Introdução
SE É LÍCITO FALAR DE uma poesia latino-americana, não nos parece, todavia, tarefa simples apontarlhe os denominadores comuns. Sem embargo, consideramos que certas afinidades, assim como determinadas correspondências, capazes de sugerir uma voz convergente com a qual constituímos "nosso dizer e nosso dizer-nos", abrigam-se, amiúde, naquelas intersecções que fazem de nossas histórias, também e ao mesmo tempo, uma "nossa história".
Sob esse viés, parece-nos apropriado estender o panorama traçado pelo uruguaio Jorge Ruffinelli a respeito, especificamente, das transfigurações da ficção latino-americana na segunda metade do século XX, aplicando-o, mutatis mutandis, a nossa dinâmica literária como um todo, incluídas aí, as produções poéticas:
Definitivamente, não poderiam ser entendidos como um problema especificamente estético e hoje, consequentemente, não é possível acompanhar seu processo como se se tratasse de um fenómeno sem forte vinculação com a totalidade da vida latino-americana. Em contrapartida, é necessário dizer que a nova literatura e a nova perspectiva tampouco constituíram epifenómenos das transformações económicas, sociais e políticas do continente, as quais possuem suas próprias formas de articulação e de manifestação. É justo assinalar que as relações entre o literário em particular e a totalidade chamada América Latina são tão próximas e mutuamente dependentes que seria um esforço estéril tentar explicar a dinâmica literária à parte das outras que a acompanham -às vezes de maneira divergente; outras, convergente -e que organizam a complexa tessitura de sua relação cultural.1 (369)
Nessa tensão dialética - jamais suspendida e tampouco domada por qualquer síntese definitiva - a poesia da América Latina, que é uma e é muitas, conjuga em constelações sempre novas as sinas e as cenas, ora recíprocas ora inelutavelmente ímpares com que tecemos nossa identidade.
Talvez seja mesmo impossível caracterizar esse ethos cultural latinoamericano sob pena de perdê-lo no exato momento em que se julgue capturá-lo; dizer-nos é, paradoxalmente, mutilar aquilo que somos. Não obstante, parece-nos que aquilo que somos poderia ser mais bem delineado na luta diária e ininterrupta para sermos o que somos. A poesia latino-americana - e de forma mais abrangente a cultura da América Latina - só existe no próprio ato impertinente e obstinado de resistir. Nesse sentido, afirma o poeta e ensaísta colombiano Juan Gustavo Cobo Borda:
Nossa identidade, se é que ela existe enquanto tal, é dada precisamente por esse atrito e esse ajuste entre passado e presente. Entre essa imagem que subverte e esclarece e essa realidade que nos afirma e nos refuta em sua dureza cotidiana. Nessa síntese que torna tão fantasmagóricos os fatos quanto tangível a poesia que emana de sua ausência.2 (5-6)
Nossa proposta, no trabalho que se apresenta, consiste em examinar um fragmento desse mosaico cultural que nomeamos - com toda a problemática aí implicada - de poesia latino-americana. Trata-se, com efeito, de um texto relativamente pouco conhecido daquele que é por muitos considerado o maior poeta brasileiro do século xx: Carlos Drummond de Andrade.
Ícone do modernismo brasileiro desde a década de vinte, Drummond sem dúvida incorpora, de maneira paradigmática, em sua poética a característica voracidade criativa que faz da obra de nossos maiores poetas um complexo de influxos e insumos constantemente recombinados e reelaborados ad infinitum. Como também assinala Cobo Borda:
Desde a observação de Alfonso Reyes de que, embora tenhamos chegado tarde ao banquete da civilização ocidental, temos direito a todos os seus manjares até a formulação teórica que o movimento antropofágico brasileiro formulou nos anos 20; devemos canibalizar e tornar nosso todo aporte cultural que nos seja útil.3 (11)
Por outro lado, a abordagem que o presente trabalho propõe - calcada na análise da imbricação entre literatura e economia - conquanto não constitua novidade, não é propriamente corriqueira no âmbito da crítica literária em geral e, mais especificamente, nos estudos que se debruçam sobre a poesia na América Latina.
Dentre os autores que se dedicaram a estudar as correlações entre o campo económico e o literário, destacam-se, nomeadamente, o economista suíço Hans Christoph Binswanger, falecido em 2018, e o crítico canadense Marc Shell, professor da Universidade de Harvard. Obra pioneira acerca desse tema é o livro The new economic criticism: Studies at the intersection of literature and economics (1999), organizado por Mark Osteen e Martha Woodmansee.
No cenário brasileiro, sobressai o nome do economista Gustavo H. de Barroso Franco, o qual, sob uma perspectiva de matiz liberal, já publicou estudos importantes sobre aspectos económicos presentes nas obras de Fernando Pessoa, Machado de Assis e William Shakespeare.
Com efeito, o percurso crítico que se apresenta - em um esforço metodológico de apreender uma fração das confluências e dos influxos poéticos, históricos e socioeconómicos que se cruzam no âmago de nossa identidade cultural - pode contribuir, sob a perspectiva aqui sustentada, para desvelar aspectos ainda pouco nítidos do universo da poesia latino-americana.
A economia no meio do caminho
A tragédia criminosa do rompimento da barragem de Fundão em Bento Rodrigues - subdistrito pertencente ao município de Mariana - em cinco de novembro de 2015, bem como a repetição da história - farsa ou tragédia? - em Brumadinho, em 25 de janeiro de 2019, ambas no estado de Minas Gerais, fez emergir, entre ecos e protestos, um velho texto marginal de um itabirano ilustre.
