A VIOLÊNCIA contra a mulher tem sido tema amplamente estudado na literatura contemporânea devido à sua alta prevalência e prejuízos gerados para as vítimas (Krahé, 2017; Ahnlund et al., 2017; Moraes et al., 2017). Acerca disso, sabe-se que existem diversas formas de abusos entre parceiros íntimos como: físico, psicológico, sexual e controle comportamental, conceituadas pela World Health Organization (WHO, 2010). Destarte, este estudo foca no abuso psicológico contra a mulher, tendo em vista ser este o segundo tipo de violência mais presente na relação íntimo-amorosa, de acordo com bases de dados nacionais e internacionais (WHO, 2010; Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2015, 2016).
Encontram-se várias definições teóricas do que seja o abuso psicológico e de como ele pode envolver a vítima em uma situação de desconforto e mal-estar (Rodríguez-Carballeira et al., 2014). Logo, o abuso psicológico contra as mulheres configura-se como uma violência hierarquicamente construída através das relações de poder, como a dominação do homem sobre a mulher. É caracterizado como ato verbal intimidador e coercitivo (WHO, 2010), ou como agressão emocional que envolve humilhação ou discriminação da vítima, o que diminui sua autoestima (Cunha & Pinto, 2014; Rey, 2002). Pode ainda danificar a identidade social, restringir a liberdade ou até mesmo isolar a vítima do meio (Coelho, Silva, & Lindner, 2014; Rey, 2002; WHO, 2010), o que prejudica os sentimentos da vítima (Hernández & Aragón, 2006) e, em alguns casos, força a testemunhar a destruição de objetos pessoais (Rey, 2002).
Loring (1994) define o abuso psicológico como um processo ativo no qual um parceiro deprecia e destrói o outro. Por sua vez, Tolman (1989) denomina como um conjunto de comportamentos destinados a prejudicar o bem-estar da outra pessoa, o que afeta sua autoestima, seu autocontrole e sua segurança. Finalmente, Marshall (1999) compreende a violência psicológica como o efeito de uma ação, e não do ato em si, sendo produto de processos intra e interpessoais diários que podem assumir atos mais sutis ou explícitos.
Por essa razão, verifica-se uma preocupação em torno dessa temática, por ela ser tão prejudicial à saúde quanto o abuso físico, gerando consequências nefastas e danosas às vítimas de violência (Krahé, 2017; Ahnlund et al., 2017; Moraes et al., 2017). Pode ocasionar: pesadelos repetitivos, abuso de álcool, raiva, culpa, vergonha, medo do agressor e dissociação afetiva (Fonseca & Lucas, 2006; Lacey et al., 2013), como ansiedade e depressão (Aznar, 2004).
Embora possa ser verificada a relevância da temática do abuso psicológico, observa-se que esta vem sendo tratada de forma secundária, como coadjuvante da violência física (Rodríguez-Carballeira et al., 2014), já que esse tipo de abuso é frequentemente ignorado, considerado como parte do relacionamento natural (Hernández & Aragón, 2006). Algumas estatísticas comprovam o quanto as vítimas sofrem com esse abuso. Dados de prevalência em 2015 indicam que o abuso psicológico atingiu 30.92% do total de 32.248 pessoas, o que corresponde a 9.674 casos registrados (Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2015). Já, em 2016, houve um aumento para 67.962 de casos registrados, dentre os quais, 31.1% representaram abuso psicológico, isto é, 21.136 casos (Secretaria Políticas para as Mulheres, 2016). Aproximadamente 40% das mulheres não denunciam seus parceiros por abuso psicológico, denunciando-os apenas por abuso físico, relatando, em seguida, terem sofrido abusos psicológicos em boa parte do relacionamento (Organização Mundial de Saúde, 2014).
A violência psicológica é cometida, na maioria das vezes, por parceiros ou por alguém com quem a vítima mantém ou manteve algum relacionamento amoroso. Em pesquisa, realizada na Tailândia, 62% das mulheres relataram já terem sofrido abuso psicológico por seus parceiros (Xu, Kerley & Sirisunyaluck, 2011). No Brasil, o estudo de Waiselfisz (2015) verificou que o companheiro (agressor) pode cometer o abuso psicológico tanto na fase da adolescência (54.1%) quanto na fase adulta (71.8%). E o estudo de Basile e Hall (2011) evidenciou que a maioria dos homens (74%) comumente usa do abuso psicológico em atos como injúria e gritos com a companheira. Além disso, há indícios de que o abuso psicológico ocorre por vários motivos como: número de filhos, anos de casados, nível socioeconómico (Rey, 2002) e até mesmo no período da gravidez, sobretudo, na gravidez não planejada em que se culpabiliza a mulher pela gestação (Day et al., 2017).
