SUMÁRIO
Introdução. 1. O direito à saúde no ordenamento jurídico brasileiro. 2. Judi-cialização e ativismo judicial: conceitos e distinções. 3. Princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais. 4. Motivos determinantes para atuação do Poder Judiciário. 5. Panorama de atuação do Poder Judiciário na efetivação do direito à saúde. 6. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
No Brasil, as demandas de saúde pública têm sido cada vez mais discutidas em juízo1-2-3-4-5-6-7-8-9-10-11-12, de modo que a judicialização e o ativismo judicial vêm sendo utilizados pelo Poder Judiciário como meios para promoção e efetivação do direito a saúde enquanto direito social fundamental13-14-15-16-17-18-19-20.
Neste sentido, judicialização significa que as questões que geram grande repercussão social são levadas e decididas pelo Judiciário, ao passo que o ativismo judicial diz respeito a uma efetiva atitude do Poder Judiciário em aplicar um preceito constitucional, agindo e "legislando" positivamente21-22-23.
Por esta razão, pode-se afirmar que o Poder Judiciário Brasileiro tem sido um importante tomador de decisões nas questões de grande repercussão nacional envolvendo o direito à saúde. O estudo acerca de suas ações e limites torna-se mais recorrente no meio acadêmico e nas discussões doutrinárias e jurisprudenciais do Direito24-25-26-27-28-29-30-31-32-33-34-35.
Um dos principais pontos discutidos nesse contexto são os limites de atuação do Poder Judiciário, especialmente no que diz respeito à atuação deste sem apoderar-se da competência dos demais Poderes, bem como por outro lado, ao seu papel associado à promoção da máxima efetividade do direito fundamental à saúde36-37-38-39-40. Isto porque o dever de promover o acesso a este direito é atribuído constitucionalmente ao Estado, mediante políticas públicas sociais e econômicas. Dessa forma, torna-se relevante apurar os principais motivos de as demandas de saúde pública estarem sendo levadas a juízo e verificar como ocorre a atuação do Judiciário na efetivação do direito à saúde nestas ocasiões. Embora tenha o dever de cumprir e aplicar a Constituição, o Judiciário deve também seguir os limites e parâmetros dispostos nesta.
Portanto, este artigo busca diferenciar, conceituar e identificar as principais características dos institutos da judicialização e do ativismo judicial, para que seja (a) identificada a maneira de atuação do Poder Judiciário nesse contexto, e (b) explicitado o significado do princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais, notadamente do direito fundamental à saúde. Outrossim, deve-se ter em mente que há motivações principais que designam uma atuação intervencionista positiva do Poder Judiciário em suas funções atípicas, mas que esta esbarra nos limites constitucionalmente estabelecidos, tais como princípio da separação dos poderes e reserva do possível.
O presente artigo está organizado em seis outros tópicos. O primeiro tópico apresenta contextualiza direito à saúde no ordenamento jurídico brasileiro. No segundo tópico descreve, diferencia e conceitua os institutos da judicialização e do ativismo judicial, visto que são formas de atuação do Poder Judiciário quando há uma demanda de saúde sendo discutida em juízo. O terceiro tópico esclarece as motivações de a saúde pública ser levada a juízo, ao passo que elucida o princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais. Em seguida, nos quarto e quinto tópicos, respectivamente, se esclarecem os motivos determinantes da atuação do Poder Judiciário, bem como é apresentado o panorama de atuação do judiciário na efetivação do direito à saúde. Por fim, o tópico sete conclui o trabalho, apresentando as principais considerações sobre a temática na qual o artigo debruçou-se.
1. O DIREITO À SAÚDE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Organização Mundial da Saúde (OMS) define saúde como um "um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afeções e enfermidades"41. O direito à saúde é considerado como "expressão de direito humano e uma meta social mundial"42. No Brasil, este conceito é construído ao longo dos anos com a evolução natural da sociedade, tendo a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) um relevante papel nestas mudanças positivas, pois abarca em seu bojo inúmeros dispositivos correlatos ao tema.
A CRFB/88, há alguns anos, vem conquistando força normativa e efetividade de FATO - e não apenas de direito - ao passo que as normas elencadas no texto constitucional43 (que são normas programáticas, caracterizadas por elencar tarefas e programas de ação a serem concretizados pelo Poder Público) começaram a lograr uma aplicabilidade imediata e direta (sobretudo pelos operadores do Direito). Dessa forma, deixaram de ser compreendidas apenas como partes de um documento escrito, que dependeriam da atuação do Poder Legislativo e Poder Executivo para atingirem sua real finalidade44-45-46.
O direito à saúde integra os diretos de segunda dimensão, marcado pela evolução do Estado de Direito, para um novo modelo denominado de Estado Social de Direito, onde passou-se a buscar uma concreta ideia de justiça material, ou seja, prestações materiais do estado para mitigar as desigualdades sociais47-48-49-50. Portanto, constitui simultaneamente um direito de defesa (porque não pode o Estado e terceiros ingerirem-se indevidamente na saúde do indivíduo), bem como um direito à prestações (uma vez que impõe-se ao Estado a realização de políticas públicas que efetivem o direito à saúde a todos)51.
