Introdução
Para dissertar sobre o conceito de Democracia Cultural e avançar nas discussões respeitantes às políticas públicas culturais, gostaria de partir de dois pontos teóricos distintos, porém aproximáveis. O primeiro é uma reflexão a partir da assertiva de Lopes (2007, 59), a qual afirma que “falar de políticas culturais públicas é falar de condições de liberdade e de cidadania em sociedades democráticas”. As considerações a partir da afirmação do autor terão como pano de fundo a aceitação de um i) contexto democrático contemporâneo de pluralidade cultural e ii) um projeto político de radicalização democrática que evidencia lutas por atribuição de sentidos a noções como “liberdade”, “cidadania”, “democracia”, “cultura” e até mesmo “Estado”.
Para essa problematização, recorrerei ao segundo ponto de partida teórico, as contribuições da Democracia Radical e Plural em Laclau e Mouffe. Buscarei explorar as aberturas teóricas, e seus possíveis desdobramentos sobre as práticas políticas concretas, que surgem a partir da distinção referente aos planos ontológico e ôntico expressos, respectivamente, pelas dimensões do “político” e da “política”.
O objetivo deste ensaio consiste na tentativa de estabelecer alguns diálogos teóricos entre o conceito de Democracia Cultural, presente em Lopes (2007), Botelho (2007) e Marques (2015), com as perspectivas da Democracia Radical e Plural (Laclau e Mouffe 2015), e problematizar a ação política junto às instituições estatais e o papel do Estado na condução de políticas públicas culturais, bem como defender a necessidade de mudanças paradigmáticas na formatação de tais políticas. Nesse esforço, ao voltar à atenção também para o Estado e suas instituições, problematizarei a necessidade de uma efetiva participação política por meio de um envolvimento crítico (Mouffe 2014) dos sujeitos e da coletividade junto às instituições.
Com relação a essas noções, percebo a efetiva participação política como a participação social que alcança, de fato, os momentos e os espaços de decisão política, isto é, as decisões que impactam direta ou indiretamente o processo de planejamento e execuções das ações das instituições estatais. Já por envolvimento crítico, de acordo com a definição de Mouffe (2014, 17), compreendo uma estratégia de orientação e ação política que “consiste em uma diversidade de ações em uma multiplicidade de âmbitos institucionais, com o objetivo de construir uma hegemonia diferente”.2 Parto, portanto, de uma compreensão relacional da política democrática -elemento societal e elemento estatal-, e aceito que as relações políticas são sempre instáveis e que a democracia é uma constante construção marcada por disputas de sentidos, bem como compreendo as instituições como espaço de luta política e não como simples momento de cooptação ou de uma ação política limitada diante da estrutura.
Além desta introdução, o presente trabalho é formado por outras três seções. Na primeira, apresentarei o núcleo teórico com o qual dialogarei ao longo do trabalho. Na segunda seção, refletirei sobre a relação entre poder, cultura e políticas públicas a partir de possíveis contribuições da Democracia Radical e Plural. Na sequência, analisarei a distinção entre as noções de Democratização da Cultura e Democracia Cultural. Por fim, apresentarei alguns princípios condizentes com um projeto de política pública cultural fundamentado na perspectiva da Democracia Cultural com a qual tenho trabalhado. Trata-se de um trabalho de caráter teórico-normativo e ensaístico, cujo principal instrumental metodológico é a revisão bibliográfica.
1. O momento do “político” e da “política” como o lócus das lutas políticas: para pensar com a democracia radical e plural
O destaque à distinção entre “o político”, entendido como o plano ontológico das relações humanas, e “a política”, como plano ôntico dessas relações, é um importante ponto de partida filosófico-político, pois permite vislumbrar diferentes perspectivas de compreensão das relações sociais e seus reflexos no discurso institucional, bem como possibilita o entendimento de outros elementos presentes na teoria da Democracia Radical e Plural (não só dessa teoria!).
Nessa distinção de planos, como destaca Mouffe (2012, 114), “o político” (lo político; the political) é entendido como “a dimensão do antagonismo que é inerente às relações humanas, antagonismo que pode adotar muitas formas e surgir em distintos tipos de relações sociais”. Já “a política” (la política, politics) é concebida como “o conjunto de práticas, discursos e instituições que tratam de estabelecer certa ordem e organizar a coexistência humana em condições que são sempre potencialmente conflitivas porque se veem afetadas pela dimensão ‘do político’”.3
A “política”, esse conjunto das relações políticas concretas, é afetada pela dimensão “do político”, porque na perspectiva apresentada por Mouffe (2012), ela traz em sua objetualidade no mundo, a instabilidade gerada por uma ontologia radicalmente antagônica, por isso, sempre será “potencialmente conflitiva”. Como sintetiza Mendonça (2014, 138), trata-se de uma “eterna contaminação do plano ôntico pelo ontológico”, o que evidencia uma instabilidade constante.
Esse potencial conflito se percebe nas constantes disputas discursivas pelo poder na tentativa de tornar hegemônicas determinadas significações dos fenômenos sociais, cujo objetivo, para todos os fins, consiste no estabelecimento de fundamentos ao social como forma de imprimir certa coerência, uma ideia de transparência, um sentido de autorreferência ao social. Em outras palavras, os discursos almejam sedimentar um conjunto de sentidos como fundamento final do social, uma hegemonia.4
Entendo que, para lograr êxito, faz-se necessário que o discurso alcance (e modifique) a estrutura. Contudo, por mais bem sucedido que seja nessa empreitada, isto é, hegemonizar-se, nenhum discurso conseguirá totalizar o social, pois não articulará em torno de si os elementos que lhe são antagônicos; sempre haverá, portanto, elementos excluídos em articulação discursiva contra hegemônica.
Esse movimento teórico evidencia a impossibilidade de autorreferenciação do social, isto é, a impossibilidade de estabelecimento de um fundamento final ao social como uma unidade autorreferenciada (Laclau 1993). É a marca radical da crítica pós-fundacional presente na perspectiva da Democracia Radical e Plural.