No que concerne a validação de instrumentos psicológicos para tratar o abuso psicológico contra a mulher, verificam-se tentativas de diferenciação do construto desde a década de 1980 sendo testada em diversas culturas, tais como espanhola, chinesa, portuguesa e outras (Oliveira et al., 2014), por meio de escalas psicométricas validadas em cada país. Não obstante, poucas dessas medidas têm se dedicado ao abuso psicológico, de forma específica, muito embora ser este apontado como um tipo de violência prevalente, com graves implicações. Nesse sentido, questionam-se quais medidas são usadas para aferir o abuso psicológico em mulheres nas relações amorosas.
Para responder a essa questão associada ao abuso psicológico contra a mulher, alguns pesquisadores têm se esforçado na construção de instrumentos que avaliem tal construto. Esses instrumentos são baseados em vários aportes teóricos (e.g., Marshall, 1999; Heise, 1998; Furman & Wehner, 1997; Rodríguez-Carballeira et al., 2014; Straus, 1979; Tolman; 1989) que tratam do abuso psicológico de diversas formas/estratégias, mas sem uma definição padronizada aplicada em todos os contextos (Rodríguez-Carballeira et al., 2014).
Nesse tocante, destacam-se as seguintes medidas: Psychological Maltreatment of Women Inventor (PMWI) de Tolman (1989) e Subtle and Overt Psychological Abuse of Women Scale (SOPAS) de Marshall (1999). A primeira é composta por 58 itens que avaliam fatores como: isolamento emocional-verbal e isolamento dominante, com índices de consistência interna que variam de .88 a .92. Quanto à segunda medida relatada, esta é composta por 35 itens que propõem medir a presença da manifestação da violência psicológica, a partir de duas facetas: aberta ou manifesta; e sutil ou oculta. Esses instrumentos trazem em suas definições nos seus fatores as estratégias indiretas de abuso psicológico, importantes para o embasamento do fenómeno abordado por Porrúa-García et al. (2016). Seus índices de consistência interna variam de .73 a .97.
Além dessas medidas, é possível encontrar outras que também mensuram o abuso psicológico, como a Escala de Violencia en la Pareja, elaborada para um contexto espanhol, inicialmente composta por 87 afirmações em duas fases, a primeira mede o quanto as pessoas já sofreram com parceiros e a segunda o quanto os respondentes praticaram os atos de violência (Cienfuegos-Martínez, Sánchez-Aragón, & Rivera-Aragón, no prelo). E depois validada por Cienfuegos-Martínez (2014) em uma versão mais curta, com 27 itens divididos em quatro fatores com níveis adequados de con-fiabilidade (a com variação de .86 e .94), a saber: violência económica, psicológica e controle, física e intimidação, e sexual. E na versão perpetrador, foi composta por 11 itens dividido em dois fatores: violência psicológico-física e económico-social (a geral de .84).
Não obstante, a Who Vaw Study, desenvolvida sob a perspectiva do modelo ecológico (Heise, 1998), mede três dimensões da violência: emocional, física e sexual. A definição da violência emocional, usada como sinónimo da violência psicológica, traz elementos de estratégias diretas, mas não trata das estratégias indiretas. Tal instrumento foi validado por Schraiber et al. (2010), em duas regiões brasileiras, a Zona da Mata de Pernambuco (ZMP) e São Paulo (SP). Os coeficientes dos alfas de Cronbach para os domínios psicológico, físico e de violência sexual foram, respectivamente, .78, .83 e .78 para sp, e .79, .83 e .77 para a ZMP.
Outra mensuração que deve ser ressaltada diz respeito à Escala de Táticas de Conflito (CTS-2), revisada e validada por Alexandra e Figueiredo (2006) na versão portuguesa. Essa escala possui seis fatores (negociação, agressão psicológica, abuso físico com sequelas, coerção sexual, abuso físico com sequelas e abuso físico sem sequelas), nos quais a definição do fator da agressão psicológica está mais voltada para as estratégias diretas. Seus alfas de Cronbach variaram de .78 a .50 na perpetração e, na vitimização, variaram de .74 a .47.
Outro instrumento relevante é o Conflict in Adolescent Dating Relationships Inventory (Cadri). Este foi desenvolvido por Wolfe et al. (2001) e validado para os portugueses (Cadri -p) por Lucas, Pinheiro e Simões (2017), composto por duas subescalas, uma de estratégias negativas e abusivas, que abarca cinco formas de violência: a física, a sexual, a verbal-emocional, a violência relacional e a ciberviolência; outra das estratégias positivas de resolução de conflito. As definições dadas para os fatores da violência relacional e verbal-emocional tratam do abuso psicológico tanto como as estratégias diretas como indiretas, mas sem diferenciá-las. O índice de consistência interna na amostra portuguesa foi de .90.
