Introdução
Nos primeiros meses do ano de 2017, na cidade do Rio de Janeiro -Brasil-, uma série de reportagens foram veiculadas na mídia corporativa local dando conta do aumento do número de "pessoas em situação de rua": teria aumentado de 5 mil 580 -em 2013-, para 14 mil 279 -em 2017-, ou seja, "[mais que] triplicado em três anos"1. Esse número ia ao encontro de uma percepção compartilhada por moradores e frequentadores das regiões do Centro e Zona Sul da cidade de que, de fato, havia aumentado o número de pessoas nessa situação. Entre as trabalhadoras da Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS), contudo, restavam dúvidas sobre a produção desses dados: "esse número caiu aqui de paraquedas"; "ninguém sabe de onde ele veio"; "a gente nem sabia que estavam fazendo Censo [da população em situação de rua]" - me diziam algumas delas. As reportagens, assim como os discursos oficiais veiculados por representantes do governo, atribuíam o aumento desse número ao elevado índice de desemprego no país, em especial nesta cidade que encerrava seu "ciclo de megaeventos", e às sempre insuficientes vagas em abrigos destinados ao "acolhimento" de pessoas em situação de rua2.
As estatísticas, propõe Foucault, são tecnologias de governo compositoras de "um conjunto de conhecimentos técnicos que caracterizam a realidade do próprio Estado"3. Fazem parte de uma série de técnicas e procedimentos de governo que, para melhor gerir a população, precisa conhecê-la, identificá-la, classificá-la e contabilizá-la. No caso da população em situação de rua no Brasil, os esforços em tornar-se legível ao Estado através de técnicas censitárias partiram do próprio Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR) e de organizações governamentais e não governamentais de apoio4. Desde o ano 2005, quando o MNPR é fundado, o Estado vem sendo tensionado por esse novo ator político organizado que se reivindica enquanto sujeito de direito e que, para melhor propor suas ações ao Estado, reivindica ser contabilizado5. A despeito desses esforços, os dados produzidos sobre esse segmento da população continuam sendo realizados de forma intermitente, pouco sistematizada e a cargo de estados e municípios6. O desinteresse governamental na produção desses números sublinha não só a desimportância conferida a essas pessoas, como coloca tais dados em uma zona cinzenta, passível de manipulação conforme gestões específicas. Como sinaliza Nikolas Rose7, os números não apenas inscrevem uma realidade preexistente, mas também a constituem. Embora este preâmbulo trace algumas linhas que sustentam as tensões em torno da produção de estatísticas em relação às pessoas em situação de rua, o que implica, em última instância, a produção de visibilidade dessa população diante de políticas governamentais, este artigo não trata propriamente dessa visibilidade numérica, senão daquela que se produz através da presença aglomerada dessas pessoas nos espaços da cidade, que provocam percepções visuais e produzem debates e providências políticas sobre elas.
Os números que "caem de paraquedas" nas mesas da administração municipal e que são justificados pelo elevado índice de desemprego não são desinteressados. As chaves analíticas e políticas pelas quais é compreendido esse segmento da população são sempre conjunturais e circunstanciais. Certas leituras sobre "os motivos que levam as pessoas a viverem nas ruas" podem favorecer determinadas políticas públicas destinadas a essa população em detrimento de outras e estimular, ou mesmo arrefecer, o debate em torno dessa questão. No Brasil, nos discursos oficiais que orientam políticas, a população em situação de rua ora tem sido lida na chave do desemprego, ora na chave da doença mental, da dependência química, da desestruturação familiar, da criminalidade e, não raro, na composição desses fatores8. Raramente as políticas de mercantilização das cidades e de produção de desigualdades sociais são acionadas nesses discursos. No caso aqui em questão, pode condicionar esse debate ao fatalismo das estatísticas do desemprego em nível nacional, silenciando assim outros mecanismos produtores dessas existências nas ruas. Negar, contudo, o aumento de pessoas nessa condição impulsionadas pelo desemprego seria um erro que, de antemão, sinalizo não incorrer. O que procurarei mostrar ao longo do texto é que, ao lado dos desempregados que passaram a habitar as ruas das grandes e médias cidades do país, já havia uma população de número considerável e invisibilizada dos espaços públicos desta cidade e subestimada nas estatísticas municipais - a exemplo do Censo da População em Situação de Rua no Município de Rio de Janeiro em 20139.
Nesse texto, proponho dois movimentos em relação à constatação do aumento de pessoas em situação de rua na cidade do Rio de Janeiro e às chaves pelas quais são comumente apreendidas. O primeiro, será um deslocamento do aumento do número de pessoas nesta situação a partir, somente, das fileiras do desemprego para lançar luz sobre mecanismos -especialmente estatais, mas não só- produtores dessa situação de rua no contexto dos megaeventos esportivos através das ditas políticas de "segurança pública" e "ordenamento urbano". O segundo movimento, atrelado ao primeiro, será voltado às estratégias de apagamento -invisibilização- dessas presenças nos espaços disputados de uma cidade olímpica.