A visão integral dos direitos humanos os entende como uma "unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos ao catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais". Tal entendimento é fundado na característica de indivisibilidade dos direitos: quando um é violado, os demais também o são52. Este aspecto os torna acionáveis e exigíveis.
Valcárcel Bustos53 tangibiliza este caráter indivisível e interdependente dos direitos humanos e sociais exemplificando que assistência sanitária (que exige uma prestação do Estado) é intrínseca ao direito à vida, assim como esta, em conjunto com a integridade física, são dependentes de um meio ambiente adequado. Segundo a autora, isto ocorre porque há uma convergência destes direitos à dignidade da pessoa humana, bem-estar e autonomia. Consequentemente, o Estado passa a figurar uma posição de garante, visto que necessita prestacionar os meios para garantir tais direitos e evitar que estes sejam violados. Tais prestações precisam estar reconhecidas no ordenamento jurídico e, portanto, acabam dependendo também de circunstâncias políticas e econômicas.
A ideia de universalização do direito a saúde passou a ser verdadeiramente observada, atingindo o status de princípio, de modo que a saúde passou a ter tratamento de direito fundamental, o que significa sua necessidade de aplicabilidade imediata. Portanto, o direito à saúde é expressamente previsto CRFB/88 como um direito fundamental, contemplado no rol dos direitos sociais elencados em seu artigo 6°54.
Os direitos e garantias fundamentais55, dispostos especialmente no título ii da CRFB/88 (no qual se enquadra o artigo 6° supracitado), são normas que vislumbram garantir o desenvolvimento à pessoa humana, possibilitando condições mínimas para a vida em sociedade. Estes direitos possuem características próprias, que os diferenciam dos demais, quais sejam: universalidade, irrenunciabilidade, inalienabilidade, imprescritibilidade. Por consequência, se enquadram na teoria da máxima efetividade das normas constitucionais56, reforçando a materialização da dignidade da pessoa humana.57
Os direitos fundamentais são classificados em gerações, no qual aqueles considerados como de segunda geração, são os direitos sociais. Dentro dos direitos sociais, há o direito à seguridade social58, sendo o direito à saúde um de seus eixos.
O direito social fundamental à saúde, quando analisado sob sua vertente subjetiva, tem sua exigibilidade judicial viabilizada não só para a concretização de políticas sociais existentes como também no que concerne o atendimento às prestações de saúde não contempladas naquelas. Neste aspecto, Canut e Cademartori59 sintetizam a visão de grandes constitucionalistas, justificando a possibilidade da exigência e imposição judicial da proteção e materialização do direito fundamental por parte do indivíduo:
"o direito à saúde não é só um direito subjetivo de defesa contra agressões de terceiros, do Estado ou de outros Estados, mas também um direito social prestacional (Canotilho, 2003) em sentido estrito - conforme classificação do tópico ii - que impõe um dever de ação ao Estado para garantia do direito à saúde a todos. Trata-se de um autêntico direito fundamental de aplicabilidade imediata (Sarlet, 2010; Agustini, 2009)".
Desta forma, o Estado brasileiro é responsável por promover acesso equânime ao direito à saúde, sendo este um dever constitucionalmente atribuído. Para cumprir com este dever, o Estado desenvolve políticas públicas e presta serviços à população, visto que são forma de efetivar direitos à população-60-61-62, e devem gerar resultados transformadores à mesma63-64-65-66.
As políticas públicas são meio para executar tais programas políticos com fins em garantir condições materiais de dignidade dos cidadãos67. Portanto, as políticas públicas são direcionadas a efetivar os objetivos fundamentais da República68 e o direito à saúde enquanto um direito humano69. A concretização dos objetivos fundamentais e direitos sociais, os quais são constitucionalmente positivados, é fruto de prestações positivas do Estado70-71. Marshall72 associa política social "à política dos governos relacionada à ação que exerça um impacto direto sobre o bem-estar dos cidadãos, ao proporcionar-lhes serviços ou renda".
Uma política pública, quando implantada, se torna um programa, que possui objetivos e diretrizes concretos e regulamentados73. Ou seja, "políticas públicas são o 'Estado em ação', é o Estado implantando um projeto de governo, através de programas, de ações voltadas para setores específicos da sociedade"74.
A política social adotada atualmente no Brasil é dividida em dois blocos, quais sejam a Promoção Social e a Proteção Social (seguridade social, onde se enquadra a política setorial de saúde). Os programas e ações do governo, portanto, derivam das políticas setoriais mencionadas anteriormente, assim como os benefícios e beneficiários vinculados àqueles. O dever de prover direito à saúde deve ser "garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação"75.
