No Brasil, o enfrentamento da Coronavirus disease 2019 (Covid-19) se constitui atravessado por divergências. Em relação ao distanciamento social, enquanto o presidente da República, Jair Messias Bolsonaro (e alguns apoiadores e membros do governo) eram contra o fechamento de serviços e empresas; as autoridades sanitárias, a maioria dos governadores de estados, os profissionais de saúde, os pesquisadores e o próprio ministro da saúde Luiz Henrique Mandeta (à época do início da pandemia), defendiam essa necessidade, a fim de reduzir a velocidade da propagação do vírus 1.
Essas divergências culminaram em duas trocas de ministros da saúde no auge da pandemia (até agosto de 2020), uma vez que Mandeta foi exonerado por defender o distanciamento social, assumindo, em seu lugar, Nelson Teich. Este último, ao que tudo indica, teve o ponto-chave para a sua saída do ministério (depois de apenas um mês) na polêmica sobre o uso da cloroquina (CQ) e da hidroxicloroquina (HCQ) no tratamento de casos de Covid-19 2.
Em seu lugar, assumiu o General do Exército brasileiro Eduardo Pazuello, de forma prolongadamente interina. Assim que assumiu, o Ministério da Saúde implantou um protocolo de uso da CQ/HCQ mesmo com opiniões dividias sobre a sua eficácia e, portanto, a pertinência de tal protocolo. Para o Ministério, é necessário "ampliar o acesso dos pacientes a tratamento medicamentoso no âmbito do SUS" 3, p.3), e, por tal razão, resolveu publicar as "orientações para tratamento medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico de Covid-19" 3, p.3), o que incluiu o uso de CQ/HCQ (associado a outros fármacos) para pacientes com sinais e sintomas leves, moderados e, até mesmo, pacientes graves.
A CQ e a HCQ não são fármacos novos, sendo utilizados há cerca de 70 anos no tratamento da malária. No início da pandemia, em 2020, esses medicamentos foram sugeridos para uso clínico contra a Covid-19, depois de ter sido observada alguma atividade in vitro com potencial contra o SARS-CoV-2. Alguns resultados revelam que a CQ e a HCQ alteram o pH intracelular e que podem induzir a má formação de proteínas virais essenciais para a sua replicação. No entanto, a atividade in vitro não deve ser interpretada como prova de eficácia clínica contra a doença, uma vez que já foi identificada atividade in vitro semelhante desses fármacos contra outros vírus, mas sem efeitos clínicos, a exemplo da doença do vírus Ebola, chikungunya, influenzas, infecção por HIV e dengue 4.
Do ponto de vista da gestão da saúde pública, como se sabe, as decisões sobre o uso dos recursos públicos é um fator decisivo para a eficácia das medidas governamentais contra doenças de importância epidemiológica. No caso da Covid-19, assumiu relevo a questão da disponibilidade de recursos em medidas contra a disseminação do vírus, para o fortalecimento da assistência aos infectados ou para dirimir os impactos econômico-sociais da pandemia. Diante disso, apresentamos esse estudo teórico, com o objetivo de analisar a decisão do governo federal brasileiro em adotar o uso da CQ e da HCQ como uma das principais linhas de ação contra a Covid-19.
METODOLOGIA
Esse estudo teórico, analítico-reflexivo e de base documental vale-se da estratégia de triangulação de métodos. Essa estratégia tem sido amplamente utilizada para avaliação de programas sociais no Brasil, uma vez que possibilita a articulação de diferentes abordagens metodológicas, técnicas de coleta, fontes de dados, técnicas de análise ou teorias. Permite a apreensão de diferentes aspectos e ângulos de análise do processo investigado, assim como potencializa os métodos empregados, ultrapassando as limitações internas que cada um, especificamente, possui 5.