Foi neste contexto que realizei, entre setembro de 2015 e junho de 2017, trabalho de campo em dois abrigos municipais do Rio de Janeiro - um para homens adultos, o Antonio Arthur; outro para mulheres, o Maria Bethânia - ambos localizados na zona norte da cidade10. Minha inserção nessas instituições foi negociada com a SMAS que, embora tenha autorizado a realização dessa pesquisa, determinou em quais abrigos ela poderia acontecer e impôs algumas regras, tais como a proibição do uso de câmera fotográfica e de gravador de áudio. A frequência aos abrigos -dias/horas- foi negociada diretamente com as direções dessas instituições, que me deram autonomia para a frequência e permanência. Além de participar de atividades que aconteceram dentro desses abrigos, os tomei como pontos de encontro com pessoas que estavam ali na condição de usuárias para as acompanhar em seus circuitos por outras instituições da rede sócio assistencial e saúde e por departamentos da justiça e identificação. Tratando-se de uma instituição de passagem, com muitas dessas pessoas pude estabelecer contatos breves, episódicos e transitórios, apreendendo daí fragmentos de vidas. Às notas de campo, agreguei um material documental bastante heterogêneo: documentos oficiais, burocráticos e administrativos; relatórios de órgãos fiscalizadores e de controle de instituições de confinamiento; entrevistas com agentes da SMAS; material jornalístico. Com isso, pretendi traçar linhas desse dispositivo socioassistencial11, buscando trazer para a pesquisa a polifonia conformada na "questão" população em situação de rua12.
Seguindo a crítica proposta por Foucault13 ao institucionalcentrismo, busquei, ao longo da pesquisa, estabelecer os fios que conectam essas instituições a projetos mais amplos, perseguindo a questão: que cidade e que Estado se estruturam para gerir sobre seu tecido urbano e sua malha administrativa esses indesejáveis de muitas ordens e circunstancias14. Embora estejam muito bem localizadas dentro de uma complexa malha administrativa ramificada em setores, níveis e graus, seu público-alvo alargado - "pessoas em risco e vulnerabilidade social com vínculos familiares e/ou comunitários rompidos" -, deixa as brechas para que essas instituições sejam sensíveis aos anseios das ruas, aos projetos urbanísticos, das ditas políticas de segurança, das políticas de saúde mental e geral. Proponho pensá-las como inseridas em uma zona de indefinição, sendo sustentadas como instituições plásticas e transitórias em seus estatutos e práticas. E, como sugere Daniel DeLucca15, elas têm suas existências tramadas nos tempos políticos da cidade.
Em meados de 2015, habitavam os abrigos municipais muitas pessoas cujas vidas haviam sido atravessadas pelos campos de força que compunham as políticas de "ordenamento urbano" e "pacificação"' no contexto de produção do Rio de Janeiro como cidade olímpica. Ali essas pessoas tentavam se "reerguer", se "reorganizar", se "refazer", se "levantar". São essas vidas no fio da navalha que motivam as reflexões a seguir.
Políticas da ordem e da pacificação
A cidade olímpica, aqui referida, nos remete ao ano de 2007, quando foram intensificadas uma série de ações incisivas sobre o tecido urbano e suas populações16. Essas ações tinham como justificativa tornar a cidade forte concorrente à disputa para ser cidade-sede dos Jogos Olímpicos, da Copa do Mundo e de outros grandes eventos que aconteceriam nos anos seguintes17. Por um lado, uma série de políticas estimulou a mercantilização do espaço urbano e a financeirização de seu solo18; por outro, a gestão e controle mercantilizados, militarizados e policialescos sobre os fluxos de pessoas e coisas foi uma das peças centrais das ações incidentes sobre corpos e estruturas urbanas19. As fronteiras físicas e simbólicas da cidade foram sendo redefinidas pelo traçado da expansão das fronteiras dos mercados, provocando desacomodações (ou desterritorializações), especialmente dramáticas entre os pobres. Circulação de pessoas, coisas e capitais se tornou a tônica dos discursos oficiais, assumindo (ainda mais) destaque nas racionalidades das gestões governamentais.
Neste período, duas grandes políticas foram coordenadoras das ações sobre a "segurança pública" e o "espaço urbano": a "política de pacificação", atuando através, especialmente, das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP); e a "política de ordem urbana", através da criação e destaque dado a Secretaria de Ordem Pública (SEOP), que ficou popularizada através das Operações do Choque de Ordem. Ambas foram apresentadas como "ordenadoras da desordem urbana" e como responsáveis por "retomar" o poder do Estado sobre "territórios perdidos" para "grupos criminosos" e para os "ilegalismos" de todas as ordens. Ambas operaram dentro de uma mesma chave repressiva com discurso civilizatório, atuando sobre os espaços de pobreza e sobre os corpos indexados a eles. Ambas operaram como linha de frente da mercantilização dos espaços urbanos e financeirização de seu solo. Se as UPPs foram anunciadas como a retomada do poder do Estado sobre as favelas e seus habitantes, as Operações do Choque de Ordem, poderíamos dizer, construíram-se como retomadas de espaços de pobreza pulverizados em zonas mais amplas e difusas do tecido urbano e dos corpos que o habitam.
