INTRODUÇÃO
A produção científica traduz-se em um indicador de evolução econômica e vem assumindo posição de destaque nos últimos anos 1. Não obstante, além de fornecer soluções para os problemas, os resultados científicos trazem consigo a honra, a fama e o reconhecimento para o cientista que os produziu 2. Tais profissionais se caracterizam por ser uma classe que se propõe à busca incansável de novos conhecimentos e à defesa de que todos os resultados inéditos encontrados em determinada especialidade devem ser disseminados 3,4.
A palavra “ética” vem do grego “éthos” e significa caráter. Por essa razão, ela é também conhecida como a “ciência da moral” ou a “filosofia da moral”. A ética está presente em todos os comportamentos, caracterizando-se por um conjunto de princípios morais que orienta os direitos e deveres de cada indivíduo em épocas e sociedades determinadas. Desse modo, é prudente afirmar que ela está ligada ao ser humano no intuito de alcançar o estado de perfeição por meio do combate entre o bem e o mal, refletindo, assim, sobre o seu agir e as suas finalidades 5.
Por sua vez, o termo “bioética” origina-se do grego “bios”, que significa vida, mais “ethos”, ética 6. Trata-se de um campo do conhecimento pluralista, transdisciplinar e não corporativo 7 que começou a ser discutido nos espaços científico, acadêmico e social a partir da década de 1970 8. Desde então, a bioética vem atuando em situações que envolvem a vida 9, a morte e a natureza, fomentando novas reflexões sobre os dilemas envolvidos nessas grandes áreas por meio de quatro princípios: autonomia, beneficência, não maleficência e justiça 10.
Refletindo sobre a atuação da bioética e considerando que seu surgimento se pautou na proteção da vida contra os avanços da biotecnociência 10, chegou-se à seguinte pergunta de pesquisa: a ética e a bioética nas pesquisas científicas são utopia ou realidade? No intuito de responder a essa pergunta orientadora, objetivou-se analisar, por meio da literatura, a realidade das questões éticas e bioéticas no mundo científico.
MÉTODO
Este estudo se refere a uma revisão integrativa da literatura construída com artigos científicos indexados em: Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), Medical Scientific Electronic Library Online (SciELO) e PubMed. Para sistematizar a busca, foram utilizados, nas três bases de dados, sete Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) e sete Medical Subject Headings (MeSH), intercalados com o operador booleano AND.
Os DeCS foram: “má conduta científica”; “pesquisa”; “ética”; “bioética”; “plágio”; “ética em pesquisa” e “ética na publicação científica”. Já os MeSH foram: “scientific misconduct”; “research”; “ethics”; “bioethics”; “plagiarism”; “ethics, research” e “scientific publication ethics”. No intuito de aumentar a possibilidade de encontrar maior quantitativo de artigos, criaram-se três combinações de descritores (C1, C2 e C3) a partir dos DeCS e dos MeSH, conforme listados a seguir.
Combinações dos DeCS
C1: má conduta científica; pesquisa; ética; bioética; plágio; ética em pesquisa e ética na publicação científica.
C2: má conduta científica; pesquisa; ética e bioética.
C3: má conduta científica; ética em pesquisa e ética na publicação científica.
Combinações dos MeSH
C1: scientific misconduct; research; ethics; bioethics; plagiarism;ethics, research e scientific publication ethics.
C2: scientific misconduct; research; ethics e bioethics.
C3: scientific misconduct; ethics, research e scientific publication ethics.
As três combinações de descritores foram utilizadas nas três bases de dados, totalizando 3.219 publicações, das quais 38,5 % estão indexadas na PubMed, 24 % na BVS e 37,5 % na SciELO, conforme o Quadro 1.
DeCS | BVS | SciELO | PubMed |
C1 | 4 | 2 | 15 |
C2 | 72 | 6 | 216 |
C3 | 697 | 1.198 | 1.009 |
Total* | 773 | 1.206 | 1.240 |
*Total de artigos encontrados com as combinações de descritores.
Fonte: elaboração própria.