A partir daí, tal obrigação é regulamentada pela Lei n° 8.080, de 19 de setembro de 1990, ampliando estes princípios, quais sejam: integralidade da atenção, descentralização das ações, e igual atendimento para igual necessidade. Surge, portanto, o Sistema Único de Saúde76 (SUS, o qual é Universal) e o dever do Estado de ampliar o acesso aos serviços de saúde à população77. Além do acesso, é preciso construir um conjunto de ações governamentais, fundadas nas necessidades e nas demandas de saúde dos cidadãos como forma de desvelar um Estado Democrático de Direito78-79.
Na visão de alguns autores, a legislação, a certo modo, permite que as políticas públicas de saúde sejam implantadas. Portanto, atender às necessidades e demandas da população e prestar servidos orientados a este propósito é uma tarefa que cabe mais aos administradores e aos gestores públicos do que aos legisladores80-81-82.
Operacionalizar políticas públicas no contexto brasileiro é uma tarefa complexa, que apresenta dificuldades e problemas já (re)conhecidos por estudiosos83-84-85, de modo que o acesso a serviços, medicamentos e demais tratamentos, embora garantidos pelo texto constitucional, apresentam algumas restrições no que diz respeito a sua universalidade86-87-88. A judicialização e ativismo judicial acabam por "entrar em cena", posto que, ao revelar-se o direito à saúde como um direito positivo, cria-se uma espécie de credor na pessoa do particular para com o Estado que a jurisdiciona89.
2. JUDICIALIZAÇÃO E ATIVISMO JUDICIAL: CONCEITOS E DISTINÇÕES
Antes de adentrar nas questões acerca da atuação do judiciário na garantia do direito fundamental à saúde, necessário se faz distinguir os institutos da judicialização e do ativismo judicial. Isto porque, embora sejam temas que se entrelaçam e pareçam sinônimos, são mecanismos diferentes e se apresentam de forma peculiar em cada caso concreto.
A partir do momento em que uma questão é prevista constitucionalmente, dela nasce uma pretensão jurídica que pode ser pleiteada através de ação ju-dicial90-91, de modo que, se a Constituição assegura, por exemplo, o direito à saúde, é admissível levar à apreciação do judiciário a exigência deste direito, judicializando a discussão acerca das políticas públicas e ações concretas praticadas.
A judicialização é um reflexo de que os órgãos do Poder Judiciário estão tomando decisões acerca de relevantes questões de repercussão política e social, enquanto que, quem deveria toma-las (Poderes Executivos ou o Congresso Nacional) não o fazem. Ainda que intuitivamente, a judicialização acaba por transferir, para os juízes e tribunais, o poder que deveria ser usufruído pelo Legislativo e Executivo, alterando, assim, significativamente a linguagem, a participação da sociedade e a argumentação92.
Neste sentido, o modelo constitucional adotado no Brasil é o que reflete o fenômeno da judicialização, eis que a CRFB/88, por ser compromissória, traz em seu bojo direitos fundamentais sociais sem efetivo cumprimento, além de um inchaço Legislativo que abarca inúmeras matérias93.
Este cenário concorre para a atuação do judiciário em suas funções atípicas e com a interferência inevitável nos demais poderes. Tal atuação se amplia, ao passo que mais direitos são constitucionalizados e uma maior quantidade de leis são editadas para regulamentar diversas matérias. Não se trata de uma vontade do judiciário, visto que decorre de uma transformação cultural sofrida pelos países que se estruturaram pelo regime democrático94.
"Não se pode imputar aos Ministros do STF a ambição ou a pretensão, em face dos precedentes referidos, de criar um modelo juriscêntrico, de hegemonia judicial. A judicialização, que de fato existe, não decorreu de uma opção ideológica, filosófica ou metodológica da Corte. Limitou-se ela a cumprir, de modo estrito, o seu papel constitucional, em conformidade com o desenho institucional vigente. Pessoalmente, acho que o modelo tem nos servido bem"95
Por outro lado, embora o ativismo judicial se pareça com a judicializa-ção, têm origem diversa e não são gerados pela mesma causa imediata. "O ativismo começa quando, entre várias soluções possíveis, a escolha do juiz é dependente do desejo de acelerar a mudança social ou, pelo contrário, de a travar"96.
O ativismo judicial traz a ideia de um modo proativo de interpretação da Constituição, expandindo seu sentido e alcance por meio de uma especificidade advinda de atitudes do Poder Judiciário. Tal proatividade geralmente é causada por omissões e diminuição da atuação do Poder Legislativo, além do desprestígio deste perante a sociedade atual, conduzindo a um cenário de não atendimento às demandas sociais, principalmente aquelas ligadas à saúde. Deste modo, o ativismo judicial tende a ser cada vez mais presente na realidade social97.
Verifica-se que o fenômeno do ativismo é crescentemente uma deliberação em busca pela efetividade do texto constitucional. No caso das demandas de saúde pública, por exemplo, a premissa da crfb/88 pela aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais faz com que o Poder Judiciário seja acionado e acabe por suprir diversas lacunas.