No Brasil, a Escala de Táticas de Conflitos (cTS-1) foi validada por Moraes e Hasselmann (2003), composta por quatro fatores: argumentação, agressão verbal, agressão física menor e agressão física grave, com índices de consistência interna que variam entre .34 e .82. A revisão dessa escala nomeada de Escala de Táticas de Conflitos revisada (cTS-2) também foi validada para o Brasil por Moraes, Hasselmann e Reichenheim (2002), sendo composta por pares de itens, distribuídos em nove fatores: coerção sexual grave, coerção sexual menor, violência física grave, violência física menor, injúria grave, injúria menor, negociação, agressão psicológica, agressão psicológica menor. Seus índices de consistência interna variam entre .65 e .82. Por fim, tem-se a Escala de Violência Psicológica para Adolescentes desenvolvida por Pitzner e Drummond (1997) e validada para o Brasil por Avanci, Assis, Santos e Oliveira (2005), a qual aborda apenas aspectos psicológicos e emocionais em um único fator, avaliando as experiências do jovem, cujo alfa de Cronbach é de .94, estatisticamente muito satisfatório. Essas escalas trazem a agressão verbal e psicológica como sinónimo do abuso psicológico direcionado para as estratégias diretas.
Embora existam estudos publicados de diversas perspectivas e que examinem o abuso psicológico como sinónimos da violência psicológica, não há um consenso sobre o conjunto de comportamentos que caracterize esse fenómeno (Rodríguez-Carballeira et al., 2014). Assim como também não se identificam quais abusos são mais cometidos nas vítimas de violência psicológica. Além disso, a falta de padronização leva à construção de instrumentos unifatoriais sobre o fenómeno (e.g., Calvete, Corral, & Estevez, 2005; Pitzner & Drummond, 1997).
O presente estudo baseia-se na perspectiva de Rodríguez-Carballeira et al. (2014), a qual foi desenvolvida a partir de vários estudos teóricos e empíricos originados na premissa de que o abuso psicológico pode ser entendido pela abordagem psicossocial, isto é, tanto pela esfera individual como pela social, tornando-a um diferencial dentro da área da avaliação psicológica. A taxonomia da classificação dos fatores (e.g., estratégias diretas ou estratégias indiretas) foi denominada hierarquizando o abuso psicológico de acordo com a sua gravidade e estratégias de pressão, manipulação e coerção do/a parceiro/a, o que ajuda a estabelecer limites entre estes e outros tipos de abusos (Porrúa-García et al., 2016; Rodríguez-Carballeira et al., 2014).
Com isso, buscou-se validar a Escala de Abuso Psicológico Aplicado en la Pareja (Eapa-p, Garcia et al., 2016), traduzida para o português pelo presente estudo como Escala de Abuso Psicológico na Parceira (EAP-P) e aplicada a mulheres brasileiras. Essa medida tem por vantagem, inicialmente, ser uma escala específica de abuso psicológico, que, diferentemente de outros instrumentos existentes como o PMWI e Sopas, avalia a violência psicológica considerando suas formas diretas (emoção, cognição e comportamentos) e indiretas (controle abusivo do parceiro) de abuso psicológico, em toda sua extensão, desde os mais flagrantes até os mais sutis (Porrúa-García et al., 2016). Além disso, em detrimento das medidas de violência psicológica (PMWI, SOPAS), a EAP-P apresenta um número menor de itens, o que minimiza a fadiga dos respondentes e permite comparações transculturais que só podem ser feitas com dados gerados a partir dessas validações. Pode ser um elemento crucial para que profissionais que atuam em espaços públicos possam verificar em que microelemento a parceira está mais afetada.
Com vistas a garantir a qualidade dos dados, seguiu-se a padronização da metodologia proposta por Porrúa-García et al. (2016), que analisa o abuso psicológico de forma mais criteriosa e dividindo-a em dois estudos. No Estudo 1, explorou-se a estrutura fatorial exploratória e a consistência interna. No Estudo 2, avaliou-se a estrutura fatorial confirmatória, testando a nova estrutura fatorial para a EAP-P. Levantamos como hipótese que os itens irão representar o traço latente de tal forma, que se agruparão conforme a definição adotada por Porrúa-García et al. (2016).