No caso aqui em questão, utilizamos a triangulação de fontes de dados, com fins de articular diferentes pontos de partida na análise. Na primeira etapa, realizamos uma revisão de literatura na Biblioteca Virtual de Saúde (BVS), utilizando os descritores efficacy AND chloroquine AND coronavirus infections. Selecionamos os artigos publicados até julho 2020, em texto completo, oriundos de ensaios clínicos randomizados ou revisões sistemáticas de literatura. Baseamonos no fato de que a BVS define que o referido tipo de ensaio clínico consiste no método recomendado para avaliar eficácia de práticas clínicas 6. Já as revisões sistemáticas são consideradas o tipo de estudo capaz de gerar o maior nível de evidência para a prática clínica 7. Em relação ao idioma dos textos, selecionamos apenas os escritos em inglês, espanhol ou português. Foram excluídas as publicações repetidas. O objetivo dessa etapa foi identificar o que a ciência afirma sobre a eficácia da CQ e da HCQ contra a Covid-19.
Na segunda etapa da pesquisa, coletamos dados nos contratos federais de compras destinadas ao combate da Covid-19, obtidos no portal de transparência do Ministério da Saúde do Brasil. Complementamos essas informações com notícias veiculadas em jornais disponíveis online, a fim de contextualizar os gastos. Nessa etapa, o objetivo foi identificar o patamar do gasto público federal com a CQ/HCQ, comparando com outras possibilidades de gasto.
Na última etapa, analisamos pareceres ou notas de instituições públicas de autoridade sanitária ou sociedades científicas brasileiras, diretamente relacionadas ao combate da pandemia, a saber: Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Conselho Nacional de Saúde (CNS), Sociedade Brasileira de Infectologia, Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia e Sociedade Brasileira de Imunologia. O objetivo foi depreender as orientações dessas instituições em face do uso da CQ e da HCQ e, portanto, se elas foram consideradas no espectro de gestão participativa.
Constituímos uma triangulação analítica, confrontamos os três vértices apreendidos. A análise e discussão se guiam pela perspectiva da Saúde Coletiva de viés crítico, campo transdisciplinar constituído por três eixos: ciências sociais na saúde; epidemiologia; e planejamento e gestão de políticas de saúde 8. Aqui, focamos no último eixo (embora, dialogando com os outros dois), a partir de uma perspectiva que o considera enquanto campo de correlação de forças, produto dos conflitos históricos em torno dos seus objetos de intervenção e das tomadas de decisão.
RESULTADOS
A busca na BVS retornou 65 resultados, todos publicados em 2020, sendo 59 em texto completo. Entre esses, 57 estavam nos idiomas definidos para a seleção, mas apenas 6 eram dos tipos de estudo pretendidos: 2 resultados referentes a um mesmo ensaio clínico randomizado e 4 revisões sistemáticas, todos indexados na MedLine. Eliminada a repetição, restaram 5 resultados. No Quadro 1, apresentamos uma síntese dessas publicações.