Portanto, no contexto do ordenamento jurídico brasileiro, a judicialização é um fato, decorrente do modelo constitucional adotado. Logo, não se trata de uma operação de ânsia política. O ativismo judicial, por outro lado, se caracteriza como verdadeira atitude, advinda da proatividade do julgador em cada caso concreto, com a finalidade de dar máxima aplicabilidade ao texto constitucional com a ampliação de seus efeitos98.
3. PRINCÍPIO DA MÁXIMA EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Uma nova estrutura jurídico-democrática foi inaugurada no Brasil a partir da extensão dos direitos e garantias (individuais e coletivos) e do aumento das liberdades civis, os quais foram instituídos pela CRFB/88. Tal fenômeno ocorreu também em relação aos direitos fundamentais.
A CRFB/88, em seu artigo 5°, parágrafo primeiro, preconiza que as normas que definem os direitos e garantias fundamentais devem ter aplicabilidade imediata. Dessa forma, são direitos invioláveis, universais e intertemporais, subdivididos no Título ii da Carta Magna Brasileira em 05 (cinco) capítulos: (i) Direitos individuais e coletivos; (ii) Direitos Sociais; (iii) Direitos de nacionalidade; (iv) Direitos políticos; e (v) Direitos relacionados à existência.
Pode-se falar na concretização do princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais quando o intérprete consegue fazer com que o direito fundamental, instituído constitucionalmente, atinja sua plena realização99. Isto ocorre quando o Estado atua positivamente para potencializar a efetividade dos referidos direitos fundamentais, sem ferir a situação jurídica dos demais indivíduos100.
O direito à saúde é contemplado rol dos direitos sociais da CRFB/88 e, portanto, trata-se de um direito fundamental, o qual é expressamente previsto no texto constitucional, em seus artigos 6° e 196 a 200. Assim, é objeto de incidência do referido princípio, devendo ser maximamente efetivado.
Na ordem jurídico-constitucional brasileira, o direito a saúde, bem como a própria saúde em si, é contemplado pela dupla fundamentalidade, uma formal e outra material. A fundamentalidade formal significa o Direito Constitucional positivo, enquanto que a fundamentalidade material diz respeito à ligação e à importância do bem jurídico tutelado pela Constituição. Tendo em vista sua incontestável importância para a vida dos indivíduos, deve repercutir sobre a estrutura do Estado e da Sociedade101.
Além de um direito fundamental (de todos), a saúde é, também, um dever do Estado, que deve garanti-la por meio de políticas econômicas e sociais102. Nesse sentido, a judicialização e o ativismo judicial se fazem presentes por meio da encampação do direito à saúde pelo princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais, e do dever do Estado em relação a sua promoção.
Isto ocorre porque os produtos jurídicos das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais previstas na Constituição devem ser retirados destas, ainda que diante da inercia do legislador e do administrador. Os direitos fundamentais não podem ficar à mercê da disponibilidade dos órgãos estatais103. Não são mais os direitos fundamentais que devem vir na medida da lei, mas sim as próprias leis que devem vir na medida dos direitos fundamentais104.
O direito a saúde, além de um direito de defesa é, sobretudo, um direito a prestações, onde se reconhece que o Estado deve criar planos concretos (materiais) para efetivá-lo105.
4. MOTIVOS DETERMINANTES PARA ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO
O direito à saúde é, reconhecidamente, um direito a prestações. Isto quer dizer que requer atos positivos do Estado, seja por meio de políticas públicas ou de manutenção de instrumentos já existentes106-107. No entanto, em inúmeros casos, o Estado se abstém de seu dever de intervenção positiva, o que obriga o Judiciário, após ser provocado, a atuar em suas funções atípicas para garantir o cumprimento do texto constitucional.
As precariedades observadas na entrega de serviços públicos somada à ausência de políticas públicas são, sem dúvidas, motivos que levam a população a socorrer-se da tutela jurisdicional para garantir, por exemplo, acesso a tratamento médico ou medicamento108-109.
O direito a saúde deriva do irrenunciável direito à dignidade humana, de modo que, dependendo do caso concreto, justificar-se-ia a atuação do Poder Judiciário para assegurar sua efetividade110-111.
Os direitos fundamentais (especificamente o direito à saúde) não são apenas direitos coletivos, mas também de caráter transindividual (difusos e coletivos), uma vez que, antes de serem coletivos, são de cada indivíduo, contrapondo a tese de que para este direito (à saúde) não caberia uma tutela individualizada112.
É justamente pelo múnus estatal que o Judiciário acaba por intervir com o fito de garantir a máxima efetividade dos direitos fundamentais procurando a ela promover aplicabilidade imediata conforme determina a crfb/88. Há mais de uma década, a Constituição, aos poucos, vem conquistando força normativa e efetividade, uma vez que as normas constitucionais não são mais entendidas como meramente pertencentes a um diploma político que dependem da atuação dos Poderes Executivo e Legislativo, mas sim como normas necessárias, onde especialmente os direitos sociais (aqui, claro, incluído a saúde) passaram a ser compreendidos como direitos subjetivos essencialmente plenos, admitindo, assim, tutela específica113.