A política de pacificação promoveu a ocupação militar das favelas como condição para o controle militarizado e policialesco sobre o fluxo de coisas e pessoas nesses espaços, fazendo um canal de proteção que permitiu ao mercado avançar sobre esses territórios. Mas, claro, essa política não se resume a isso, tendo imbricações de ordem simbólica e material mais complexas20. Entre as estratégias militares de ocupação do território, estava a produção de um "cinturão", espécie de cordão de isolamento, das "regiões olímpicas"21, na intenção de neutralizar os poderes de grupos armados que atuavam em territórios de proximidade com essas regiões. Assim, um dos efeitos dessa política foi o rearranjo territorial dos poderes armados. É nesse sentido que Edson Miagusko22 chama a atenção para os efeitos circulatórios da pacificação, dentre os quais, a migração de criminosos das favelas dominadas pelas UPPs para outras regiões da cidade e do Estado. Esse rearranjo pôs para circular (expulsou) seus indesejáveis, sempre circunstancias - de grupos armados rivais a grupos de pessoas e/ou famílias atravessadas por essas disputas. Se essa prática já era comum em territórios dominados por facções de traficantes de drogas e milicianos23, no contexto da "pacificação", novos atores entraram em cena (Polícia Militar, Exército) amplificando seus efeitos, tal como demonstrou Taniele Rui24 à respeito dos refugiados da pacificação - usuários de crack expulsos de algumas favelas quando da instalação das UPPs nessas localidades. Por sua vez, o crescimento das milícias na Zona Oeste da cidade também pode ser computado como outro efeito dessa política de pacificação e da expansão das fronteiras do mercado - neste caso, principalmente o imobiliário. Uma vez que, enquanto lançava-se luz sobre as UPPs, celebradas pelas mídias, as milícias cresciam em sua sombra.
Assistentes sociais e psicólogas que trabalhavam dentro dos abrigos municipais perceberam a expansão das milícias nesse período. Em documento administrativo produzido para "entrevistar" as pessoas usuárias quando de sua chegada aos abrigos, expressões lacônicas davam conta dessas realidades: "expulsão do território", "desentendimento territorial", "conflito territorial", apareciam como resposta à pergunta do item "motivos de ir para as ruas". A expressão "violência urbana" também figurava como resposta possível, mas os termos anteriores buscavam dar sentido mais preciso às motivações. Essa abordagem genérica, "mais técnica", foi elaborada propositadamente para encorajar as pessoas a "falarem mais; a falarem sem medo", como ressaltou uma assistente social envolvida na elaboração desse documento no ano de 2013: "[essa questão] estava muito relacionada, numa época, especialmente nas regiões da zona oeste, com a forte presença da milícia. E a gente estava evitando usar esse termo milícia. Por que a pessoa, em si, ela não teria envolvimento algum [...]"25. Mas foi a grande quantidade de pessoas que chegavam nos abrigos buscando um refúgio desses grupos armados que produziu uma mudança em seus protocolos de recepção. Não se trataria de "um ou outro", mas sim de "mais de uma família procurando um suporte em outro local por que estava impossível de viver. Então, quando foi pensada a questão da violência urbana ela estava voltada para pensar a questão dessas ameaças [...] as pessoas vivem, de fato, amedrontadas"26. Por ora, é importante prospectar a relação entre "violência urbana" e "motivos de ir para as ruas" produzida neste documento.
Somada a "política de pacificação" houve a "política de ordenamento urbano". Durante o período compreendido entre os anos de 2009 a 2016, as Operações do Choque de Ordem estiveram à frente de ações de remoção de casas, remoção de objetos e remoção de pessoas das ruas, sendo auxiliadas pela Secretaria de Assistência, Guarda Municipal (GM), Polícia Militar (PM) e pela Companhia Municipal de Limpeza Urbana (COMLURB). As cenas de "recolhimento" de "moradores de rua", apreensão de mercadorias e repressão a vendedores ambulantes se tornaram corriqueiras na cidade, repetindo-se com maior ou menor violência, a depender do local e do horário da Operação.
Desde 2007, Vilma alugava uma "vaga para dormir" -cama/banheiro- em um quarto de pensão na Central do Brasil27. Pertencia a ela uma caixa térmica de isopor de 60 litros e um carrinho feito com dois skates acoplados por cordas extensoras que também formavam uma alça pela qual ele era puxado. A caixa de isopor sobre o carrinho formava o seu instrumento de trabalho, a partir do qual retirava seu orçamento diário e com o qual pagava o aluguel de sua vaga para dormir, sua alimentação - as "quentinhas" -, as mercadorias que conseguia em consignação em um depósito da região para vender -água, refrigerantes, sucos e gelo- e a "segurança" de sua "vaga no asfalto" -ponto de venda-. A caixa com gelo e bebidas sobre o improvisado carrinho formava seu instável e urgente "ganha pão". Em 2013, Vilma teve seu carrinho e isopor apreendidos em uma Operação do Choque de Ordem. Um mês depois, com três semanas de atraso do aluguel e sem conseguir "levantar" o dinheiro para pagar as mercadorias, é expulsa da região "pelos meninos do movimento"28 Deveria ir para longe, disseram; conseguiu chegar até na Lapa29 Ali foi alvo de outra Operação do Choque de Ordem - "operações de recolhimento" - e levada para uma Central de Recepção de Adultos e Famílias (CRAF) como "moradora de rua" para posteriormente ser encaminhada a um abrigo.
Conheci Vilma em 2016 em uma de suas passagens pelo abrigo Maria Betânia. Desde sua expulsão da Central do Brasil até o nosso encontro, ela viveu em Instituições de Acolhimento e passou a fazer uso de remédios "para os nervos" - uso para ela inimaginável enquanto mantinha suas (precárias) vagas. Afastada pela política de ordem urbana dos precários instrumentos e ações cotidianas para manter suas vagas - de dormir e trabalhar -, Vilma passou a disputar as vagas dos abrigos, a frequentar a casa de amigos e a passar temporadas vivendo em situação de rua pela área central da cidade. Alvo duas vezes dessas "operações" - uma como vendedora ambulante, outra, um mês depois, como "moradora de rua" -, a trajetória de Vilma é capturada por campos de força, que a pune dentro de uma categoria (atividade ilegal) e a produz dentro de outra ("moradora de rua").
