ATRADUÇÃO É UMA ATIVIDADE QUE torna realizável a comunicação entre pessoas de diferentes culturas e, consequentemente, promove a acessibilidade a todo e qualquer tipo de produção cultural, literária, religiosa, científica e política. Por ela, somos capazes de estabelecer contato com outras línguas e sujeitos, independentemente da distância cronológica que nos separa e da comunidade na qual habitamos. A existência da tradução, enquanto fator social, responsável pela capacidade de interação entre as línguas, e biológico, enquanto habilidade cognitiva humana de aprender outros idiomas, resulta no compartilhamento de universos simbólicos entre pessoas de culturas distintas, sendo uma dimensão de interação e de interculturalidade (Dantas).
Devemos entender a tradução como uma prática que compõe e leva em consideração todos os tipos de experiências de leitura -a filosófica, a estética, a histórica etc.-, e que, portanto, não implica a simples transposição semântica de uma língua para outra, tampouco num "esvaziamento" ideológico daquele que lê. Nesse aspecto, ao considerarmos que a literatura é uma prática estética que induz o leitor a múltiplas possibilidades de interpretação, o texto literário torna-se uma obra que sempre será recriada e, quanto mais a obra se abrir a diferentes leituras, mais caminhos e possibilidades de debate de ideias o leitor terá. Diante desse processo fluido e dinâmico de uma constante mudança da maneira como entendemos ou recebemos o texto original, este se abre a novas interpretações de entendimento e revela-se como fonte inesgotável de conhecimento de si e do outro.
André Lefevere, um dos teóricos que discutiu o processo da tradução como manipulação e mediação, lembra-nos que toda tradução é reescrita e, por sê-la, atua na sociedade de duas maneiras: ela, a priori, permite aos leitores acesso ao texto, introduzindo novos recursos na língua-alvo e privilegiando um pensamento intelectual que se quer difundir (32). Segundo Lefevere, dentro do sistema literário, há dois "fatores de controle" que atuam decisivamente para o estabelecimento desses modos de tradução na cultura: o primeiro é representado por tradutores, críticos, poetas e docentes, ou seja, são todos aqueles que reescrevem na história a obra original; o segundo, denominado "mecenato", 1 representado por aqueles que atuam basicamente fora do domínio literário, é constituído por instituições financeiras, casas editoriais, grupos partidários, suportes midiáticos etc. que podem determinar ou impedir a circulação da literatura. Em virtude do seu juízo de autoridade, os administradores -ou "mecenas", como Lefevere denomina-os- comumente operam como reguladores da distribuição das escrituras literárias e são formados por três elementos que interagem de várias formas: o componente ideológico, que é o esforço do poder vigente no sentido de utilizar as traduções como canal de difusão da ideologia oficial; o componente de influência, que tem o apoio de uma elite e é muito significativo para o prestígio social, e, por fim, mas não menos importante,
O componente econômico, que, como o nome sugere, está relacionado ao amparo protetivo financeiro.
É certo afirmar, portanto, que a tradução fez e faz parte da civilização humana desde sempre, e a circulação de manuscritos, textos e ideias se dá pela tradução. Considerando essa afirmação, sem dúvida, a tradução foi elemento importante para o processo de formação e consolidação de qualquer sociedade, sobretudo porque a sua presença não se faz aleatoriamente, mas é movida por fatores de interesse, como Lefevere nos mostra.
No século XX, no Brasil, principalmente após a II Guerra Mundial, eclodiram propostas de tradução não domesticada e que tinham como intuito instaurar um olhar renovado e direcionado às letras estrangeiras, fixando uma nova relação intercultural revelada com uma grande vitalidade para a prática reflexiva, estética e politicamente engajada, mas ao mesmo tempo à procura de uma identidade própria e universal, construída pela união de dois elementos importantes dos fatores de controle: os escritores e o jornal, este último representado pelos suplementos literários.
A inserção de suplementos literários na década de 1940 nos jornais brasileiros tornou-se um marco importante tanto para a vida do leitor - ainda que esse leitor não se enquadrasse na realidade social e econômica do povo brasileiro como um todo- quanto para a "divulgação das produções literárias dos escritores, bem como para dar prestígio ao jornal" (Abreu 18). Os cadernos culturais, além de fomentarem a leitura aos diversos tipos de textos que eram assinados por jornalistas, acadêmicos ou escritores, ainda foram importantes para tornar o público ciente do que estava sendo publicado pelo mercado editorial.