A constitucionalização da seguridade social também merece destaque neste processo, que acaba por expandir a Declaração Universal de Direitos Humanos, pois contempla a todo individuo o "acesso ao manto protetor social"114. Os recursos injetados em seguridade social devem ser encarados como investimentos sociais e não como gastos. Isto porque é esperada a diminuição das desigualdades estruturais produzidas pelo desenvolvimento socioeconômico115, apresentando, dessa forma, grande potencial na redução de desigualdade e distribuição de renda116.
As Constituições Políticas Ibero-Americanas consagram de alguma forma o direito de acesso ao serviço público da seguridade social. Na realidade brasileira, este direito, assegurado pela CRFB/88, em seus artigos 194 e 195, é considerado um "conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social"117, as quais são financiadas por toda a sociedade118.
Ademais, Ruiz Moreno119 nos alerta sobre a necessidade de reformular o conceito da seguridade social para os dias de hoje, mantendo como alicerce e norte, o princípio sine qua non da solidariedade social, sob risco desta pauta tornar-se um tema de segurança nacional: "sempre na matéria da seguridade social, se o Estado não pode, então ninguém pode".
Neste contexto, é válida a intervenção do Poder Judiciário que profere decisões relacionadas a, por exemplo, fornecimento de medicamentos ou serviços de saúde, na qual a Administração Pública é compelida a fornecê-los para satisfazer a promessa da CRFB/88 de uma prestação universal dos serviços de saúde120-121. Isto ocorre porque o Estado Constitucional de Direito gira em torno do princípio da dignidade da pessoa humana e da centralidade dos direitos fundamentais, onde tal dignidade é núcleo essencial dos próprios direitos fundamentais122. Veja-se que, dentre outros, os direitos fundamentais incluem o mínimo existencial, que significa as mínimas condições de educação, saúde, renda, etc., pelo que os três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) têm o dever de promovê-los em sua maior amplitude possível.
Do ponto de vista de garantir uma maior amplitude aos direitos fundamentais, extrai-se o importante conceito de Constitucionalismo e Democracia, onde o primeiro significa respeito aos direitos fundamentais e o segundo diz respeito à soberania popular e governo da maioria. É por este motivo que em um Estado democrático de direito vigora o princípio democrático, que expressa a ideia de soberania popular, onde todo poder emana do povo123. A maioria que foi eleita através do voto nos padrões determinados pela CRFB/88, tem o poder de representar o povo que a elegeu e fazer com que o efetivo cumprimento do texto constitucional retorne em prol do próprio povo.
Todavia, a maioria política (Executivo e Legislativo), em certos casos, podem vir a deixar vulneráveis os direitos elencados na Carta Magna, dentre eles, recorrentemente, os direitos fundamentais, o que ocorre, principalmente, mediante omissões. Quando estes fatos (por exemplo, as omissões) ocorrem, cabe ao Judiciário atuar. Tal intervenção é possível sempre que o Poder Judiciário estiver agindo indubitavelmente para preservar um direito fundamental (dando a ele aplicabilidade imediata) ou para assegurar o cumprimento de uma lei já existente124-125.
"O Judiciário deverá intervir sempre que um direito fundamental - ou infraconstitucional - estiver sendo descumprido, especialmente se vulnerado o mínimo existencial de qualquer pessoa. Se o legislador tiver feito ponderações e escolhas válidas, à luz das colisões de direitos e de princípios, o Judiciário deverá ser deferente para com elas, em respeito ao princípio democrático"126.
Assim, é por conta da ineficiência estatal em proporcionar um serviço público de saúde pleno, que o jurisdicionado busca a via judicial, pautado nas disposições constitucionais da máxima efetividade dos direitos fundamentais, de maneira a obrigar a Administração Pública a cumprir o que a CRFB/88 lhe impôs, para que seja alcançado o mesmo resultado prático que haveria se o adimplemento das obrigações da referida Administração Pública ocorresse, através da promoção de políticas públicas voltadas para esta finalidade127.
Consequentemente, o judiciário tem acolhido as ações que visam dar efetividade ao direito à saúde (sejam elas de medicamentos, tratamentos médico-hospitalares ou quaisquer outras), observando a proteção que o Direito Constitucional visa proporcionar à saúde, que deve superar qualquer obstáculo imposto pela Lei (ou sua ausência) e pela Administração Pública em geral, uma vez que é cediço que trata-se de uma obrigação do Estado, seguindo os fundamentos da República Federativa do Brasil128-129-130.
5. PANORAMA DE ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NA EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE NO BRASIL
O Poder Judiciário não pode agir se não for provocado, pois a ele se impõe o princípio da inércia, que significa que a demanda deve começar por iniciativa da parte interessada131. Por outro lado, este Poder, uma vez provocado, não pode se afastar da prestação jurisdicional, sobretudo quando a demanda preenche os requisitos a ela é imposta. Trata-se, neste caso, do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, previsto no artigo 5°, inciso XXXV, da CRFB/88.