Elementar à crítica pós-fundacionalista, como destaca Marchart (2009), é sua distinção respeitante às concepções anti-fundacionalistas, as quais destacam uma “negação final” da noção de fundamento, isto é, a simples invalidação de toda possibilidade de estabelecimento de fundamentos à estrutura. Contrariamente a essa leitura, a crítica pós-fundacionalista não tem por objetivo uma completa negação da ideia de fundamento, mas “debilitar seu status ontológico” (Marchart 2009, 15), ao colocar em questão a possibilidade de determinação de um fundamento último ao social:
O debilitamento ontológico do fundamento não conduz ao suposto da ausência total de todos os fundamentos, mas sim a sustentar a impossibilidade de um fundamento último, o que é logo inteiramente distinto, pois implica a crescente consciência, por um lado, da contingência e, por outro, do político como o momento de um fundar parcial e, em definitivo, sempre falido. (Marchart 2009, 15)
A crítica pós-fundacionalista, portanto, não nega a ideia de fundamento da estrutura, mas busca subverter as premissas das perspectivas fundacionalistas sem cair na mera inversão da noção de fundamento, como ocorre na crítica anti-fundacionalista.5 A sociedade, nesses termos, é uma impossibilidade, pois as fixações de sentidos ao social são sempre fixações parciais, resultantes de construções hegemônicas (Laclau e Mouffe 2015; Laclau 1993 e 2014; Marchart 2009; Mouffe 1996).
Esse esforço está diretamente relacionado à capacidade do discurso de lograr êxito no processo de fundamentação do social,6 que será, vale frisar, sempre parcialmente bem-sucedido, devido ao limite do processo de significação. Nesse esforço, significantes como “democracia”, “cidadania”, “cultura” ou mesmo “Estado” passam a ser objetos de lutas por significação. É nesse sentido que é possível compreender tais elementos como significantes em disputas, isto é, na qualidade de “espaços universais” que podem ser preenchidos discursivamente por diferentes particularidades, por diferentes significados que visam imprimir sentidos de universalidade (Laclau e Mouffe 2015; Laclau 2011).
É a partir dessas questões que se encontra a problematização que fornece o ponto central do presente trabalho: entendo que a busca pela sedimentação discursiva, inevitavelmente, perpassa as disputas pelos significados dos papéis e da ação do Estado e suas instituições. Isso porque, a cristalização de determinados significados pode colocar em questão a possibilidade de constituição de identidades, cujos conteúdos não estão presentes no discurso institucional. Por exemplo, um conceito limitado de cultura -essencialista, a-histórico, elitista, hierarquizante etc.- ou mesmo um conceito restrito de participação -a participação que não alcança os momentos e espaços de decisão política- limitam a constituição plena de diferentes identidades políticas por não estarem contempladas pelo discurso hegemônico, que as nega.
Nesse caso, tais disputas pelos significados podem ser compreendidas pela ideia de antagonismo, tal qual apresentada por Laclau e Mouffe (2015), ou seja, o limite de toda objetividade, a impossibilidade de constituição plena devido à presença do “Outro”, que limita tal possibilidade (Laclau e Mouffe 2015; Laclau 2014). Contudo, a relação com o Outro no processo de constituição identitária não necessariamente ocorrerá de forma absoluta.
Subjacente a essa compreensão está em questão a natureza excludente do discurso. Na construção da noção de antagonismo, em Laclau e Mouffe (2015), fica evidente uma noção de exterior constitutivo radical -o limite de um discurso, seu exterior, é a negação, e essa negação permite sua identificação como tal, portanto limitado, o que indica uma falta já desde o início, por isso um “exterior que constitui”. Porém, nem toda relação diferencial de um processo de identificação, ainda que marcada por uma lógica conflitiva, será necessariamente antagônica em seu sentido radical.7
Nessa segunda possibilidade, o exterior constitutivo deixa de ser percebido de forma absoluta na constituição da fronteira entre um “nós” e um “eles”. Judith Butler ajuda a pensar essa questão:
Paradoxalmente, a indagação destes tipos de supressões e exclusões, mediante as quais opera a construção do sujeito, já não é construtivismo nem tampouco essencialismo. Porque há um âmbito “exterior” que constrói o discurso, mas não se trata de um “exterior” absoluto, uma “externalidade” ontológica que exceda ou se oponha às fronteiras do discurso; como “exterior” constitutivo, é aquele que só pode conceber-se -quando pode conceber-se- em relação com esse discurso, em suas margens e formando seus limites sutis. (2002, 26-27)
Com a aceitação de um exterior constitutivo não absoluto, as relações antagônicas podem ser percebidas de forma diferente, o que permite a identificação de traços positivos na constituição das identidades, isto é, o compartilhamento de alguns sentidos entre os discursos em disputa. Com isso, ocorre um debilitamento ontológico da categoria antagonismo que permite relativizar o “momento do conflito” e pensar em termos relacionais envolvendo, simultaneamente, conflito e cooperação.8 É a partir dessas possibilidades que penso, com Mouffe (2014), o envolvimento crítico com as instituições e as possibilidades de transformações políticas.
Uma questão que se pode colocar, a partir da Democracia Radical e Plural, é se tal disputa pode ou não levar a um processo de mudança radical da estrutura a partir de um movimento que, para todos os fins, envolve a própria estrutura. Estou ciente de que esse movimento não é um consenso entre estudiosos laclaunianos. Pode-se interpretar que tal movimento, como aqui colocado em termos do envolvimento crítico com as instituições estatais, representaria uma ação “disruptiva limitada”, pois o resultado seriam modificações que não colocariam em questão a capacidade de ressignificação da estrutura, não representariam um “algo novo”, “estranho” à estrutura a ponto de evidenciar o limite de significação dela. Dessa forma, não há deslocamento, entendido como momento em que há a interrupção do curso “normal” da estrutura por forças que lhe são estranhas, sem medida comum com o seu interior (Laclau 1993);9 o momento em que, como destaca Mendonça (2012, 214), “a estrutura não consegue processar, semantizar algo novo, algo que, portanto, lhe foge à significação (...); uma experiência traumática que desajusta a estrutura, a qual precisa ser recomposta a partir de novos processos de significação”.
Essa disrupção limitada, em uma leitura radicalmente fiel à noção de deslocamento em Laclau, evidenciaria apenas as contradições próprias da estrutura. Nessa leitura, qualquer modificação estrutural que possa ocorrer, mesmo que ofereça novas oportunidades políticas para grupos sociais distintos, seria resultado de antagonismos sociais levados a cabo por uma ação política operada pela própria lógica estrutural, pois esses espaços, para todos os fins, são espaços estatais de participação, e por mais permeáveis que sejam à participação social e à efetiva participação política, dificilmente levariam a uma mudança radical ao ponto de “desestruturar a estrutura”.
