíduo é secundário à organização, os membros da família militar enfrentam inúmeras ocorrências e decisões que alteram radicalmente as suas vidas, com deslocamentos e separação dos seus grupos sociais de origem no decorrer da sua carreira militar (Park, 2011).
Stressores da fase de transição
O cadete confronta-se com um outro espaço institucional, com normas próprias, com tarefas académicas que exigem novas competências de estudo e níveis mais elevados de organização, autonomia e envolvimento. Assiste-se a um acréscimo de responsabilidades e de oportunidades de exploração, experimentação e a possibilidade de construção de novos projetos, amizades e relacionamentos (Alves, 2014).
Para muitos, significa a saída de casa, com as consequentes alterações na gestão de papéis, nas tarefas de desenvolvimento e na construção de respostas eficazes às exigências académicas. Se esses novos contextos de vida forem entendidos pelo estudante como significativos, estimulantes e desafiantes, contribuem para o seu desenvolvimento psicossocial. Se, pelo contrário, forem sentidos e vividos de modo negativo, podem constituir-se fatores de inadaptação ou de desajustamento. Esses fatores são os chamados "stressores", ou fontes de stress, entendidos como estímulos físicos ou psicológicos aos quais o indivíduo responde: relativas à sua função, aos relacionamentos interpessoais (i.e. liderança, trabalho em equipa, confiança), a nível físico (temperatura, iluminação, ruído, espaço de trabalho), associadas às políticas da organização (promoções, benefícios) e relativas às condições de trabalho (rotina, elevada carga, estabilidade laboral, vencimento) (Nelson e Simmons, 2003).
Martins (2013) refere como fatores propícios a elevados níveis de stresso regime de internato, o cumprimento de horários rígidos, o afastamento da vida civil, a difícil gestão do tempo. Estudo recente realizado na Academia da Força Aérea (Bola, 2017) mostra que os níveis de stress percebidos são bastante superiores aos de outros estudantes universitários fora do âmbito militar, motivados pela cultura e condição militar. As fontes de stress mais identificadas pelos cadetes foram o "namoro", as "mudanças na vida social" e as "responsabilidades acrescidas", que provaram ter a maior influência nos níveis médios de stress percebido dos alunos. Cadetes com maiores níveis de "bem-estar psicológico como profissionais que atuam em domínios pessoais como membros da organização" apresentam menores níveis de stress. As "mudanças na vida social" associadas ao regime de internato e à deslocação de casa provaram ser dos fatores que mais afetam o stress dos alunos, a par com as responsabilidades características de cada ano na academia. A relação com os camaradas e o bem-estar estão fortemente associados a baixos níveis de stress percebido, principalmente o bem-estar psicológico (Bola, 2017).
Na procura por uma compreensão mais objetiva dos processos de adaptação do estudante ao ensino superior, é necessário ter em conta a complexa interação entre os fatores pessoais e institucionais e a rede de suporte social.
A importância do suporte social, enquanto processo relacional que implica a transmissão e a interpretação da mensagem que os outros se preocupam connosco e nos valorizam, parece emergir como fator promotor do bem-estar e da saúde do indivíduo e como recurso essencial para enfrentar as experiências e as mudanças vivenciadas pelo jovem, durante o processo de transição para o ensino superior (Rosinha, Campos e Silva, 2010).
Os estudantes com níveis mais elevados de perceção do suporte social, bem como maiores níveis de autoeficácia tendem a demonstrar melhores padrões de adaptação, com implicações positivas na sua satisfação com a vida. Bandura (1986) defende que a expectativa de eficácia prevê com bastante precisão o nível de desempenho. Conhecer e promover a autoeficácia dos estudantes da Academia Militar passa num primeiro passo por conhecer as fontes de stress. De acordo com a teoria da aprendizagem social (Bandura, 1977, 2018), a autoeficácia decorre de variadas fontes de informação transmitidas por experiência direta e mediada por terceiros.
Autoeficácia e sucesso académico
A autoeficácia envolve a crença de que, com empenho, podemos orientar os acontecimentos, gerando o efeito pretendido. É o "julgamento das próprias capacidades de executar cursos de ação exigidos para atingir um bom desempenho" (Bandura, 1986, p. 391).
De acordo com Bandura (1986), a autoeficácia requer não apenas habilidades, mas também força de vontade em acreditar na capacidade de exercer uma determinada conduta, de se automotivar. Não se trata de possuir certas capacidades, mas sim de o estudante acreditar que as tem ou que podem ser adquiridas por meio do esforço pessoal (expectativa de resultado).
