Introdução
Ao escolhermos como escopo geral deste artigo a apresentação do resultado de um extenso trabalho de pesquisa que contou com a colaboração de dezenas de pesquisadores brasileiros na "Rede de Pesquisa sobre História da Imprensa no Brasil do Século XIX", partimos da perspectiva que as articulações teóricas e metodológicas derivam não apenas dos pressupostos iniciais que enredam tramas e problemáticas, visto que também vão sendo moldadas no decorrer da própria investigação. Tal concepção encontra sólido alicerce na abordagem qualitativa da produção científica, cujo principal pressuposto aponta o caráter processual e interpretativo do saber enquanto processo de construção histórica que abarca redes e conexões alicerçadas no tempo e no espaço.
Segundo Deslauriers e Kerisit, "a abordagem qualitativa nas ciências sociais compõe seus objetos num nível local, por uma espécie de bricolagem criadora"1, já que o campo de pesquisa não é operacionalizado nem tampouco pré-estruturado antecipadamente. Desse modo, cabe a quem pesquisa atentar-se às particularidades do cenário do estudo, observando os aspectos que indicarem pertinência. Portanto, compreendemos que conduzir uma pesquisa ancorada na abordagem qualitativa significa mais do que reunir métodos e conjuntos de instrumentos decodificadores e interpretadores de teias de significados, ainda mais quando propomos que essa parta da premissa das redes e conexões, considerando-se aspectos práticos, sociais e históricos da construção de determinados saberes.
De acordo com Henri Lefebvre2, o prático, o social e o histórico são os três principais pilares do conhecimento científico, visto que antes de elevar-se à qualidade teórica, é necessário problematizar experiências empíricas existentes em realidades e relações sociais que, por conseguinte, também são históricas. Ao estabelecer possíveis caminhos para que questões sejam elucidadas e objetivos alcançados, o campo científico aponta para os métodos, ou seja, processos que indicam as trilhas do fazer e de como se pode conhecer.
Para Milton Santos, o método é um "[...] conjunto de preposições coerentes entre si - que um autor ou um conjunto de autores apresenta para estudo de uma realidade, ou de um aspecto da realidade"3. Todavia, observa que nenhum método é eterno ou imutável, já que precisa conseguir cumprir a sua função primária, que é interpretar. Diante das experiências próprias, de outros pesquisadores e de transformações inerentes à própria configuração da realidade, Santos é categórico ao afirmar: "Já que eu não posso inventar o mundo, invento uma forma de interpretação, pois o mundo existe independentemente de mim"4. E é também essa perspectiva que embala a nossa proposta de se estabelecer redes e conexões para a ideação de novas análises acerca da imprensa brasileira.
Ao propormos uma metodologia na perspectiva das redes e conexões, também compartilhamos a ideia de que é preciso reinventar o fazer científico dos estudos históricos da imprensa brasileira, que passaram por vários escopos e recortes e, na atualidade, conclamam por enlaces capazes de criar proximidades com a própria totalidade histórica5. Apesar de possuir imprensa periódica desde o ano de 1808, o Brasil é um país que ainda está construindo perspectivas metodológicas no campo da historiografia do jornalismo. Isso porque a construção de análises histórico-culturais acerca dos veículos jornalísticos brasileiros data de poucas décadas, sendo que, mais recentemente, salta aos olhos a proliferação de estudos locais e regionais, em contraposição à produção acumulada no século XX, cujas narrativas, em geral, estão relacionadas aos grandes centros urbanos e suas configurações de poder na geopolítica nacional e no próprio campo jornalístico e comunicacional.
A extensão territorial do Brasil e a pulverização dos movimentos históricos faz com que haja, nas pesquisas referentes à imprensa, um duplo movimento: ora considera-se nas análises, ao extremo, os particularismos, ora generaliza-se os processos ocorridos nos mais importantes centros urbanos como sendo espécie de emblema comum pertencente a todas as regiões. Quando propomos uma metodologia apoiada em redes e conexões, consideramos que ultrapassar olhares generalistas em direção a uma perspectiva plurirregional, além de fortalecer os estudos da imprensa local e regional, rompe com silenciamentos e lógicas macroestruturais e hegemônicas que, na síntese histórica, privilegiam os grandes centros de poder.
Assim, o objetivo central do texto é debater os movimentos reflexivos da “Rede de Pesquisa sobre História da Imprensa no Brasil do Século XIX” que resultou em interpretações sobre os processos jornalísticos existentes nos momentos iniciais da imprensa brasileira e ao longo dos anos de 1800, com especial atenção para o período pós-Independência do Brasil (1822)6. Todavia, não se trata apenas de uma apresentação das pesquisas realizadas, visto que, por meio delas, pretendemos pensar nas redes e conexões como perspectivas metodológicas para os estudos de escopo histórico-culturais sobre a imprensa brasileira.
O propósito inicial desta Rede de Pesquisa era construir uma história da imprensa brasileira no século XIX a partir do que denominamos perspectiva histórico-comunicacional, ou seja, colocando em evidência um olhar que privilegiasse, religasse e relacionasse comunicação e história. E mesmo diante da constatação de que já foram produzidas centenas de trabalhos que se ocuparam do século XIX e de sua imprensa, o desafio era produzir novas interpretações nas quais os aportes teóricos da comunicação fornecessem também chaves analíticas para a compreensão histórica dos processos comunicacionais, sem abandonar os postulados centrais indicados pela teoria da história7.