As publicações dos suplementos possibilitaram, portanto, criar pontos de discussões sobre as diversas linguagens como literatura, pintura, cinema, teatro e crítica literária, além de trazer notícias sobre o que estava acontecendo na Europa e na América Latina. As publicações também não deixaram de lado questões extraliterárias, já que o momento era propício para se discutir sobre liberdade, democracia e sociedade num tempo em que o homem mudou o modo de atuar e de refletir diante das novas transformações que ocorreram nos espaços da política, da economia, da ciência, da tecnologia. No que diz respeito à condição de circulação da literatura, os suplementos foram cadernos que certamente apareceram nos grandes jornais do país.
O historiador Dawson Cangussu destaca os principais suplementos que se sobressaíram no Brasil:
No Ceará havia as Edições Clã (1946-1957); em Recife, Nordeste; em Goiás, Agora, no Maranhão destacava-se o Malaxarte (1947-1948), o Sete Dias e o Suplemento Cultural do Centro Cultural "Gonçalves Dias", publicado no jornal Diário de São Luis; no Rio de Janeiro foi fundado o Suplemento Letras & Artes (1946-1953) do jornal A Manhã; em Belém havia o suplemento literário Arte e Literatura, do jornal A Província do Pará, e o suplemento literário Arte-Literatura (1946-1951), do jornal Folha do Norte. (28)
Mas há muitos outros que não foram citados por ele, como o Correio das Artes (1949), da Paraíba, o Folha Literária (1949), de Cuiabá, Autores e Livros (1941), do Rio de Janeiro, o Suplemento Literário do Estado de São Paulo (1946) etc. Ademais, esses cadernos culturais foram democráticos e populares no sentido de descentralizarem geograficamente as discussões em torno das experiências estéticas e artísticas, saindo de uma redoma para transitarem em diversas regiões do país, já que seus colaboradores (poetas, escritores, críticos, ensaístas, contistas), além de não serem exclusivamente do eixo São Paulo-Rio de Janeiro, também colaboravam para várias outras gazetas de diferentes estados, o que resultou numa espécie de rodízio dos assuntos.
A participação de muitos escritores colaborando para diversos jornais foi certamente uma oportunidade de reafirmar suas posições ideológicas, uma maneira de se engajar politicamente e, claro, uma oportunidade de elevar suas condições financeiras. E, por ser um apêndice do jornal em formato de revista, a vantagem de adquiri-lo foi compensatória por dois motivos: o leitor não perderia as notícias e as informações diárias -visto que as tiragens dos suplementos literários não eram vendidas separadas da gazeta e geralmente circulavam aos finais de semana, normalmente aos domingos, dia intencionalmente escolhido pela suspensão do trabalho e das aulas- e ainda teria em mãos um meio de divulgação cultural mais barato, compacto e acessível em comparação com o livro. E este, diga-se de passagem, era um bem para poucos.
Sem dúvida, o cenário literário brasileiro contribuiu muito para o crescimento desse tipo de caderno cultural em nosso país, não foi à toa que suplementos de grande, médio e pequeno porte foram fundados. Mas nada quase se comparou ao suplemento dominical Letras & Artes (1946-1954), do jornal A manhã, do Rio de Janeiro. Fundado pelo jornalista e ex-deputado Jorge Lacerda, esse semanário, além da sua importância social na sociedade carioca, foi um suplemento que muito investiu para o projeto de divulgação da literatura e da cultura estrangeiras, ou seja, toda a pluralidade de conteúdo literário publicada nesse periódico foi capaz de criar um ambiente muito promissor para a divulgação cada vez mais ampliada da literatura universal, o que fomentava a troca de ideias e estimulava o aparecimento de novos e diferentes valores, autores e obras.