Autores | Tipo de estudo | Síntese |
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Chowdhury, Rathod, Gernsheimer 9. | Revisão Sistemática | Os autores encontraram 7 ensaios clínicos finalizados. Entre estes, 5 mostraram resultados favoráveis para o uso de CQ e de HCQ; e 2 não mostraram qualquer efeito. Os 7 ensaios tiveram graus variáveis de enviesamento e concepção deficiente do estudo. Portanto, não existem dados suficientes para apoiar o uso rotineiro desses fármacos, devendo-se adiar o seu uso rotineiro. |
Patil, Singhal, Masand 10. | Revisão Sistemática | Os autores encontram 100 ensaios, a maioria em fase de execução ou aguardando liberação. Alguns achados disponíveis: eficácia para a redução da replicação viral in vitro. Pelo menos 5 estudos demonstram a necessidade da gestão e monitoramento do paciente em uso desses fármacos, mas sem resultados conclusivos. |
Shah 11 | Revisão sistemática | Os autores revisaram 3 estudos in vitro e 2 pareceres clínicos. Os estudos in vitro indicam potencial profilático. Os pareceres clínicos defenderam a utilização profilática. Contudo, os autores destacam que não encontraram ensaios clínicos originais que sustentassem essa prática. Para eles, até à data da revisão, há falta de provas para apoiar a eficácia dos fármacos. O seu uso deve ser cauteloso, observando cada caso, tendo em vista os potenciais efeitos adversos e a falsa sensação de segurança que pode gerar |
Cortegiani 12. | Revisão sistemática | Foram revisados 29 textos, sendo que 23 foram ensaios clínicos ainda em curso na China. A cloroquina se revelou eficaz contra a replicação do vírus in vitro. Até então, as provas apenas autorizam os esforços no sentido de novas pesquisas e uso experimental. |
Borba 13. | Ensaio clínico randomizado | Os autores definiram uma amostra de 440 pacientes graves para avaliar duas doses diferentes de CQ. 81 pacientes receberam uma alta dose e 40, uma baixa dose. A letalidade até ao 13º dia foi de 39,0% no grupo de alta dose (16 de 41) e 15,0% no grupo de baixa dose (6 de 40). A secreção respiratória no 4º dia foi negativa em apenas 6 de 27 pacientes (22,2%). O estudo concluiu que a dose de CQ mais elevada não deve ser recomendada para casos graves de Covid-19, devido aos seus potenciais riscos de segurança, especialmente quando associadas com azitromicina e oseltamivir. |
Fonte: elaborado pelo autor com artigos indexados na MedLine/BVS.
A segunda etapa da nossa triangulação diz respeito à análise do montante de recursos gasto com CQ e HCQ pelo governo federal brasileiro. Os valores gastos até julho de 2020 constam na Tabela 1.
Produto/serviço | Modalidade e número da compra | Valor em R$ |
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Cloroquina | Dispensas de licitação 14/2020, 17/2020, 18/2020, 23/2020, 24/2020, 46/2020, 57/2020 e Pregão 100116/2020 | 1.519.312,00 |
Hidroxicloroquina | Dispensas de licitação 14/2020, 30/2020, 55/2020, 62/2020, 83/2020 e Pregões 4/2020 e 5/2020 | 168.994,42 |
Alumínio duro de cloroquina/ folha de metal não ferroso | Dispensas de licitação 26/2020, 27/2020, 32/2020, 33/2020 e 58/2020 | 32.398,00 |
Papel Alumínio | Dispensa de licitação 42/2020 | 22.100,00 |
Etiqueta | Dispensas de licitação 39/2020 e 47/2020 | 11.997,81 |
Padrões de Análise de pureza | Dispensa de licitação 29/2020 | 13.635,00 |
Lactose | Dispensa de licitação 63/2020 | 1.387,50 |
Total | 1.769.824,73 |
Fontes: https://www.gov.br/compras/pt-br/painel-covid; https://bit.ly/3Db27c8.
A fim de estabelecer uma comparação entre os valores gastos com CQ e HCQ e o que poderia ser gasto com outros insumos correlatos ao enfrentamento da Covid-19, a Tabela 2 traz exemplos baseados nos valores pagos pelo governo federal em contratos efetivados durante a pandemia.
Produto | Valor Unitário (R$) | Contratos | Quantidade que poderia ser comprada |
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Álcool gel 70% | 1,24 | 41/2020 | 1.427.278 |
Óculos de proteção | 3,10 | 43/2020 | 570.911 |
Luva de látex | 0,17 | 45/2020 | 10.410.733 |
Swab estétil | 0,36 | 47/2020 | 4.916.179 |
Máscara cirúrgica | 0,96 | 53/2020 | 1.833.567 |
Microtubo | 0,08 | 59/2020 | 22.122.809 |
Ponteira laboratório | 0,30 | 59/2020 | 5.899.415 |
Meio de cultura | 315,00 | 60/2020 | 5.618 |
Suplemento de meio cultura | 790,00 | 60/2020 | 2.240 |
Oligonucleotídeos, reação de PCR | 1.250,00 | 95/2020 | 1.415 |
Kit com 10 leitos de UTI completos | 239.000,00 | 73/2020 | 7 |
Encerrando a triangulação, trazemos os documentos de entidades representativas do controle social da saúde pública brasileira, ligadas a áreas científicas afins ao tratamento da Covid-19 ou à gestão do sistema. No Quadro 2, há um resumo das instituições analisadas e suas posições sobre o assunto.