"O papel do Poder Judiciário, em um Estado constitucional democrático, é o de interpretar a Constituição e as leis, resguardando direitos e assegurando o respeito ao ordenamento jurídico. Em muitas situações, caberá a juízes e tribunais o papel de construção do sentido das normas jurídicas, notadamente quando esteja em questão a aplicação de conceitos jurídicos indeterminados e de princípios. Em inúmeros outros casos, será necessário efetuar a ponderação entre direitos fundamentais e princípios constitucionais que entram em rota de colisão, hipóteses em que os órgãos judiciais precisam proceder a concessões recíprocas entre normas ou fazer escolhas fundamentadas"132.
Embora o tema seja de extrema complexidade, o fato é que a CRFB/88 atribuiu ao direito à saúde uma dimensão prestacional, que amparado nas normas do mencionado dispositivo legal asseguram, em princípio a qualquer pessoa, a possibilidade de exigir do poder público alguma prestação material positiva133. No entanto, tal exigência nem sempre é satisfeita, restando, ao particular, a esfera judicial.
O Poder Judiciário tem sido recorrentemente provocado para solucionar estas questões. O trecho jurisprudencial destacado abaixo expõe de forma clara a posição do Supremo Tribunal Federal (STF) a respeito da atuação do Judiciário.
"Agravo Regimental no Recurso Extraordinário. Administrativo e processual civil. Repercussão geral presumida. Sistema público de saúde local. Poder judiciário. Determinação de adoção de medidas para a melhoria do sistema. Possibilidade. Princípios da separação dos poderes e da reserva do possível. Violação. Inocorrência. Agravo regimental a que se nega provimento. [...] A controvérsia objeto destes autos - possibilidade, ou não, de o poder judiciário determinar ao poder executivo a adoção de providências administrativas visando a melhoria da qualidade da prestação do serviço de saúde por hospital da rede pública - foi submetida à apreciação do pleno do Supremo Tribunal Federal na SL 47-agr, relator o ministro Gilmar Mendes, DJ de 30.4.10. Naquele julgamento, esta corte, ponderando os princípios do 'mínimo existencial' e da 'reserva do possível', decidiu que, em se tratando de direito à saúde, a intervenção judicial é possível em hipóteses como a dos autos, nas quais o poder judiciário não está inovando na ordem jurídica, mas apenas determinando que o poder executivo cumpra políticas públicas previamente estabelecidas"134.
Neste agravo, cuja repercussão geral é presumida, a Suprema Corte discutiu precisamente acerca da possibilidade de o Poder Judiciário determinar ao Executivo o desenvolvimento e implantação de medidas para melhoria do sistema de saúde pública local, especificamente sobre a qualidade da prestação de serviço hospitalar. Em ponderação entre o mínimo existencial e a reserva do possível, o STF se posicionou a favor da intervenção judicial nos casos (de escopo de direito à saúde) em que não há inovação na ordem jurídica, pois, nestes casos, a determinação ao Poder Executivo reside no cumprimento das políticas públicas que já são de sua competência. Nesse contexto, foi considerado que não há violação à separação de poderes. No entanto, ainda resta ao magistrado proceder com a referida ponderação no caso concreto.
O STF, na mesma linha de grande parte da Doutrina, entende que a ingerência do Poder Judiciário para garantia do direito à saúde não fere nenhum princípio e, tampouco, nenhuma norma. Recorre-se à ponderação para se chegar a um equilíbrio em que prevalecerá o compromisso que a CRFB/88 instituiu em seu texto.
A Corte Suprema do Brasil é a guardiã de sua Constituição, razão pela qual deve fazê-la ter validade, visando proteger os direitos fundamentais e valores democráticos, até mesmo contra os demais poderes (Executivo e Legislativo)135. "Eventual atuação contra majoritária, nessas hipóteses, se dará a favor, e não contra a democracia"136.
Contudo, são feitas inúmeras críticas acerca da intervenção do Judiciário neste âmbito. A mais preponderante reside no artigo 196 da CRFB/88137 (considerado uma norma programática) que estabelece que a promoção das políticas públicas se dará por meio de políticas econômicas e sociais e não através de decisões judiciais.
Jeremy Waldron138, em sua notável obra sobre o ativismo judicial, faz uso do termo "supremacia judicial", o qual alega não possuir definição canónica e que, por conseguinte, seria um motivo para ser utilizado de diversas formas. Segundo o autor, os principais problemas decorrentes da supremacia judicial são: deslocamento do autogoverno; reprodução do problema hobbesiano sobre o Estado de Direito; usurpação do rol de pouvoir constituant relativamente à Constituição. No entanto, todas estão articuladas ao receio de que haja um desbalanceamento da constituição, uma vez que os tribunais judiciais passam a ter poder de revisar o trabalho de outras instituições, se sobrepondo (daí a ideia de supremacia) no sistema constitucional.