Todavia, penso que a teoria tenha mais a contribuir empiricamente se pensarmos que será a capacidade de articulação e expansão da cadeia de equivalência contra hegemônica, bem como a multiplicação das experiências e momentos de antagonismos, incluindo as oportunidades políticas que podem emergir das contradições estruturais, que poderá ou não levar a cabo um processo de modificação estrutural. Ou seja, trazendo a ideia de antagonismo para o centro da discussão, mas sem percebê-lo de forma radicalmente excludente. Os objetivos das reflexões que seguem são uma radical transformação de noções fundamentais às políticas públicas culturais e dos espaços de poder, isto é, espaços estatais de participação, com vistas à mudança mais radical na política democrática pensada de forma mais ampla.
Partindo dessa compreensão/possibilidade e tendo como pano de fundo um contexto democrático marcado pela pluralidade cultural e a radical necessidade de se questionar a hierarquização dos planos culturais e seus processos de marginalização e criminalização cultural -que vai contra uma hegemonia ainda estável-, o que buscarei trabalhar nas seções seguintes é tanto a necessidade de se pensar a ação política considerando os espaços tradicionais de poder e, consequentemente, a própria estrutura, como pensar normativamente em ações estatais, especificamente as políticas públicas, tendo como projeto político a noção de Democracia Cultural, a qual busca, a partir de nova concepção pluralista de cultura, (re)pensar a participação e as próprias políticas públicas culturais.
2. Poder, pluralidade e reflexividade
A ausência de um fundamento último do social, analisado anteriormente a partir da crítica pós-fundacional, indica a inexistência de um centro de poder na sociedade. Como destaca Lefort (1988, 179), a época moderna, marcada pela desestruturação de uma estrutura secular -o Antigo Regime europeu-, trouxe consigo a “experiência de dissolução dos marcadores finais de certeza”. Essa experiência radical evidencia um movimento de desfundamentação do social: não tendo mais a figura central, o fundamento estável da sociedade, o centro de poder que se irradia pela sociedade, isto é o “sistema monárquico”, impera no social a contingência, a instabilidade, a quebra de certezas secularmente sedimentadas.
Isso quer dizer que não há mais fundamentos? Conforme visto na seção anterior, a resposta é “não”. Contudo, cumpre destacar os apontamentos de Marchart (2009) sobre esse movimento de Lefort, para que se frise que não se trata de uma simples afirmação de que na época atual tudo é incerto e que, simplesmente, vivemos em sociedades de riscos e em tempos de liquidez radical:
Nossa certeza mesmo no tocante à dissolução da certeza indica que as raízes do fenômeno residem num nível ontológico mais profundo que supõe uma interpretação baseada no senso comum. Por conseguinte, não devemos confundir una noção débil de incerteza com a noção ontologicamente forte de contingência que diz respeito a toda identidade social. E, em segundo lugar, Lefort é um pós-fundacionalista. Tanto a contingência como o esvaziamento do lugar do poder indicam que a sociedade não está construída sobre um fundamento estável: denotam a ausência de necessidade social ou histórica, a ausência de um fundamento positivo da sociedade. O que também apontam, contudo, é que a dimensão do fundamento não desaparece, mas permanece como ausência. (Marchart 2009, 118-119, grifos do autor)
Ainda nas trilhas de Lefort (1988, 179), a dissolução dos marcadores de certeza inaugura uma “aventura”. Uma “aventura” democrática que já não conta com o Estado Monarca como centro fundante do poder. Isso não significa, como bem destaca Marchart (2009), que o poder arbitrário foi finalmente excluído do jogo político, ou tampouco que o poder fora eliminado pelas/nas democracias: o poder continua presente, mas como algo vazio de conteúdo.
Todavia, o poder, ao contrário do pensamento de Lefort, não deve ser percebido como uma posição estrutural, que passou a ficar vazio com a desestruturação dos antigos regimes. Por ser uma posição estrutural, provisoriamente esvaziada de conteúdo, significa que o poder passa a ser compreendido a partir de um movimento de “entificação do ser”, isto é, um exercício de atribuição de características do ente ao Ser, ao plano ontológico. Ao contrário, o poder deve ser entendido como uma função, uma representação do vazio, uma função ontológica; o poder, como já destacado por Weber, é sociologicamente amorfo: o lugar do poder não está vazio, o poder é vazio, não possuí uma essência. O poder, portanto, faz parte da constituição do social e não pode ser eliminado.
Se, por um lado, não se trata de um estado puro de poder, como no estado de natureza hobbesiano, por outro, também se distancia de um “estado racional” em que, por meio da ação comunicativa, é possível chegar a amplos consensos no tecido social.
Pensar as relações de poder pelas perspectivas das democracias radicais, como em Laclau e Mouffe, significa também um posicionamento contrário aos preceitos teóricos racionalistas que advogam construções de amplos consensos. Como destaca Mouffe (2012, 123), ao contrário dessas perspectivas, não se pode considerar que “as relações de poder e seu papel constitutivo na sociedade tenham sido eliminados, e os conflitos que acarretam tenham sido reduzidos a simples competição de interesses possivelmente harmonizada por meio do diálogo”.
Como não poderia deixar de ser, as relações de poder também marcam o fenômeno cultural -aqui entendido como um fenômeno social, logo, indistinto da lógica política, a lógica que institui o social. É nesse sentido que Costa (1997) destaca que:
[…] as políticas culturais contemporâneas são no essencial políticas públicas (estatais ou não -é outra questão a debater), geradas em contextos de reflexividade social institucionalizada e objecto de controvérsia explícita no espaço público. Abreviando, não só as que são adoptadas ou concretizadas a cada momento que constituem o campo das políticas culturais. Elas são criadas ou extintas, amplificadas ou restringidas, continuadas ou modificadas consoante tomadas de posição a este respeito que se vão sucedendo, tomadas de posição essas sempre controversas no plano cultural e no plano político. (Costa 1997, 2, grifos meus)
As políticas culturais são objeto de controvérsia justamente por estarem em contextos de reflexividade social. Percebo a reflexividade social como um “dar-se conta” inerente ao contexto contemporâneo democrático, marcado pela pluralidade no tecido social, por relações de poder, pela contingência radical, por processos de fragmentação indenitárias, hibridizações, enfim, pela emergência de novas subjetividades políticas e culturais que desafiam constantemente os sujeitos e, inevitavelmente, as instituições.
Esse contexto traz consigo demandas sociais que nem sempre estão inscritas no discurso institucional. Da tensão com esse discurso, surge um movimento de reflexividade institucional crítica, um (re)pensar sobre os espaços institucionais, os espaços tradicionais de poder e as relações de poder presentes no tecido social. Nesse movimento, a inter-relação entre movimentos sociais e estrutura estatal passa a ser concebida a partir de um caráter relacional: nem um antagonismo radical, nem a possibilidade de consensos sem exclusão.