Instituições | Posicionamento |
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Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) | Não recomenda o uso sem comprovação da eficácia |
Conselho Nacional de Saúde (CNS) | Solicita que os medicamentos não sejam distribuídos pelo Governo Federal e pede a suspensão do protocolo |
Sociedade Brasileira de Infectologia | Afirma que o uso deve ser, apenas, experimental |
Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia | Não recomenda o uso |
Sociedade Brasileira de Imunologia | Afirma que o uso ainda é precoce |
DISCUSSÃO
Entre as pesquisas realizadas sobre a eficácia do tratamento de Covid-19 com CQ ou HCQ (Quadro 1), constatamos que alguns dos primeiros estudos de cultura celular demonstraram potencial de ação antiviral dos dois fármacos em questão. Porém, clinicamente, não há resultados confiáveis sobre a sua eficácia específica contra o SARS-CoV-2. Alguns estudos, inclusive, indicaram potencial para o agravamento dos indivíduos em estágios avançados da doença 13.
A nosso ver, fica demonstrado que, até então, não há lastro científico para justificar a adoção de um protocolo de tratamento fora da seara experimental, tampouco que justifique tal protocolo enquanto umas das linhas principais de ação da saúde pública, inclusive com emprego de recursos orçamentários consideráveis, porquanto, como revela a Tabela 1, o governo federal brasileiro, até 30 de julho, gastou R$ 1.769,824,73 nessa linha.
Concordamos com Abena 14 sobre o fato de que a promoção indiscriminada e o uso generalizado da CQ/ HCQ levam: 1) a uma extensa escassez dos medicamentos, prejudicando os indivíduos acometidos por outras doenças nas quais há eficácia comprovada desses fármacos; 2) induz os indivíduos a se automedicarem, inclusive com riscos de overdoses fatais; 3) inflacionam os preços de mercado dos medicamentos, deixando os países vulneráveis a produtos médicos de qualidade inferior ou falsificados; 4) expõe seres humanos a riscos em um momento em que os sistemas de saúde já estão saturados.
Parece-nos que o desprezo do poder executivo federal brasileiro ao distanciamento social como medida principal contra a Covid-19 (até que se produzisse vacinas eficazes) abre espaço para essa linha de ação, curativista, precipitada e sem responsabilidade científica e de gestão. Para ilustrar, especificamente, as questões correlatas à esfera da gestão, procuramos exemplificar as possibilidades de outro uso dos recursos que foram gastos com a CQ e a HCQ (conforme Tabela 2), vislumbrando, por exemplo, a seara da proteção dos trabalhadores de saúde (um dos principais grupos afetados), do rastreamento precoce da doença com testes (considerado medida profilática importante) ou, até mesmo, no âmbito do tratamento, mas de forma direcionada às medidas até então comprovadamente eficazes (com leitos de Unidade de Terapia Intensiva - UTI).
Destacamos que poderiam ser compradas quase 1 500 000 unidades de álcool em gel 70%, mais de 1 800 000 máscaras cirúrgicas ou quase 5 000 000 swabs para testes, sem contar os mais de 70 leitos de UTI totalmente equipados. Esses insumos poderiam fazer a diferença na redução da quantidade de casos e óbitos da doença no país, uma vez que, ao final de julho, o país registrou um total de 2 552 265 casos e 90 134 mortos, sendo o segundo colocado no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos da América (E.U.A.) 15.