Os argumentos contrários à atuação do Poder Judiciário pautam-se, também, no contexto de que a efetivação total do direito à saúde depende de disponibilidade e alocação de meios materiais e humanos, o que, consequentemente, encontra óbice na real disponibilidade dos recursos, sendo, por conseguinte, sujeitado à reserva do possível. Alega-se ainda que apenas o legislador democraticamente eleito e verdadeiramente legitimado pode decidir sobre a destinação dos supracitados recursos para dar efetivação ao direito à saúde, pois a ele foi dada competência para tal medida, encontrando, neste particular, um princípio da reserva parlamentar vinculado, igualmente, ao princípio da separação dos poderes139.
Não se nega a existência do princípio da reserva do possível como uma limitação fática à situação, o que implica uma relativização no que tange à eficácia e efetividade dos direitos sociais prestacionais. O gestor público elabora e implementa as ações públicas que serão procedidas, assim como respectivo planejamento orçamentário, sendo esta uma decisão política e o planejamento orçamentário é transformado em lei, sendo um documento solene140.
Todavia deve-se observar também que em se tratando de uma prestação de cunho emergencial, cujo não atendimento imediato pode custar a própria vida, integridade e dignidade humana há de se conceber que nasce um direito subjetivo à prestação141-142.
"Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível. '(grifei) Vê-se, pois, que os condicionamentos impostos, pela cláusula da "reserva do possível', ao processo de concretização dos direitos de segunda geração - de implantação sempre onerosa -, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, (2) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas"143.
O Judiciário acaba atuando através de uma ponderação de valores. Em cada caso concreto prevalecerá um tipo de princípio. Isto não significa que aquele princípio que não prevaleceu não tem validade, mas sim que o outro se aplicou melhor à situação peculiar ali apresentada144.
Busca-se desta forma uma compatibilização e harmonização dos princípios, que "passam por uma interpretação sistemática, pautada pela já referida necessidade de hierarquização dos princípios e regras constitucionais em rota de colisão", em que prevalece necessariamente o mais relevante naquela situação145.
Não se pode olvidar, por outro lado, que as propostas das políticas públicas, sobretudo as de saúde, precisam ter como norte a redução das desigualdades sociais. Na medida em que o Poder Judiciário individualiza de maneira exacerbada a promoção das políticas públicas que não são de sua competência, acaba por privilegiar aqueles que têm um acesso mais qualificado à justiça em detrimento de outros que não conhecem seus direitos ou que não podem dispender recursos financeiros com um processo judicial146.
Por isso o Poder Judiciário deve atuar, ponderando princípios e fazendo valer aquele que mais se adequa ao caso concreto em tela, tendo como missão promover a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais - sobretudo direito à saúde - sem usurpar a competência dos demais poderes, nem se exceder em suas decisões, visando evitar um possível reflexo negativo de suas decisões.
No rol de cláusulas pétreas da CRFB/88, está o princípio da separação dos poderes, que significa a distinção das três funções estatais concernentes em legislação, administração e jurisdição. Cada poder possui sua função típica e, quando da atuação desta, sendo esta atuação independente e autônoma surgindo o sistema de freios e contrapesos148.
A partir da teoria da separação dos poderes, os juristas norte-americanos estabeleceram os sistemas de freios e contrapesos (checks and balances), que proporcionam controles recíprocos entre os poderes que, embora independentes e harmônicos entre si, podem interferir uns nos outros149.
Nesta esfera de divisão de competências e separação dos Poderes, cabe a poder executivo estabelecer políticas públicas que efetivem os direitos preconizados pela crfb/88, as quais são as prestações positivas exigíveis por meio de direitos subjetivos. Por outro lado, cabe ao poder legislativo criar normas regulamentadoras de tais direitos. Eventualmente, é possível que haja alguma pendência de regulamentação de tais direitos ou de políticas públicas para permitir sua plena eficácia. Freixo150 coloca que este aspecto apresenta aspectos positivos e negativos. A intervenção do judiciário pode conferir maior “emprenho”151 por parte do Poder Executivo no que diz respeito a formulação e implementação de políticas públicas mais efetivas, o que é entendido como um ponto positivo. No entanto, o atendimento a demandas casuísticas podem gerar “exageros e medidas desproporcionais”, pois desloca-se recursos que seriam destinados ao atendimento de demandas coletivas e de saúde pública mais abrangente para o atendimento de ordens judiciais individuais (que são de menor alcance) cujo acerto (enquanto resolução da demanda individual e respectiva repercussão epidemiológica e de saúde coletiva) pode ser duvidoso.