Ao pensarmos a formação de uma rede para produzir pesquisas sobre a imprensa brasileira do século XIX, objetivamos também deslocar o olhar interpretativo do Rio de Janeiro, então capital imperial, para outros territórios culturais. Para investigar os veículos jornalísticos, avançando análises a partir de territórios culturais/políticos nos quais se espraiavam - e numa perspectiva em que a imprensa fosse o ator principal - seria necessário o trabalho de muitos pesquisadores. Começamos este percurso em 2018, dividindo o país, tal como era política e geograficamente considerado no século XIX, escolhendo para cada uma das regiões coordenadores: o Oeste Marítimo, os Governos Gerais do Leste e os Governos do Interior8.
A formação de redes de pesquisa nas quais reflexões de territorialidades diversas fossem ouvidas e colocadas em relação foi, portanto, o caminho escolhido. Assim, a primeira dimensão de redes diz respeito ao modus operandi da pesquisa, enquanto a segunda refere-se, como veremos no decorrer deste artigo, ao seu modelo teórico-metodológico, ou seja, como a categoria rede se acopla, se aproxima e se distancia da perspectiva das conexões, na história da imprensa.
Se redes e conexões são práticas prevalentes no mundo comunicacional do século XXI instaurando outros nexos sobre territórios, lógicas culturais, constituição do sujeito histórico que vive no mundo do bios midiático9, parece-nos que essa dimensão teórico-metodológica emerge a partir do lugar existencial do próprio pesquisador. Tal premissa encontra refúgio na constatação de que é do presente que as inquietações emanam e constroem modos de olhar o passado, introduzindo questões que reconfiguram as análises dos tempos pretéritos. Para Rancière10, esse movimento se configura em um anacronismo repleto de positividade, o que, conforme apresentaremos ao longo do texto, torna-se evidente nas análises empreendidas.
1. Considerações iniciais sobre o local, o regional e o global
O debate sobre a adoção na história de uma perspectiva localista, regional ou global é intenso e perene. Entretanto, a partir de meados do século XX, ganha contornos específicos, que não aprofundaremos no escopo deste trabalho, mas que deve ser rapidamente referenciado. O colapso dos impérios europeus abalou a cosmogonia ocidental e a morfologia da História. Estes debates associados aos combates pelos direitos civis de mulheres, da população LGBTQIA+, de afrodescendentes, acoplados às lutas anticoloniais fomentaram a revisão crítica dos pressupostos das Ciências Humanas e Sociais. As identidades sociais e políticas, consideradas, até então, e de maneira equivocada, como seguras e estáveis, passaram a ser vistas sob a égide da instabilidade e da precariedade. Os sujeitos históricos passam a serem considerados, cada vez mais, em sua complexidade, enquanto as estruturas do mundo social, antes apresentadas como sólidas, deram lugar a multiplicidade dos movimentos das agências. Como remarca Morales e Silva, a partir dos anos 1970, as perspectivas pós-estruturalistas, culturalistas, pós-coloniais ou pós-modernas "[...] promoveram uma radical desconstrução dos paradigmas de uma temporalidade linear eurocêntrica" 11.
Há que se remarcar ainda o direcionamento crítico e analítico da história a partir do desenvolvimento e da hegemonia da história cultural, introduzindo direcionamentos metodológicos que resultaram num maior cuidado com a linguagem, incluindo a desconstrução da retórica das próprias fontes, submetidas a categorias apresentadas desde o século XIX como perenes, a exemplo de "civilização", "ocidente" e "império", dentre outras. Cada vez mais, também os historiadores passam a atentar para os limites de suas próprias hipóteses e, sobretudo, das generalizações produzidas. No que diz respeito aos parâmetros espaciais, em meio à multiplicidade de debates, a disciplina histórica, de maneira geral, passou a oferecer alternativas teóricas-metodológicas privilegiadoras da perspectiva da confluência, sobressaindo-se as propostas comparativistas de escopo global e as que fazem das conexões o paradigma dominante12.
Pensar em territórios marcados historicamente pelo lugar de ex-colônia e, no caso brasileiro, também pelas chagas de uma escravidão de mais de três séculos, coloca como categoria fundante a diferença, prefigurada pelas múltiplas exclusões. Assim, a delimitação do próprio território e sua apropriação discursiva, o interior como sertões, por exemplo, é tributário do aprofundamento das diferenças e da incorporação de outras exclusões. Ainda que se deva considerar que, no Brasil, a relação entre o regional e o nacional tenha sido temática constante durante todo o século XX, na busca construção da chamada identidade brasileira é necessário perceber que, na condição de formações discursivas, ampliavam as diferenças em nome de algo comum que construiria uma pretensa unidade: o país nação. Assim, prejulgava-se que estudando os particularismos, seria possível construir um elemento consensual por entre as diferenças. Noutras perspectivas, julgava-se o regional como espaço retrógrado diante de um pretenso mundo moderno.
Através do recorte regional, influenciado pelo pensamento geográfico, procurava-se montar como possibilidade para a construção da própria história do país uma variação de escalas, em que a região podia ser, algumas vezes, uma província/estado ou mesmo um espaço que englobasse várias localidades. Mas, no caso brasileiro, como bem mostra Albuquerque Júnior13, a criação das identidades regionais decorre da perda das elites agrárias do domínio político e econômico em relação ao espaço nacional e que, para tentar manter seus privilégios, elaboram diferentes recortes regionais. Para ele, a emergência ou como ele denomina a "invenção do Nordeste", a partir da década de dez do século XX, talvez tenha sido o processo de maior êxito na criação de uma identidade regional no país.