Método
Estudo 1 - Estrutura Fatorial Exploratória da Escala do Abuso Psicológico na Parceira
Participantes
Participaram deste estudo 303 mulheres com idades entre 18 e 59 anos (M=27.6; DP=8.4). A maioria (44.9%) está em algum relacionamento, como namoro; desse total, 27.6% estão com o atual parceiro de 1 a 5 anos. Das respondentes, 33.9% residem no estado da Paraíba, Brasil, 84.8% declararam-se heterossexuais, 38.6% afirmaram ter o ensino superior incompleto, 39.6% declararam-se católicas e 35.6% afirmaram ter renda de 1 a 3 salários-mínimos.
Instrumento
Utilizou-se a Eapa-p, traduzida como Escala de abuso psicológico na parceira (EAP-P), desenvolvida e validada por Porrúa-García et al. (2016), com o objetivo de redefinir esse fenôme-no, para o país de língua espanhola. A Eapa-p é composta por 19 itens distribuídos inicialmente em dois fatores: 1) estratégias diretas do abuso psicológico (e.g., "Meu/minha parceiro/a interpretou de seu modo as coisas que nos afetaram") e 2) estratégias indiretas do abuso psicológico (e.g., "Meu/minha parceiro/a me impediu de fazer atividades de que eu gostava"). Os itens originais, de acordo Porrúa-García et al. (2016), tratam apenas de casais heterossexuais, mas, na presente pesquisa, os itens foram adaptados para a inclusão de mulheres que sofrem abuso psicológico de outras mulheres em seus relacionamentos. O índice de consistência interna foi de .92 para a escala total. Foi usado o modelo Likert, que avalia a frequência com que as estratégias acontecem, usando como padrão de respostas entre 0 (nunca) e 4 (sempre).
Além disso, também foi utilizado um questionário sociodemográfico, a fim de traçar o perfil da amostra, com questões como: idade, status de relacionamento, tempo de relacionamento, renda familiar e escolaridade.
Procedimento
Inicialmente, o estudo foi submetido à aprovação do comitê de ética, logo obtido o parecer (Certificado de Apresentação para Apreciação Ética n.° 09344918.5.0000.5188). Após essa fase, realizou-se a tradução dos itens por dois psicólogos bilíngues do inglês para o português, seguido de um terceiro psicólogo bilíngue, que também possui conhecimentos da temática de violência, retraduzindo do português para o inglês, a fim de verificar se os itens manteriam o mesmo sentido (Borsa, Damásio, & Bandeira, 2012). Posteriormente, procedeu-se à validação semântica dos itens com a participação de 10 estudantes do Ensino Médio para averiguar a capacidade da compreensão verbal do instrumento. Essa parte consistia em ler em voz alta e explicar o que eles entenderam de cada item. Todos os itens se mostraram compreensíveis.
A participação foi iniciada após a concordância com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A coleta foi realizada através de redes sociais, de forma on-line. As respondentes foram informadas que a pesquisa seria voluntária e não receberiam nenhum retorno financeiro pela sua participação, e que foram tomados todos os cuidados para garantir o sigilo e a confidencialidade das informações individuais, preservando a identidade dos respondentes, conforme as recomendações da Resolução 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde.
Análise dos Dados
Os dados foram analisados pelos programas estatísticos ibm spss Statistics, versão 21 para estatísticas descritivas (frequências da caracterização da amostra) e por meio do software r Studio, versão 3.2.4, com pacote lavaan, para a análise fatorial exploratória (AFE) com correlações policóricas, por meio do método de extração Weighted Least Squares (WLS). A análise paralela foi feita através do pacote psych. Além disso, realizou-se uma correlação policórica entre os fatores da escala e o cálculo do coeficiente alfa de Cronbach.
Resultados
Primeiramente, efetuou-se a afe, da qual se extraíram os índices Kayser-Meyer-Olkin (KMO), que indicam a adequabilidade da amostra pela proporção da variância dos dados que pode ser considerada comum a todas as variáveis, apresentando resultados satisfatórios com KMO=.94. O teste de esfericidade de Bartlett apresentou-se significativo, o que comprovou a não existência de uma matriz identidade [x2 (171)=3772.8; p<.001] (Anunciação, 2018). As comunalidades, por sua vez, variaram entre h>.37 (item 1) e h<.82 (item 16), sendo consideradas satisfatórias. A análise paralela (Horn, 1965) evidenciou único fator geral, como pode ser visto na Figura 1.
Em seguida, os dois fatores teorizados foram fixados e explicaram 64% da variância total, indicando boa porcentagem de variância explicada para os fatores (Tinsley e Tinsley, 1987). Com isso, aceitou-se a perspectiva de duas dimensões, através do método de rotação oblimim. Apesar de alguns itens terem apresentado cargas fatoriais bastante próximas, resolveu-se adotar a maior carga para o fator (Nunnally, 1970). Os itens apresentados na Tabela 1 estão em ordem decrescente conforme o valor das cargas fatoriais.