Findava o ano de 1983 e o velho Carlos Drummond de Andrade, ainda que deveras distante do Mato Dentro, brindava então sua terra natal com versos que, décadas passadas, chamariam a atenção, nos dias que se seguiram às tragédias, por seu tom crítico e melancólico ou, segundo alguns, quase profético.
O texto, que desde 2015 tem marcado presença em redes sociais e sites jornalísticos - e cuja autenticidade chegou a ser posta em dúvida por muitos leitores -, foi originalmente publicado no número 58 do jornal O Cometa Itabirano, em dezembro de 1983 e nunca chegou a ser editado em livro. Segue-se o poema de Drummond:
I
O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.
II
Entre estatais
E multinacionais,
Quantos ais!
III
A dívida interna.
A dívida externa.
A dívida eterna.
IV
Quantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro? (Citado em Rosa 213)
A associação do poema, primeiramente, com o rompimento, em 2015, da barragem operada pela Samarco parece decorrer naturalmente dos dois primeiros versos, em que o par antitético - Rio doce e Vale amarga - parece preludiar a catástrofe que, quase trinta e dois anos depois:
provocou a liberação de 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos. O material formou uma onda de aproximadamente 10 metros de altura, que deixou um rastro de destruição e morte por onde passou. Dezenove pessoas faleceram e milhares de outras pessoas foram atingidas direta e indiretamente. [...] Houve destruição total de comunidades rurais, de terras férteis da agricultura familiar, além da contaminação de cursos d'água da região, atingindo toda a extensão do rio Doce e provocando danos a cerca de 500 quilómetros de distância do epicentro do rompimento. (Magalhães Pinheiro et al 12)
Contudo, se os versos drummondianos parecem sugerir um vislumbre do futuro, forçoso nos é reconhecer que eles se arvoram, na verdade, sobre o passado; ou melhor seria dizer, sobre a história - delineando, nos termos de Walter Benjamin, que: "um encontro secreto está então marcado entre as gerações passadas e a nossa" (citado em Löwy 48).
Nesse sentido, convém enfatizar a (des)apropriação, levada a cabo por Drummond, da forma tradicional do soneto por meio de sua subversão; com a transposição da quadra da segunda estrofe para o fecho do poema, intercambiada por um terceto. Ademais, o desvio aqui - método também benjaminiano - é realçado pela numeração das estrofes, recurso atípico, assinalada pelo poeta, bem como pela polimetria dos versos. A ruptura para com o molde clássico assume, assim, evidente conotação de crítica a uma formulação épica do processo histórico enquanto tradição repressora, cujo ideal de progresso não se sustenta frente às contradições do real captadas pela sensibilidade lírica.
Como foi dito, "Lira Itabirana" apareceu em 1983 no jornal O cometa itabirano. Este, por sua vez, surgira em 1979, no escopo de uma tímida abertura histórica que se anunciava à medida que o regime autoritário dava indícios de sua paulatina, todavia irremediável, fragmentação. De acordo com Rosa (75):
Dentro desse contexto de uma abertura vacilante, jovens itabiranos que tinham vivenciado nas universidades a experiência da repressão perceberam a importância de continuar sua militância política e, assim, contribuírem com o processo de redemocratização do país. A forma encontrada para essa participação mais atuante aconteceu através das páginas de um jornal, ainda que do interior de Minas. Surge então, na paisagem itabirana, um veículo que iria de uma forma ou de outra contribuir para a implantação das liberdades democráticas e falar de um modo diferente a uma cidade em torno dos cem mil habitantes, cuja maioria se orgulhava da presença dominadora da grande empresa estatal, a Companhia Vale do Rio Doce.
O combativo O cometa itabirano se tornou, então, até a morte do poeta em 1987, uma ponte entre o gauche distante e a "fotografia na parede", ao publicar materiais diversos, tais como excertos de poemas, crónicas e cartas de Drummond, além de homenagens e reportagens sobre o célebre conterrâneo. Estabeleceu-se, assim, um vínculo, estreitado ano a ano, entre os editores de O cometa e o velho poeta, em que convergiam ideais e anseios no tocante à realidade itabirana - e brasileira - de uma década que entraria para a história como perdida - marcada por estagnação económica, inflação galopante e agudização da crise social (Gonçalves e Pomar 15). É nesse contexto que se daria a publicação, em fins de 1983, de que ora nos ocupamos.
Por outro lado, convém observar que a intersecção entre a poesia de Carlos Drummond de Andrade e a temática da mineração nunca passou despercebida ao leitor atento. Entre o poeta, nascido em 1902, e a antiga Companhia Vale do Rio Doce (crvd) - hoje só Vale, o Rio Doce não há mais -, nascida quarenta anos depois, o embate de perspectivas, projetos e valores perpassou poemas, crónicas e contos de Drummond. A melhor síntese dessa história veio à luz, recentemente, em Maquinação do mundo: Drummond e a mineração (2018), de autoria do professor José Miguel Wisnik.
Sob esse ângulo, a temática se mostra bastante presente na produção drummondiana de tom memorialístico, de cuja safra o terceiro volume de Boitempo - Esquecer para lembrar, publicado em 1979, precede por poucos anos a aparição da "Lira itabirana". É dessa obra, cujo foco, segundo Flores "é a reconstrução do passado pessoal, sobretudo, mas também coletivo e até proto-histórico" (263), que retiramos os versos iniciais de "Desfile":
As terras foram vendidas,
as terras abandonadas
onde o ferro cochilava
e o mato-dentro adentrava.