Aceitando esse caráter radicalmente relacional da política democrática, é possível perceber os espaços institucionais como espaços de luta por transformação social e, assim, fazer da ação política uma ação orientada para o deslocamento estrutural -o sucesso dessa ação, como discutido anteriormente, dependerá da capacidade de articulação e expansão da cadeia de equivalência contra hegemônica.
Trata-se de um exercício reflexivo estritamente político, tanto por parte do próprio Estado, quanto pelas identidades políticas que reivindicam suas demandas a este. O discurso institucional, para manter sua posição estrutural-hegemônica, busca considerar como válidas o máximo possível das diferenças/particularidades a partir de um movimento de absorção. Ou seja, por meio de uma lógica retórica neoliberal de inclusão democrática, o discurso institucional restringe a ideia de “inclusão” a um movimento de absorção das diferenças/particularidades ao seu próprio discurso, quase sempre a partir da criação de espaços específicos para uma “vazão controlada” dessas diferenças/particularidades.
Nota-se, contudo, que esse esforço de inclusão/absorção será sempre parcialmente bem-sucedido, pois, como discutido nas seções anteriores, não há possibilidades de uma estrutura expandir ad infinitum sua cadeia de equivalência sem que haja conflitos entre os elementos em articulação. Ou seja, a estrutura hegemônica não consegue incluir toda espécie de excluídos, não consegue incluir em seu discurso elementos que lhe são estranhos, antagônicos: sempre haverá excluídos e, portanto, as relações de poder sempre se farão presentes.
Com relação às identidades políticas reivindicantes, que buscam uma mudança político-social-econômica radical, essa reflexividade institucional crítica ganha mais força política se não se limitar à crítica de que a ação política voltada para os espaços tradicionais de poder sempre representará um movimento de “alienação/cooptação” de demandas. O que busco destacar, vale frisar, é o (necessário) resgate do sentido gramsciano de guerra de posições, que tem como objetivo as possibilidades de um deslocamento democrático.
Todavia, para que haja concordância com esse argumento, é necessário tomar a (inter)ação política entre sujeitos (individuais ou coletivos) e o discurso institucional sobre outra forma de pensar o envolvimento político. Nesse sentido, já não é possível pensar a participação nos espaços institucionais por meio de deliberações e criações de consensos. Faz-se necessário refletir esse envolvimento tendo como horizonte uma participação mais profunda a partir de um ativismo que esteja envolvido criticamente com as estruturas, isto é, uma participação social nos momentos e nos espaços de decisão política e que perceba as instituições como espaços de poder, espaços de luta.
Retomando a assertiva de Lopes (2007, 59), a qual afirma que “falar de políticas culturais públicas é falar de condições de liberdade e de cidadania em sociedades democráticas”, é possível, agora, problematizar acrescentando que as condições destacadas pelo autor dependerão da capacidade de deslocamento democrático -um substituto para a limitada noção de inclusão democrática. Como buscarei dissertar de forma mais objetiva na seção seguinte, a possibilidade de um deslocamento também pode ser considerada por meio de uma efetiva participação política mobilizada sobre os espaços tradicionais de poder (não apenas fora desses espaços, nota-se). Não estou a argumentar, com isso, sobre as bases de uma simples participação, condicionada às velhas estruturas, mas uma participação com o intuito de pensar em novas estruturas, desestruturando-as e pensando-as sobre outras bases, com o fim de radicalizar a política democrática: o objeto é uma democracia cultural radical.
2.1. Da inclusão ao deslocamento democrático
Como visto na seção anterior, para pensar em um pluralismo democrático radical, a ideia de inclusão democrática deve ser posta em questão. Faz-se necessária uma reflexão para além das ações de inclusão democrática, mais presentes como jargão político do discurso democrático hegemônico neoliberal do que propriamente um projeto político transformador, e caminhar no sentido de um deslocamento democrático por meio de um envolvimento reflexivo crítico10 de ativistas e movimentos com os espaços tradicionais de poder e com a ideia de efetiva participação política como meio para isso.
O limite da ideia de inclusão democrática, no discurso hegemônico, evidencia-se sob duas encenações. A primeira, quando a inclusão é perspectivada a partir de sua dimensão política, comumente se resume, como visto anteriormente, à incorporação/absorção das demandas sociais à ordem estabelecida. Os objetivos desse processo, ao fim e ao cabo, resumem-se em manter a estrutura hegemônica. Já a segunda encenação ocorre quando a inclusão é concebida a partir de sua dimensão econômica. Nesse caso, limita-se ao discurso de igualdade de oportunidades (Burity 2006; Laclau 2013).
Para levar à diante a pluralidade como conditio sine qua non da política democrática, é necessário extrapolar a ideia neoliberal de inclusão democrática e visar um processo de “implosão” do sistema democrático, um processo de deslocamento democrático a partir de seus próprios princípios ético-políticos de “liberdade” e “igualdade”, desafiando as estruturas de poder existentes e expondo os limites do sistema democrático como possibilidade de consensos sem exclusão e, portanto, sua capacidade inclusiva sempre falha.11
No que concerne aos estudos culturais, esse movimento coloca em questão a leitura ingênua da pluralidade cultural do discurso hegemônico, a qual tende a buscar uma harmonia na pluralidade e, com isso, obscurecer as fronteiras antagônicas próprias do pluralismo democrático (Marques 2016). Como destaca Burity (2006), ao buscar uma política “inclusiva” por meio de gestões de políticas públicas que se limitam a um simples “elogio da diversidade” e à harmonização das diferenças, a “inclusão” do discurso democrático hegemônico acaba despolitizando as demandas sociais, apenas “incorporando-as” à ordem hegemonicamente estabelecida.
É nesse ponto que devo destacar, novamente, a necessidade de um movimento de reflexividade institucional crítica para se pensar em estratégias radicalmente democráticas, isso porque:
Se uma formação social, como totalidade precária, é resultado de práticas articulatórias, ou Discurso nos termos de Laclau e Mouffe, a instituição do social resulta de uma contingência e da exclusão de opções possíveis. Ideologia toma aqui o sentido não de uma falsa consciência, mas um efeito que oculta a natureza contingente de uma ordem social e desloca os processos decisórios do campo político para um campo “neutro” de administração dos conflitos. (Mutzenberg 2006, 88)
Nesse sentido, o puro reconhecimento da diversidade, ou o simples “elogio da diversidade”, como ocorre na noção de Democratização da Cultura, não deixa de ser uma intenção da administração democrática de conflitos. A Democratização da Cultura, ao reconhecer a pluralidade, tomada, contudo, em sua positividade e não em seus processos de circularidades e hibridizações culturais, acaba designando espaços específicos para expressões culturais tomadas a partir de suas particularidades, num movimento essencialista e a-histórico sobre a própria noção de cultura e do próprio espectador, como um sujeito limitado aos gostos específicos. Essa ação visa ao apaziguamento dos conflitos, solucionando demandas por cultura a partir de uma ação particular, focal.
