Historicamente, as práticas de controle sanitário têm sido realizadas sob a influência de um modelo estatal baseado no conceito da polícia médica, que tem seus alicerces nos referenciais de uma sociedade disciplinar, institucionalizada em um projeto coletivo de normatização do corpo social no espaço urbano. Essa concepção difundiu-se em vários países, tomando conotações próprias, em face ao contexto político e socioeconômico regional 1,2.
No Brasil, o controle sanitário realizado pelo Estado, inicialmente, foi direcionado ao saneamento de espaços urbanos, principalmente locais próximos aos portos. Contudo, a industrialização levou à necessidade de maior oferta de serviços de saúde, ampliando-se a preocupação com o controle sanitário desses serviços. Na contemporaneidade, novos desafios são apresentados para o controle dos riscos à saúde, em razão da complexidade social que diversifica os serviços em nível global, aliada à emergência de novas tecnologias, demandando revisitações profundas para as práticas de controle sanitário 1,3. No contexto brasileiro a vigilância sanitária (VISA) tem papel regulamentador das ações de controle para que as tecnologias em saúde produzam o máximo de benefício com o mínimo de riscos, considerando as questões científicas, éticas, econômicas e sociais 4. As tecnologias em saúde utilizadas para a prestação de serviços em saúde são caracterizadas por produtos para a saúde, incluindo equipamentos de saúde; produtos de higiene e cosméticos; medicamentos; e saneantes 5. Á luz das normas sanitárias, são considerados serviços de saúde àqueles prestados por hospitais, serviços de atendimento ambulatorial e serviços de atendimento domiciliar, seja para apoio ao diagnóstico, terapia ou reabilitação. Assim, o controle sanitário de serviços de saúde constitui uma das atividades da VISA, estabelecendo os requisitos para a atuação do serviço de saúde público ou privado em relação às condições ambientais, de procedimentos, de recursos humanos ou gerenciais do próprio sistema de controle de riscos 4.
A VISA brasileira está ancorada na concepção de que constitui um instrumento de defesa da vida das pessoas 6; regulamenta as tecnologias a fim de eliminar, diminuir ou prevenir riscos à saúde. Esta proposta busca garantir que a defesa da saúde das pessoas seja preponderante ao interesse econômico. Sendo uma das bases constituintes do Sistema Único de Saúde, a VISA deve seguir os seus princípios de integralidade da atenção, diminuição de iniquidades e acesso universal, bem como atender ao princípio da intersetorialidade para a manutenção e promoção da saúde. A VISA possui alcance universal, ou seja, o regramento e ações de VISA atingem toda a população brasileira 7, pois todos estão sujeitos às normatizações sobre alimentos, medicamentos, ambientes e tecnologias de saúde. Diversos desafios surgem do conflito de interesse decorrente da oferta de serviços, garantia de saúde econômica e sustentabilidade dos serviços e a proteção da saúde da coletividade.
O escopo da VISA brasileira, entendido como o desenvolvimento de um conjunto de ações capaz de eliminar, diminuir ou prevenir riscos à saúde e de intervir nos problemas sanitários decorrentes do meio ambiente, da produção e circulação de bens e da prestação de serviços de interesse da saúde que abrange o controle de bens de consumo que direta ou indiretamente se relacionem com a saúde, compreendidas todas as etapas e processos da produção ao consumo; e o controle da prestação de serviços que se relacionam direta ou indiretamente com a saúde torna o Sistema de VISA brasileiro complexo a ponto de possuir peculiaridades inexistentes nos sistemas de VISA de outros países 6.
Algumas questões trazidas no início dos anos 2000 ainda carecem de encaminhamentos mais efetivos: como transformar a norma legal em princípio condutor da vida em sociedade? Como limitar danos à saúde advindos do setor produtivo? Como assegurar uma vida saudável em um planeta saudável? Como organizar uma instituição (a vigilância sanitária) com capacidade técnica, legal e política para lograr este intento? 6.