Foram muito bem(?) vendidas
aos amáveis emissários
de Rothschild, Barry & Brothers
e compadres Iron Ore.
O dinheiro recebido
deu pra saldar hipotecas,
velhas contas de armarinho
e de secos e molhados. (Drummond Boitempo 25)
Em verdade, a história do Estado brasileiro com a casa Rothschild, primeiro grupo bancário assinalado no sétimo verso do poema, lembremos, é de longa data. Tem início com o decreto de 28 de fevereiro de 1825, que consolidou a contratação de um empréstimo com bancos ingleses no contexto dos esforços envidados, no Primeiro Império, para fazer frente ao caos financeiro legado por D. João VI, bem como para alcançar o reconhecimento, pela ex-metrópole e pela Inglaterra, da Independência brasileira. Constitui tal fato o verdadeiro marco do endividamento externo do país, resultado da negociação entre D. Pedro e seu pai - malgrado os protestos da crítica nativista contra o Pacto de família -, que se desdobraria na ininterrupta estratégia de se valer ciclicamente de novas contratações para o pagamento do serviço de juros e amortizações das antigas. "O princípio era êste: pagar velhas dívidas, contraindo novas e maiores; pagar aos nossos credores à custa dêles próprios" (Bouças 29). Os Rothschild forneceram os recursos necessários para que "comprássemos" nossa independência, quitando, na verdade, com os empréstimos, os débitos de Portugal com os ingleses - o Brasil seria, portanto, o caminho mais curto a conduzir o capital, em seu percurso de valorização, da Inglaterra à Inglaterra. Com efeito,
[d]urante o Império, o nosso governo foi grande cliente da City de Londres, ali representado pelo Banco dos Rothschild. Entre 1825 e 1889, o Brasil levantou 17 empréstimos, do quais apenas dois se destinaram a investimentos (em estradas) e dois tiveram motivação política imediata: o reconhecimento da nossa independência e o financiamento da Guerra do Paraguai. Dos restantes, nada menos que 10 se destinaram à liquidação de dívidas anteriores. (Singer "O Brasil" 398)
Em "Desfile", contudo, a referência é a outro momento da trajetória de sobreposição do capital internacional em relação à fortuna do país e, particularmente, de Itabira. No início do século XX, como assinala Wisnik, na trilha aberta pela divulgação internacional de dados sobre as reservas brasileiras de ferro no XI Congresso Internacional de Geologia, realizado em Estocolmo em 1910, uma série de grupos estrangeiros acorreriam à Itabira do Mato Dentro a fim de adquirir as preciosas terras, cujas reservas se distinguiam quantitativa e qualitativamente, dado o elevado grau de pureza do minério que ali se encontrava.
Somando-se a relativa deficiência da economia mineira de fins do século xix e início do XX - que se traduziam em "uma baixa renda per capita, baixa produtividade, sistema de transportes inadequado e o fato básico de que Minas, com suas diferentes regiões, não era uma unidade económica coerente" (Wirth 88-89) - e a ignorância dos latifundiários decadentes e pequenos proprietários das terras ferríferas acerca do potencial económico ali resguardado, a compra das propriedades em que as reservas se encontravam a preços módicos favoreceu enormemente os grupos estrangeiros, que, ademais, usufruíram da "Constituição republicana, que considerava os proprietários do solo, brasileiros ou não, como proprietários também do subsolo e das riquezas nele contidas" (Wisnik 3).
Daí a amarga ironia do discurso mnemónico ao assinalar que as terras "Foram muito bem(?) vendidas" "pra saldar hipotecas, / velhas contas de armarinho/ e de secos e molhados". Na leitura precisa de Wisnik:
A voz que sustenta o arrazoado expõe candidamente, como se não notasse o tamanho do descalabro, a distância descomunal entre as contas dos grandes banqueiros, das empresas internacionais que compraram as terras, e as pequenas hipotecas e contas quitadas no armazém de secos e molhados e na loja de armarinhos, da parte de quem as vendeu. (3)
Delineia-se, desse modo, o elo histórico-económico-poético que enreda Drummond e o enlaça a 1825, 1910 e 1983 em nosso recorte. Sob a ótica de Caio Prado Júnior, a aquisição, pela inciativa estrangeira, sobretudo inglesa, das terras ferríferas contribuiu substantivamente para o atraso socioeconómico nacional e regional, resguardando os interesses estratégicos do capital estrangeiro:
Ainda ocorrerá outro obstáculo oposto a seu desenvolvimento: será o controle exercido sobre as principais jazidas brasileiras de ferro por grupos financeiros internacionais. Desde antes da guerra, vários desses grupos tinham adquirido a maior parte das vastas áreas do Estado de Minas Gerais onde se encontram as ocorrências do minério. Dentre elas se destaca a Itabira Iron Ore Co., ligada às casas Rothschild, Baring Bros. e E. Sassel, e que fez suas aquisições em 1911. Mas o objetivo de tais grupos era apenas obter o controle das reservas brasileiras e impedir seu acesso a concorrentes; não se interessavam em explorá-las, e por isso permanecerão inativos, apesar dos contratos e obrigações em contrário existentes. (269)
A formação da Itabira Iron Ore, cuja autorização para operar se deu pelo Decreto n° 8.787, de 16 de junho de 1911, constituiu mais um episódio na expectativa itabirana do progresso que tardava, e, na leitura de Caio Prado Jr., uma pedra a mais no caminho do desenvolvimento nacional. Na síntese ensaística de José Miguel Wisnik, a respeito de como esses eventos macro e micro históricos se articulam na poética drummondiana:
Os conteúdos da "memória involuntária" convivem com o assalto da história mundial que chega insidiosamente a essa "cidadezinha qualquer" e nada qualquer (se olhada da perspectiva dos interesses internacionais que convergem para ela, e das discussões nacionais sobre o destino da mineração, que a envolviam diretamente desde os anos 1910). A empresa anglo-americana Itabira Iron Ore Company estava apta a funcionar já em 1911, nessa cidade em que o "sono rancoroso dos minérios" será acordado para ir à guerra em 1942, e que estará no alvo da "Grande Máquina" dos dispositivos de exploração totalizante da segunda metade do século XX, embora cronicamente cega para tudo isso. Itabira está situada, na verdade, numa espécie de polo secreto da mineração brasileira, de implicações nacionais e internacionais importantes, sem deixar de ser a "cidadezinha qualquer" da extrema província, dentro do mato, doendo na fotografia onde se encontram as retinas fatigadas pelos choques da modernidade com a efusão remota e lancinante da memória involuntária. (cap. 1)
O próximo ponto de parada dessa história seriam as negociações com ingleses e estadunidenses que culminariam na criação da Companhia Vale do Rio Doce em 1942. Esse episódio - que, todavia, não constitui nosso foco no presente trabalho - consiste em mais um movimento de subsunção político-econômica do Brasil aos interesses das potências do capitalismo mundial.
De outra parte, se a publicação de "Desfile" e a de "Lira itabirana" distam não mais que poucos anos, os momentos de nossa história econômica que se inscrevem em cada um dos poemas têm entre si, como já se assinalou, algo em torno de sete décadas. Por conseguinte, para compreender a orientação discursiva dos versos de Drummond nas páginas de O cometa em 1983, convém situarmos a problemática histórica aí insculpida.
Com efeito, a imbricação entre mineração - primeira e última estrofes - e economia - abstração do eixo semântico das estrofes centrais - só pode ser compreendida se articulada à conjuntura histórica que emoldura sua dinâmica. Nesse sentido, do início de uma década marcada, por um lado, pela redemocratização do país e, por outro, pela crise do endividamento que conduziria o Estado aos braços do Fundo Monetário Internacional (fmi), há de se retroceder alguns anos para que se vislumbre uma imagem mais abrangente das determinações aí implicadas; ou seja, faz-se necessário rever alguns pontos nevrálgicos do período da ditadura civil-militar brasileira no que diz respeito a seus aspectos econômicos.
Nesse sentido, Schwarcz e Starling destacam que:
A ditadura pode até ter sido uma sucessão quase imperial de generais no exercício da Presidência da República; contudo, entre 1964 e 1985, o Ministério do Planejamento, juntamente com o da Fazenda, não ficava atrás. Tinha poderes de sobra, era reduto de civis, e o comando da área económica cabia quase todo ao Ipes: Roberto Campos, Octávio Gouvêa de Bulhões, Antônio Delfim Netto, Hélio Beltrão, Mário Henrique Simonsen. "No fundo, existia um canal absolutamente aberto entre o governo e o setor empresarial", reafirmou, cinquenta anos depois, Delfim Netto, ministro da Fazenda entre 1967 e 1974, e do Planejamento entre 1979 e 1985. O Ministério da Fazenda dispunha de controle quase total do orçamento, isto é, sobre gastos que deveriam ser definidos pelo Congresso Nacional. "O ministro da Fazenda tinha poderes de autorizar qualquer despesa que lhe desse na telha", recordou o ex-ministro Maílson da Nóbrega, e completou: "Poderes de matar de inveja um rei medieval". O projeto de desenvolvimento econômico da ditadura pretendia facilitar o investimento estrangeiro, reduzir o papel ativo do Estado e elevar o ritmo do crescimento. E tudo isso foi feito sem contestação: "Fazíamos, e não havia força política, nem legislativa, nem no Judiciário, que pudesse se contrapor a esse comando económico", confirmou o ex-ministro Ernane Galvêas. (451)
Foi, com efeito, com desenfreada euforia que a direção econômica do Estado brasileiro, aparelhado pela facção militar-empresarial que se encastelara em seu comando após o golpe de 1964, buscou usufruir da liquidez do cenário internacional que, com a expansão do euromercado, se tornara confortavelmente favorável à contratação de empréstimos. Nesse sentido, Benakouche assinala que: "No período pós-1964, o que retém a atenção não é apenas a participação crescente do capital internacional, mas o fato de que foi formulada e implementada uma política explícita de endividamento externo do país" (30). Não obstante, o engendramento do "milagre" na economia do país, alicerçado sobre as diretrizes do "crescimento com endividamento", não considerou, em sua sujeição a uma teleologia de matiz antes político que propriamente econômico, as variáveis nada miraculosas que, desde o início, determinavam os contornos do processo. Como observa Paul Singer, ainda no início dos anos oitenta:
Se anteriormente o Brasil se tinha retraído algo da economia capitalista mundial, como consequência da depressão dos anos 30 e da Segunda Guerra Mundial, após 1964 a economia brasileira novamente se abriu ao exterior, sobretudo depois que o período de recessões, entre 1963 e 1967, foi superado. Apenas é preciso notar que o Brasil não deixou de ser uma economia subdesenvolvida, de modo que esta volta à integração no mercado mundial se deu, como não podia deixar de ser, em termos coloniais. A notória expansão de nossas exportações, nos últimos 10 anos, não resultou de nossa superioridade tecnológica [...], mas da abundância de nossos recursos naturais e do baixo custo de nossa mão-de-obra. E, o que é ainda mais importante, nossas importações cresceram ainda mais que nossas exportações, sendo o déficit de nossa balança comercial, assim como o da balança de serviços, coberto por entrada de capital estrangeiro, inclusive de quantidades crescentes de capital de empréstimo, o que acarretou crescimento ainda mais notável de nossa dívida externa. (A crise 91)
Essa caracterização histórica inicial lança, parece-nos, alguma luz mais efetiva sobre a terceira estrofe da "Lira itabirana", em que a estrutura em tricolon, reforçada pelo emprego da anáfora, intensifica a carga semântica da "dívida", de resto, já inflacionada, cumulativamente, pela "carga" e pelos "ais" das estrofes anteriores: "[...] Ai, antes fosse/ Mais leve a carga. // ii / Entre estatais / E multinacionais, / Quantos ais! // iii / A dívida interna. / A dívida externa. / A dívida eterna."