Em relação ao conceito de região, mesmo no pensamento geográfico, não há consenso na sua definição, tornando-se ora fluido, ora escorregadio, podendo ser agrupado a partir de diferentes recortes: localidades, cidades, estado ou países. As regiões, entretanto, e como já nos referimos rapidamente, são sempre construções históricas elaboradas por meio de discursos, símbolos e práticas desenvolvidas interna ou externamente àquele território construído, com objetivos diversos em função disputas
reais e simbólicas. Todavia, no que concerne ao conceito de região, corroboramos com o pensamento de Milton Santos14, que a aponta como decorrência das interações entre as formas e os conteúdos existentes em um determinado espaço que, por sua vez, é composto por relações históricas, sociais e culturais, o que inclui os ordenamentos econômicos e políticos.
Nessa perspectiva, pela própria dinâmica que tece a historicidade dos territórios, espaços e lugares, mesmo que o modo de produção seja similar, as regiões não são homogêneas, já que o seu lócus inclui dimensões da vida, arranjos específicos, relações internas e externas e complexas interações que estão constantemente em movimento e mudanças. Para Santos15, a região resulta tanto de ações internas, quanto externas, ou seja, a sua formação acontece por meio da internalização de processos externos a partir dos elementos que, internamente, a compõem em fluxos que são históricos, donde se emana as diferenças regionais:
"A região e o lugar não têm existência própria. Nada mais são que uma abstração, se o considerarmos a parte da totalidade. Os recursos totais do mundo ou de um país, quer seja o capital, a população, a força de trabalho, o excedente, etc., dividem-se pelo movimento da totalidade, através da divisão do trabalho e na forma de eventos. A cada momento histórico, tais recursos são distribuídos de diferentes maneiras e localmente combinados, o que acarreta uma diferenciação no interior do espaço total e confere a cada região ou lugar sua especificidade e definição particular. Sua significação é dada pela totalidade de recursos e muda conforme o movimento histórico"16.
Pensado dessa maneira, o conceito de região também abre espaço para reflexões acerca do que Daniela Cristiane Ota e Lairtes Chaves Rodrigues Filho17 definem como "Geografias da Comunicação", na qual os lugares de memória possuem centralidade. Isso porque o movimento histórico que tece as regiões e seus diversos agrupamentos étnicos e sociais, também é formador de memórias que, por sua vez, são tão específicas quanto o próprio lugar. Dessa feita, as Geografias da Comunicação se propõem a compreender as texturas que emanam das significações e práticas espaciais e comunicacionais, ou seja, na própria experiência do sujeito junto ao mundo e do mundo na existência do sujeito. É, portanto, uma relação dialética, na qual ao mesmo tempo em que a comunicação produz o local e o conduz ao global, é por eles produzida: "A regiona-lidade, nesse sentido, não implica necessariamente na identificação com um espaço delimitado por territórios, mas pela comunidade, pelo perten-cimento, pela sintonia dos sujeitos em um determinado sensoriuni"18. Noutros termos, "Quando investigamos o local, a dimensão reduzida do urbano, as cidades pequenas, vemos que há um mundo a ser explorado e, mais importante, um mundo a ser compreendido, analisado, apreendido. Confirmamos então que a localidade ajuda a entender por inteiro, e dá pistas para, o domínio das outras escalas"19.
A complexificação dos debates em torno de uma história global intensifica-se, no cenário do que se denomina processo de globalização contemporâneo, a partir das últimas décadas do século XX20, com o advento de novas tecnologias comunicacionais, que promoveram mais do que o evidente encurtamento das distâncias, uma desconfiguração complexa da noção de espaço. Se tomarmos como pressuposto que a história produz nexos reflexivos sobre a historicidade humana e essa sedá na dimensão do tempo e do espaço21, podemos dizer que, ao viver a sua historicidade, a pessoa humana vive no tempo/espaço. Todavia, não apenas o espaço enquanto lugar geográfico ou político que se constituirá como espaço social, mas também os espaços imaginários e os espaços virtuais22, como os que são dominantes nos tempos contemporâneos.
De fato, Milton Santos analisa que o domínio da liberdade está no espaço, já que este abarca tanto a multiplicidade das ações, quanto a variedade das perspectivas e das temporalidades. Para o autor, o espaço "[...] é o lugar material da possibilidade dos eventos [...] é mídia nos dois sentidos. Ele é linguagem e também é meio onde a vida é tornada possível"23. Todavia, isso não quer dizer que as pessoas e até mesmo as instituições compartilham os mesmos espaços e tempos, pois as dinâmicas espaciais também são alimentadas pela materialidade da ação histórica e das suas próprias contradições. Nesse sentido, o espaço também pode ser compreendido pelo "[...] conjunto indissociável de sistemas de objetos naturais ou fabricados e de sistemas de ações, deliberadas ou não. A cada época, novos objetos e novas ações vêm juntar-se às outras, modificando o todo, tanto formal quanto substancialmente"24. Ao corroborar com tais apontamentos, Borges25 enfatiza que o verbo do espaço é o "viver", enquanto o "dominar" e o "apropriar" são elocuções inerentes à outra categoria geográfica extremamente importante para os estudos alusivos às redes e conexões: o território.
Tal como pontuamos, não é nossa intenção tecer longas considerações acerca de categorias da Geografia. Contudo, reiteramos que o território não existe sem a construção do espaço, pois "o território é o lugar em que desembocam todas as ações, todas as paixões, todos os poderes, todas as forças, todas as fraquezas, isto é, onde a história do homem plenamente se realiza a partir das manifestações da sua existência"26. Numa perspectiva abrangente, a construção territorial resulta da apropriação de espaços por grupos específicos que, guiados por critérios e normas de determinada época histórica, delimitam fronteiras materiais e simbólicas.