A autoeficácia afeta o começo e a perseverança do comportamento dirigido, já que os indivíduos tendem a evitar as situações quando julgam não serem capazes de resolvê-las, atuando com mais garantia em circunstâncias que dominam. A autoeficácia por meio de experiências de aprendizagem autênticas produz estudantes mais confiantes para lidar com tarefas do mundo (Spanjaard, Hall e Stegemann, 2018).
As crenças de autoeficácia figuram entre os fatores que compõem os mecanismos psicológicos da motivação do aluno, devendo-se aos trabalhos de Bandura (1977, 1986). Schunk (1991) especifica que, na área escolar, as crenças de autoeficácia são convicções pessoais em face de uma determinada tarefa, que envolvem a avaliação de histórias de sucesso passadas e determinam fins e objetivos a alcançar. Não se trata de uma avaliação ou perceção pessoal quanto à inteligência, às aptidões ou aos conhecimentos. Constituem capacidades direcionadas para organizar e executar linhas de ação que determinam a expectativas de autorrealização. Por último, há uma componente de finalidade, a exigência que uma dada situação precisa ser cumprida. Desse modo, as crenças de autoeficácia individuais consideram, simultaneamente, as próprias potencialidades dentro do objetivo de atender às exigências da situação proposta e as ações que conduzam a esse objetivo.
A autoeficácia desempenha um papel essencial na motivação do aluno (Bandura, 1986). Representa uma convicção pessoal quanto à capacidade para resolver um problema e o seu grau de finalização. Em contexto académico, o aluno é motivado a envolver-se nas atividades de aprendizagem se acreditar que, com os seus conhecimentos e capacidades, poderá adquirir novos conhecimentos, dominar melhor um determinado conteúdo ou aperfeiçoar as suas capacidades.
A autoeficácia apresenta índices de validade convergente com diversos aspetos da motivação académica, como a escolha de atividades, o nível de esforço, a persistência e as reacções emocionais. Por outro lado, é preditora de duas medidas do esforço dos alunos, o ritmo de desempenho e o gasto de energia em tarefas de desenvolvimento (Zimmerman, 2000). Maiores índices de motivação e de autorregulação da aprendizagem dos alunos autoeficazes traduzem-se em maiores taxas de sucesso académico, que consubstancia com que a estimulação da autoeficácia seja benéfica para alcançar maiores níveis de desempenho.
O estudo de Rosinha e Coelho (2010), realizado na Academia Militar, acerca do desempenho académico e da adaptação ao ensino superior militar, mostrou que os preditores do desempenho na instrução militar são a eficiência intelectual, a estabilidade emocional e o sentido de coerência. Assim, é de prever que a exposição a diversos outros stressores - analisados ao longo deste estudo - estão associados a menores níveis de desempenho ou de sucesso académico.
Metodologia
A avaliação dos fatores que geram maior conflito interior ou exterior éum passo para lidar com as variáveis que podem contribuir para o sucesso ou insucesso no nível individual e académico. O indivíduo traz consigo uma bagagem pessoal e intransmissível de fatores que se podem materializar ou não na motivação para lidar com as exigências características de novos contextos que podem fazer a diferença e que importa caracterizar e conhecer. Dessa forma, optou-se por um primeiro estudo transversal, quantitativo de natureza aplicada, com objetivo descritivo e explicativo sobre a forma como a cultura e o ambiente organizacional interferem no comportamento dos cadetes numa fase inicial de ingresso na forma de stressores e colocam maiores dificuldades na sua adaptação (estudo 1). O segundo estudo, com caráter longitudinal, analisa os mesmos sujeitos, ao longo de três anos, e procura caracterizar os fatores que são passíveis de predizer o sucesso académico (estudo 2).
Estudo 1
O estudo 1 descreve e analisa se existem diferenças estatisticamente significativas ao longo dos anos no modo como os alunos do primeiro ano lidam com cada um dos fatores que exigem maiores dificuldades na adaptação ao ensino superior militar.
Participantes, procedimentos e instrumentos
Participaram no estudo 601 candidatos à Academia Militar de três anos consecutivos, dos quais foram selecionados 357 alunos que ingressaram no primeiro ano (tabela 1).
Ano N | Ano N+1 | Ano N+2 |
---|---|---|
222 candidatos | 211 candidatos | 168 candidatos |
129 alunos 1° ano | 126 alunos 1° ano | 98 alunos 1° ano |
Fonte: elaboração própria.