Fazendo um paralelo com a polêmica eficácia clínica da CQ/HCQ no tratamento da Covid-19, recordamos o conceito de eficácia amplamente utilizado na gestão pública, entendido como uma medida normativa de alcance dos resultados 16. No caso aqui analisado, portanto, trata-se de um caso de ineficácia da gestão da saúde pública, uma vez que se ignorou o conhecimento científico e seus resultados, entre outras coisas, expressam-se em indicadores de saúde desfavoráveis. Também é uma gestão ineficiente, uma vez que a eficiência é concebida como o uso potencial dos recursos no processo; recursos esses que precisam, portanto, possuir potencial de eficácia conhecido 16, o que não foi o caso.
Além de ineficaz e ineficiente, a linha de ação adotada pelo governo federal brasileiro vai de encontro ao arcabouço jurídico-legal do Sistema Único de Saúde (SUS), uma vez que ele preza pelas decisões baseadas em conhecimento epidemiológico e em ações que priorizem a prevenção de agravos e a promoção da saúde, obviamente, sem esquecer da esfera curativa, mas rompendo com o curativismo típico do modelo biomédico 17.
Convém registrar que os gastos com CQ (mais especificamente aqueles com matéria em prima em pó comprada pelo laboratório do Exército para fabricação própria), em apenas dois meses (março e abril) equivaleram a uma produção quase 5 vezes maior que os três anos anteriores, mas com um valor empregado 8,5 vezes maior. Ou seja, além de se produzir uma quantidade muito maior, para um fim sem comprovada eficácia clínica, pagou-se mais caro, inclusive chamando a atenção do Tribunal de Contas da União, que investiga os gastos 18.
Por fim, também se trata de gestão que infringe a perspectiva de participação social conforme determinada na legislação básica do SUS 16. Na saúde pública brasileira, deve-se considerar a participação das instâncias formais de controle social, a exemplo de agências reguladoras e conselhos de saúde, assim como da sociedade civil organizada, nesse caso, especialmente através das entidades de natureza científica. Como vimos no Quadro 2, nenhuma das instituições recomenda o uso da CQ e HCQ para tratamento da Covid-19, muito menos sustenta a execução de um protocolo nacional.
A Sociedade Brasileira de Infectologia considera o uso da HCQ apenas como terapia experimental, alertando: "Contraindicamos seu uso para casos não críticos; tampouco como 'profilático'" 19, p.2).
A Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia considera que, "[...] no caso particular da cloroquina e hidroxicloroquina, os dados disponíveis não apenas apontam para falta de efetividade da referida droga, como também sugerem riscos de efeitos adversos em pacientes predispostos. [...] Diante do exposto, a SBPT não endossa o uso de cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina ou azitromicina como agentes profiláticos ou terapêuticos contra o coronavírus" 20, p.1).
A Sociedade Brasileira de Imunologia tem posicionamento semelhante: "Baseados nas evidências atuais que avaliaram a utilização da hidroxicloroquina para a terapêutica da Covid-19, a Sociedade Brasileira de Imunologia conclui que ainda é precoce a recomendação de uso deste medicamento na Covid-19, visto que diferentes estudos mostram não haver benefícios para os pacientes que utilizaram hidroxicloroquina. Além disto, trata-se de um medicamento com efeitos adversos graves que devem ser levados em consideração" 21, p.1).