Após essa etapa, os artigos encontrados foram submetidos à triagem na própria plataforma de busca. Desse modo, consideraram-se como critérios de inclusão artigos avaliados por pares, publicados na íntegra nos últimos 10 anos (2009-2019), sem restrição idiomática, disponível para o download e que atenderam ao objetivo do estudo. Para identificar se os artigos respondiam aos objetivos propostos neste estudo, os autores realizaram a leitura do título, do resumo e, posteriormente, do texto completo. O percurso metodológico seguinte está descrito no Fluxograma 1 (Figura 1).
Fonte: elaboração própria com base nos Principais Itens para Relatar Revisões Sistemáticas e Meta-análises (Prisma).
Após a identificação dos estudos que compuseram o corpus da pesquisa, eles foram divididos em três blocos: A, B e C, e cada bloco continha seis artigos incluídos de forma aleatória após esgotadas todas as possibilidades de identificação de mais estudos nas bases selecionadas. A leitura crítica dos materiais selecionados foi realizada em três meses, por todos os autores, de tal forma que a leitura completa de cada bloco foi realizada mensalmente. Além disso, no final de cada mês correspondente ao bloco lido, todos os autores apresentaram de forma grupal os resultados, a conclusão e os pontos em comum encontrados em cada estudo analisado no intuito de darem sustentação à criação de categorias temáticas para a discussão.
Vale ressaltar que, com vistas a assegurar a qualidade e validade dessa revisão, o delineamento metodológico fundamentou-se nas seguintes etapas recomendadas: “identificação do tema e seleção da questão de pesquisa; estabelecimento de critérios para a inclusão e exclusão de estudos/amostragem ou busca na literatura; definição das informações a serem extraídas dos estudos selecionados/categorização dos estudos; avaliação dos estudos incluídos; interpretação dos resultados; apresentação da revisão/síntese do conhecimento” 11p9).
RESULTADOS
Observou-se que um artigo (5,6 %) se encontra indexado na SciELO 12, quatro (22,2 %) na Lilacs 1,3,13,14 e 13 (72,2 %) na Medline 2,4,15-25, sendo que 17 artigos (94,4 %) estão publicados em periódicos internacionais. Entre as condutas presentes no mundo científico que transgridem a ética e a bioética identificaram-se plágio 1,2,4,15,12-14,16-22,24, conflitos de interesses 1,14,15, falsificação de dados 2,20, fabricação de dados 13,15,17,20,21, falsificação de resultados 12,15,22, questões de autorias 2,15,20,22,23,25, publicações duplicadas 13,15,17,21, publicações redundantes 4,12,16,20, más condutas 3,4,13,16, comprometimento da revisão por pares 21, citação de artigos não lidos 25 e citação seletiva de artigos para agradar a editores ou revisores 25. As demais características dos estudos encontram-se a seguir no Quadro 2.
DISCUSSÃO
As evidências demonstram que, apesar de estarmos em um momento de expansão do conhecimento científico e ampliação das ofertas de cursos de pós-graduação, o plágio ainda consiste em um sério problema de intensa irresponsabilidade de quem o comete de forma intencional. Além disso, revela-se profundo descontentamento da comunidade científica, especialmente daqueles que têm a sua produção plagiada, pois a maior parte de quem comete o plágio deveria ser detentor do conhecimento sobre a prática e sua repercussão negativa no mundo científico. Afinal, as publicações científicas são fruto do trabalho de pessoas com alto nível de escolaridade e titulações.
Neste estudo, 15 artigos (83,3 %) abordam o plagiarismo como uma das más condutas mais praticadas em “pesquisadores” do mundo inteiro. Coloca-se pesquisadores entre aspas, porque não se pode generalizar nem atribuir tal conduta à imagem de um pesquisador sério e de respeito.
O conceito de plágio é controverso 24, complexo e requer uma análise mais profunda à luz do contexto histórico-cultural. Não obstante, não há diretrizes específicas para tratar sobre o assunto nas instituições de ensino da América Latina 1, e o uso isolado de softwares para a detecção do plagiarismo não é eficaz, pois as técnicas de edição e paráfrase dos textos podem mascará-lo e fazer com que o plágio passe despercebido. Tais fatores contribuem para a ausência de estimativas exatas da prevalência de plágio nos trabalhos científicos 19. Desse modo, alguns autores defendem a abordagem precoce sobre a temática durante a formação acadêmica por meio de estratégias educativas com vistas à promoção da cultura de prevenção do plagiarismo 1.