Ademais, a articulação das rimas - que, cruzadas nos quartetos, enfatizam o jogo de contrastes; e, sequenciais nos tercetos, intensificam o fardo semântico de desconsolação - parece efetivamente ecoar na angustiante dicção do eu-lírico o "preço" do milagre, o qual se coaduna precisamente com a impiedosa contraparte social do "progresso" econô-mico. Dessa forma,
O "milagre econômico", contudo, teve um preço, e o crescimento da economia se fez acompanhar de um processo acentuado de concentração de renda, resultado de uma política salarial restritiva, em que os ganhos de produtividade não eram repassados para os trabalhadores. Deu-se também um aumento vertiginoso da dívida externa, com o país mais vulnerável às alterações do cenário internacional em decorrência da captação de recursos privados no exterior - com financiamento mais barato e maior prazo - e obtenção de crédito para a indústria em bancos privados internacionais com juros flutuantes e elevados. (Schwarcz e Starling 453)
Nesse sentido, Paul Singer (A crise) pontua entre os indicadores da pauperi-zação da classe trabalhadora no contexto pós sessenta e quatro: o crescimento da frequência de acidentes de trabalho - motivado pela intensificação da acumulação de capital via exploração da mais-valia absoluta, ou, em outros termos, a superexploração; uma significativa queda no padrão de vida da população assalariada urbana, com aumento dos índices de desnutrição e mortalidade infantil; bem como o empobrecimento, tanto absoluto quanto relativo, da classe trabalhadora. Como observam Tavares e Assis:
Na base da pirâmide social, a mobilidade horizontal e espacial significou novas oportunidades de miséria. Milhões de trabalhadores rurais em peregrinação na busca de sobrevivência percorriam o Brasil. Milhões desaguaram nas grandes cidades, fazendo o estágio temporário na construção civil, inchando as periferias e desembocando finalmente na marginalidade. (40)
Sob esse viés, já advertira Marx, ao tratar do processo britânico de acumulação primitiva, a respeito da tendência capitalista à socialização do ônus financeiro por meio do endividamento estatal:
A dívida pública, isto é, a alienação [Veráusserung] do Estado - seja ele despótico, constitucional ou republicano - imprime sua marca sobre a era capitalista. A única parte da assim chamada riqueza nacional que realmente integra a posse coletiva dos povos modernos é... sua dívida pública. (1002-1003)
Por outro lado, a função da dívida pública não se circunscreve de modo algum a um período específico da dinâmica histórica do capitalismo, o que constitui, pelo contrário, uma constante fundamental do processo de reprodução do capital:
Não é a classe capitalista que mais contribui para a constituição do orçamento público, em termos proporcionais ao montante de seus rendimentos. O caráter regressivo da tributação garante isso. Por outro lado, o crescimento da dívida pública, por intermédio do mecanismo de sua rolagem, implica que as despesas financeiras são crescentes no total dos gastos estatais, o que significa maiores rendimentos para os credores dessa dívida.
Constatamos com isso que o papel da dívida pública não se restringiu a uma fase histórica - já passada - de formação da economia capitalista. Ao contrário, sua própria lógica de crescimento aparentemente automático, assim como a necessidade dos gastos estatais, seja para a manutenção do rentismo, seja para os investimentos em infraestrutura, fazem com que a dívida pública seja central na reprodução do capital, qualquer que seja sua fase. (Carcanholo 43)
Outrossim, como também observa Carcanholo, a tributação regressiva faz com que o ônus da dívida, como já notara Marx, recaia maiormente sobre a classe trabalhadora. Em contrapartida, as despesas financeiras do Estado com a manutenção dos custos de rolagem da dívida - ao mesmo tempo que se constituem como expediente confortável para a valorização do capital - se sobrepõem à manutenção e aos investimentos em serviços públicos, tais como educação, saúde e saneamento básico. Com efeito, essa análise se coaduna de maneira evidente com o acentuado processo de acumulação de capital, pauperização da classe trabalhadora e endividamento estatal durante o "milagre" brasileiro.