Nota: Fator 1 (Estratégias diretas do abuso psicológico); Fator 2 (Estratégias indiretas do abuso psicológico); λ= carga fatorial.
Fonte: dados de pesquisa.
Alguns itens não saturaram no fator proposto por Porrúa-García et al. (2016); foram eles: os itens 5 e 9, que deveriam representar o segundo fator; e o item 14, que deveria saturar no primeiro fator. Apesar de o item 2 ter apresentado carga fatorial nos dois fatores, optou-se pelo fator proposto por Porrúa-García et al. (2016). Em seguida, buscou-se averiguar a consistência interna de cada fator. O primeiro fator, que diz respeito às Estratégias diretas do abuso psicológico (ED), apontou um alfa de Cronbach α=.92 e o segundo fator, Estratégias indiretas do abuso psicológico (EI), demonstrou um α =.89. O alfa geral da escala foi de .94, e a correlação de policórica entre os dois fatores apresentou r=.73 (p<.001).
Discussão Parcial
Em suma, o presente estudo corroborou a estrutura bifatorial da EAP-P, como proposto por Porrúa-García et al. (2016), no entanto alguns itens divergiram de seu fator original, apresentando cargas maiores que .40 em dois fatores. Nesse sentido, resolveu-se adotar o critério da carga mais alta para pertencer ao fator (Nunnally, 1970). Foram verificados também índices de precisão acima do recomendado. Não obstante, esse estudo remeteu-se apenas ao caráter exploratório, logo decidiu-se realizar o Estudo 2 para confirmar o modelo fatorial encontrado no Estudo l, a fim de reunir evidências de validade adicionais.
Estudo 2 - Estrutura confirmatória da EAP-P
Participantes
Participaram do estudo 380 mulheres com idades entre 18 e 60 anos (M=28.1; DP=8.1). A maioria (44.9%) está em algum relacionamento, como namoro; desse total, 27.6% estão com o atual parceiro de 1 a 5 anos. Das respondentes, 21,6% residem no estado da Paraíba, 86.8% declararam-se heterossexuais, 43.4% afirmaram ter o Ensino Superior incompleto, 33.9% declararam-se católicas e 39.7% afirmaram ter renda de 1 a 3 salários-mínimos.
Instrumento
Foi utilizado o instrumento do Estudo 1, a EAP-P, composta pelos 19 itens e distribuídos em dois fatores inicialmente explorados no Estudo 1.
Procedimento
Utilizaram-se os procedimentos de coleta do Estudo 1; os respondentes iniciaram após a concordância com o TCLE. A coleta foi realizada através de redes sociais, de forma on-line.
Análise dos Dados
Foram realizadas as estimações dos modelos através da análise fatorial confirmatória (AFC), por meio do software r Studio, versão 3.2.4, com pacote lavaan Lavaan (Rosseel, 2012). Nessa análise, foi empregado o método de estimação Maximum Likelihood (ML). Para avaliar a adequação do modelo, consideraram-se os seguintes indicadores de ajuste: X2/gl (aceitável<5), Comparative Fit Index (CFI>.90), Tucker Lewis Index (TLIX90), Root Mean Square Error Approximation (RMSEA<0.08; Byrne, 2010; Hair et al., 2009); Standardized Root Mean Square Residual (SRMR<0.10), os quais são indicativos de boa qualidade de ajuste; e o Critério de Akaike (AIC) que possibilita a comparação de modelos, sendo o menor valor o mais ajustado (Byrne, 2012; Kline, 2015).
Também foram verificadas a confiabilidade composta (CC) e a variância média extraída (VME). A cc recomendada é igual ou superior a .70; por sua vez, a VME indica a validade convergente de cada fator (o quanto explica o conjunto de itens), sendo adequado um valor igual ou superior a .50 (Hair et al., 2009; Gouveia & Soares, 2015). Por fim, avaliaram-se os parâmetros dos itens mediante a Teoria de Resposta ao Item (TRI), com o modelo Parcial Credit Model e a calibração a partir do método Maximum Likelihood, no software Wins-teps (Linacre, 2015). Com isso, obtiveram-se o nível de traço latente apresentado pelos sujeitos (theta), os índices de dificuldade dos itens (b), os índices de ajustes dos itens (Infit e Outfit), e as curvas das características de resposta.