Os candidatos destinam-se aos vários cursos do Exército e da Guarda Nacional Republicana (GNR). As idades dos candidatos variam entre os 17 e os 28 anos, com uma média de 19 anos.
O estudo tem como cenário o processo de seleção à Academia Militar, nomeadamente uma das suas fases, a prova de aptidão militar (PAM)3. O estudo do fenómeno qualitativo da etologia das desistências analisou as expectativas e as motivações que levaram os candidatos a concorrem, bem como os aspetos positivos e negativos que decorreram dessa fase inicial. A análise de conteúdo das entrevistas de desistências que ocorreram durante a PAM evidenciou as características de adaptação ou desadaptação ao novo contexto e contribuiu para a construção dos itens que integram a versão do questionário de autoeficácia e adaptação ao ensino superior militar (QAF-ESM; Rosinha et al., 2010). Foi solicitada a resposta ao QAF-ESM no penúltimo dia da PAM, antes do ingresso na Academia Militar, garantindo-se a confidencialidade das respostas. A administração da prova ocupou em média 20 minutos. Trata-se de um instrumento de autoavaliação, constituído por 65 itens a 10 fatores, com uma consistência interna para a escala total de a=0,86 (tabela 2). É pedido aos sujeitos que pontuem o grau de facilidade para lidar com cada uma das afirmações de acordo com uma escala tipo Likert de 5 pontos, que varia de 1 (nada fácil) a 5 (muito fácil).
Fator | Descritivo | n.° itens | Alfa |
---|---|---|---|
F1 - Gestão do tempo | Adaptação às exigências da vida militar e limitações de tempo. | 12 | 0,90 |
F2 - Manejo do comportamentno ante hierarquia e ordens | Agir segundo regras, cumprindo ordens de acordo com os regulamentos e a imposição superior. | 9 | 0,87 |
F3 - Suporte familiar | Lidar com a separação da família e dos amigos, superar dificuldades sem o apoio das figuras de suporte. | 6 | 0,88 |
F4 - Bem-estar físico e psicológico | Lidar com a pressão física e psicológica, adquirindo estratégias para lidar com essas exigências. | 5 | 0,86 |
F5 - Regime de internato | Assimilação de novos hábitos e acomodação a hábitos já adquiridos. Lidar com as características do internato. | 6 | 0,84 |
F6 - Possibilidade de argumentar | Expor os seus argumentos, ideias, mantendo-se otimista e minimizando aborrecimentos. | 7 | 0,80 |
F7 - Sociabilidade entre pares | Relacionamento e relação entre pares. | 5 | 0,80 |
F8 - Relação com camaradas mais antigos | Capacidade de se relacionar com os alunos mais antigos na hierarquia do cadete. | 5 | 0,83 |
F9 - Atividades extracurriculares | Inclui a possibilidade e facilidade da participação em iniciativas culturais e recreativas. | 3 | 0,74 |
F10 - Sucesso académico | Capacidade de alcançar sucesso académico. | 2 | 0,59 |
Fonte: adaptada de Rosinha et al., 2010.
Resultados do estudo 1
A tabela 3 apresenta os valores médios nos anos N, N+1 e N+2 e desvio-padrão do valor médio total para todos os fatores que constituem o QAF-ESM.
Média | ANOVA (multivariada) | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
N a | N+1 b | N+2 c | Total | DP | F | p | |
F1 - Gestão do tempo | 3,10 | 2,85 | 2,76 | 2,88 | 0,58 | 15,68 | a≠b,c* |
F2 - Manejo do comportamentno ante hierarquia e ordens | 3,61 | 3,58 | 3,57 | 3,58 | 0,56 | 0,23 | Ns |
F3 - Suporte familiar | 2,70 | 2,38 | 2,47 | 2,49 | 0,74 | 8,60 | a≠b,c* |
F4 - Bem-estar físico e psicológico | 3,40 | 3,29 | 3,21 | 3,29 | 0,67 | 3,36 | a≠c* |
F5 - Regime de internato | 3,24 | 3,00 | 2,95 | 3,04 | 0,69 | 8,42 | a≠b,c* |
F6 - Possibilidade de argumentar | 3,33 | 3,33 | 3,29 | 3,32 | 0,55 | 0,35 | Ns |
F7 - Sociabilidade entre pares | 4,00 | 4,11 | 4,12 | 4,09 | 0,60 | 1,99 | Ns |
F8 - Relação com camaradas mais antigos | 3,44 | 3,32 | 3,38 | 3,37 | 0,64 | 1,58 | Ns |
F9 - Atividades extracurriculares | 2,74 | 2,93 | 3,22 | 2,99 | 0,74 | 20,51 | a≠b,c; b≠c* |
F10 - Sucesso académico | 2,92 | 3,03 | 3,07 | 3,02 | 0,67 | 2,15 | Ns |
* p < .05; ns - não significativo.