Pelo exposto, podemos afirmar que o território é, ao mesmo tempo, produto e produtor dos processos e dinâmicas sociais, cuja tessitura está justamente nos vínculos que o constituem, que, na contemporaneidade, cada vez mais erigem em redes. É o que Milton Santos27 compreende como "meio técnico-científico-informacional", no qual o território, obrigatoriamente, é composto e está atravessado por redes tecnológicas, científicas e informacionais que, apesar de serem dotadas de fracionamentos por não incidirem de modo igual, assentam processos de unificação. Para o autor, a unificação ocorre por meio de ligações do global, alicerçado nas hegemonias macroestruturais e no ordenamento social, e do local, portador da desordem, já que pressupõe, fundamentalmente, o espaço vivido.
Ao trazermos tais acepções ao campo comunicacional, podemos estabelecer um diálogo com uma máxima de Bordenave: "Não poderia existir comunicação sem sociedade, nem sociedade sem comunicação [...] Diz-me como é a tua comunicação e eu te direi como é a tua sociedade"28, pois os processos comunicativos humanos não existem em si mesmos nem tampouco acontecem de forma apartada da vida social, que também é histórica.
Essa perspectiva implica em assumirmos que quanto mais complexa a estrutura das sociedades, mais heterogeneidade possui o comunicacional, o simbólico e o próprio campo mediador e significador do mundo e dos eventos, seja qual for a escala, se global, regional ou local. Isso porque quanto mais entranhada em redes e intrincada no meio técnico-científico-informacional, mais "[...] nós, tramas, fluxos, dispersões e distanciamento das possibilidades de apropriar-se do todo, que inclui, entre outros elementos, os objetos materiais e simbólicos hege-monicamente edificados e homogeneamente distribuídos"29.
2. O local, o regional e o global em redes e conexões: perspectivas metodológicas
podemos postular que as tendências acentuadoras das hegemonias dominantes que são fomentadas pela racionalidade do meio técnico-científico-informacional se materializam no lugar, ao mesmo tempo em que o lugar detém as possibilidades da contra-hegemonia. A respeito do assunto, num primeiro momento, recorremos ao pensamento de Armand Mattelart, que sinteticamente destaca ser a harmonia com a "genealogia do espaço internacional" estratégico para os apelos da mundialização/globalização", trazendo consequências para o fazer histórico, ou "jogar a história no esquecimento"30.
Quando o autor fala sobre os processos que jogam a história no esquecimento, está se referindo também a leituras parciais do mundo, que, indubitavelmente, diminuem as probabilidades de elaborações de sínteses mais condizentes com a realidade. Essas situações embaraçam a compreensão das hegemonias dominantes e, por vezes, disfarçam e ocultam processos que poderiam fornecer pistas para a construção de uma leitura mais ampla do global, bem como das suas conexões com o local - tal como já pontuamos, no que concerne à tessitura da história da imprensa brasileira
Na construção da história da imprensa no Brasil podemos constatar diversos processos mitificadores31, tal como os presentes nas narrativas dos grandes centros de poder em detrimento de outras regiões do país, que também constituíram seus espaços jornalísticos desde o início do século XIX, mas que comumente são ignoradas e, por conseguinte, silenciadas. Nesse ponto, indicamos o primeiro pressuposto metodológico da "Rede de Pesquisa sobre História da Imprensa no Brasil do Século XIX": constatar um silenciamento não equivale à superá-lo. É preciso agir nas redes e conexões para apresentar leituras e narrativas capazes de compreender as relações entre o global e o local, entre o hegemônico e o que foi instituído às margens, periferias e rincões distantes dos grandes centros de poder. Portanto, é importante a construção de uma unidade que, a partir do singular, se multiplica a partir dos processos vividos na história, que incluem exclusão, barbárie, genocídio decorrentes das condições de exclusão de um passado colonial e de dominação. Afinal, ignorar e silenciar o que é pregresso, além de ser um movimento que corrobora com a sua mitificação, fortalece o pensamento hegemônico dominante e, consequentemente, enfraquece a construção de uma historiografia que realmente fale da imprensa nacional.
Num segundo momento, resgatamos as reflexões de Milton Santos32 acerca da dimensão central do lugar, que está relacionada ao próprio viver e às espacialidades que o formam e o constituem enquanto possibilidade contra-hegemônica. Para ele, "[...] o lugar é o encontro entre possibilidades latentes e oportunidades preexistentes ou criadas"33. A assertiva do autor tem um dos fundamentos na dimensão mundial da globalização, que está alocada no mercado cada vez mais presente nas chamadas "organizações globais" que, hipoteticamente, estariam em toda parte, mas acabam podendo sequer estar em lugar algum. Dessas contradições emanam fragmentações, disparidades, distanciamentos de usos e de acessos, ao mesmo tempo em que imputam ao lugar o status de par opositivo dialético ao próprio movimento globalizante, por este se constituir em lócus do viver, das esperanças, das mudanças e das transformações: "Se o lugar nos engana, é por conta do mundo. Nessas condições, o que globaliza separa; é o local que permite a união", pontua Santos34.
O lugar é reflexo de lógicas hegemônicas, ao mesmo tempo em que também aloca o acontecer solidário, já que a sua constituição perpassa tanto pela configuração territorial, quanto pela solidariedade regulada, capaz de oferecer contrapontos. Exemplificando, o autor cita os jornais locais e de bairro que, mesmo num mundo globalizado e permeado pelo meio técnico-científico-informacional, migraram para outras plataformas e se recriaram, ao invés de desaparecerem, tal como especialistas haviam previsto. Na visão de Milton Santos35, isso ocorre em função da relação cultural entre o local e o global, pois, apesar de terem acesso ao que é nacional ou internacional, as pessoas vivem no lugar e carecem de identificação com o espaço onde vivem e se sentem pertencentes: "[...] o consumo leva ao seu antídoto. O consumo nos aprisiona, mas para vender tem que levar em conta estratificações de idade, de renda, os gostos herdados. E o jornal tem este papel, é o intermediário, tem também um consumo político."36.