N.º | Autor/ano | Título | Principais resultados e conclusões dos artigos analisados | Periódico |
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1 | Pádua GCC, Guilherm D (2015) 1 | Integridade científica e pesquisa em saúde no Brasil: revisão da literatura | Os assuntos mais discutidos foram plágio e conflitos de interesses sobre autoria. Torna-se necessária a abordagem precoce desses conhecimentos no processo de formação acadêmica de pesquisadores e jovens cientistas. | Revista bioética |
2 | Okonta P, Rossouw T (2013) 2 | Prevalence of scientific misconduct among a group of researchers in Nigeria | 68,9 % dos pesquisadores admitiram ter cometido pelo menos uma de oito formas de má conduta científica abordada no estudo. O desacordo sobre autoria foi a forma mais comum de má conduta (36,4 %) enquanto o plágio obteve mínima porcentagem (9,2 %). | Developing World Bioethics |
3 | Aznar DC, Freitas-Aznar AR, Capelari MM, Aznar FDC, Sales-Peres SHC (2017) 3 | Neutralidade científica: aspectos éticos na obtenção de resultados | A má conduta científica tem sido relatada e está presente em vários países, sendo considerada como uma prática condenável, de difícil identificação e que vem aumentando significativamente. Os principais motivos para sua ocorrência estiveram associados com a pressão por publicações e a necessidade de reconhecimento no meio acadêmico. | Revista Latinoamericana de Bioética |
4 | Rai R, Sabharwal S (2017) 4 | Retracted publications in orthopaedics: Prevalence, characteristics, and trends | Embora incomum, a retração de publicações no campo da ortopedia pode estar aumentando. Os motivos mais citados para isso foram plágio, má conduta e publicação redundante. Artigos recolhidos continuam sendo citados na literatura após a retração. | Journal of Bone and Joint Surgery |
5 | Reyes B (2018) 12 | Problemas éticos en las publicaciones científicas | Má conduta foi detectada na Revista Médica do Chile em alguns casos de publicações redundantes, plágio, falta de reconhecimento de conflitos de interesse, principalmente por empresas farmacêuticas, e uma tentativa de falsificar a publicação de um artigo que havia sido rejeitado anteriormente, ou seja, disseminar um trabalho formatado no layout da revista no intuito de fazer parecer que foi publicado sem ter, de fato, sido. | Revista Médica de Chile |
6 | Torres KO, Michel MT (2018) 13 | Retracción de artículos biomédicos y sus implicaciones éticas | As causas mais frequentes de retratação de artigos foram plágio, má conduta, erros, fabricação e duplicação de dados. Com maiores incidências nos Estados Unidos, na Índia, na China, no Japão e na Alemanha. A maior taxa de retratação foi para revistas com baixo fator de impacto. Ressalta-se que, embora tenha diminuído, o tempo decorrido para a retração é longo, fazendo com que esses artigos sejam citados e, portanto, originando uma má ciência. | Revista Latinoamericana de Bioética |
7 | Schonhaut BL (2019) 14 | Integridad y conductas inapropiadas en investigación biomédica | Foram analisados os distintos aspectos relacionados com a falta de integridade das publicações, como autoria, plágio e conflito de interesses e houve a conclusão de que as más práticas ocorrem principalmente devido à ignorância dos autores, e não a fraude. | Revista chilena de pediatría |
8 | Zunic L, Masic I (2014) 15 | What pharmacy practitioners need to know about ethics in scientific publishing | Existem várias formas de comportamento antiético na publicação dos resultados de pesquisas científicas como plágio, pesquisas publicadas duplicadamente, fabricação e falsificação de dados, questões de autoria e conflitos de interesses. | Journal of Research in Pharmacy Practice |
9 | Nogueira TE, Gonçalves AS, Leles CR, Batista AC, Costa LR (2017) 16 | A survey of retracted articles in dentistry | A abordagem de problemas éticos em periódicos científicos em odontologia ainda é incipiente. Mais de 50 % dos casos de retração na odontologia estão representados pelas razões “publicação redundante”, “plágio” e “má conduta”, pelos tipos de estudo “pesquisa de laboratório” e “relatos de caso”. | BMC Research Notes |