De outro lado, antes ainda da crise da dívida, em 1971, Eduardo Galeano, entre outros, já assinalava politicamente a aguda tragédia econômica que, pouco a pouco, avançava sobre a América Latina - a qual, diga-se de passagem, dentro em pouco se desnudaria de maneira incontornável também no Brasil:
Mais da metade dos empréstimos que a América Latina recebe provém - com prévia luz verde do FMI - dos organismos privados e oficiais dos Estados Unidos; os bancos internacionais somam também uma porcentagem importante. O FMI e o Banco Mundial exercem pressões cada vez mais intensas para que os países latino-americanos remodelem suas economias e suas finanças em função do pagamento da dívida externa. O cumprimento de compromissos contraídos, chave da boa conduta internacional, se torna cada vez mais difícil e se faz ao mesmo tempo mais imperioso. A região vive o fenómeno que os economistas chamam a explosão da dívida. É o círculo vicioso do estrangulamento: os empréstimos aumentam e os investimentos se sucedem e, em consequência, crescem os pagamentos por amortizações, juros, dividendos e outros serviços; para cumprir com esses pagamentos se recorre a novas injeções de capital estrangeiro, que geram compromissos maiores, e assim sucessivamente. O serviço da dívida devora uma proporção crescente das receitas das exportações, por si impotentes - por obra da inflexível deterioração dos preços - para financiar as importações necessárias; os novos empréstimos são imprescindíveis, como o ar ao pulmão, para que os países possam se abastecer. (331-332)
Dessarte, a sustentação de altas taxas de crescimento econômico que o regime logrou efetivar a partir de 1967, isto é, o chamado "milagre econômico", que teve como uma de suas principais diretrizes os estímulos à atuação de multinacionais no Brasil - por meio, por exemplo, de políticas que favoreciam a remessa de lucros e dividendos para as matrizes no exterior bem como a repatriação de capitais - emerge pelo avesso na poética drummondiana. Na segunda estrofe, a dicotomia "Entre estatais" e "E multinacionais", sugere, antes de tudo, uma efetiva equivalência - evidenciada pela correspondência sonora da rima, em que o aumento da produção de riqueza no período, independentemente de por que categorias, estatal ou estrangeira, de empreendimento se dê, resolve-se na síntese negativa dos "Quantos ais!", que registram, por sua vez, a parte que coube à maioria da população a que os prodígios econômicos só alcançaram pelo seu revés.
Como se pode ver, a construção discursiva da "Lira itabirana" estabelece, como uma de suas proposições abstratas fundamentais, uma articulação dialética do particular com o geral, ao desnudar as implicações da dinâmica macroeconômica sobre os sujeitos e espaços a ela submetidos. Essa concate-nação lógica se desdobra, estruturalmente, em pares antagônicos e, todavia, interdependentes, cuja contradição ora se mantém em suspenso, como o "Rio doce" e a "Vale amarga"; e como a riqueza exportada e as lágrimas disfarçadas; ora se perfaz em síntese, como entre as estatais e as multinacionais, cuja negação da negação se expressa em termos de sofrimento nos "Quantos ais!"; ou entre a dívida interna e a dívida externa, cuja superior conjunção se exprime na continuidade de "A dívida eterna". Revela-se, assim, uma cisão histórica entre o crescimento econômico da nação e as necessidades da maioria da população; processo cuja síntese, em última instância, assinala, em nossa leitura, a unidade dialética entre riqueza e pobreza sob a égide do capitalismo dependente.
De outro modo, parece-nos, ainda, que o referencial histórico para a intersecção discursiva entre mineração e endividamento proposta no texto poderia, a princípio, passar despercebido. Ao se referir especificamente à antiga Companhia Vale do Rio Doce - e implicitamente a todo o histórico dessa com a região de Itabira e com o próprio Drummond -, a "Lira itabirana" sugere uma relação entre o endividamento público, via capital estrangeiro, e uma mineradora estatal; a qual, o mais das vezes, não recebe destaque no debate acerca da crise da dívida dos anos oitenta. Todavia, a distensão discursiva não ultrapassa os limites da aparência, provando que o poeta itabirano conhecia mais a fundo do que se poderia presumir a realidade histórica com que se defrontava:
O setor mineral teve uma importância muito mais expressiva do que se poderia imaginar no endividamento externo brasileiro - us$ 10,5 bilhões - nada menos do que 9 % do total de recursos externos captados ao longo dos 17 anos analisados. Na parcela dinâmica do endividamento externo, os empréstimos em moeda, o capital estrangeiro foi responsável por significativos 69 % do total - sendo 48 % de empresas estrangeiras e 21 % de joint-ventures - seguindo-se o capital estatal com 27 %. Ao capital privado nacional corresponderam apenas 4 %. (Soares 3)
No bojo das duas etapas do Plano Nacional de Desenvolvimento implementadas durante a década de setenta, a crvd desempenharia papel central na política econômica da ditadura. Em relação ao incremento da dívida pública, deve-se observar que a crvd e as empresas a ela vinculadas ou subordinadas foi responsável por quase metade dos créditos externos captados pelo setor mineral entre 1968 e 1984, o que evidencia "sua credibilidade e capacidade de penetração no sistema de financiamento internacional, assim como sua peculiar importância enquanto instrumento de política econômica global e setorial" (Soares 131).