No que diz respeito à imprensa, o momento axial da criação de um veículo de jornalismo e da sua sobrevivência, mesmo que efêmera, bem como a intencionalidade do texto jornalístico - e talvez até mesmo das significações do próprio leitor - é guiado pelo contexto regional ou local. Nessa perspectiva, pontuamos o segundo pressuposto metodológico: é preciso considerar critérios do local e do regional inerentes aos seus tempos e espaços históricos, cujas particularidades localistas podem distanciar-se da chamada grande mídia, bem como das narrativas generalizantes do que aconteceu, enquanto fato histórico, nos centros hegemônicos de poder. Pensar o local e o regional em redes e conexões é atentar-se às suas propriedades e potências históricas, sem, contudo, promover o seu isolamento ou impulsionar o seu silenciamento. É saber que o local existe e sobrevive independentemente das representações que o regional, o nacional e o internacional constroem a seu respeito, muito embora essas insígnias demarquem e assinalem a configuração do lugar, já que toda captura territorial pressupõe significações. No entanto, considerar as especificidades do local ou construir uma perspectiva plurirregional não significa somar partes desintegradas, nem tampouco proceder a um apartamento das relações e conexões existentes com o que emana do global, visto que isso seria negar a existência da própria sociedade, tecida sempre em redes.
O conhecimento, a informação e a organização em rede não são categorias que emergiram recentemente, já que, historicamente, assinalam a vida cotidiana, as relações de poder e, até mesmo, a emergência dos primeiros jornais no mundo, no Brasil, em suas regiões e localidades. Porém, o que há de novo, no contemporâneo, é a centralidade das redes digitais, já que a sociedade em que vivemos é a sociedade do indivíduo em rede que, por sua vez, é a sociedade das linguagens que disseminam conteúdos simbólicos e afirmam significações e práticas culturais. Sob esse prisma, segundo Castells37, o sistema comunicacional contemporâneo possui três grandes tendências: é global, mas sem deixar de ser local; é interativo e busca maior horizontalidade.
Salientamos que a dimensão política e de poder presente nas redes indicam níveis, escalas e acessos díspares que podem ser sobrepostos ou prolongados por outras redes dotadas de diferentes hegemonias e potências. E isso não está relacionado apenas às infraestruturas ou tecnologias que assentam as redes, pois também dizem respeito aos seus usos e acessos. Isso porque a seletividade das redes pode tanto comunicar quanto não comunicar, assim como podem incluir e excluir, já a rede está espalhada "[...] por todo o mundo, mas não inclui todas as pessoas"38, tessitura semelhante encontrada também em muitos argumentos de Milton Santos, para o qual "[...] só os atores hegemônicos se servem de todas as redes e utilizam todos os territórios"39.
Portanto, o terceiro pressuposto metodológico da de uma história desenvolvida a partir do pressuposto das redes está alicerçado na própria perspectiva da sociedade em redes, que não é nova, mas que se renova na contemporaneidade diante das TICs e de suas possibilidades. Isso implica em afirmar que, diante de tecnologias que favorecem a produção conectada do conhecimento, há que se avançar também nos seus modos de construção, o que inclui a proposta de releituras conectadas e em rede da história da imprensa brasileira.
Em síntese, afirmamos que o mundo objetivo e a realidade subjetiva certamente se interrelacionam, mas não podem ser confundidos, uma vez que conhecer é sempre um ato orientado pela densidade histórica.
Nesse ponto de vista, o conceito tem a capacidade de universalizar relações eclodidas no plano histórico, social e cultural, mas as narrativas, alicerçadas no viver, possibilitam entendimento mais amplo da existência e das suas singularidades. A própria existência, enquanto aspecto simbólico da vida, é o âmago de toda simbologia. Isso posto, pontuamos o quarto direcionamento metodológico: a construção de leituras fragmentadas ou generalistas da historiografia do jornalismo brasileiro leva à superficialidade e promove a efemeridade, interferindo na visibilidade do local e do regional, ao mesmo tempo em que limita a capacidade reflexiva e promove pensamentos dispersos mais próximos do senso comum e mais distantes de uma produção científica vigorosa.
O quinto e último pressuposto funda-se na não neutralidade da comunicação humana e, por consequência, da pesquisa histórica e científica. Continuar produzindo fragmentos ou pensar em generalizações originárias aos territórios hegemônicos e de poder é perpetuar conjecturas, quando elas podem emanar de interações em redes que produziram novas visibilidades.
3. Redes e conexões numa história da imprensa brasileira
Conforme mencionamos, o primeiro estudo empreendido no âmbito da "Rede de Pesquisa sobre História da Imprensa no Brasil do Século XIX" está sistematizado em uma obra, cujo alicerce encontra-se na perspectiva histórico-comunicacional, já que a síntese apresentada possui centralidade no contexto da comunicação, ao mesmo tempo em que desloca as chaves de leituras para outros territórios culturais brasileiros distintos do Rio de Janeiro, então capital do Império. Para tanto, a opção foi pensar numa divisão metodológica do país tal como ocorria no século XIX: Oeste Marítimo, Governos Gerais do Leste e Governos do Interior.
Dezenas de pesquisadores envolveram-se nessa atividade e mobilizaram outros colegas, de modo a apresentar tramas temporais e de sentidos que revelam passados edificadores do Brasil oitocentista e do tempo vindouro. Num plano geral, os movimentos reflexivos, presentes nos capítulos do livro já referido, foram construídos por meio do acesso aos acervos de periódicos que circularam no Brasil do século XIX, sendo que muitas dessas sínteses ainda não haviam sido registradas com olhar histórico-comunicacional.