Na medida em que cabe ao Poder Judiciário a palavra final no que tange ao efetivo cumprimento dos direitos fundamentais, bem como quanto à conformidade das leis, a este também cabe observar os parâmetros igualmente constitucionais que lhe fora imposto, de modo que deve sim promover a máxima efetividade dos direitos fundamentais. Porém, isto não deve tornar-se regra, pois estaria abarcando competências diversas, de fato, para si. Dessa forma, a atuação do judiciário deve observar o princípio da separação dos poderes enquanto pilar em sua atuação nos casos de judicialização da saúde e, principalmente, quando o aludido Poder Judiciário necessitar tomar uma postura ativista diante do caso concreto.
6. CONCLUSÃO
O presente estudo apontou que o ativismo judicial e a judicialização são fenômenos significativos nas questões relativas à saúde pública, sendo cada vez mais recorrentes nos dias atuais. A mora (e, algumas vezes, ineficácia) dos Poderes Legislativo e Executivo faz com que a população recorra ao Poder Judiciário para obter, minimamente, a satisfação do direito à saúde.
Por um lado, a judicialização, que decorre do modelo de Constituição analítica que é a CRFB/88 e de seu próprio sistema de controle de constitucionalidade, permite que questões como a saúde possam ser discutidas em ações judiciais. Por outro lado, o ativismo judicial revela a maneira que o julgador interpretará a Constituição, potencializando seu sentido e alcance, buscando sua máxima efetividade, indo além do legislador ordinário152. Destarte, vale enfatizar que a judicialização não é decorrente da vontade do Poder Judiciário, mas sim do Constituinte, ao passo que o ativismo judicial, por ser uma atitude, pode ser entendido como um modo proativo de interpretação da Constituição.
Os sintomas que fomentam o crescimento das demandas de saúde pública no Judiciário são claros: lacunas, inércia e ineficácia dos Poderes Legislativo e Executivo, que tem como atribuição típica a promoção de políticas públicas, econômicas e sociais para cumprir o que determinada o texto constitucional no que diz respeito à saúde.
Todavia, as decisões judiciais nos casos que envolvem a saúde pública não têm apenas efeitos no caso concreto em que estão sendo discutidas, mas, também, no meio social como um todo, além de impactos no próprio sistema constitucional brasileiro. Se por um lado há o princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais, por outro há o princípio da separação dos poderes e a reserva do possível. É imprescindível, portanto, que existam limites sob pena de a legitimidade democrática ser colocada em risco, uma vez que os membros do Judiciário não foram eleitos diretamente pelo voto, conforme os membros dos demais Poderes.
A Constituição transforma política em direito, poder constituinte em poder propriamente constituído153 e, por isso, ainda que se reconheça a reserva do possível, o princípio da separação dos poderes, suas independências e harmonias e o fato de nenhum direito fundamental ser absoluto, não se mostra razoável sobrepor todas estas questões em detrimento do direito à saúde, sobretudo, do direito à vida.
Assim, é fato que o Poder Judiciário não deve ser alheio às necessidades do jurisdicionado, bem como, em contrapartida, não pode ser indiferente às inevitáveis consequências de suas decisões no âmbito político.
Portanto, neste trabalho observou-se o relevante e dificultoso papel do Poder Judiciário no que concerne à saúde pública, vislumbrando que a judicialização não decorre de sua vontade, até mesmo por conta do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, e que ativismo judicial tem sido uma relevante contribuição para a solução, mas não para resolver o problema em si, uma vez que o crescimento do Judiciário não pode desfocar a atenção da real instabilidade na democracia atual, quais sejam, ausência de representatividade, legitimidade e funcionalidade reais, por parte do Poder Legislativo154.
Diante da mora e omissão dos Poderes Executivo e Legislativo na elaboração e execução adequada de políticas e serviços públicos de saúde, aliadas as suas condições de baixa representatividade e confiabilidade, crescem as buscas por uma tutela jurisdicional que possa garantir a eficácia do texto constitucional no que diz respeito ao mínimo existencial. Por conseguinte, o Poder Judiciário acaba por ser acionado para suprir as lacunas deixadas pelos demais Poderes e, assim, surge a judicialização e ativismo judicial da saúde pública. Este tema é relevante para o direito contemporâneo, pois mostra que a resolução do problema deve ser vista através do próprio problema e não de sua solução, ou seja, o ativismo judicial e a judicialização devem ser encarados como meios de contribuição para a saúde pública e não como fim.
A judicialização da saúde se coloca como uma possível e legítima solução num contexto de cidadania em que ter direitos deixa de ser suficiente: é preciso exercê-los. No entanto, não se resolve problemas e demandas de saúde pública casuisticamente e deferindo pedidos pontuais e específicos de sujeitos que tiveram acesso à justiça. Os problemas de saúde pública só podem ser resolvidos se abordados sistemicamente e tratados com políticas públicas cidadãs e efetivas. Fazer este ciclo de desenvolvimento, implantação e controle é claramente competência do Executivo, mas garantir efetividade de direitos fundamentais é responsabilidade de todos. Além de atender a demandas de casos concretos e de extrapolar limites interpretativos, o comportamento do judiciário deveria também buscar meios de prevenir omissões do executivo e de mitigar os efeitos destas.