10 | Lins L, Carvalho FM (2014) 17 | Scientific integrity in Brazil | Má conduta científica (fraude, plágio, fabricação de dados, publicação duplicada) parece ser predominante no ambiente acadêmico brasileiro. Além disso, essas más condutas geralmente não são investigadas pelo governo ou pelas instituições de pesquisa, e as instituições brasileiras não contam com escritórios específicos para investigar casos suspeitos nem políticas para lidar com eles. | Journal of Bioethical Inquiry |
11 | Juyal D, Thawani V, Thaledi S (2015) 18 | Plagiarism: an egregious form of misconduct | O plágio tem diversas formas: plágio flagrante, plágio técnico, plágio de retalhos e autoplágio. De qualquer forma, ele é uma ameaça à integridade da pesquisa e é inaceitável. Precisa-se detectar tais atos e processar efetivamente os infratores. | North American Journal of Medical Sciences |
12 | Gasparyan AY, Nurmashev B, Seksenbayev B, Trukhachev VI, Kostyukova EI, Kitas GD (2017) 19 | Plagiarism in the context of education and evolving detection strategies | O plágio é uma praga da ciência atual e um sinal de pseudociência. Suas estratégias de detecção e prevenção requerem uma abordagem abrangente por todas as partes interessadas na comunicação científica, com base em sua consciência das tendências globais e locais na apropriação indevida da propriedade intelectual. | Journal of Korean Medical Science |
13 | Lazarides MK, Gougoudi E, Papanas N (2019) 20 | Pitfalls and Misconducts in Medical Writing | Geralmente, parece que existe uma associação positiva entre a pressão por publicar e os delitos de conteúdo. Em ordem crescente de gravidade, incluem práticas questionáveis (formulação das hipóteses após os autores conhecerem os resultados, múltiplas autocitações, omissão das limitações do estudo, entre outras), publicações redundantes, má conduta de autoria, plágio e todos os tipos de fraude (falsificação ou fabricação de dados). | The International Journal of Lower Extremity Wounds |
14 | Chambers LM, Michener CM, Falcone T (2019) 21 | Plagiarism and data falsification are the most common reasons for retracted publications in obstetrics and gynaecology | A retratação de artigos dentro da obstetrícia e da literatura ginecológica está aumentando. Os motivos mais citados foram plágio, erros nos dados, resultados fabricados, duplicação de artigos e revisão por pares comprometida. | BJOG: An International Journal of Obstetrics & Gynaecology |
15 | Dhingra D, Mishra D (2014) 22 | Publication misconduct among medical professionals in India | As más condutas mais comumente observadas foram oferecer a autoria como presente (65 %), seguido por alteração dos dados relatados (56 %), plágio (53 %) e omissão de autoria (33,5 %). A maioria dos entrevistados relatou testemunhar má conduta na publicação, o que revela a ocorrência comum desse problema entre os pesquisadores biomédicos indianos. | The Indian Journal of Medical Ethics |
16 | Rivera H (2019) 23 | Fake peer review and inappropriate authorship are real evils | Autoria inadequada e outras estratégias fraudulentas de publicação são amplamente difundidas. Parece que fortes pressões para publicar, juntamente com o número crescente de publicações, implicam menor qualidade científica, em parte atribuível a uma revisão por pares deficiente, prejudicada ou mesmo ausente (em periódicos predatórios). | Journal of Korean Medical Science |
17 | Almeida RM, Albuquerque RK, Catelani F, Fontes-Pereira AJ, Vasconcelos SM (2016) 24 | Plagiarism allegations account for most retractions in major Latin American/Caribbean databases | 31 avisos de retratação foram identificados, dos quais 15 em periódicos indexados ao Journal Citation Reports (JCR). “Plágio” foi alegado em seis retratações desse grupo. Além disso, entre os periódicos não pertencentes ao JCR, foram alegados motivos de retratação em 14 casos, dos quais 12 foram atribuídos ao “plágio”. | Science and Engineering Ethics |
18 | Artino Junior AR, Driessen EW, Maggio LA (2019) 25 | Ethical shades of gray: International frequency of scientific misconduct and questionable research practices in health professions education | Os três relatos mais frequentes de más condutas científicas foram: adicionar autores que não se qualificaram para autoria (60,6 %), citar artigos que não foram lidos (49,5 %) e citar seletivamente artigos para agradar a editores ou revisores (49,4 %). | Academic Medicine |
Fonte: elaboração própria a partir dos resultados da pesquisa.