Já na introdução, que apresenta os fundamentos da pesquisa e a própria obra40, destacam-se alguns movimentos, a começar pelo aumento significativo da circulação de jornais a partir de 1820, momento histórico no qual grupos políticos em busca de poder nacional, regional e local afirmavam suas ideias na imprensa periódica, ao mesmo tempo em que o país passava por reestruturações geopolíticas importantes, tais como a Independência (1822), a renúncia de Dom Pedro I (1831) e o período Regencial. Pelos periódicos, é possível perceber que o embate inicial se mirava no constitucionalismo monárquico, que depois tomou novo corpo nas bandeiras republicanas e abolicionistas, fundadoras de impressos e movimentadoras do debate na arena política nacional.
Em relação ao escopo desses impressos, para além dos afiliados aos grupos políticos regionais e nacionais - hegemônicos ou não - é possível perceber iniciativas que se autodeclaravam culturais, noticiosas, empresariais, femininas, estudantis, religiosas, maçônicas, satíricas e literárias, dentre outras similares. Muitos desses periódicos tiveram vida efêmera, mas perenizaram seus ideais na seara da história da imprensa brasileira, por vezes, utilizando-se de muita criatividade para vender seus exemplares41.
Outra questão que salta aos olhos são as redes e conexões que os periódicos oitocentistas estabeleciam entre si, pois era prática comum enviar um jornal para a sede do outro e vice-versa. Com isso, um impresso noticiava acontecimentos de outra localidade, ao mesmo tempo em que nutria aquela com as suas próprias informações. Por mais longínquos dos grandes centros urbanos do país que estivessem, os jornais oitocentistas que circularam nos rincões do Brasil não eram isolados. As redes e conexões que estabeleciam com periódicos correligionários do seu escopo ou ideais garantiam a visibilização de fatos locais, regionais, nacionais e internacionais, mesmo que com um delay temporal, dadas às condições de transporte da época42. Além disso, em vários lugares, quando o Correio Postal chegava em algum aglomerado urbano, era alardeado com sinalizações sonoras para que a população ficasse ciente daquele evento extraordinário, que trazia notícias de outras paragens, seja em forma de correspondências ou de jornais.
Ao ler os resultados da pesquisa, fica latente que as localidades brasileiras do século XIX, em diferentes regiões, estabeleceram trânsitos culturais construtores de espaços e redes comunicacionais e informacionais, sintetizados em uma ordem impressa - a dos jornais - que, a seu tempo e a seu modo, produziram e fizeram circular conteúdos simbólicos, ao mesmo tempo em que mediaram trocas culturais em variados ordenamentos. Sem a construção de uma pesquisa em redes e conexões, dificilmente isso poderia ser percebido.
É possível compreender que as pautas de interesse nacional permearam os impressos, ao mesmo tempo em que esses não se furtaram de debater questões localistas, cujo interesse focava em conjunturas regionais. Essa questão é aparece no estudo focado em momentos axiais da implantação da imprensa em um território que, no século XIX, era denominado Grão-Pará43. Nesse texto, percebemos tanto as dificuldades com a aquisição de equipamentos tipográficos e litográficos que eram comuns aos territórios interioranos, quanto as principais agendas, que, entre outros, englobavam a Independência, o abolicionismo e a República, sem, contudo, deixar de registrar temáticas regionais.
Nos dois capítulos seguintes, o leitor tem com temáticas similares, porém, focadas em particularidades e singularidades inerentes a outros territórios pertencentes ao Oeste Marítimo: O Maranhão e o Piauí44. Nessa primeira localidade, o abre-alas do jornalismo foi o periódico O Conciliador do Maranhão, que circulou entre 1821 e 1823, ou seja, em um período de rupturas, já que assinala os anos iniciais da Independência.
Mais do que localizar as primeiras décadas do periodismo impresso no Maranhão, o texto possibilita perceber movimentos que também estão presentes em outras regiões do país, tal como a expansão da imprensa, alicerçada nas localidades com maior expressão econômica, o que ocorreu tanto no Leste quanto no Norte maranhenses. Para além das conjunturas de poder que fizeram circular jornais, sob o olhar histórico-comunicacional, a pesquisa também engloba análises de produtores, condições de produção e circulação, discursos jornalísticos e leitores, o que não seria possível ser construído com um olhar de fora.
Já no que concerne ao Piauí, tema do quarto capítulo, a centralidade está em um personagem atuante na imprensa política do Segundo Reinado, cuja trajetória liberal travou forte oposição ao Império e a Dom Pedro II: David Moreira Caldas. Mais do que aprofundar nos ideais do "Amigo do Povo" e "Inimigo do Império", o texto revisita memórias a partir de vestígios do passado que remarcam intencionalidades e lutas silenciadas pelas já citadas obras generalistas sobre a história da imprensa brasileira.
O texto seguinte, já localizado nos Governos Gerais do Leste, revela assuntos pouquíssimos citados na historiografia da imprensa brasileira, já que o foco foram os periódicos baianos que hoje poderiam ser chamados de especializados45. Esses periódicos tinham públicos bastante específicos: as mulheres, as crianças e os espíritas, constituindo-se em publicações que instrutivas, pedagógicas e divulgadoras da doutrina kardecista, um vanguardismo para aquele momento histórico no qual o catolicismo ainda era a religião oficial do país. Novamente, percebemos um recorte que, sem o olhar localista, dificilmente seria abordado em uma narrativa historiográfica sobre a imprensa brasileira.