Em documento administrativo produzido pela SEOP ao final do primeiro ano de sua atuação, foram apresentadas tabelas que traziam números produzidos pelas Operações do Choque de Ordem. Ao lado do cômputo de frutas, verduras, doces, bicicletas, barracas, isopores, botijões de gás e carrinhos apreendidos; ao lado do cômputo de publicidades, bancas de jornal, quiosques, mesas e cadeiras que foram notificadas, autuadas, adesivadas; ao lado do número de veículos verificados, rebocados ou infracionados; ao lado da tonelagem de lixo vinda de estouro de depósitos, de entulho de demolição e lixos das ruas; vinham as ações junto a "moradores de rua" que foram abordados, acolhidos, conduzidos, detidos/preso30. James Ferguson31 sinaliza que reduzir a pobreza a um problema técnico, apresentando soluções técnicas, é uma das principais formas de despolitizá-la, alçando-a à problemática hegemônica do desenvolvimento. Observando essas tabelas administrativas, percebe-se a forma como essas pessoas são produzidas na linguagem gestora como corpos-entulho, que materializam a "desordem urbana" atravancando o tráfego. Por fim, faz-se importante produzir uma nota sobre a política de habitação como importante campo de força na produção de desigualdades. Se, por um lado, houve a celebração do Programa Minha Casa Minha Vida32, por outro, foi retomada com centralidade a prática de remoções de habitações33. Para algumas pessoas-alvo dessas ações reassentamentos foram feitos enquanto outras passaram a circular entre vagas - nas casas de familiares, amigos, Instituições de Acolhimento, pensões, quartos, ocupações e rua.
Refugiados urbanos: efeitos menos visíveis da "ordem" e da "pacificação"
Efeitos menos visíveis da "política de pacificação" e de "ordenamento urbano" foi a produção e aprofundamento de desarranjos em determinadas vidas já precarizadas e que estavam atravessadas em territórios disputados por diferentes mercados. A apreensão de um isopor, a remoção de uma casa, a "violência urbana" expressa em "expulsão do território", "desentendimento territorial", "conflito territorial" - ações em grande parte protagonizadas pela maquinaria estatal de produção de desigualdades - nos dão pistas de outros "motivos de ir para a rua", como sinalizado em documento administrativo, mas também em discursos propulsores de políticas. É nesse contexto que proponho pensar as vidas precarizadas de que trata esse texto como refugiadas urbanas das políticas de pacificação e ordenamento urbano, garantindo-lhes um distanciamento das chaves, em grande medida moralistas, que as apreendem enquanto pessoas em situação de rua, a partir da "dependência química", da "desestruturação familiar", da criminalidade e, eventualmente, do desemprego.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), organismo internacional responsável pela promoção e gestão dos direitos das populações refugiadas, repousa tal figura burocrático-jurídica na condição de perseguição: por posicionamento político, raça, religião, nacionalidade ou grupo social que fazem um deslocamento atravessando fronteiras nacionais. Já a também considerada categoria administrativa Refugiados Urbanos, refere-se àqueles que não se encontram aglomerados em campos de refugiados, mas sim dispersos em centros urbanos34. Portanto, qualquer aproximação com essa categoria administrativa e jurídica do ACNUR deve ser feita com mediações. De antemão, é importante sinalizar que não se trata aqui da discussão sobre o dentro e o fora das fronteiras nacionais como garantidoras e diferenciadoras dos "direitos do cidadão".
Os que "sobram" de catástrofes bélicas e refugiam-se em campos ou acampamentos de refugiados, como apontam os trabalhos de Agier35 em muito se assemelham aos que sobram das políticas que acentuam desigualdades e perpetram o terror - aqui, no caso, as ditas políticas de ordenamento urbano e pacificação. São vidas que "caem em redes" das assistências (humanitárias e sociais) e passam a ser tuteladas pelas administrações estatais e por órgãos humanitários internacionais. São vidas "acolhidas" por essas "redes". Se a condição de refugiado traz um longo percurso em deslocamentos transnacionais e por entre órgãos humanitários e estatais que escrutinarão suas vidas, buscando o enquadramento ao direito de assim serem reconhecidos36, também quem entra nos abrigos destinados a populações vulneráveis passa por escrutínio semelhante37.
É importante indicar que no Brasil os abrigos fazem parte da Rede de Assistência Social estruturada em âmbito Federal e administrada em âmbito Municipal. Cada município tem autonomia para criar sua própria "metodologia de atendimento" às pessoas usuárias atendendo a algumas normas e resoluções gerais. No caso em questão - Rio de Janeiro, de 2015 a 2017 -, o tempo máximo de permanência nessas instituições era de 9 meses. As pessoas chegavam "encaminhadas" das Centrais de Recepção de Adultos e Famílias. Nesses abrigos tinham acesso a uma cama e a quatro refeições diárias. Além disso, um "corpo técnico" -constituído por assistentes sociais e psicólogas - construía um "projeto de reinserção social", a partir do qual, uma vez produzidas e/ou identificadas as "demandas" da pessoa usuária, um itinerário institucional era elaborado criando obrigações da pessoa com o cumprimento das etapas desse itinerário. O cumprimento dessas obrigações - como, por exemplo, "realizar exames de sangue", "solicitar a confecção de documentação" e "procurar emprego" - era a condição de possibilidade para continuar nos abrigos. Ao mesmo tempo, uma série de táticas de desacomodação eram acionadas pelos funcionários dessas instituições para fazer lembrar que "abrigo não é casa de ninguém" e que "não dá para que as pessoas se acomodem aqui [nos abrigos]"38.