Considerando os serviços públicos e privados de saúde brasileiros e as diversidades regionais deste País de dimensões continentais, a VISA se depara, não raramente, com serviços de saúde sobrecarregados e subfinanciados, os quais apresentam um conjunto de dificuldades e carências estruturais, de organização e de gestão, que comprometem fortemente seu funcionamento e precarizam ações e resultados 8. Além disso, estes aspectos e as expectativas dos usuários e trabalhadores de que estes serviços cumpram com a sua missão assistencial de forma ágil, resolutiva e segura, conforme preconizado aos sistemas e serviços de saúde 9 o adequado controle sanitário impõem-se como um desafio de proporções gigantescas.
Se por um lado, ainda há carência de acesso universal de uma porção da população aos serviços de saúde existentes, por outro lado, a precariedade destes em graus variados está também relacionada ao cumprimento das normas e boas práticas sanitárias que reconhecidamente contribuem para a efetividade do serviço de saúde prestado.
Outro grande impasse para a instituição de ações de VISA qualificadas é o déficit qualitativo e quantitativo de profissionais. Para garantir a universalidade e a integralidade propostas constitucionalmente no SUS, uma das exigências era uma política de recursos humanos consistente 7.
O Censo de 2004 dos trabalhadores de VISA 10 demonstrou que 86,6 % dos municípios brasileiros tinham trabalhadores de VISA, sendo que 27,3 % contavam com somente um trabalhador na área de VISA e, destes, 67,4 % tinham formação em ensino básico ou médio. Esse quadro não favorece a integralidade a partir da integração de saberes das diversas categorias, muito menos a qualificação da VISA como espaço de comunicação com a população e com os outros profissionais de saúde. Também não favorece a dimensão política de uma ação que exige competência técnico-científica e política por ser pautada em diversos interesses econômicos e sanitários 6.
Além disso, de forma mais operativa e apoiada em considerações mais práticas, o escopo de ações que estão abrigadas sob a VISA no Brasil sugere a integralidade ao abordar o risco de forma tão ampla e em tantos espaços com os seguintes: o da produção; o do ambiente; o do trabalho; o de serviços de saúde; o das tecnologias médicas; o da territorialização (portos, aeroportos); o da comunicação (propaganda), entre outros. É fundamental que todos os atores conheçam essas perspectivas de risco e suas associações com o não cumprimento da norma sanitária bem como implicações perceptíveis na saúde 6,7.
Na atualidade, o controle sanitário é uma ferramenta específica para a proteção da saúde de indivíduos e da coletividade, frente aos riscos e danos gerados no processo dinâmico de produção e de consumo crescente de mercadorias, bens e serviços, inclusive os de interesse sanitário 11. Nesse sentido, o conceito de risco é fundamental para compreensão do controle sanitário. Autores como Beck 12 e Giddens 13 têm se destacado, por proporem o risco como uma noção central para a sua compreensão, para a qual o primeiro cunhou o termo Sociedade do Risco. Para Beck 12, nesta sociedade, a produção de riscos é inevitável e incessante, pois resulta do estágio de desenvolvimento industrial e científico. Assim, coloca o indivíduo frente a problemática de como evitar, minimizar os riscos e as ameaças que são produzidas de maneira sistemática no processo de desenvolvimento da sociedade.
Considerando que um sistema de saúde é a soma total de todas as organizações, instituições e recursos cujo objetivo principal é melhorar a saúde da população; que um sistema de saúde precisa de pessoal, fundos, informação, suprimentos, transportes, comunicações e de orientação geral e direção e que precisa fornecer serviços que atendam e sejam financeiramente saudáveis, tratando as pessoas com decência 9. E que o mau estado dos sistemas de saúde, em muitas partes do mundo, em desenvolvimento é uma das maiores barreiras para aumentar o acesso aos cuidados de saúde essenciais 9 é mandatório que a VISA cumpra o seu papel orientador e fiscalizador e que os serviços de saúde cumpram a normativa sanitária. Entretanto, para que este processo se efetive com uma maior prevalência e constância em nossos serviços de saúde é relevante que gestores, trabalhadores e usuários tenham acesso sistematicamente ao conhecimento da relevância da aplicação destas normas para a prevenção de agravos e, especialmente nos serviços de saúde, complicações de doenças.