Pernambuco compõe os três próximos textos do livro, com foco, respectivamente, na imprensa política do período da Independência, no jornal mais antigo em circulação na América Latina e na importância do jornal editado por Frei Caneca para a Confederação Equador46.
O primeiro está centrado na cultura política vintista que, a partir da chamada Revolução do Porto de 1820, até o chamado Dia do Fico, em 1822, um marco na Independência que empoderou os liberais e a própria discussão em relação às liberdades. Além de contextualizações históricas, analisa a contribuição pedagógica de impressos como Aurora Pernanbucana, Segarrega, Relator Verdadeiro, O Marimbondo e Gazeta Pernambucana, destacando os diálogos empreendidos pelos liberais contra os valores despóticos e em prol da construção de um projeto social alicerçado em valores da brasilidade.
O Diário de Pernambuco é o foco do próximo texto que destaca tanto o impresso mais antigo da América Latina, quanto suas contribuições para os avanços e a consolidação da imprensa periódica pernambucana. Assim como ocorreu em outras localidades, as mudanças na gestão regional da Província repercutiram-se no impresso, que no século XIX, navegou entre combativo, liberal, conservador, oficioso e até mesmo comercial, com grande foco em anúncios. Apesar disso, o status de publicação oficial foi garantidor da sua longevidade, bem como do seu legado não só na cultura impressa pernambucana, como também na formação de jornalistas daquela região.
Após a Independência, em julho de 1824, Pernambuco deu início a um movimento revolucionário que se espalhou para outras províncias, como o Rio Grande do Norte, a Paraíba e o Ceará. O grande líder desse movimento foi Frei Caneca47, que, em 25 de dezembro de 1823, havia fundado um jornal - O Typhis Pernambucano - para divulgar tais ideais. As narrativas presentes nesse impresso no contexto da Confederação do Equador compõem o último capítulo do livro focado na imprensa pernambucana. Além do conteúdo do impresso, a autora recorreu a uma coleção raríssima do Arquivo do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP), trazendo, portanto, leituras aprofundadas, textualidades e memórias singulares.
Ainda compondo os territórios dos Governos Gerais do Leste, o livro perpassa por São Paulo, São Pedro do Rio Grande do Sul e Santa Catarina48. O capítulo sobre São Paulo inicia debatendo o atraso na implantação da imprensa paulista, datado de 1823, em um território importante para os movimentos de exploração e povoamento do interior do país, cujo desenvolvimento, contraditoriamente, foi lento e tardio - o que repercutiu na formação da própria imprensa periódica.
Na divisão metodológica dos Governos Gerais do Leste, o livro apresenta as análises de movimentos de impressos noticiosos, revolucionários, literários e cronistas da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, cujo periodismo foi inaugurado em 1827, por meio do Diário de Porto Alegre. Contudo, também abarca escritoras-jornalistas publicavam seus textos literários e femininos e chegaram a fundar um periódico que atravessou o século, bem como a imprensa negra, cuja maior expressão é o jornal O Exemplo (1892-1897; 1902-1916 e 1917-1930). Tal como ocorreu em outras regiões, a imprensa periódica em Santa Catarina, província vizinha, também registra tardiamente, desafios e lentidão em sua implementação, reflexos de um território que foi ocupando-se e desenvolvendo-se de modo heterogêneo e com particularidades.
Finalmente, o livro apresenta as pesquisas acerca dos Governos do Interior, mais especificamente, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso49. Ao nos depararmos com a pesquisa sobre o primeiro desses territórios, compreendemos que os periódicos mineiros também acompanharam o movimento de urbanização daquela região, especialmente nas localidades com maior poder econômico. No bojo dessas análises, os autores questionam as generalizações que apontam a existência de uma imprensa única em Minas Gerais, pois compreendem que essa não emergiu homogeneamente em todo o território provincial mineiro. O texto avança ao contextualizar as variadas faces da imprensa de Minas Gerais sob a ótica das dinâmicas locais e das especificidades dos lugares, desconstruindo, portanto, a ideia de que o periodismo impresso oitocentista naquela Província era coeso.
Já Goiás e Mato Grosso integram o penúltimo capítulo, e já inicia com um alerta: apesar de a imprensa ter surgido no que hoje é denominado Centro-Oeste brasileiro há quase 200 anos, uma análise histórica ou síntese histórico-comunicacional ainda está sendo edificada. Unindo esforços de pesquisadores da Universidade Federal de Goiás e da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, inicia contextualizando o primeiro jornal da região, o A Matutina Meiapontese (1830-1834), que nasceu fora da capital goiana por iniciativa privada, mas também funcionava como uma espécie de "correio oficial" das Províncias de Goyaz e Mato Grosso. Além disso, a pesquisa revela particularidades instigantes, tal como as mulheres tipógrafas da Cidade de Goiás que trabalhavam na Typographia Persevernaça, negras, empregadas por um jornalista também negro e filho de escravizado que não só fundou jornais abolicionistas e republicanos, como também inaugurou a primeira fábrica de papel da região, isso tudo no final do século XIX.
Finalmente, o último capítulo do livro debate os circuitos comunicacionais registrados na imprensa brasileira no século XIX, ao mesmo tempo em que também é o fechamento da obra construída nos pressupostos da pesquisa histórico-comunicacional em redes e conexões50. Num movimento reflexivo, a autora acessa os vestígios e rastros do passado que foram reconstruídos pelo grupo de pesquisadores da "Rede de Pesquisa sobre História da Imprensa no Brasil do Século XIX" com o objetivo maior de, a partir de leituras locais e plurirregionais, evidenciar os circuitos do jornalismo impresso da Corte para as províncias, dessas para a Corte e das províncias entre as províncias. Isso porque a autora aponta a existência de fluxos e contrafluxos simbólicos, cuja composição não era homogênea nem tampouco apenas hegemônica. Nesse cenário, a essência da trama é comunicacional e histórica, é conjuntural sem deixar de ser localista ou regionalista, é, portanto, a aplicação dos pressupostos metodológicos anteriormente debatidos no que concerne à releitura da história da imprensa brasileira em redes e conexões - mesmo porque não é possível falar em uma história da imprensa brasileira oitocentista, e sim, em múltiplas histórias da imprensa no Brasil no século XIX.