Do ponto de vista de sua dinâmica interna, a Companhia Vale do Rio Doce passa, durante os anos setenta, por significativas transformações que visam a ampliação de sua capacidade de produção assim como dos espaços em que opera. Focalizando apenas os desdobramentos desse processo nas operações mantidas na cidade de Itabira, destacam-se, nesse contexto, a implementação do Projeto Conceição, nas minas de Conceição e Dois Córregos, o que expandiu suas capacidades de extração e beneficiamento; bem como o Projeto Cauê, que, a partir do início dos anos setenta, propiciou um significativo incremento na capacidade produtiva da Mina do Cauê por meio do emprego de inovações técnicas e tecnológicas que permitiram o beneficiamento do itabirito, minério de ferro de médio teor que era, até então, rejeitado e do qual a companhia possuía amplos estoques. Como observa Wisnik:
Nos anos 1970, a implantação do chamado Projeto Cauê aumenta o potencial explorador e a escala das ações automatizadas de britagem e peneiramento, de classificação dos "finos de hematita" e de aproveitamento do itabirito antes lançado como rejeito. Por ironia, o pico do Cauê dá seu nome à operação que consuma o seu extermínio. Pois, com o aparato recrudescido, a mineração fechou o cerco sobre a montanha até fazê-la desaparecer e, mais do que isso, até escavar seu desenho em negativo na terra, ao longo de décadas de uma exploração que não acabou, até hoje, de roer o fundo do tacho telúrico. (3)
A despeito da obstinação da aliança entre militares e empresariado em manter acesa a chama miraculosa do crescimento econômico, a tragédia anunciada não tardaria a se delinear no horizonte. Com efeito, os choques do Petróleo em 1973 e 1979 e a crise dos juros poriam um ponto final irrevogável na política de crescimento com endividamento, agudizando não só a problemática econômica do país, mas também a precarização das já desumanas condições de vida da classe trabalhadora. De acordo com Gonçalves e Pomar (13), no período de 1975 a 1984, a taxa básica de empréstimos bancários passou de 5,7 % para 18,8 % em função, sobretudo, do aumento da taxa de juros estadunidense - o que implicou para o Brasil uma despesa extra da ordem de 26,6 bilhões de dólares nesse mesmo período.
Não é sem razão que autores como Duménil e Lévy, em um esforço de caracterização crítica do neoliberalismo, se referirão à elevação da taxa de juros estadunidense em 1979 como uma espécie de golpe, haja vista o ônus imposto a uma diversidade de países que sofreriam duramente com os desdobramentos da política económica dos Estados Unidos nos anos seguintes:
Quando o capitalismo neoliberal se impôs ao mundo? Apesar da continuidade das transformações e de suas múltiplas facetas, a transição dos anos 70 aos anos 80 foi marcada por um acontecimento emblemático da nova ordem social: a decisão, 1979, do Banco Central dos Estados Unidos, o Federal Reserve (Fed), de elevar a taxa de juros ao nível requerido para a eliminação da inflação, não importando os custos nos países do centro e da periferia. Nós denominamos essa decisão o golpe de 1979, pois se trata de uma violência política. (85)
"A dívida interna" e "A dívida externa" da "Lira itabirana" traduzir-se-ão, assim, em um novo "encilhamento" na leitura de Tavares e Assis:
A essência da política econômica do regime autoritário, subordinada à concepção internacionalista da economia política global, fundou-se no pressuposto equivocado de que o sistema financeiro internacional funcionaria "normalmente" como poço sem fundo de créditos até o fim dos tempos. A arte dessa política resumira-se em criar e expandir as condições de integração da economia brasileira nesse mercado de dinheiro "barato", cujas forças "naturais" deveriam financiar o desenvolvimento nacional. Em vez disso, o que se verificou foi a perda completa de autonomia da política económica e a dolarização do sistema financeiro privado e do sistema de empresas públicas, que terminaram por conduzir o País ao atual encilhamento financeiro, externo e interno. Esse desfecho, de resto previsível, foi precedido pela dramática reversão de expectativas nos mercados de divisas e de moedas, levando a brusca interrupção da expansão do crédito, a partir de 1979/80. (89)
Os efeitos devastadores da crise - cujo legado se traduziria pela emblemática alcunha de década perdida atribuída aos anos oitenta - que ecoam no poema de Drummond também podem ser pensados a partir da realidade local, o que reflete, por exemplo, a situação dos itabiranos no interior da Companhia. Como aponta Minayo:
Os apelos da empresa, quando evidenciam a seus funcionários a difícil situação do país, visam, sobretudo, a torná-los ainda mais solidários "com os esforços para trazer divisas para o país, ajudar a pagar a dívida externa" e, assim, mais uma vez, conseguir a colaboração de classes que se traduz na colaboração com o Estado.