O estado de espírito do refúgio, diz Agier39, é ansiogênico e paranoico, "um lugar onde os ocupantes são animados por uma tensão em face do risco próximo da violência, da destruição e da expulsão". Assim também é o estado de espírito do "abrigado" que vive o tempo de suas urgências em conflito com o tempo das esperas. Os abrigos vão se configurando como territórios de espera40 em meio aos fluxos de deslocamentos. Nesse tempo de espera, em contato com agentes da burocracia estatal, são produzidos os sujeitos legítimos que poderão ser atendidos por programas e projetos de acesso a direitos e/ou benefícios, de maneira similar ao que sucede aos refugiados diante da administração estatal e seus espaços diversos para a produção das verdades sobre si mesmo, como mostra Facundo41.
Em comentários em torno de poemas de Bertold Brecht sobre os viventes das cidades, Vera Telles nos propõem um olhar singular sobre essa gente que se encontra, lá e cá, na "condição de refugiados em seu próprio país". Se apropriando e amplificando a categoria "refugiados urbanos", forjada na luta de um coletivo de pessoas em situação de rua junto a um coletivo de trabalhadores sociais na cidade de São Paulo, Telles tece algumas linhas dessas vidas que se aproximam: produzidos pelas máquinas da "predação e despossessão generalizada, que fazem multiplicar-se por todos os lados esses habitantes indesejáveis, sem lugar, fora da ordem e, por isso mesmo, desafiando com sua própria existência as Leis da cidade. [...] vidas marcadas pela insegurança, pela transitoriedade dos arranjos de circunstancias [...]"42.
Não há o interesse em substituir uma categoria política assim disputada e consolidada -como é a categoria população em situação de rua - por outra categoria - refugiados urbanos -, mas sim compô-la a fim de prospectar e amplificar aspectos silenciados dessas trajetórias pelos oradores estatais. Com refugiados urbanos, destacam-se corpos ameaçados e perseguidos por forças armadas que submetem ao terror populações dentro de territórios nacionais, que devem se deslocar pela cidade como recurso último para manterem-se vivos. São pessoas sozinhas, em dupla ou grupos afetivos (em diversos arranjos familiares) destituídas dos meios através dos quais mantém sua subsistência, instrumentos de trabalho, moradia, rede de afetos e/ou suporte material, e que passam a viver transitoriamente entre vagas - de ruas, instituições de "acolhimento", casa de conhecidos, quartos de pensão, ocupações. E, no contexto sobre o qual nos debruçamos, essas pessoas, ao passo em que foram sendo produzidas como refugiadas urbanas, foram sendo postas a circular por outra maquinaria estatal.
"Nossa ideia é vencê-lo pelo cansaço, fazê-lo desistir": dispositivos para fazer circular os indesejáveis da cidade olímpica
Em uma de suas primeiras entrevistas, no início de 2009, o então secretário da Secretaria Municipal de Ordem Pública (SEOP) dizia para a reportagem de um jornal da cidade que "no quesito desordem urbana, a população de rua é a principal queixa dos moradores e será um dos dois maiores desafios do secretário especial de Ordem Pública". O outro grande desafio seria a "desocupação dos espaços públicos", sendo anunciado que "a prefeitura não permitirá que pessoas acampem e durmam em calçadas, praias e embaixo de viadutos". E, por fim, o secretário sentenciava: "aqueles que se recusarem a ir para abrigos terão que circular. O direito de ir e vir é de todos. Todos os cidadãos têm de poder circular livremente pelos espaços públicos"43. E sua Secretaria, claro, estaria à frente das ações garantidoras desta "ordem".
A trajetória de Agenor foi atravessada pela prática de "desocupação do espaço público" - com foco em determinados corpos - logo em sua chegada ao Rio de Janeiro em 2013. Vindo do interior da Paraíba (estado situado no nordeste do Brasil) em busca de algum trabalho precarizado nas atividades sub-remuneradas dos megaeventos, sem muito dinheiro, dormiu algumas noites sob marquises da região da Central do Brasil. Numa delas, acordou com uma gritaria. Quando tentou se virar para ver o que acontecia, "já tinha uma botina na minha cara. Mas, assim, esmagando mesmo. Não era só pra me imobilizar. Era para machucar mesmo. Eu não consegui falar nada. Só fiquei parado. Dizem que o melhor mesmo é tentar relaxar, machuca menos". Pensou se tratar dos "seguranças da rua", que costumavam "dar uns sustos pra gente ir saindo da porta das lojas" antes do amanhecer. Mas "aí eu vi um homem com o colete da assistência: aí que eu gelei". O "colete da assistência" foi a senha que o fez compreender que se tratava de uma "operação de recolhimento" perpetrada pela SEOP, no âmbito das Operações do Choque de Ordem. O "colete da assistência" o remeteu ao repertório de histórias que, mesmo estando há pouco tempo na cidade, conhecia sobre essas ações, imaginando assim haver apenas duas possibilidades: entrar "por bem" no micro-ônibus que dava suporte à operação e que os levaria à CRAF localizada há cerca de 70 quilômetros dali; ou, caso resistisse, temia ser " arremessado de um viaduto" já dentro do micro-ônibus também44.