Dessa forma, a partir do momento em que são traduzidos escritores de diferentes momentos históricos e contextos, as nossas letras e o modo de percepção de leitura se definem com o rompimento da ideia de periodicidade literária plenamente unificada, organizada e retilínea, favorecendo uma leitura extremamente enriquecedora. Trata-se de uma relação dinâmica, polissêmica, de construção de discursos literários distantes em termos de épocas, mas muito próximos em termos de sentido, pois, como argumenta Haroldo de Campos no livro A arte no horixonte do provável, a grande importância do estudo sincrônico é o compromisso assumido com a literatura brasileira em incluir autores muito importantes do processo criativo-artístico, mas que, em decorrência do caráter eminentemente historiográfico que a literatura adotou, ficaram à margem do estereótipo de "poetas maiores". É claro que essa nova forma de percepção literária, muito mais inclusiva e viva, reforça e estimula a aproximação de literaturas de diversas partes do mundo, obras que aparentemente poderiam não ter qualquer relação direta, principalmente em termos cronológicos, mas, se estudadas por uma visão estético-artística, sem dúvida, constituíram-se numa "contribuição definida para a renovação de formas em nossa poesia, para a ampliação e a diversificação de nosso repertório de informação estética" (Campos 209).
Para o leitor, de modo geral, a proposta de uma tradução sincrônica no Letras & Artes permitiu o acesso a uma grande variedade de títulos.2 O suplemento iniciou suas atividades em 1946 e findou-as em 1954, com trezentas e onze edições publicadas. Ao todo, foram cento e oitenta e dois textos traduzidos, dentre os quais ganham mais relevo as traduções de poemas: cento e cinquenta obras. A origem dos textos traduzidos também foi bem diversa. Foram encontrados de língua alemã, espanhola, russa, francesa, inglesa, italiana, polonesa, romena, mandarim e hindu. Do mesmo modo, essa variedade também está diretamente relacionada à pluralidade de tradutores que apareceram e trabalharam para esse semanário (quadro 1). Além disso, se formos considerar que quase todos os tradutores do Letras & Artes são também poetas e que fazem parte de uma escola literária, a partir do momento em que eles "vestem a camisa" de tradutor, ocupam um lugar diferente daquele que ocupariam se estivessem na condição de escritores originais, passando a representar a poesia como algo não cristalizado num único e definitivo sentido. Podemos pensar assim, por exemplo: quando um escritor contemporâneo traduz um escritor clássico ou simbolista, não exclui completamente a historicidade da obra, por outro lado, abre margem para que o lado estético da criação literária seja o principal motivo da existência da tradução. E é essa proximidade da literatura estrangeira com o trabalho do tradutor -ambos criados em contextos diferentes- que acaba gerando o fruto de uma confluência de buscas, sentimentos, encontros, vozes, leituras e experiências, principalmente porque a variedade de tradutores que apareceu foi bastante considerável (quadro 2). Essa dinâmica, embora pareça sutil, põe em cheque os limites do que é considerado antigo e do que é considerado atual, provocando rupturas e dando novos rumos à literatura.
Suplemento Letras & Artes | ||||
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Ano | Poema | Crítica | Conto | Teatro |
1946 | 10 | - | 7 | 1 |
1947 | 12 | 5 | 3 | - |
1948 | 6 | - | 2 | - |
1949 | 42 | 1 | 2 | - |
1950 | 39 | 2 | 2 | - |
1951 | 17 | - | 6 | - |
1952 | 13 | - | - | - |
1953 | 8 | - | 1 | - |
1954 | 3 | - | - | - |
Total | 150 | 8 | 23 | 1 |
Abgard Renault | Celina Aguirre | Maria da Saudade Cortesão |
Acácio França | Celso Vieira | Milton Amado |
Adolfo Casais Monteiro | Cláudio Tavares Barbosa | Napoleão Lopes |
Adolfo Monteiro | Darcy Damasceno | Olegário Mariano |
Agostinho Olavo | Dora Ferreira | Olivia Krahenbuhl |
Álvaro Gonçalvez | Eugênio Gomes | Onestaldo de Pennafort |
Ana Angélica Dupont | Fernando Pessoa | Osvaldo Orico |
Antônio Bandeira | Guilherme de Almeida | Paulo Mendes Campos |
Ascendino Leite | Gustavo Barroso | Paulo Quintela |
Aurélio Lacerda | Herculano de Carvalho | Péricles Eugênio da Silva Ramos |
Bezerra Freitas | Hernani SantAna | Raimundo Magalhães Jr. |
Breno Accioly | José Escobar Faria | Rosa DAlva |
Brito Broca | José Geraldo Vieira | Sílvio Julio |
C. Lacerda | Leony de Oliveira Machado | Tasso Silveira |
Camilo Pessanha | Lígia Fagundes Telles | Terezinha Eboli |
Carlos Drummond de Andrade | Lúcio Bauerfeldt | Vicente Augustus Carnicelli |
Carlos Sá | Lúcio Cardoso | Vicente Jusselino |
Carmen Mendes Viana | Maluh de Ouro Preto | Victor Wittkowski |
Catharina Canabrava | Manuel Bandeira | Xavier Pacer |
Esse deslocamento oportuniza pensar também certos problemas cruciais que dizem muito respeito à receptividade do texto literário, pois é certo que a mudança de contexto social e temporal não se aplica apenas à questão política, mas, sobretudo, trata-se também de uma mudança de espírito, da criatividade do tradutor. Criatividade essa de não apenas reviver o passado, mas também se apresentar como apropriação dele, pois, como bem aponta a visão fenomenológica de Paul Ricoeur, "lembrar-se não é somente acolher, receber uma imagem do passado, como também buscá-la, fazer alguma coisa" (71).