As exortações dos dirigentes para promoverem ainda mais o aumento de produtividade frente ao cenário de crise nacional que se acirra no final dos anos 70, porém, não são suficientes para neutralizar as sequelas da crise. A medicina do trabalho acusa, desde o início dos anos 80, um aumento das doenças ditas "subjetivas". (211)
Em setembro de 1982, o México declarara moratória; e a Polônia e a Argentina entravam em insolvência. O Brasil, assim como a maior parte dos países endividados, viu-se irremediavelmente tragado pela crise e, a contragosto, teve de recorrer às negociações com o fmi. A partir de então, desenvolver-se-ia um processo de "transição dos empréstimos voluntários" "para a nova experiência de captação compulsória de recursos através de negociações bilaterais entre bancos privados e governos de países em desenvolvimento sob a coordenação do FMI" (Soares 121). As políticas económicas do país passam a se subordinar, assim, de maneira ainda mais acentuada que antes, aos ditames externos, renunciando a qualquer perspectiva de desenvolvimento socioeconómico soberano. Na síntese de Maria Clara C. Soares:
O denominado "setembro negro" marcou a explosão das contradições do sistema de crédito internacional, tornando concreta a instabilidade já latente desde os anos 70. A partir de então, virtualmente deu-se o fechamento do mercado de crédito internacional para os países devedores do Terceiro Mundo. Em uma tendência progressivamente acentuada, os empréstimos com vistas à rolagem da dívida dos países devedores passaram a ser negociados mediante a intermediação do FMI. (22)
Com o aumento dos juros perpetrado pelos Estados Unidos a partir de 1979, o Brasil observara sua dívida externa quase dobrar entre 1978 e 1983, passando de 43,5 para 81,3 bilhões de dólares no ano da publicação da "Lira itabirana". De resto, oitenta e três seria marcado ainda por uma inflação de 211 % e por mais uma limitação, por decreto do governo, da indexação salarial abaixo do índice inflacionário.
Privatizada em 1997, a própria companhia, na obra Vale: nossa história, assevera que:
Os anos 1980 foram marcados por uma crise sem precedentes na economia brasileira. O país viu seu Produto Interno Bruto (pib) cair, principalmente nos anos de 1981 e 1983 - até então, as taxas de crescimento variavam de 6 % a 7 % ao ano. Em contrapartida, a inflação atingiu índices estratosféricos. Ao mesmo tempo, a instabilidade política - que culminou, em 1984, com a rejeição da proposta, no Congresso Nacional, de eleições diretas para presidente da República - afastava o investimento estrangeiro. Os números da dívida externa extrapolavam a capacidade de armazenar zeros das calculadoras. (Vale 177)
Na última estrofe da "Lira itabirana", o eu-poético em uma dupla interpelação angustiada parece evidenciar o vazio da ausência de respostas: "Quantas toneladas exportamos / De ferro? / Quantas lágrimas disfarçamos / Sem berro?". Ora, à época, a Vale exportava em média oitenta milhões de toneladas por ano, dos quais 70 % oriundos da Mina do Cauê, da "montanha pulverizada" de Drummond. A cidade de Itabira, porém, não parecia, aos olhos do poeta, usufruir de uma parcela justa de toda a riqueza que produzia. A situação se agravara com a divulgação de indicadores que apontavam para a exaustão das minas dentro de alguns anos e a fotografia na parede talvez doesse como nunca. Em uma crônica de 24 de abril de 1980, publicada no Jornal do Brasil, o poeta sentenciara: "riqueza existia, e considerável, mas... exportada em troca de benefícios fiscais que não correspondiam ao vulto do bem que o Município perdia". E conclui, "Penso às vezes, cruamente, que Itabira vendeu sua alma à Companhia Vale do Rio Doce" (B1).
O cenário económico a emoldurar o lirismo itabirano em fins de 1983 era deveras desolador. Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o salário mínimo real passara de R$ 1.327,01 na ocasião do golpe, em março de 1964, para R$ 757,93 no mês da publicação de Drummond em O cometa itabirano. A dívida externa bruta, ainda segundo o ipea, de 3,2940 em 1964 progredira para 93,7450 bilhões de dólares no ano da publicação do poema. A síntese hiperbólica, de "A dívida interna" e de "A dívida externa", em "A dívida eterna", na terceira estrofe, não poderia ser mais bem apropriada; recuperava o distante 1825 e, concomitantemente, prognosticava o futuro da economia brasileira nos anos que se seguiriam.
Além disso, de acordo com Benakouche, deve-se considerar que: "A taxa de juros é o preço do dinheiro, fixado, minuto a minuto, por múltiplos atores. [...] Seu preço [dinheiro] é função do tempo. Cada duração - curto, médio e longo prazos - constitui um mercado específico, com preços distintos" (70). Por conseguinte, se o preço do dinheiro é função do tempo, a lírica drummondiana parece cristalizar essa relação, isto é, /: tempo juro, a partir das determinações concretas da realidade sócio-histórica do país, na expressão: "A dívida eterna"; em que à percepção implícita de ilimitabilidade do preço a pagar corresponde a dilatação infinita do domínio temporal da dívida.
Em agosto de 1987, a década perdida perderia Drummond; o poeta, assim como a serra de sua infância; assim como a riqueza do minério de Itabira; assim como o sonho do progresso, iria embora e nos deixaria na encruzilhada do "esquecer para lembrar". Por fim, do que aqui se pontuou acerca das desventuras econômicas brasileiras, talvez se possa encontrar o mais audível eco da lira drummondiana no diagnóstico preciso de Roberto Schwarz em seu célebre ensaio "Fim de século":
O divórcio entre economia e nação é uma tendência cujo alcance ainda mal começamos a imaginar. A pergunta não é retórica: o que é, o que significa uma cultura nacional que já não articule nenhum projeto coletivo de vida material, e que tenha passado a flutuar publicitariamente no mercado por sua vez, agora como casca vistosa, como um estilo de vida simpático a consumir entre outros? Essa estetização consumista das aspirações à comunidade nacional não deixa de ser um índice da nova situação também da... estética. Enfim, o capitalismo continua empilhando vitórias. (162)