Resultados
A AFC forneceu os indicadores de ajuste de três modelos da EAP-P: 1) modelo unifatorial; 2) modelo bifatorial e 3) modelo bifactor (Tabela 2). O modelo unidimensional apresentou os seguintes índices de ajuste: XVgl=6.06, CFI=.83, TLI=.81, RMSEA=.11; SRMR=.06 e AIC=478.95. O modelo bifatorial apresentou os seguintes índices de ajuste: gl=4.63, CFI= 0.88, TLI=.86, RMSEA= .09; SRMR=.06 e AIC=461.04. Todos os pesos de regressão foram acima de .40 e estatisticamente diferentes de zero a p<.001. Enfatiza-se que os erros não foram correlacionados. Ainda, observou-se uma correlação alta e positiva entre os dois fatores de .84. Por fim, o modelo bifactor apresentou os seguintes índices de ajuste: x2/gl=3-42, CFI=.93, TLI=.91, RMSEA=.08, SRMR=.04 e AIC=31i.79. Nota-se que, em relação aos modelos unifatorial e bifatorial, o modelo bifactor apresentou melhores índices de ajuste.
Quanto às cargas fatoriais apresentadas pelos itens, as cargas do modelo unifatorial e bifatorial são maiores que .40, o que dá base para a testagem do modelo bifactor, ou seja, os itens podem ser distribuídos das duas formas. Na Tabela 3, observase que, no modelo bifactor, essas cargas são mais elevadas no fator geral quando comparadas aos fatores específicos, o que denota maior variância do fator geral na estrutura proposta, isto é, existe um fator maior que comporta todos os itens assim como existe os fatores específicos.
Nota: Geral - Fator geral; (ed) - Estrategias diretas do abuso psicologico; (ei) - Estrategias indiretas do abuso psicologico.
Fonte: dados de pesquisa.
Em seguida, buscou-se também conhecer a confiabilidade composta da estrutura, que apontou para .90 para ambos os fatores: EI e ED, o que corrobora o parâmetro de consistência interna. As VMES desses fatores foram .51 e .50; respectivamente, o que aponta indícios de validade convergente. Além da confiabilidade composta, calculou-se o coeficiente interno na amostra para a comparação com o Estudo 1. Nesse sentido, ED de abuso psicológico obteve um alfa de Cronbach α =.92, e o segundo fator EI de abuso psicológico demonstrou um α=.89, ou seja, foram aproximados nas duas amostras.
Quanto à média das respostas das respondentes, foi observado que as ed apresentaram M=.92 e DP=.87, e o fator EI apresentou M=.57 e DP=.82. Esses padrões de respostas foram coerentes com Porrúa-García et al. (2016), o que indica que as respondentes tendem a sofrer algumas vezes com a violência psicológica, sendo um pouco maior a média na ed, ou seja, os parceiros usam mais das estratégias diretas para manipular a cognição, a emoção e até mesmo o comportamento delas.
Por fim, em relação aos parâmetros dos itens estimados via TRI, os resultados são apresentados na Tabela 4, na qual se verificam índices de dificuldade dos itens (b), índices de ajustes dos itens (Infit e Outfit), índices de correlação entre item e perfil de theta da amostra.
Nota: b (dificuldade); ep (Erro Padrao); Infit e Outfit (indices de ajuste); r
(Correlacao entre os itens); m (media); dp (Desvio-padrao).
Fonte: dados de pesquisa.
As análises foram realizadas com base no fator geral avaliado pela EAP-P, haja vista a importância da unidimensionalidade verificada previamente. Em relação aos índices de dificuldade, verifica-se pequena variação em torno da média ancorada em zero. Tais resultados evidenciam que nenhum item se mostrou muito fácil nem difícil de ser endossado pelas mulheres, o que indica também boa capacidade de avaliar a porção central do contínuo de abuso psicológico.
Em relação aos índices de ajuste Infit, apenas os itens 2 e 5 não se apresentaram adequados (entre .7 e 1.3), conforme Bond & Fox (2001), o que indica que a maioria dos itens apresenta ajustamento esperado pelo modelo. Quanto aos índices de Outfit, os itens 2, 5, 16 e 17 apresentam valores fora do intervalo estabelecido (entre .7 e 1.3), o que sugere padrões de resposta inesperados pelo modelo. Os índices de correlação entre item e nível de theta dos participantes apresentaram-se satisfatórios. O theta das participantes tendeu a endossar categoriais de resposta baixas (M=-1.66 e DP=1.42) e uma considerável amplitude dado pelos valores mínimo e máximo (-4.85 e 5.14).
Quanto à probabilidade de endosso de cada categoria de resposta dos itens da eap-p, a análise das curvas características indicou uma relação monatômica crescente entre os valores de theta e as categorias de resposta, ou seja, entre o nível de traço latente e o nível de dificuldade apresentado por cada uma das categorias de respostas.