Fonte: elaboração própria.
Verificam-se diferenças estatisticamente significativas com o decorrer dos anos para os fatores da gestão do tempo (F1), suporte familiar (F3), bem-estar físico e psicológico (F4) regime de internato (F5), atividades extracurriculares (F9). Ou seja, os jovens atualmente apresentam dificuldades significativamente maiores em lidar com as exigências da vida militar como o regime de internato, com as limitações de tempo, com a separação da família e dos amigos e com a pressão física e psicológica, do que há três anos. De forma inversa, verifica-se maior facilidade em participar de iniciativas culturais recreativas do que três anos atrás.
Os fatores que apresentam resultados globais abaixo dos valores médios e que traduzem as maiores dificuldades são o suporte familiar (M=2,49), a gestão do tempo (M=2,88) e a disponibilidade para atividades extracurriculares (M=2,99). O fator com que os alunos lidam melhor é a relação que estabelecem entre os seus pares (M=4,09).
Estudo 2
O estudo longitudinal (de três anos) foi conduzido com os alunos que ingressaram no ano letivo n (primeiro ano) e tem por objetivo apresentar as variáveis que explicam e são responsáveis pelo sucesso académico ao longo dos anos de formação.
Participantes e procedimentos
A amostra é constituída por 129 alunos dos diversos cursos que ingressaram na Academia no ano letivo N. O modelo que se ensaia de seguida tem como objetivo principal explicar quais as variáveis que determinam o sucesso académico e, como objetivo secundário, analisar a validade da avaliação psicológica realizada durante o processo de seleção à Academia Militar. Os participantes responderam ao QAF-ESM no início do primeiro ano (ano N).
Estabelecem-se associações entre os resultados obtidos nos fatores de autoeficácia do QAF-ESM e do parecer global da selecção com o desempenho académico para cada um dos anos letivos. Procura-se também determinar quais os fatores que explicam os maiores níveis de autoeficácia académica percebida.
Para o estudo dos efeitos (relações) entre as diferentes variáveis, conduziu-se uma path analysis com o amos (figura 1). Procura-se descrever a estrutura total das ligações existentes entre as variáveis independentes (fatores de autoeficácia) e dependentes (sucesso académico - médias escolares finais).
Resultados do estudo 2
A figura 1 apresenta os resultados usando a perceção de autoeficácia de sucesso académico e o parecer psicológico da seleção enquanto variáveis explicativas das médias finais académicas obtidas em cada um dos anos. O modelo apresenta bons índices de ajustamento (GFI= 0,89, CFI= 0,90, TLI= 0,91, RMSEA=0,065).
Os resultados mostram que o fator que melhor explica a autoeficácia académica é o bem-estar físico e psicológico (β= 0,40, p< 0,001). Embora com pesos de regressão inferiores, a gestão do tempo (β = 0,23, p< 0,05) e a facilidade de conciliar as atividades extracurriculares (β = 0,29, p< 0,05) também exercem efeitos significativos na explicação da autoeficácia académica.
O bem-estar físico e psicológico enquanto avaliação subjetiva da satisfação com o trabalho e com a qualidade de vida traduz uma dimensão afetiva (sensações e emoções agradáveis) e cognitiva (satisfação com a vida) que remetem para o sentido de autodeterminação e independência em face das pressões externas (Diener, Scollon e Lucas, 2003). A perceção de bem-estar independentemente de ser real ou não leva o indivíduo a sentir que tem maior capacidade de alcançar sucesso. De modo similar, uma melhor perceção de adaptação às exigências da vida militar, conciliando as exigências académicas com as militares, bem como o manejo do tempo, resolvendo problemas em pouco tempo sobre pressão, aumentam o sentido de autoeficácia perante o sucesso académico.
O impacto do sentido de eficácia académica (F10) e dos pareceres psicológicos nas médias finais ou no desempenho efectivo reveste-se de um triplo significado. Primeiro, as duas variáveis não são preditoras do sucesso académico a curto prazo (média do 1° ano, β= 0,17, ns e β= 0,17, ns). Segundo, a perceção do sentido de eficácia académica tem um efeito estatisticamente significativo (β=0,22, p< 0,05) a médio prazo (média do 2° ano). Terceiro, o parecer psicológico tem um efeito estatisticamente significativo (β= 0,29, p< 0,05) a longo prazo (média do 3° ano).