O suplemento Letras & Artes tornou-se um suporte de informação e conhecimento muito importante para a sociedade brasileira. Um dos motivos desse "fazer alguma coisa" estaria na grande abertura que esse suplemento deu à literatura hispano-americana. A sua essência pluralista e antagônica produziu, uma corrente literária muito complexa e universal, pois, além de reforçar a importância dos cânones literários europeus, incluiu também, nesse projeto de alargamento literário, escritores pertencentes ao nosso continente. Dessa forma, há um certo equívoco da parte de Marta Scherer quando afirma que "nenhum artigo, matéria e nota de autoria de algum escritor, crítico, jornalista ou apenas colaborador de país latino foi encontrado" (3). Para a autora, houve uma "ausência de textos sobre a América Latina" e tampouco o suplemento literário publicou contos ou mesmo fragmentos de livros de autores dos países desse continente (1). Sobre essa afirmação, retifico-a afirmando que não só encontramos poemas de escritores hispanoamericanos, como também das chilenas Stella Corvalan,3 Gabriela Mistral4 e do argentino Pedro Juan Vignale,5 como contos do uruguaio Horacio Quiroga6 e do boliviano Botelho Gozalvez,7 além de uma crítica do uruguaio José Enrique Rodó.8 Tais publicações tanto reafirmam o interesse de uma pesquisa por novas linguagens como determinam certa correspondência de diálogo com esses países.
A forma como se organiza e se publica uma tradução num suplemento também deve ser encarada como um fator relevante para o processo de aproximação e diálogo literário intercultural. Por exemplo, foi muito comum o Letras publicar as traduções ao lado de obras nacionais, não fazendo, portanto, distinção. Percebe-se, então, certo grau de aproximação não no sentido ipsi literis da palavra, mas em termos de produção estética literária, o que nos permite pensar que as nossas letras nacionais estejam em pé de igualdade com a literatura mundial. Ou podemos pensar numa perspectiva contrária: os autores estrangeiros é que estão em pé de igualdade com os nossos, pois, como alega Peter Burke, "as aparências da página impressa funcionam como uma série de deixas para os leitores, encorajando-os a interpretar o texto de uma maneira e não de outra" (91). Em todo caso, é justo também pensar numa leitura muito mais flexível, renovada e universal, como bem mostra a seleção de traduções feita por Manuel Bandeira, que juntou num mesmo espaço Verlaine, Pedro Juan Vignale, Juan Ramon Jimenez, Manuel Gutierrez Nájera, Elizabeth Barrett Browning e um poeta desconhecido. Nesse sentido, pensa Milliet na edição 211:
Do verso burilado de Gauber ao verso fluido de Verlaine, do polido mármore parnasiano à hermética distinção de Mallarmé, da deliqüescência feminina dos simbolistas ao dinamismo metafísico de Marinetti, as definições se sucedem refletindo épocas e temperamentos, excluindo certas soluções em benefício de outras, ressuscitando concepções mortas ou prepugnando novas e ousadas modalidades expressivas. (5)
Em vista disso, devemos notar, mesmo que rapidamente, que essas traduções se notabilizam não somente pelas riquezas culturais e literárias propiciadas por esse tipo de edição, como também pelo trabalho de análise crítica do tradutor perante as obras. Ao percebermos isso, veremos que esse tipo de estrutura se realiza como um importante disseminador de ideologia e de uma forma diferente de percepção sobre as nossas letras, principalmente se tratando de leituras e de autores que circularam em outros estados brasileiros, como por exemplo, o poema "O apelo", de Jules Supervielle, traduzido por Manuel Bandeira e também publicado no suplemento Arte-Literatura, do jornal paraense Folha do Norte.