Discussão Parcial
Os resultados encontrados no Estudo 2 confirmam a estrutura interna verificada no Estudo 1 e no Estudo Original (Garcia et al., 2016). Mas, verificou-se que a estrutura mais adequada foi o modelo bifactor, já que apresentou melhores índices de ajuste ao modelo, recomendado por Byrne (2010) e Hair et al. (2009). Apresentou também o menor valor no AIC, o que é indicado por Byrne (2012) e Kline (2015), ou seja, o modelo bifactor comprova que os dois fatores psicológicos (ED e EI) são susceptíveis a um fator geral, de modo que o indivíduo tem mais probabilidade de sofrer com as duas formas de abuso psicológico, e não apenas uma única, o que vai mudar é a frequência em que esses atos são cometidos.
Verifica-se também que os valores encontrados de confiabilidade composta, VME e alfas, estão de acordo com o indicado pela literatura (Hair et al., 2009; Gouveia & Soares, 2015; Pasquali, 2010). Além disso, por meio da TRI, observou-se que a maior parte dos itens mostrou ajuste adequado ao modelo e variabilidade de níveis dificuldade, com isso abrange uma ampla gama do traço latente das mulheres investigadas.
Discussão Final
O presente estudo objetivou aprofundar o conhecimento sobre a mensuração da violência contra o gênero feminino ou violência contra a mulher na microesfera do abuso psicológico. Para isso, buscou-se uma medida que delineasse um campo ainda pouco explorado em virtude de uma invisibilidade corpórea, entretanto visível diante das consequências de um relacionamento que maltrata a mulher, enquanto sujeito de direitos à dignidade humana e à integridade física.
Para esse fim, os parâmetros psicométricos da eap-p foram investigados. Muito embora já se tenha uma única medida validada com a temática de abuso psicológico (Avanci et al., 2005), ela é unifatorial, isto é, não distingue as duas formas de prática dos comportamentos sobre o abuso psicológico e não foi coletada em adultos, mas sim em adolescentes, tornando-se necessária uma escala que pudesse ser aplicada nas populações adultas. Tendo em vista os resultados encontrados, considera-se que o objetivo proposto foi alcançado, acrescentando ao modelo de Porrúa-García et al. (2016) uma nova forma de medir o abuso psicológico por meio de um fator geral, além de dois fatores como a estrutura original.
Dessa forma, a EAP-P possui 19 itens conforme a proposta inicial de Porrúa-García et al. (2016). Na estrutura de dois fatores, preservaram-se as nomenclaturas dadas pelos autores: Estratégias diretas do abuso psicológico (ED), que afetam o contexto da vítima, emoção, cognição, comportamentos, e as Estratégias indiretas do abuso psicológico (EI), as quais irão controlar abusivamente toda a vida da parceira, isolando-a, dentre outros. Convém destacar que os 19 itens eram distribuídos da seguinte maneira: 12 itens referentes às ed e 7 itens sobre as ei, de acordo com Porrúa-García et al. (2016). No entanto, no Estudo 1, verificou-se estrutura distribuída em dois fatores, as ED com 13 itens e as ei com 6 itens, porém 3 itens divergiram do fator original. Esses itens foram analisados por meio de suas correlações maiores que .40, os quais foram reposicionados para o fator que obtiveram carga satisfatória (Nunnally, 1970; Saraph et al., 1989) e analisados semanticamente de acordo com a definição dada por Porrúa-García et al. (2016) e Rodríguez-Carballeira et al. (2014).
O item 14 ("Meu/minha parceiro/a me deu várias advertências para que eu me comportasse da maneira que ele/a quer") apresenta uma certa clareza para se adequar à definição das EI. Os itens 9 ("Meu/minha parceiro/a escondeu informações importantes de mim") e 5 ("Meu/minha parceiro/a controlou nosso dinheiro e restringiu o máximo possível que eu o gastasse") também apresentaram uma clareza quanto a um controle direto. Segundo Rodríguez-Carballeira et al. (2014), os itens do abuso psicológico são dificilmente tratados separadamente. E, na maioria das vezes, essas estratégias podem ser confundidas como uma expressão do amor obsessivo, desesperado (Hernández & Aragón, 2006).