As Operações do Choque de Ordem tornaram-se poderosas entidades simbólicas de coerção, agindo - assim como a Polícia Militar, as milícias e traficantes - sobre as populações pobres como mecanismos de controle, repressão e punição. Essas práticas, para além de suas execuções, funcionavam no plano dos rumores45 e de uma cotidiana teatralização do controle46. Para muitas pessoas como Agenor, essas operações ficaram registradas como experiências brutais. E ele me contava abertamente, com riqueza de detalhes, provavelmente por já estar com sua passagem de retorno à Paraíba comprada, via Projeto de Volta a Terra Natal - programa do governo municipal que financia passagens para quem não é "natural da cidade" retornar a sua "cidade natal" e que, nesse momento, foi executado de forma compulsória: todos aqueles que, estando nas ruas ou em abrigos, eram identificados como de fora, uma vez comprovada a existência de "vínculos familiares" na cidade de origem, deveriam voltar para sua "terra natal"
Os rumores sobre a truculência dessas operações chegaram em forma de denúncia até a 7a Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Defesa da Cidadania da Capital do Ministério Público, que instaurou um inquérito com "vistas a apurar os efeitos do denominado Choque de Ordem [...] sobre a população adulta em situação de rua"47 e, em 2013, abriu uma Ação Civil Pública em face à Prefeitura do Rio de Janeiro. O inquérito dessa Ação contou com depoimentos de servidores da Secretaria de Assistência Social assim como de pessoas que foram alvo das operações de "recolhimento". Também contou com três relatórios produzidos por outros órgãos estatais de controle e fiscalização48.
Esses três relatórios foram elaborados a partir de visitas realizadas em duas CRAFs para onde eram levadas as pessoas retiradas das ruas nas Operações do Choque de Ordem antes de serem encaminhadas, ou não, para outros abrigos. Seriam elas "a porta de entrada na rede de acolhimento", como são referidas nos discursos administrativos e oficiais: a primeira, oficialmente chamada CRAF Tom Jobim, mas amplamente conhecida e referenciada por pessoas usuárias desses serviços e trabalhadores da assistência como "ilha" - por estar localizada na Ilha do Governador, na Zona Norte da cidade e há 16 quilômetros do centro; a segunda, Rio Acolhedor, chamada de "abrigão de Paciência" - em referência ao seu tamanho e ao bairro em que se encontra - ou somente "Antares" - em referência à favela localizada em seu entorno - na Zona Oeste da cidade e distante 70 quilômetros do centro desta. Nesses relatórios, esses espaços são retratados como "inóspitos", "depósitos humanos", "infestados de percevejos", "superlotados" e com estruturas físicas "inadequadas" e "calamitosas". O Rio Acolhedor, quando de sua inauguração, oferecia 400 vagas; já o Tom Jobim, 120.
Os relatórios também tratam das "operações de recolhimento", enfatizando a grande quantidade de pessoas que chegavam por dia nessas instituições, levadas pelos micro-ônibus da SMAS. Um deles aponta ainda para uma modulação dia e noite nessas "operações", onde as diurnas aconteceriam dentro das "normas técnicas" - com a presença de assistentes sociais e psicólogas - e as noturnas, sem essas presenças e praticadas por agentes da Guarda Municipal e da Polícia Militar49. Essa modulação é acionada de outras formas. Um funcionário da assistência que realizava abordagens diurnas relatou tentar convencer a pessoa a sair da rua e ir para o abrigo "apenas" sugerindo que "a noite a abordagem é outra"50. Justificando tais abordagens noturnas, um gestor afirma em reportagem jornalística que "antes, fazíamos a ronda às sete da manhã, mas dava tempo de a pessoa correr, causar tumulto. [...]. Agora é só na madrugada. Quando todo mundo está dormindo é mais fácil"51. Essa temporalidade modulada nos dá pistas de como o Estado atua em suas margens52: durante o dia, os ritos seguiriam as coordenadas gerais que orientam legalmente essas ações; à noite, as práticas mudariam, podendo seguir ritos extralegais. Os relatórios também trazem como denúncia o uso da violência física nessas operações e caracterizam seus agentes: "educadores sociais [que seriam ligados a SMAS] fortes e altos [...] que mais parecem milicianos [...] que não usam crachá"53; o uso de "armas de fogo, cassetetes, pistolas de choque e algemas", além do "espancamento", da "raspagem de cabeças e sobrancelhas feitas por policiais" e de pessoas jogadas em rios poluídos por esgoto ("valão")54.
Sobre essa nebulosa que se evidencia em torno das instâncias estatais corporificadas em seus agentes (a confusão entre os coletes, o não uso do crachá, "educadores sociais que mais parecem milicianos" etc.), Venna Das e Deborah Poole iluminam essas questões quando se referem às práticas de ilegibilidade do Estado55. Se o Estado Moderno é construído a partir de práticas escritas, esse mesmo Estado está "constantemente sendo experimentado e desconstruído mediante a ilegibilidade de suas próprias práticas, documentos e palavras". Ou seja, se esse Estado se vale da escrita como suporte ao seu poder e forma de governo, ele também institui a possibilidade de "falsificação, imitação e mimética de performances do seu poder estatal". Aqui podemos tomar os crachás, ou a falta deles, os coletes da SEOP e da SMAS, fardas da PM e GM, como escritas do poder estatal que são passíveis de falsificação, imitação e instrumentos para a mimética de performances em seu nome, que nos dão mais pistas sobre como esse Estado se produz em suas margens.