Entre as estratégias para a prevenção ao plágio, pode-se recorrer à priorização de uma triagem completa e profunda dos artigos antes de serem encaminhados para a publicação 21; ao treinamento regular e obrigatório dos pesquisadores implementado pelas instituições de vínculo 2; à elaboração de diretrizes articuladas, documentadas, transparente, justa e consistente para investigar e lidar com supostos casos de má conduta científica 2; à instituição de políticas de proteção aos denunciantes para incentivar a denúncia de casos suspeitos de má conduta sem a preocupação de o denunciante sofrer reações 2; à adesão a softwares de detecção de plágio 2, entre outras estratégias.
Pensa-se que, na atual conjuntura política, em que o sistema neoliberal vem ganhando mais força e limitando os investimentos do Estado na ciência e na tecnologia, as más condutas científicas acabam fragilizando a credibilidade dessas duas áreas essenciais para o desenvolvimento de uma sociedade. Desse modo, cria-se mais um motivo para incrementar os constantes ataques do governo, alegando de forma generalizada que os trabalhos científicos são fraudulentos, plagiados e com irrisório retorno para a sociedade.
Todavia, os governos neoliberais que justificam as más condutas científicas como os motivos para a fragilização da ciência são os mesmos que intensificam as cobranças por produção mesmo reconhecendo a precariedade das condições de trabalho não compatível com a funcionalidade dos cientistas no meio acadêmico. Citam-se, por exemplo, a precariedade na remuneração, na estrutura laboral, no aumento de carga horária, na multiplicidade de tarefas (ensino, pesquisa e extensão), e a ascensão profissional que se dá por meio de avaliações das produções 26-28.
Se for analisar à luz da bioética, claramente observa-se o tamanho da maleficência que as más condutas científicas podem trazer. Se não houver investimentos na pesquisa, não há desenvolvimento de novos saberes, especialmente na área da saúde, que requer constantes trabalhos científicos para aperfeiçoar as ações de prevenção, tratamento e reabilitação de doenças e agravos. Além disso, as más condutas podem fazer com que a sociedade se posicione contra a ciência em todos os campos do conhecimento.
No campo da saúde, exemplificativamente, a saúde pública se torna ameaçada, pois haverá intensa resistência em adotar ações para manter a saúde da coletividade. Cita-se, como exemplo, o existente movimento antivacinação que dissemina falsas informações baseadas, principalmente, nos resultados fraudulentos de um artigo 29 publicado pelo dr. Andrew Wakefield em 1998 no Lancet (periódico médico inglês). Nesse estudo, Wakefield e colaboradores descreveram uma possível associação entre a vacinação, o autismo e as condições inflamatórias intestinais. Essa publicação teve impacto mundial e gerou dúvidas e medo na sociedade. No entanto, descobriu-se, posteriormente, que seus dados foram intencionalmente manipulados para favorecer uma linha terapêutica que o próprio autor ofereceu. Por fim, Wakefield teve seu registro profissional cassado e sua conduta foi taxada como irresponsável e antiética, pois até hoje alimenta inseguranças na população e serve como base para movimentos contrários às vacinas 30-32.
Outro caso recente envolveu o médico oncologista dr. Anil Potti, que falsificou informações em suas pesquisas para sustentar sua abordagem terapêutica contra o câncer mamário e pulmonar. Após a descoberta, todos os seus trabalhos construídos com os dados falsificados foram interrompidos e suas publicações foram retratadas 2. A retratação de um trabalho publicado é uma estratégia para proteger a ciência contra informações seriamente falhas, incorretas, redundantes, plagiadas, antiéticas e com outras características que possam comprometer a integridade científica 16. Observa-se crescimento significativo no número de artigos retratados nas últimas décadas (4, 21, 24) e estima-se que as retratações por fraudes ou suspeitas de fraude aumentaram quase 10 vezes desde 1975 33.