Discussão de resultados
O QAF-ESM apresentou bons índices de consistência interna e permitiu medir dez dimensões de adaptação do aluno ao ensino militar, avaliando a autoeficácia dos alunos em face: 1) da gestão do tempo, 2) ao lidar com a hierarquia e com as ordens superiores; 3) do afastamento e do suporte familiar; 4) do bem-estar físico e psicológico; 5) do regime de internato; 6) da possibilidade de argumentar; 7) da sociabilidade com os pares; 8) da relação com os camaradas mais antigos; 9) da disponibilidade para realizar outras atividades para além das curriculares e 10) da perceção de alcançar sucesso académico.
A escala avalia a expectativa relativa quanto aos stressores que o aluno enfrentará no seu dia a dia, sendo uma mais-valia quer para a intervenção psicológica inicial ao nível da avaliação e do aconselhamento dos alunos, quer para a predição dos resultados académicos a médio prazo (segundo ano). Chaleta (2002) considera que, para os estudantes universitários, as expectativas de desempenho e os julgamentos de autoeficácia tendem também a influenciar o planeamento e o controle das atividades e dos procedimentos tomados, assim como os desempenhos associados e as atribuições causais relativas aos resultados esperados.
A ausência de predição quer da autoeficácia académica, quer da avaliação psicológica realizada para o ingresso na Academia Militar, dos resultados académicos finais anuais do primeiro ano, em dissonância com a capacidade de predição no segundo e no terceiro ano, confirma que o contexto do primeiro ano não contribui para a auto-organização do sujeito e não é favorável ao ajustamento em face dos obstáculos inerentes à sua nova condição. Se associarmos a esses dados o facto de os alunos apresentarem como maiores dificuldades o afastamento das figuras de apoio e a impossibilidade de gerirem o seu tempo e o seu espaço, a tarefa de adaptação e inserção ao novo contexto ganha uma dimensão mais ampla4. Aliás, os estudos mostram que o aluno ao iniciar o ensino superior e ao confrontar-se com novas tarefas desenvolvimentistas, o apoio que encontra nos colegas e na família pode produzir resultados positivos, reduzindo o stress e contribuindo para o ajustamento e, consequentemente, para o bem-estar físico e psicológico.
Estes resultados são relevantes, dada a escassez de estudos no contexto universitário militar (academias militares), pois identificamos stressores que colocam maiores níveis de adaptação à cultura militar. Em particular, a capacidade de gestão do seu próprio tempo constitui uma dimensão individual que é afetada por imposições externas que advêm da cultura militar. É ainda de salientar a importância das figuras externas, como a família e os amigos, enquanto facilitadores da adaptação.
Nessa mesma tónica, Costa e Leal (2004) defendem que a adaptação à vida universitária é um fator stressor significativo que causa maior ou menor grau de ansiedade, consoante o significado que o sujeito lhe atribui. A mudança já é um fator recorrente na vida dos indivíduos, mas, associada a experiências stressantes (o facto de confrontar-se com um novo espaço institucional, com normas próprias, com tarefas académicas que exigem novas competências de estudo e níveis mais elevados de organização, autonomia e envolvimento por parte do aluno), resulta em efeitos adversos sobre a saúde física e psicológica (Costa, Araújo e Danjour e Oliveira, 2013).
O peso estatístico significativo do bem-estar físico e psicológico em face da autoeficácia académica mostra a interdependência entre esses fatores. Aqueles que não se encontram bem física e psicologicamente acabam por se sentirem mais desmotivados e estão mais vulneráveis ao fracasso. Seco, Pereira, Filipe e Alves (2016) referem que o sucesso académico e o bem-estar físico e psicológico estão intrinsecamente interligados; as estratégias que o estudante utiliza para lidar com a adaptação definem a integração bem-sucedida. Alcançar um estado homeostático (físico e psicológico) representa a pedra angular do sucesso académico, fornecendo ao estudante um setting e ponto de partida na sua incursão académica.
A contribuição do exercício físico ao nível da saúde e do bem-estar psicológico tem sido igualmente objeto de estudo a partir da identificação de um conjunto de benefícios decorrentes da prática do exercício regular (Biddle, Fox e Boutcher, 2000). Esses benefícios são habitualmente associados a uma maior capacidade de suportar tensões e frustrações, um controle mais facilitado dos níveis de ansiedade, uma menor suscetibilidade para situações de depressão e para baixos estados de humor. Contribuem para a construção da personalidade individual, por meio da modelação de atitudes e comportamentos, bem como para o desenvolvimento de níveis mais elevados de autoestima e de autoconfiança.