Outro aspecto importante desse maquinário é a localização dessas instituições. A SMAS contabiliza sua estrutura de Acolhimento Institucional através de "vagas" materializadas na quantidade de colchões, ou "leitos", que dispõe em determinado abrigo. Os dados sobre essas vagas são sensíveis a dinâmica de abertura e fechamento (provisório ou definitivo) de abrigos e o estabelecimento de contratos com instituições privadas através do chamado "aluguel de vagas". No ano de 2016, a estrutura de Acolhimento Institucional Municipal contava com 845 vagas públicas e privadas. Dessas, 562 estavam localizadas na Zona Oeste da cidade e 283 na Zona Norte. Nota-se, nesta distribuição, que nenhuma vaga estava disposta nas Zonas Centro e Sul da cidade, que correspondem as suas regiões mais ricas e valorizadas. Se, por um lado, estas vagas estavam concentradas na Zona Oeste, por outro, as pessoas que chegavam a esses lugares vinham, em sua maioria, de outras regiões, especialmente das Zonas Sul e Centro.
No Rio Acolhedor, por exemplo, 56 mil 507 "entradas" foram registradas nos dois primeiros anos de seu funcionamento. Esse dado compõe uma estatística produzida por seus funcionários, com a qual buscavam identificar a origem das pessoas que chegavam na instituição, ou seja, o lugar em que haviam sido "abordadas" nas "operações de recolhimento". O documento mostra que mais de 90% das pessoas haviam sido "abordadas" nas regiões turísticas e em importantes eixos econômicos da cidade - Centro, Zona Sul e arredores do Estádio de Futebol Maracanã56. Esses dados, junto aos dados da distribuição de vagas apresentados acima, sugerem os vetores que foram acionados para estimular os fluxos dessas pessoas pela cidade: "recolhidas" dos circuitos turísticos e dos mercados olímpicos e encaminhadas a regiões distantes e espaços de pobreza.
Ainda sobre essa localização, importante destacar que ambas Centrais estavam incrustadas em regiões fronteiriças da dominação territorial por grupos armados: de um lado, o tráfico de drogas; de outro, milícias. Na "ilha", ainda, somava-se a essas duas forças armadas, a Aeronáutica. Essa localização belicosa não passou despercebida nos Relatórios abordados acima, que denunciavam essa territorialidade como "risco" para as pessoas levadas para lá, deixando-as expostas a outras ordens - do tráfico e da milícia57. Penso, contudo, como propõe Ferguson58, que um olhar mais proveitoso sobre essa localização não seria tomá-lo como uma falha administrativa, de gestão, mas tomá-la pelo que, de fato, ela produz: a exposição à morte. Sugiro pensarmos essas localizações como uma forma do Estado produzir parcerias na gestão dessas populações, delegando-as às ilegibilidades de seus códigos e a possíveis confusões mortíferas. São zonas de inderterminação, zonas onde são produzidas e mantidas diferentes gestões territoriais, que produzem certo embaralhamento dos códigos de conduta que regem uma e outra, tornando o trânsito entre umas e outras ainda mais dramático.
Após esboçar essa geografia que expõe à morte, apresento, por fim, um ponto de fuga que estimula o trânsito. O Rio Acolhedor fica próximo a uma estação de trem, onde há um buraco em um dos muros que cercam a plataforma da estação, tornando possível o acesso à essa linha férrea. Este não é o único buraco que dá acesso às plataformas de estações de trem, fato bastante comum, especialmente em estações distantes do centro da cidade. Mas aqui, é este buraco específico que nos interessa. Muitas das pessoas que chegavam nos micro-ônibus "abordadas" nas "operações de recolhimento" acessavam a estação de trem através desse buraco e, a partir dali, a pé ou de trem, tomavam outros rumos. Elas escoavam pelo buraco. Também este buraco não parece ser algum tipo de falha nessa gestão. Pelo contrário, ele facilitava a circulação, sendo também um escape para diminuir a superlotação do "abrigão".
Não se tratou de retirá-las das ruas e confiná-las em instituições de acolhimento, cujas vagas seriam sempre insuficientes. Tratou-se de mantê-las em movimento, deixando que elas escoassem pelos buracos, em um trânsito permanente. Tratou-se de não as deixar sedentarizar em espaços reivindicados como "espaço público". Não se trata de despreparo, falta de infraestrutura, erro de cálculo ou falha das políticas governamentais. Aquilo que os relatórios produzidos por órgãos fiscalizadores traziam como denúncia parece ser a base sobre a qual se sustentou essa gestão: a exposição à circunstâncias mortíferas e à produção de uma circulação permanente. Inassentáveis: condenadas a viver por temporadas em vagas transitórias e instáveis. Nesse contexto, em 2010, o subprefeito da Zona Sul da cidade sentiu-se confortável em dizer, em uma entrevista, referindo-se as "operações de recolhimento", que "há casos aqui de a gente acolher o mesmo cara dez, doze vezes [...] Nossa ideia é vencer pelo cansaço, fazê-lo desistir"59. Resta a questão: fazê-los desistir de quê?