No que compete à participação dos poetas-tradutores que apareceram no Letras, podemos dizer que cada um demonstrou profunda autonomia para escolher quais obras seriam publicadas nos periódicos, evidenciando, assim, que cada tradutor optou por um escritor estrangeiro que melhor poderia satisfazer as exigências do momento. Na esteira dessa questão, percebemos que essas traduções, quando cotejadas, embora produzidas em épocas e contextos sociais e estéticos diferentes, são capazes de demonstrar profunda sintonia uma com as outras, pois o que está em jogo é também a liberdade da palavra de poder se abrir para outras formas de leitura, e que dentro desse paradigma houve uma miscelânea de experiências e releituras que passaram a representar aspectos da modernidade. Diante disso, foi muito importante o trabalho que alguns tradutores do Letras & Artes fizeram em não apenas traduzir o texto estrangeiro, mas também em procurar, acrescentar à tradução uma pequena biografia ou explicação positiva acerca do autor estrangeiro, uma tentativa de familiarizar o leitor com a obra.
Ao propor esse tipo de publicação como uma forma de apresentar ao leitor uma obra que tem uma importância, além de sensória e estética, histórica e social, o suplemento invoca uma interpretação muito mais educativa, que venha convencê-lo de que o texto que ele lerá é, de fato, uma leitura importante. Assim, convém dizer que se os tradutores têm como missão revelar aos leitores as literaturas do mundo, automaticamente o trabalho de tradução implica num processo de manipulação e articulação do texto, construído pela figura do tradutor, que seleciona a obra, e pelo suplemento, enquanto autoridade que certifica e aprova o próprio texto. Grosso modo, sabe-se se a obra é boa ou ruim, se vale a pena ou não lê-la, pelo renome do tradutor.
Quero dizer com isso que a condição de mediador que o tradutor exerce nesse suplemento põe em questão duas premissas: a primeira é referente à sua capacidade de criar uma corrente de gostos e de temas que diretamente influenciarão na leitura cotidiana que o leitor fará, verificado no interesse do Letras & Artes por tradutores que são também autores de obras originais, como Aurélio Buarque de Holanda, Cecília Meireles, Manuel Bandeira e muitos outros, principalmente porque esses tradutores também enviavam à redação do Letras seus contos, resenhas, e poemas.
Por sua vez, a segunda premissa está relacionada às escolhas particulares dos tradutores: as obras traduzidas existem em diálogo com o contexto presente, mas também são obras que partem de uma preferência daquele que traduz, e que muito ajudaram a trazer uma rotatividade de leituras que ampliaram a literatura dentro de um fluxo e um refluxo de textos que circularam de norte a sul do Brasil, propiciando assim uma experiência de maior desenvolvimento cultural. Por exemplo, os poemas de Goethe -"Todeslied eines Gefangenen", "Liebebeslied eines Wilden", "Brasilianisch" e "Weltliteratur" foram, por sua vez, inspirados no ensaio "Des cannibales", de Montaigne, uma reflexão acerca dos índios Tupinambá, no Brasil- vertidos por Victor Wittkowski e classificadas por ele como "Poesias brasileiras de Goethe", revelam que a abertura à escrita universal foi muito importante por não só incluir novas leituras, como também por conhecer novas culturas. Nesse caso, novos diferentes "brasis" vão sendo construídos nessa relação. Wittkowski também escreveu um artigo chamado "O índio brasileiro na poesia de Goethe", publicado no Correio da Manhã na edição 15313 (1). Assim, culturas e leituras que eram pouco discutidas e pouco lidas são postas em relevo, pois, como afirmou Alcântara Silveira, no artigo "Equívoco", publicado no Letras & Artes 22:
A tradução veio mostrar que pelo menos a parte boa dessa vastíssima literatura não é conhecida dos nossos leitores. Não é nem mesmo conhecida dos escritores o que -para um intelectual- é bem grave, não há dúvida alguma. [...] [N]ão será exagero afirmar que a literatura "made in USA" começou a ser conhecida pelo povo destas bandas através do cinema que, embora deturpando os romances em sua adaptação à tela, lhe revelou Steinbeck, Caldwell ou Hemingway. [...] É perfeitamente justificável que as traduções desses romances -como de resto as de alguns romances russos, alemães ou japoneses- sejam criticados, porque são realmente novos para a massa. O que não se compreende, porém, é o desconhecimento de obras célebres, de autores conhecidos, por parte dos intelectuais que sempre foram acusados de prestar mais atenção à língua francesa do que ao próprio idioma. (4)
A literatura pós-45 fomentada por uma tradução que se estruturou entre descontinuidades e continuidades, define um projeto de formação cultural que se pauta no diálogo com diversas origens, passando, por exemplo, pelas correntes de Vanguarda, pelo Romantismo alemão, pelo Classicismo, pelo Simbolismo etc., ou seja, o que está em jogo é a sua expressividade como representante na nova atualidade. O movimento moderno conseguiu somar a dimensão passado-presente e retirar dessa adição um novo código estético, em estreita concordância com a subjetividade do tradutor e a mudança que despontava no pós-guerra. Escreve o crítico Disraeli, na coluna Política e Letras, do Letras & Artes 107, o seguinte:
Bem sabemos como é falho o conhecimento dos nossos intelectuais no que se refere à literatura clássica. Formamos a nossa cultura, cogitando geralmente da cúpula e da fachada, sem nos preocuparmos com os alicerces. Esquecemos da base, dessa base que só os clássicos nos podem dar. Muita gente chega mesmo à insensatez de afirmar que podemos passar sem ela. Outros repetem a conclusão leviana de serem os clássicos maciços, pesados, e consequentemente aborrecidos. São dois erros clamorosos. Está provada a impossibilidade de alguém atingir um grau de superioridade de cultura literária sem conhecer certo número de obras fundamentais que há muitos séculos vêm nutrindo o espírito humano, fornecendo-lhes elementos e sugestões para centenas de criações artísticas. (14)
Esses procedimentos, tomados em conjunto, representam um processo de transformação tão fundamental e abarcante que podemos indagar se não é uma nova relação com o texto que está sendo moldada, visto que são assinaladas pela diferença de diversas divisões culturais, pela ruptura do ensino sincrónico e pela retomada de obras que foram criadas em certos períodos muito importantes da história da humanidade, mas que por algum momento ficaram de lado. O que se busca é perceber que, a partir do contato com as intempéries do século XX, nos deparamos com vários discursos de crise. Segundo Marcos Siscar, quando "falamos de crise, em poesia, não falamos exatamente de um colapso de ordem factual, mas mais precisamente da emergência de um ponto de vista sobre o lugar onde estamos, sobre nossas condições de 'comunidade'" (11).
Em vista disso, a presença da tradução no Letras & Artes foi de grande importância por promover o intercâmbio com outras culturas, mas que, ao mesmo tempo, refletisse as inquietações do espírito, os sofrimentos psíquicos e as turbulências sociais do momento, tanto da atmosfera interna brasileira quanto do ambiente internacional. Em outras palavras, a abordagem da literatura estrangeira no suplemento nos permite dizer que a tradução literária buscou, declaradamente, construir valores culturais a partir de discursos comprometidos com os conflitos político-sociais e com temas diretamente relacionados à própria existência humana, destacando questões do como valor da liberdade individual e espiritual que vão desde uma discussão estética até a práxis político-filosófica.
Para finalizar, essa pequena discussão acerca do suplemento do jornal A manhã é válida para averiguar um período da história literária e social carioca aberto à divulgação da tradução. A tradução divulgada nesse semanário -e em tantos outros do Brasil- não pode ser esquecida, em virtude da pluralidade e da complexidade dos textos que circularam num momento pós-traumático e que faziam referência a ele, merecendo uma atenção especial.