Por último, é de destacar que o carácter longitudinal do estudo permitiu perceber que os stressores não são preditores do sucesso académico a curto prazo, mas apenas a médio prazo, e que os fatores de personalidade que resultam da avaliação psicológica apenas são preditores de sucesso académico a longo prazo. Os cadetes deparam-se, assim, no curto prazo, com a fase de alerta e resistência, com consequências significativas a médio prazo (segundo ano). Os stressores do contexto universitário militar, consequência da sua cultura, funcionaram como elemento que interferiu nos fatores de traço (avaliação psicológica) e que, uma vez atenuados com os anos, permitem predizer sucesso académico no longo prazo. Essa constatação releva a importância da seleção realizada pelo CPAE na fase de seleção. A seleção à Academia Militar não é assim um elemento pontual, mas um processo contínuo que decorre da adaptação ao longo do processo formativo.
Contribuições do estudo
Os resultados deste estudo preliminar são relevantes para o contexto universitário militar (academias militares das forças armadas).
Algumas das dimensões características da cultura organizacional militar como a linguagem, a hierarquia, o sentido de regras e de obediência aos regulamentos, a autoexpectativa e o autossacrifício influenciam no desempenho do cadete, que procura motivações variadas para a carreira militar. Esta é conduzida desde o início do processo num ambiente stressante, exclusivo e estrito, muito diferente do que encontra como cidadão comum no seu dia a dia.
Os psicólogos de suporte ao cadete que integram o gabinete de psicologia da Academia Militar devem incluir o conhecimento do contexto das famílias envolvidas e do círculo de amizades dos cadetes e das suas preferências socioculturais, bem como terem registados as aptidões e os talentos adquiridos na vida civil. Isso amenizará as relações e poderá ser usado como recurso motivacional que influenciará o desempenho. As atividades de acolhimento devem ser devidamente pensadas e planeadas, a nível da instituição, o que implica os professores civis e militares, e os cadetes em atividades formais de acolhimento.
Tais profissionais devem também orientar os formadores e professores no sentido de atenuar o impacto existencial-afetivo-fisiológico no processo de formação do oficial das forças armadas, de forma continuada e sempre próxima. Assim, determinados desvios de conduta poderão ser mapeados e provavelmente evitados. Por sua vez, a relação de interdependência entre o bem-estar físico e psicológico fomenta o desempenho cognitivo-comportamental do indivíduo com reflexos no sucesso académico e vice-versa.
Sugere-se ainda a adoção de metodologias de ensino e de avaliação favoráveis à adoção pelos estudantes de abordagens compreensivas na aprendizagem (versus abordagens centradas na memorização), ao desenvolvimento de um pensamento relativista versus dualista (dogmático) ou ao aumento da autorregulação dos alunos nas suas atividades de estudo e aprendizagem (Almeida, Araújo e Martins, 2016).
A avaliação psicológica realizada na seleção, ao explicar os resultados académicos a longo prazo (terceiro ano), evidenciou o seu caráter preditor e contribuiu para a validação do processo de seleção. A tomada de consciência do potencial do indivíduo conduz a um maior conhecimento e experiência metacognitiva, o que aumenta a possibilidade de eficácia na realização académica.
Limitações do estudo
Apesar de a instituição militar e a Academia Militar, em particular, caminharem para maior número de cadetes do género feminino, a dimensão da amostra não permitiu a análise estatística quanto a diferenças entre géneros. Outra limitação foi o facto de a avaliação dos stressores ser apenas conseguida pelo autorrelato de cada aluno, o qual fica sujeito à situação emocional e/ou psicológica de cada um no momento da aplicação do inquérito por questionário.
Sugestões para investigações futuras
O caráter longitudinal do estudo acentua os resultados obtidos e remete para que, nos estudos posteriores, se estabeleçam relações com medidas da autoestima e do contexto original dos jovens. Sugere-se um estudo longitudinal na mesma linha da presente investigação, que envolva os cinco anos letivos da Academia Militar e o seu acompanhamento posterior já como oficiais dos quadros permanentes do Exército e da GNR. O estudo segmentado pelas variáveis como a idade, o género, a antiguidade e o curso deverão ser incluídos para a análise das diferenças intra e interindividuais, com contributos para a intervenção prática nessa área.