Contrariamente a isso, como bem observa Mutzenberg (2006, 89), é preciso pensar em outro tipo de inclusão, numa forma que remeta às “mudanças numa ordem hegemônica. Essa segunda forma de inclusão se confronta com a ordem estabelecida à medida que não cabe naquilo que está instituído”. É nesse sentido que o deslocamento democrático deve ser pensado, não como inclusão, mas como a construção de algo novo, sempre ciente, como destaca Mutzenberg (2006, 88), de que “a constituição de uma pretensa ordem social configura-se pela inclusão de determinadas alternativas e a exclusão de outras”: não há, portanto, democracia sem exclusão.
Tal argumento evidencia tanto a necessidade de ampliar os espaços democráticos e as possibilidades de se alcançar uma efetiva participação política, permitindo democratizar as estruturas democráticas tradicionais de poder, quanto à necessária liberdade da vazão da pluralidade no espaço social, mesmo que essa pluralidade seja contrária àquilo de que não faz parte. Respeitante aos estudos culturais, esse movimento contribui para evitar (e lutar contra) processos de marginalização e criminalização cultural no espaço social levados a cabo por uma desadequada concepção de modelo hierarquizado de cultura, próprio do conceito de Democratização da Cultura (Lopes 2007; Marques 2015). É hora de (re)pensar a ação política direcionada às instituições e aos papéis do Estado e ter como objetivo um projeto político de Democracia Cultural.
3. Críticas à democratização da cultura
Indubitavelmente a política cultural não é tema novo nas discussões acadêmicas, como também não o é no campo político institucional e no mecenato privado. Teixeira Coelho (1997, 8) argumenta que a política cultural “é tão antiga quanto o primeiro espetáculo de teatro para o qual foi necessário obter uma autorização prévia, contratar atores ou cobrar pelo ingresso”. Aproximando a questão dos dias atuais, pode-se argumentar, devido às suas influências sobre outros países, que “a política cultural tem no mínimo a idade das iniciativas do escritor e militante André Malraux, no final dos anos 50 deste século (…) das quais resultou a criação do ministério da cultura na França” (Coelho 1997, 8). Na França, o objetivo do Ministério dos Assuntos Culturais era:
[…] tornar acessíveis as obras capitais da humanidade e, em primeiro lugar, as da França, ao maior número possível de franceses; de proporcionar a mais vasta audiência ao nosso patrimônio cultural e de favorecer a criação das obras de arte e de espírito que o enriquecem. (Caune apudLopes 2007, 76, grifos meus)
Surgia, assim, uma das primeiras iniciativas institucionalizadas de políticas culturais e modelo para muitos países. Entre seus objetivos, registra a democratização do acesso da população aos espaços consagrados das artes. Mas não de quaisquer artes; buscava-se ampliar o acesso da população à “alta cultura”.
Democratizar o acesso ao “grande patrimônio” é uma das características centrais da Democratização da Cultura. Apesar de ser cada vez mais questionado, o conceito de Democratização da Cultura ainda é comum na formatação de políticas públicas culturais. Seu foco, como destaca Botelho (2007, 172), é “tomar a cultura erudita como o paradigma que ilumina a reiterada preocupação em avaliar as desigualdades de acesso à Cultura, aqui com letra maiúscula”.
Nos termos da Democratização da Cultura, portanto, uma política cultural, ou melhor, um projeto de política cultural, tem por objetivo a superação dos desníveis culturais entre os segmentos sociais a partir de um movimento simplista e paternalista de democratização do acesso do grande público ao que é reconhecido e legitimado como “grande patrimônio”, quase sempre atrelado à “cultura erudita”, partindo do pressuposto de que:
[...] existe um legado que tem valor universal e, sem maiores discussões, deveria ser assimilado como repertório de qualquer pessoa “culta”, em oposição às práticas consideradas “locais”, vistas como expressões de saberes particulares, em princípio mais limitados do que os herdados da alta Cultura. (Botelho 2007, 172)
Tal visão resulta em políticas públicas culturais de cariz conservador, elitista e paternalista de democratização dos acessos aos espaços e aos modi culturais hegemonicamente estabelecidos, pois definem que a “cultura socialmente legitimada é aquela que deve ser difundida […] e que basta haver o encontro (mágico) entre a obra (erudita) e o público (indiferenciado) para que este seja por ela conquistado” (Botelho 2007, 172).
Avançando um pouco mais sobre a caracterização da noção de Democratização da Cultura, Lopes (2007) apresenta seis dimensões esclarecedoras, a saber:
Concepção descendente da transmissão cultural, próxima dos dispositivos da difusão, o que implica, necessariamente, que se parta do património cultural e/ou da criação artística, pertencente a uma minoria de especialistas altamente consagrados e nobilitados, em ambos os casos levando o espírito dos grandes templos culturais às mais anódinas e descentralizadas casas de cultura;
Concepção paternalista da política cultural, assente, antes de mais, na ideia de que urge “elevar o nível cultural das massas”, tidas como beneficiárias do afã civilizador e apreendidas como consumidoras mais ou menos passivas e não enquanto receptoras activas, isto é, prestes a sucumbir ao arrepio do contacto inefável e aurático com a Grande Obra de Arte, mas incapazes de a reinterpretarem e de a integrarem, com novos e inusitados sentidos, numa história de vida pessoal e social;
Concepção fortemente hierarquizada de cultura, baseada na tricotomia cultura erudita (A Cultura)/cultura de massas/cultura popular. A primeira surge como a única com valor patrimonial, fortemente distinta da alienação consumista da cultura de massas ou da falta de acumulação de poder simbólico da cultura popular, confinada a usos profanos e triviais;
Concepção arbitrária do que ou não é cultura [sic], subtraindo a sua delimitação à configuração conflitual que lhe está subjacente, o que implica, necessariamente, ainda que por meios dissimulados, isto é, não explicitamente declarados, a economia da compreensão do conjunto de (dis)posições sociais em relação, negando, por conseguinte, qualquer abertura à diversidade;
Concepção essencialista das audiências, jamais consideradas como públicos da cultura -porque isso implicaria a consideração de plurais modos de relação com a cultura instituída-, mas, preferencialmente, como “povo” ou “Nação”, conceitos atemporais e intemporais, intimamente associados a uma determinada natureza apta a procurar a integração social e societal através da mediação transcendental da Arte;
Concepção liquidatária do indivíduo enquanto agente que, dentro de um campo estruturado de possíveis, tem o poder de optar pela dissidência em vez da convergência, pelos sentidos múltiplos em vez do sentido único. (Lopes 2007, 80-81, grifos meus)
Outra característica da Democratização da Cultura é a verticalização e centralização das decisões políticas e, consequentemente, uma concepção restrita de cultura, públicos e capital cultural (Lacerda 2010). Como consequência imediata da centralização, surge a verticalização das decisões políticas, o que restringe a efetiva participação política. Ao restringir a participação social e não permitir, portanto, uma efetiva participação, a concepção de cultura, inserida nas políticas públicas culturais, pode acabar se limitando à concepção dos grupos que estão alocados nas estruturas estatais, como ocorrera na França aquando da criação do Ministério dos Assuntos Culturais.