Nos níveis local e regional é fundamental a articulação dos serviços de saúde com outros setores e serviços ligados a atenção à saúde; de forma que a universalidade de acesso se mantenha garantida. Entretanto, para a concretização da manutenção do acesso universal é fundamental que haja recursos humanos com conhecimentos variados e complementares, em quantidade suficiente para dar conta da fiscalização, monitoramento e orientação para o cumprimento da norma sanitária, bem como recursos físicos e estrutura financeira para suportar estas complexas demandas que estão diretamente vinculadas ao cumprimento do exercício contemporâneo de VISA no Brasil.
Quando da ocorrência de não cumprimento das diretrizes e da normativa sanitária é fundamental que estes aspectos sejam alvo de fundamentação técnica (para além da norma sanitária) e que usuários, trabalhadores e gestores dos serviços de saúde estabelecer critérios e limites de qualidade e segurança sanitária e, num processo de pactuação de medidas a serem adotadas - imediatamente e em médio e longo prazo -, prescrever responsabilidades e etapas que devem ser rigorosa e criteriosamente monitoradas e exigidas 6,8.
Não raramente, a fiscalização sobre o cumprimento das normas sanitárias não é suficiente para que proteger a saúde da sociedade, visto que a fiscalização preventiva e pontual, quando da não identificação prévia de não conformidade do funcionamento dos estabelecimentos, por si só não dá conta de identificar o trabalho desenvolvido por estes em seu cotidiano.
Desta forma, a leitura da literatura disponível evidencia o enredamento que envolve a formulação de estratégias para o controle sanitário dos serviços de saúde. A complexidade das relações oferta e consumo, aliada ao aumento de situações de risco à saúde, exige a regulação dessas relações e o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor, reiterando a necessidade de controle autorizado 11. Além disso, a natureza dos agravos que acometem a saúde e a vida, em oposição ao discurso da individualização, impõe a responsabilidade do Estado para a proteção da saúde, pelo cumprimento de normas específicas pelo próprio Estado e por civis.
Ainda que se considere que o quantitativo de trabalhadores tenha aumentado na última década e que o nível de formação dos profissionais que atuam na área tenha se elevado, é fundamental que este aumento quantitativo venha acompanhado de incrementos qualitativos dos recursos humanos envolvidos diretamente na VISA, tais como ajustar o quadro de trabalhadores às necessidades e especificidades regionais dos serviços; que haja tempo e financiamento para uma política regional de educação permanente, bem como meios de valorização e fixação destes trabalhadores nas diversas regionais do país7;10.
Considerando que a norma sanitária possui origem variada e complexa, tendo dimensões técnicas, políticas, culturais e subjetivas 6 é importante que a sociedade seja envolvida (usuários, trabalhadores e gestores) desde o momento de elaboração dessas normas e regras, e não somente quando de sua aplicação.
Além disso, em que pese o aumento do quantitativo de trabalhadores na última década, bem como de seu nível de formação, é fundamental que este aumento quantitativo venha acompanhado de incrementos qualitativos dos recursos humanos envolvidos diretamente na VISA, tais como ajustar o quadro de trabalhadores às necessidades e especificidades regionais dos serviços; que haja tempo e financiamento para uma política regional de educação permanente, bem como meios de valorização e fixação destes trabalhadores nas diversas regionais do país 10.
A sociedade como um todo, usuários, gestores e trabalhadores dos serviços de saúde, deve conhecer mais detalhadamente a base técnica para a instauração de normas sanitárias e que estas cumpram o seu papel de proteção da saúde da sociedade, pois a literatura 14 aponta que alguns mecanismos são relevantes para o cumprimento de normas, tais como formação de equipes de trabalho centradas nos usuários e em suas necessidades, metodologias de educação continuada para gestores e trabalhadores atentas aos modos de ensino mais atuais e temáticas contemporâneas que considerem os aspectos locais e não-locais