Nessa perspectiva, o Comitê de Ética em Publicações (COPE) publicou diretrizes 34 para uniformizar condutas referentes à retratação de textos científicos. Esse Comitê foi fundado em 1997 com o objetivo de debater questões éticas relacionadas com o desenvolvimento e publicação de estudos científicos. É formado por voluntários que padronizam e fornecem diretrizes para os editores científicos saberem como lidar com essas questões e promoverem uma boa ciência 35, especialmente no que se refere a como agir em casos de más condutas 36. Além disso, quaisquer pessoas, editores e periódicos/empresas que publiquem artigos por revisão por pares podem se tornar membro do COPE 37.
Destaca-se que a retratação apresenta benefícios importantes, pois invalida os resultados do estudo retratado e impede que eles sejam usados em pesquisas futuras e para o avanço científico 21. No entanto, o tempo observado entre a publicação e a retratação é considerável, o que permite que tais resultados sejam lidos e citados. Em decorrência disso, há ampla disseminação de falsas informações por toda a literatura científica, o que compromete de forma significativa todos os campos do conhecimento, sobretudo os cuidados em saúde, por exemplo 4,21,25.
Corroborando tais afirmações, um estudo 21 demonstrou que o tempo médio de retratação dos artigos foi de dois anos. Na área de ortopedia 4 foram 19,4 e 23,3 meses; odontologia 16 foram 37,6 anos, com mediana de 10,5 meses e na neurocirurgia 38 foram 2,3 anos. Diante desse cenário, há a necessidade de realizar uma triagem completa dos trabalhos antes de sua publicação e priorizar a capacitação dos pesquisadores em relação com os aspectos éticos que envolvem a pesquisa científica 21.
Ainda nessa perspectiva, ao descobrir uma possível inobservância dos aspectos éticos da ciência, os editores devem dar início a uma investigação criteriosa, com base nos protocolos específicos para cada transgressão elaborados pelo COPE 39. Vale destacar que a ética das publicações científicas deve começar desde o delineamento metodológico até sua publicação, e todo esse processo perpassa por três pilares: honestidade, transparência e responsabilidade que devem ser seguidos por todos os atores envolvidos (autores, revisores e editores) 12.
Além disso, informa-se que aos editores não cabe fazer julgamentos nem propor sanções. Trata-se de duas responsabilidades pertencentes à instituição de vínculo do pesquisador e à instituição que patrocina o estudo 12. Não obstante, em virtude do crescimento da desonestidade na ciência 40, é necessário que toda a comunidade esteja atenta e vigilante para prevenir, detectar e repreender tal ato 2. Destaca-se que dois dos fatores associados às más condutas são a competitividade acadêmica 41 e a pressão para publicar em menor tempo 1,3,12,14,15,18,20,23,25,41,42.
Como exemplo, cita-se o panorama atual do Brasil, em que os programas de pós-graduação, os cursos de educação contínua e os pesquisadores sofrem constante pressão para aumentar a produção científica. Além disso, são avaliados por meio da quantidade de publicações, especialmente entre os periódicos com maior fator de impacto e, mesmo assim, tais periódicos não garantem a inexistência de artigos fraudulentos publicados em seus volumes 17.
Ademais, países em desenvolvimento e que não contam com políticas e estruturas capazes de lidar com as más condutas na ciência são caracterizados por apresentarem riscos mais elevados de disseminarem resultados fraudulentos; portanto, necessitam regulamentos imediatos. Essa característica também se aplica aos pesquisadores jovens e àqueles que exercem as atividades laborais em que as críticas mútuas são limitadas 43.
A análise do cenário atual do mundo científico revela que há obstáculos para garantir a preservação e integridade das pesquisas e da divulgação dos resultados. No entanto, notam-se, também, grandes avanços obtidos em alguns campos do conhecimento, além de estratégias utilizadas no intuito de solucionar problemáticas envolvidas no assunto. Ressalta-se que o ideal seria os pesquisadores repensarem suas práticas e adotarem comportamentos fundamentados nos aspectos éticos 41.
Além do mais, torna-se necessário considerar algumas estratégias de combate às más condutas na ciência, como, por exemplo, a criminalização pelo menos para as formas consideradas mais graves, como a fabricação e falsificação de dados. Deve-se considerar que muitos casos de fraude, na ciência, assemelham-se a outros tipos de atos criminosos, como a fraude financeira ou o roubo. Desse modo, a fraude científica não deve ser tratada de forma diferenciada 44, e algumas literaturas bioéticas têm apoiado tal criminalização 44-47 com vistas à proteção da integridade científica, dos participantes e do público em geral 44-46. Deve-se ressaltar que, na área da saúde, a má conduta nas publicações científicas envolve também a segurança do paciente 20,22.