No Estudo 2, foi analisada a dimensionalidade da escala por meio da AFC, com a utilização do estimador ML; evidenciou-se a adequação ao fator geral e dois específicos, sugeriu que uma quantidade muito elevada da variância nos escores possa ser atribuída ao fator geral, apresentando melhor ajuste (Byrne, 2012; Kline, 2015). Com isso, há evidências de que as dimensões possam ser avaliadas separadamente averiguando em que tipo de abuso a vítima se encontra, como também podem ser avaliadas em uma única dimensão, isto é, a vítima pode sofrer com as duas formas de abuso (ED e EI) simultaneamente. Essa explicação é dada pela própria definição do que seja a microesfera do abuso psicológico, em que é possível observar causas que prejudicam tanto a cognição, afetos, quanto podem controlar a parceira por meio desse abuso.
Chama-se atenção para a consistência interna que foi acima de .80, para ambos os estudos, tanto para a ED (α =.92) quanto para a EI (α=.89), ou seja, acima de .70, ponto de corte sugerido na literatura como satisfatório (Nunnally, 1970; Pasquali, 2010). Tais coeficientes foram similares à escala desenvolvida e validada por Porrúa-García et al. (2016), cujo índice de consistência interna foi de .92 para a escala total. Destaca-se, ainda, que foram reunidas evidências de validade convergente da EAP-P, sendo encontrado através da variância média extraída de cada fator, tendo em vista que a literatura aponta como ponto de corte um valor de VME igual ou superior a .50 como evidência adequada desse parâmetro (Hair et al., 2009; Gouveia & Soares, 2015). Por meio da TRI, foi possível observar aspectos positivos nos itens, tais como os índices de dificuldade variados e os índices de adequação do item ao modelo (infit e outfit) que, em grande parte dos itens, se adequam ao padrão de resposta esperado, com exceção dos itens 2, 5, 16 e 17. Entretanto, enfatiza-se a sensibilidade desses índices em relação a valores extremos.
Embora tais achados sejam relevantes, torna-se necessário elencar algumas limitações do presente estudo. A primeira é que as amostras foram do tipo não probabilísticas e coletadas de forma on-line, portanto deve-se ponderar as generalizações dos resultados. Em segundo lugar, em ambos os estudos, grande parte das amostras possuía Ensino Superior incompleto, com rendas características prováveis de classe média e direcio-nada a universitários. Por fim, por se tratar de um construto relacionado à violência entre parceiros, a desejabilidade social (Visschers, Jaspaert, & Vervaeke, 2015) ou mesmo a vergonha (Lawrence & Taft, 2013) podem ter influenciado as respostas. Tendo em vista tais limitações, sugerem-se dire-cionamentos para futuros estudos que possam romper com elas, como o uso de amostragem probabilística e coleta de dados presencial, para melhor controlar variáveis influenciadoras das respostas. Ainda, torna-se necessário verificar a estabilidade temporal da escala e a invariância do modelo fatorial de acordo com variáveis sociode-mográficas. Apesar de não ter havido equiparação quanto à orientação sexual das mulheres, essa escala também foi aplicada em mulheres homoafetivas, o que oferece nova contribuição à escala original de Porrúa-García et al. (2016), que foi aplicada apenas com pessoas heterossexuais. Estudos posteriores podem ampliar a amostra de mulheres homossexuais a fim de verificar o fenómeno nessa amostra especificamente.
Todavia, destaca-se a relevância do instrumento transcultural validado para o Brasil em sua versão curta e de fácil aplicação, cujos resultados ofereceram evidências de uma medida válida e precisa capaz de avaliar tal violência. A aplicação da medida pode contribuir para avaliar o abuso experimentado nos relacionamentos em múltiplos contextos, como universidades, organizações e serviços de saúde, permitindo que profissionais da área de saúde (psicólogos) possam detectar e avaliar quais medidas podem ser aplicadas de acordo com o que a vítima vivenciou (Porrúa-García et al., 2016). Em longo prazo, o instrumento poderá guiar profissionais para a construção de intervenções eficazes para a minimização desse problema.
Por fim, enfatiza-se a necessidade de pesquisas com o objetivo de estabelecer normas de interpretação dos escores brutos da EAP-P, sugerindo-se o uso da TRI, mediante o procedimento de Mapa de Itens-Pessoas. Além disso, tornam-se necessários estudos acerca do funcionamento diferencial dos itens referentes a subgrupos femininos e à avaliação do desempenho do instrumento com amostras de mulheres que sofrem abuso psicológico.
Com base nos resultados, a EAP-P pode suprir a necessidade de uma medida para basear estudos de compreensão de abuso psicológico enfrentado por mulheres adultas. Por meio desse instrumento, o profissional ou o pesquisador poderá julgar melhor o nível de dano psicológico sofrido pela vítima e, inclusive, estabelecer relações ou predições a partir de diferentes construtos e variáveis importantes como: isolamento, autoestima, depressão e estresse pós-traumático.