Ao ocupar os espaços de formulação, decisão e avaliação de políticas públicas culturais e não abrir espaço para a participação social, o campo artístico-cultural e o campo político estabelecem na sociedade uma hierarquia de valor -que, dependendo das articulações, pode ser restritivamente democrática (elitista) ou autoritária (excludente)- no que se refere à produção de bens culturais e de símbolos, transformando as políticas públicas culturais num mecanismo privilegiado para esse fim.
Tendo por base uma concepção de Democratização da Cultura, comumente os resultados são políticas culturais essencialmente elitistas, balizadas em uma ordem hegemônica que, ao passar pela dimensão cultural, sedimenta um conjunto de práticas como se fossem autofundamentadas no tecido social, e estabelecem, assim, fundamentos mais ou menos instáveis com sentidos de verdades fundantes. Isso porque, juntamente com o monopólio do uso legítimo da violência física em dado território, como vastamente difundido por Weber (1996; 2000), o Estado busca impor uma vontade cuja legitimação e generalidade não se materializam apenas por meio da legitimação racional neo-kantiniana, mas, igualmente, como destaca Bourdieu (1997), por processos de construção simbólica-cognitiva-afetiva que, através de um processo contínuo de socialização e mediante constrangimentos institucionais, inculca nos indivíduos uma série de categorias de pensamento (re)produzidas pelo próprio Estado (Marques 2016).
Portanto, a grande questão que não se pode perder de vista é que toda política, qualquer que seja, resulta de uma intencionalidade, isto é, exige certo projeto em que são acionados diferentes recursos com vistas a alcançar determinados objetivos. Uma política cultural, como não poderia deixar de ser, está diretamente relacionada aos objetivos de um projeto político. Seria ingenuidade, portanto, não perceber as ações culturais como parte de um projeto político mais amplo: se as ações são restritivas com relação à pluralidade artístico-cultural, se são hierarquizadas e hierarquizantes, se não permitem uma efetiva participação política, são indícios claros de uma concepção estreita de democracia.
Nesse mesmo sentido, Albuquerque Júnior (2007) argumenta que uma gestão cultural sempre expressará um discurso do que se entende por cultura, consequentemente,
[…] o que deve ser nela valorizado e incentivado pelos grupos sociais que estejam diretamente envolvidos no controle do Estado. Para contarmos com uma gestão democrática das instituições culturais e uma política cultural inclusiva e pluralista […] precisamos criar um Estado aberto às diferentes demandas sociais, inclusive por formas culturais divergentes […]. Estado aberto à participação das minorias sociais, aos grupos divergentes, que devem ter no Estado um garantidor de que suas matérias e formas de expressão culturais não hegemônicas possam ter acesso aos canais de comunicação, às centrais de distribuição de sentido. (Albuquerque Jr. 2007, 74)
As considerações de Albuquerque Júnior revelam, ainda, outra questão que deve ser explanada: política cultural não se restringe à administração pública. No entanto, ao voltar à discussão acerca das políticas culturais como políticas públicas, o foco recai na administração pública, logo, no Estado e suas instâncias. Daí surge outra implicação: a ação cultural não se limita às estruturas estatais.
Mesmo que se reflita a ação cultural direta nos espaços públicos, é indispensável pensar o Estado, considerando a necessidade de pressioná-lo pelo reconhecimento político e legal da pluralidade artístico-cultural presente num determinado espaço social. Refletir sobre o Estado levando em consideração os espaços tradicionais de poder, não significa um distanciamento da política cotidiana, da política no espaço social, significa, ao contrário, pensar essa política como força capaz de desestruturar a estrutura de poder.
Um primeiro passo nessa direção é uma mudança na forma de conceber a ação política e o próprio Estado, trazendo novamente a luta contra o discurso institucional, mas não mais no sentido marxiano forte de “eliminação do Estado”, e sim o de desestruturar a ordem por meio de um envolvimento crítico, que tem como objetivo o estabelecimento de uma nova estrutura democrática, sempre dentro do “jogo democrático” e condizente com os princípios ético-políticos de “liberdade” e “igualdade” inerentes ao projeto moderno de democracia. Nesse sentido, tal proposta deve visar a um Estado democrático também no sentido de possibilitar a vazão democrática de pluralidades culturais e suas manifestações artísticas (performances, estéticas etc.) como formas de significação política, cultural, econômica e social que expressam a pluralidade e seus conflitos. Somente assim, como destaca Coelho (1997), será possível vislumbrar a superação de deficientes projetos e programas de políticas culturais baseados no conceito de Democratização da Cultura. Resta, por fim, avançar sobre a noção de Democracia Cultural pensando os papéis do Estado.
Conclusões. Da democratização à democracia cultural: (re)pensando a ação política e o estado
Ao final das reflexões apresentadas, certamente persiste uma questão: mas, afinal, qual é a parte que cabe ao Estado no âmbito cultural? Ou melhor, até que ponto o Estado pode/deve atuar? Ao destacar o papel e a importância do Estado, não o trago novamente como centro fundante do poder, bem como não caminho no sentido de uma simples defesa das instituições. Ao pensar a efetiva participação política e refletir a partir do caráter relacional da política democrática, variando entre conflito e cooperação, busco uma diferenciação de uma “simples participação” dentro do modelo político que se mostra limitado. Estou, assim, a considerar, sobretudo, as possibilidades de mudanças das instituições e do próprio modelo hegemônico.