Não obstante, não basta apenas reduzir as pressões para publicar, pois isso ainda se constitui em uma estratégia ineficaz na redução das más condutas científicas. Deve-se aliá-la à promoção de transparência e críticas mútuas entre os colegas cientistas, além do treinamento e orientação, principalmente, dos jovens pesquisadores. Desse modo, articular essas estratégias de forma interdependente pode resultar em uma melhor proteção da ciência futura 43, pois permite que elas sejam aplicadas de forma combativa e preventiva às más condutas graves e às de menor gravidade.
Alerta-se, ainda, que os códigos de ética profissional enfatizam com mais profundidade nos princípios éticos voltados à prática laboral e de forma sucinta elencam os requisitos éticos que devem auxiliar no desenvolvimento de pesquisas 41. Em decorrência disso, os profissionais podem ser lançados no mundo científico com conhecimento insuficiente sobre a ética e a bioética. Corroborando com esses achados, um estudo 22 revelou que 71 % dos pesquisadores investigados não apresentavam conhecimento sólido sobre a ética nas pesquisas, o que denota a necessidade de disseminar tais informações, principalmente entre os jovens em início de carreira.
Deve-se lembrar que é preciso respeitar e garantir a integridade das pesquisas para que, de nenhum modo, a ciência seja corrompida, pois a sociedade recorre a ela para obter conhecimento 3. Desse modo, para que os princípios éticos e bioéticos sejam consistentes, necessita-se garantir a integridade científica, definida como o respeito aos princípios éticos e legais para elaborar, conduzir e publicar resultados de pesquisas. Resume-se, então, em imparcialidade dos autores durante a execução da pesquisa, autenticidade dos dados utilizados, estabelecimento correto de autoria e coautoria, observância aos direitos autorais e atenção à vulnerabilidade das pessoas envolvidas no desenvolvimento do estudo 41.
Em países como a Noruega e a China, foram criados meios para evitar a fraude científica. Uma nova lei na Noruega permite a criação de comitês que possam avaliar com maior profundidade a conduta dos pesquisadores, pois o processo de publicação não estava claro no que concerne aos preceitos éticos estabelecidos em 2006, necessitando, assim, uma nova lei que pudesse fortalecer o seguimento ético nas pesquisas. Já na China, punições podem ser aplicadas aos periódicos que obtiverem baixa qualidade nas publicações 48,49. Além disso, problemas referentes à ética ainda surgem no contexto atual global, o que sugere carência de informações quanto à temática.
CONCLUSÕES
Observou-se que, nos artigos analisados, o plágio foi a principal conduta que fere os dilemas éticos e bioéticos cometida pelos “pesquisadores”. Além do mais, as más condutas que ferem esses dois campos epistemológicos, especialmente o plágio e a falsificação e fabricação de dados, vêm apresentando comportamento crescente e requerem medidas mais severas para seu controle, a fim de manter a credibilidade científica perante a sociedade e os órgãos superiores.
As instituições de pesquisa e periódicos podem recorrer aos processos jurídicos em casos de violação de direitos autorais; às capacitações regulares entre os pesquisadores para a atualização de condutas éticas e bioéticas na ciência; à elaboração e implementação de diretrizes capazes de instruir, detectar e punir as más condutas de acordo com a gravidade da infração cometida; à proteção das denúncias realizadas pelo corpo científico e pela sociedade em geral, e ao incentivo a essa prática; à utilização de softwares que detectam similaridades textuais; à ampliação de debates sobre a temática nos espaços acadêmicos; ao repensamento de medidas avaliativas das produções com vistas à progressão profissional, entre outras estratégias.
Por fim, reconhece-se que, por meio dessas estratégias, o processo de construção da ciência seja envolvido de ações éticas e bioéticas capazes de assegurar fidedignidade, credibilidade, valorização e segurança às pesquisas científicas e aos pesquisadores. Sugere-se que estudos futuros investiguem o grau de instrução relacionado com a ética científica oferecido em instituições formadoras e o impacto dessas instruções sobre a qualidade da ciência futura.