Tais olhares dificilmente viriam a tona sem uma perspectiva plurirregional e construída por distintos pensamentos que se localizam nas mais diversas possíveis direções, que incluem os pontos cardeais, colaterais, subcolaterais, territoriais e simbólicos indicados pela rosa dos ventos.
Considerações finais
Neste texto, objetivamos debater caminhos para a construção de leituras históricas da imprensa brasileira em redes e conexões. Para tanto, exploramos pressupostos, trilhas interpretativas e articulações teórico-me-todológicas do fazer histórico-comunicacional capazes de promover deslocamentos interpretativos de outros territórios culturais do país, cujas dinâmicas e simbologias dos periódicos impressos oitocentistas foram distintas das que ocorreram no Rio de Janeiro, antiga capital do Império.
Ao protagonizar lugares e regiões do vasto território, apontamos para a necessidade de superação tanto dos estudos históricos particularistas da imprensa, que acabam isolando lugares e regiões do cenário conjuntural, quanto daqueles que apresentam análises generalistas da síntese histórica centradas nos grandes centros de poder com perspectivas macroestruturais e hegemônicas que também se afastam da totalidade histórica.
Na condição de movimento metodológico, a concepção plurirregional da reescrita da história da imprensa brasileira parte do princípio de que os veículos de jornalismo não estão soltos no mundo, uma vez que sempre erigem em redes e conexões. Desse modo, independente da escala, as pesquisas históricas da imprensa requerem enfoques metodológicos também conectados, capazes de fortalecer o local em relação ao global e de localizar o global perante o local. Debatemos essa perspectiva metodológica por meio do trabalho desenvolvido pela "Rede de Pesquisa sobre História da Imprensa no Brasil do Século XIX". Esse estudo, realizado por pesquisadores de todas as regiões do Brasil, tem foco nos periódicos oitocentistas e apresenta leituras históricas governadas pela lógica das redes e conexões, nas quais os processos locais articulam-se com os mais amplos, revelando especificidades e modos culturais de existência.
Diante dessa experiência, e a partir das reflexões que dela emanaram, defendemos cinco pressupostos para a produção de uma história da imprensa em redes e conexões: 1) agir não apenas para constatar silenciamentos e não ditos, mas para apresentar leituras e narrativas a partir desses, objetivando aproximar-se de uma visão mais totalizante; 2) produzir movimentos históricos em redes requer protagonizar critérios dos espaços e temporalidades do local e do regional em relação com o global; 3) na contemporaneidade, as TICs e suas possibilidades renovam a sociedade em redes digitais, favorecendo a construção de histórias conectadas; 4) historiografar plurirregionalmente é um movimento que combate o pensamento disperso, capaz de romper com leituras fragmentadas ou generalistas que invisibilizam o local e o regional e limitam a capacidade reflexiva e a produção científica vigorosa; 5) não existe neutralidade na comunicação humana e tampouco na pesquisa histórica e científica, de modo que o não rompimento com a perspectiva fragmentista ou generalista dos territórios hegemônicos levam à perpetuação de equívocos, ainda mais considerando que é possível interpretar a partir de interações em redes e conexões.
Este posicionamento metodológico permite refletir sobre as trocas comunicacionais que estabelecem as conexões para além dos aparatos tecnológicos que circulam nos lugares, espaços e territórios, já que esses são marcados pela historicidade dos sujeitos, também composta por exclusões, barbáries e outras esferas do viver significadoras das suas ações. Na constituição do bios midiático, as redes são, de fato, o âmago da existência51.
Barbosa e Gutiérrez52 postulam que não existe redes sem conexões, ou seja, pensamos o passado inseridos na trama da nossa própria existência, movidos pelos sentimentos do lugar e do tempo que nos localiza. De fato, quando pensamos na teoria das redes, compreendemos que, inicialmente, a conectividade entre diferentes unidades sociais era visualizada apenas pela materialidade física e infraestrutural dos seus fluxos e nós. Porém, na contemporaneidade, a complexidade das redes aponta também para o seu caráter simbólico, visto que elas não existem fora da vida social, nem tampouco são alijadas de sentidos, valores e ideologias que balizam ações. A partir de tais assertivas, podemos engendrar outros caminhos nas teias do passado, pois quanto mais nos afastamos do presente, mais construímos lugares enunciativos das tramas da imprensa em redes descentralizadas e governadas pelos modos comunicacionais ou perspectiva histórico-comunicacional.
Em síntese, não nos interessa a centralidade dos espaços hegemônicos, mas os processos que, transformados pela lógica da complexificação tecnológica, produzem trânsitos que configuram novas dinâmicas culturais a partir dos modos comunicacionais. Ao regionalizar a história da imprensa brasileira para poder conectá-la, as fronteiras culturais das regiões são inseridas no centro reflexivo, ao mesmo tempo em que o fazer histórico constrói alternativas na perspectiva das temporalidades significativas para os sujeitos do passado. Ao pontuar a historiografia da imprensa no Brasil do século XIX, estamos falando de um lugar marcado pela exclusão, colonização, escravização e enraizamento de um pensamento conservador e patrimonialista, excludente. É isso que nos une como redes e permite pensar as conexões no domínio de uma história conectada.