Não é pelo fato de o Estado não ser mais o centro fundante do poder nas democracias ocidentais modernas, como já destacou Lefort (1988), que a ação política deva focar unicamente os “espaços alternativos de poder”. Pensando em termos culturais, as práticas artístico-culturais e suas ações político-culturais contestatórias, seja em relação aos modi culturais hegemonicamente estabelecidos, seja respeitante às políticas públicas culturais em curso, não podem abdicar da luta pela inserção nos espaços culturais tradicionais e pela modificação dos mecanismos da administração pública cultural desses espaços.
A perspectiva de Democracia Cultural, concebida a partir de uma perspectiva radicalmente política e relacional, requer (re)pensar a ação política também nos espaços tradicionais de poder, o que não significa abdicação da ação nos espaços públicos e das ocupações dos espaços das cidades por grupos e atores engajados. Ações que visam à retirada da ação política das estruturas estatais, seja como demonstração de insatisfação ou mesmo de não-reconhecimento dos mecanismos políticos tradicionais, seja como forma de voltar a ação para os espaços públicos, embora sumamente importante para o aprofundamento democrático, não podem ser indiferentes às estruturas tradicionais de poder. Ao contrário de uma “política fora das instituições”, como a única forma possível de se levar a cabo uma política democrácia radical e autônoma, fazem-se necessárias mudanças radicais nas estruturas existentes de poder: é preciso ocupar espaços e transformá-los pela ação política.
Para isso, é preciso romper tanto com perspectivas teóricas que partem de uma separação analítico-conceitual forte entre esfera estatal e esfera societal, como de leituras que percebem a inter-relação entre essas esferas exclusivamente pela ideia de perda de autonomia ou cooptação e instrumentalização dos grupos sociais pela estrutura institucional. Nada pode determinar que a inter-relação entre essas duas esferas, dimensões próprias da democracia, significa um movimento sempre de cooptação.
Essa inter-relação pode evidenciar, por um lado, relações de oposição a determinados projetos do Estado, oposição a Governos ou a determinadas políticas de Governo, a setores econômicos, ou mesmo a oposição aos significados em disputa do que seria o “Estado”, “democracia”, “cultura”, entre outros significantes, e, por outro, também permite refletir sobre as relações de cooperação, as quais podem ser pensadas em termos de aproximações, ainda que mais ou menos pontuais. Esse caráter relacional não significa que no momento de cooperação os conflitos sobre outras questões sejam deixados de lado; trata-se de uma cooperação em tensão: um movimento social, por exemplo, pode construir uma relação de cooperação com instâncias estatais em uma área e, em outra, manter uma relação de conflito aberto. É nesse ponto que as contribuições de Mouffe (2014) sobre o envolvimento crítico com as instituições são de suma relevância: é preciso conceber as instituições como espaços de lutas pela transformação social.
Voltando à discussão sobre o “papel do Estado na cultura”, mesmo que haja um entendimento comum de que o Estado deva perceber a cultura como um direito do cidadão, não há um consenso na literatura sobre como o Estado deva garantir esse direito. Como destaca Albuquerque Júnior (2007), muito desse dissenso foi construído a partir do imaginário dos governos autoritários que ainda rodeia o debate sobre políticas públicas culturais em países que passaram recentemente por experiências autoritárias. Esse imaginário pode ser resumido na “percepção de que somente em períodos autoritários o Estado pretendeu gerir a cultura” (Albuquerque Jr. 2007, 73). Diante disso, enquanto setores neoliberais tendem a se colocar contra a intervenção estatal mais direta nas questões culturais, embora estes mesmos setores, destaca o autor, “não deixem de reivindicar certo mecenato por parte do poder público, desde que atenda a seus interesses privados” (Albuquerque Jr. 2007, 73), uma parte da esquerda continua difundindo o projeto de completa retirada do Estado como única forma de transformação social, como única possibilidade de expressões artístico-culturais verdadeiramente contenciosa, e outra parte faz uso de recursos sócio-econômicos geridos pelo Estado, por meio de editais ou mecanismos similares, para mobilizar uma cena artístico-cultural “alternativa” e “independente” em relação aos espaços artísticos estatais ou econômicos tradicionais -isso não significa que tais mecanismos não devam ser acionados, muito pelo contrário! A questão é que, por si só, também não são suficientes; basta considerar o recurso econômico destinados para esses mecanismos e o montante investido no setor cultural.
Somada a essa dimensão política stricto sensu, há que considerar a dimensão econômica na abordagem da cultura como objeto de política e administração pública. A esse respeito, Durand (2001, 66) destaca a necessidade de ruptura com a “rejeição ético-ideológica do dinheiro e da economia, bem como a dificuldade daí derivada em entender que a arte e cultura dependem de sustentação econômica e institucional como qualquer outra atividade humana”. Não há como pensar, assim compreendo, a Democracia Cultural e seu objetivo de ampliação dos públicos e da vazão da pluralidade artístico-cultural sem discutir a importância da dimensão econômica e o papel do Estado nessa questão.
É nesse ponto que se justifica a relevância do Estado como intermediador/regulador do mercado cultural. Não se trata de uma defesa de políticas culturais tuteladas pelo Estado, tampouco de um dirigismo cultural no sentido apresentado por Chaui (2008; 2016) do Estado como produtor de uma cultura oficial, pois ambas as ações criariam dependências econômicas e políticas de artistas e produtores culturais com relação ao Estado. O que se defende, nesse âmbito, é que o Estado seja a instância reguladora e mediadora no que se refere à difusão da produção cultural e garanta o direto e o acesso à cultura -considerando o pluralismo cultural-, e não da produção em si.
Nesse mesmo sentido, Lopes (2007, 60) afirma que a ausência de um mercado assistido, comumente entregue à falácia da lógica da oferta e da procura, condenaria “ao silêncio, isto é, à inexistência ou morte social, todas as formas de expressão cultural e artística que não asseguram retorno ou sustentabilidade do ponto de vista estritamente econômico”. A falácia, na crítica de Lopes (2007), refere-se à ausência de uma clara preocupação política e social por parte da esfera privada ao se lançar, ou ser lançada de paraquedas, na organização e execução de projetos culturais. Ao operar a partir da lógica econômica, da relação oferta-procura, a esfera econômica busca, antes de mais nada, o lucro, seja ele “real” (econômico/financeiro) ou simbólico (por exemplo, no retorno de marketing como “empresa com responsabilidade social”, que também acaba se revertendo em lucro “real”). A questão, como bem aponta Lopes (2007) em sua crítica, é que existem inúmeras formas e linguagens de expressão artístico-culturais de grande importância do ponto de vista social e cultural para um dado contexto, mas que não apresentam grandes retornos em termos econômicos.