Esses que figuram como "moradores de rua" nas tabelas administrativas, são corpos (con)fundidos (com) ao mobiliário urbano, com entulhos que atravancam fluxos - de outros corpos, de veículos, de capital -, cuja existência no espaço urbano é tida como uma existência ilícita, já que tomada como "privatizadora" de algo que seria público. "A morte do outro, da raça ruim, da raça inferior é o que vai deixar a vida em geral mais sadia e mais pura"60, sintetizou Foucault sobre o tipo de pensamento que sustenta aquilo que definiu como racismo de estado. Em uma aproximação com essa proposição, a morte aqui é tomada também como morte na paisagem urbana, além, é claro, de sua dimensão literal. Fazer sumir, desaparecer, exterminar determinados corpos -da "raça ruim" e "inferior"- da paisagem olímpica para que um ideal de cidade "pura" e "sadia" - premissa para a realização dos fluxos de capital, coisas e pessoas associadas aos megaeventos - pudesse ser sustentado. Alguns - "população de rua" -, "terão que [ser postos a] circular", para que outros possam "circular livremente".
Considerações finais
O último megaevento programado para esse ciclo, os Jogos Olímpicos Mundiais, aconteceram no mês de agosto de 2016. Três meses depois, as Operações de Choque de Ordem, em seu viés "operação de recolhimento" e o Projeto de Volta a Terra Natal - executados de maneira compulsória nesse período - arrefeceram até serem suspensos no início de 2017. Com a suspensão dessas operações, produziram-se as condições para que a população alvo dessas ações, que antes havia sido mantidas em um trânsito permanente, pudessem, novamente, se sedentarizar na paisagem urbana. Penso que aqui temos algumas pistas sobre os usos políticos dos pobres e da pobreza. A manipulação espacial dessas pessoas - quando e onde podem ou não ficar - atrela-se a imagens estético-políticas sobre a cidade.
Ao longo deste texto, busquei apresentar as formas pelas quais a pobreza encarnada nesses corpos é reduzida a um problema técnico, recebendo assim autorização para tratá-los como corpos-entulho, que devem ser removidos ou, nos termos da linguagem gestora, "recolhidos" da paisagem. Também apresentei alguns dos mecanismos estatais acionados para manter essa gente em trânsito permanente pelo tecido urbano e afastadas dos circuitos dos mercados: da racionalidade que orientou as "operações de recolhimento", passando pela cartografia do Acolhimento Institucional até o buraco no muro da linha do trem. A suspensão dessas estratégias "exitosas" de apagamento das pessoas em situação de rua da paisagem, permitiu o reassentamento destas aos olhos da opinião pública, o que contribuiu, inclusive, na produção do Estado de Calamidade61 - decretado pelo então governador do Estado do Rio de Janeiro em 2016 -, que precisa ser materializado em corpos e territórios.
O aumento do número de pessoas em situação de rua, seja pelo desemprego ou por outras causas, pôde ser escamoteado, ou invisibilizado, através desses mecanismos que mostraram sua eficiência quando de sua suspensão. Para contrapor os discursos oficiais que sinalizavam para o desemprego e para as insuficientes vagas em abrigos como as causas do aumento da população em situação de rua no ano de 2017, apresentei os mecanismos que mantiveram em circulação os indesejáveis da cidade olímpica, discorrendo sobre alguns dos efeitos menos visíveis das ditas políticas de "pacificação" e "ordenamento urbano" -qual seja: a produção de refugiados urbanos.
Além disso, a longa tradição historiográfica, sociológica e antropológica que se debruça sobre a temática "população de rua", sugere que os índices de desemprego não dão conta dessas realidades. A miséria que assola essas existências não se produz com índices de desemprego, arena da qual já estão excluídas, sendo aqueles que figuravam fora das políticas habitacionais e de trabalho, como sinalizou Robert Castel62 na década de 1990. Os cortes e intermitências em políticas sociais de distribuição de renda, para as quais esse segmento da população é mais sensível - os "benefícios eventuais", a gratuidade de medicamentos em farmácias populares, restaurantes populares, o preço e qualidade dos transportes urbanos, dentre outras políticas que figuram miúdas porque gerem misérias -, causam sobre essas existências um impacto ainda maior do que os próprios índices de desemprego.
Como colocou recentemente Achile Mbembe "se, ontem, o drama do sujeito era ser explorado pelo capital, a tragédia da multidão hoje é já não poder ser explorada de modo nenhum, é ser relegada a uma humanidade supérflua, entregue ao abandono, sem qualquer utilidade para o funcionamento do capital"63. Nesse sentido, penso ser mais proveitoso olhar para outros dispositivos que têm produzido essa multidão: despossessão generalizada e intervenções violentas em suas vidas. Sublinha-se nesse processo, a produção de desarranjos em vidas sustentadas por arranjos já fragilizados pela pobreza - a expulsão, o desentendimento e o conflito territorial, a destituição dos meios através dos quais mantém sua subsistência, moradia, redes de afetos e suporte material -, quando passam a viver transitoriamente entre vagas - de ruas, de instituições de "acolhimento" e de saúde, de casa de conhecidos, quartos de pensão, ocupações. São pessoas ameaçadas nos espaços em que buscam se sedentarizar e ameaçadas quando em movimento - vidas constantemente lembradas de que são matáveis.