Para finalizar a discussão, gostaria de retomar alguns princípios básicos com base no que foi discutido até aqui, bem como em elementos presentes em outro trabalho realizado (Marques 2015). Trata-se de princípios necessários a um projeto de política cultural pensado a partir desta perspectiva da Democracia Cultural:
1. Ter a cultura como direito do cidadão, perceber a cultura a partir de uma perspectiva pluralista e não hierarquizante e garantir ao cidadão o direito à cultura. Nesses termos, o Estado deve “assegurar o direto de acesso às obras culturais produzidas” -e não apenas à “alta cultura”, vale frisar- “particularmente o direto de fruí-las, o direto de criar as obras, isto é, produzi-las, e o direto de participar das decisões sobre políticas culturais” (Chaui 2008, 65). Isso significa que o Estado deve: a) democratizar não só o acesso aos espaços culturais tradicionais, como museus, galerias de arte, espaços culturais e teatros a classes sociais até então privadas desses espaços -privação devido à ausência de uma política de preços para os espaços culturais tradicionais privados, em decorrência da falta de uma política de horários ou mesmo em virtude da carência de políticas públicas pensadas intersetorialmente;12 b) democratizar a administração desses espaços para permitir que diferentes artistas e produtores possam expor suas obras ou se apresentarem, e não somente aqueles consagrados pelo campo artístico-cultural, bem como a participação de diferentes segmentos sociais na gestão, com vistas a uma cogestão, pois, afinal, como destaca Chaui (2016, 67), “um órgão público de cultura não produz cultura, mas cria condições para que projetos culturais da sociedade sejam realizados”.
2. Compreender os espaços públicos como espaços caracterizados pela pluralidade e interação cultural e buscar sempre o seu alargamento. Esse princípio tem como pressuposto uma perspectiva pluralista de cultura e de públicos. O alargamento dos espaços públicos, em termos culturais, visa à desconstrução de processos de marginalização cultural.
3. Fomentar e reconhecer as diferentes manifestações artístico-culturais sem hierarquizá-las. Refere-se à valorização da pluralidade cultural, princípio elementar ao pluralismo democrático-cultural. Afinal, como destaca Lopes (2009, 9), “só há democracia cultural na dignificação social, política e ontológica de todas as linguagens e formas de expressão cultural e na abertura de repertórios”.
4. Perceber o espectador cultural como um sujeito múltiplo, inserido num contexto social marcado pela pluralidade cultural, e, ao contrário da ideia neoliberal de consumidor cultural, conceber as relações dos sujeitos com as produções artístico-culturais pela ótica da interação cultural. Condizente com os princípios anteriores, este, além da valorização da pluralidade cultural e possibilidade de mobilidade dos sujeitos, percebe o espectador por meio de uma lógica emancipatória. Por essa ótica, o sujeito, diante das obras artístico-culturais, deixa de ser percebido como um receptáculo passivo das informações impressas pelo artista e direcionada aos públicos, ou a um público-gosto específico, e passa a ser percebido a partir de sua potencialidade e capacidade de interação com os sentidos da obra impressos pelo artista. É o que chama a atenção Rancière (2009; 2012) em seu questionamento acerca da oposição entre a contemplação, que seria um olhar, bem próximo à ideia do visitante ou do consumidor cultural, e o agir, que remeteria à atribuição de sentidos ao que se vê, aproximando à ideia de interação cultural. O espectador, ao olhar, como bem destaca Rancière (2012, 17), também age, “ele observa, seleciona, compara, interpreta”. Nesses termos, “toda posição de espectador já é uma posição de intérprete, com um olhar que desvia o sentido do espetáculo” (Rancière 2009, sem paginação). Nesses termos, as relações dos espectadores com as obras artístico-culturais são percebidas para além do mero consumo ou do puro entretenimento. Isso não significa uma negação do caráter lúdico e de lazer das produções artístico-culturais. Como destaca Chaui (2008, 64), o lado lúdico e de lazer são dimensões essenciais e constitutivas da cultura, “mas uma coisa é perceber o lúdico e o lazer no interior da cultura, e outra é instrumentalizá-la para que se reduza a isso”. A cultura, na perspectiva da Democracia Cultural, antes de mero consumo, é um direito do cidadão, antes de mero entretenimento, é potência de experimentação do novo, de partilha do sensível, de ressignificação (Chaui 2008; 2016; Lopes, 2007; Rancière 2012; 2005).
5. Perceber o Estado como mediador e regulador na esfera econômica relativa à difusão da produção cultural. Como discutido anteriormente a partir de Lopes (2007), esse princípio visa garantir certo apoio -discutir sobre ele escaparia aos objetivos aqui propostos- às expressões culturais e artísticas que não permitem um retorno e/ou sustentabilidade do ponto de vista econômico.
6. Reconhecer legal e politicamente os espaços públicos como espaços potenciais de ação cultural direta de diferentes públicos, contribuindo, assim, tanto para uma necessária ruptura com a legalidade e legitimidade quase sempre exclusiva aos espaços consagrados e de consagração do campo artístico-cultural, como para o processo de desmarginalização e descriminalização cultural. Esse princípio visa garantir o direito à cultura, seja em dimensão individual ou coletiva, e romper com lógicas classificatórias apoiadas na distinção e hierarquização de gostos culturais, as quais, radicalizadas, potencializam processos de marginalização e criminalização cultural e de públicos.
7. Ampliar os espaços de participação já existentes e buscar por novas experiências democráticas no sentido de contribuir para a efetiva participação política de diferentes linguagens artístico-culturais presentes no espaço social. Esse princípio evidencia a necessidade de aprofundamento das experiências participativas em que diferentes grupos sociais e indivíduos possam participar das discussões e tomadas de decisão.
Como destaca Lopes (2009), abrir os caminhos para se pensar e efetivar a noção de Democracia Cultural nas políticas públicas culturais não é uma tarefa fácil; requer grande esforço político por parte de grupos sociais e do campo político. Para isso, fazem-se urgentes reflexões sobre os próprios sistemas democráticos, percebendo-os como processos em construção e em disputa, e seus desenhos institucionais. Nesse esforço, é preciso (re)pensar tanto a atuação política de ativistas e movimentos, quanto novas experiências democráticas institucionais, o que não significa, vale frisar, um movimento de abdicação de práticas artísticas e culturais nos espaços públicos: é preciso radicalizar a noção de cidadania cultural de fora para dentro e de dentro para fora.