O CNS, maior instância de controle social em saúde pública no país, também se posicionou, inclusive, de forma mais contundente, exigindo ao Ministério da Saúde: "1. Que suspenda as Orientações para manuseio medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da Covid-19, publicadas em 20 de maio de 2020, autorizando uso de cloroquina/hidroxicloroquina para tratar sintomas leves da Covid-19; 2. Que não libere uso de qualquer medicamento como preventivo ou para tratamento da Covid-19 pela ausência de confirmações de uso seguro aos usuários; e 3. Que, assessorando o governo federal, desempenhe seu papel na defesa da ciência e a redução da dependência de equipamentos e insumos, construindo uma ampla e robusta produção nacional" 22, p.3)
Finalmente, a Anvisa, agência governamental responsável por regular a utilização de medicamentos no país, ratifica a falta de comprovação de eficácia em nota técnica: "A Anvisa reforça que, para a inclusão de indicações terapêuticas novas em medicamentos, é necessário conduzir estudos clínicos em uma amostra representativa de seres humanos, demonstrando a segurança e a eficácia para o uso pretendido" 23, p.1). Em seguida, ratifica seu posicionamento em um documento educativo: "A Anvisa, da mesma forma que o FDA, não recomenda o uso indiscriminado desse medicamento, sem a confirmação de que realmente funciona" 24, p.2).
Diante de tudo que foi exposto, ainda que se aceite o uso experimental da CQ e da HCQ, no contexto inicial da pandemia, com livre consentimento e supervisão científica, a indução de seu uso no âmbito da política pública de saúde não nos parece coerente à doutrina do SUS, à ciência e às medidas de eficácia no uso dos recursos públicos.
Em síntese, constatamos que a CQ e a HCQ demonstraram potencial contra a replicação viral do SARS-CoV-2 in vitro. Porém, sua eficácia clínica contra a Covid-19 não foi comprovada. Mesmo assim, o governo federal brasileiro implantou um protocolo de tratamento e direcionou esforços financeiros consideráveis para compra, fabricação, armazenamento e distribuição desses medicamentos. Ademais, isso se deu a despeito de entidades representantes da sociedade civil brasileira, com expertise no assunto.
Trata-se de uma postura atravessada por interesses econômico-políticos, uma vez que relega o distanciamento social a um segundo plano. Portanto, ignora o conhecimento epidemiológico e científico em geral, assim como desconsidera a essência do que é o SUS, que deve estar voltado, predominantemente, às ações de prevenção de agravos e promoção da saúde. Assume, assim, uma postura de gestão da saúde pública que é ineficaz, ineficiente e retrógada, pois reforça o curativismo que o movimento pela Reforma Sanitária, do qual surgiu o SUS, tanto combateu.
A priorização da esfera econômica em detrimento dos cuidados com a vida, assim, assume uma linha de remediação do dano. Não obstante, isso não ocorre sem que se pague com adoecimento e mortes, tal como os dados têm mostrado. De certo modo, essa postura de gestão ineficaz é alinhada à postura anterior à pandemia ao mesmo tempo que lhe é contraditória.
O alinhamento consiste na postura neoliberal que atravessou todos os governos federais brasileiros desde o início dos anos 1990, apesar de que com diferenças entre eles. O que se viu, nesse percurso, foi um processo de priorização da agenda econômica, sobretudo do ponto de vista da rotação mundial do capital, em detrimento do financiamento adequado das políticas públicas nacionais, a exemplo do próprio SUS 24. Isso acarretou um sistema de saúde aquém da proposta universal construída na Reforma Sanitária, com fragilidades que estão na espiral de determinação recíproca entre o SUS e o enfrentamento da pandemia. Isto é, essas fragilidades históricas dificultam o enfrentamento da pandemia, ao passo que a pandemia confere visibilidade social a essas fragilidades, inclusive, intensificando-as 25.
A contradição reside no fato de que o desperdício de recursos públicos com medidas de saúde pública ineficazes retroalimenta as determinações neoliberais de austeridade, embora façam esse sistema político operar fora de seu lugar comum. Com a pandemia, os Estado-nação foram impelidos a investirem mais em políticas sociais (não só nas de saúde) do que a "cartilha" neoliberal normalmente permitiria. A intenção seria conter a pandemia e trazer a rotina econômica ao "normal" 25. Contudo, a opção brasileira parece ser contraditória até mesmo ante suas bases neoliberais, uma vez que a pandemia se alastra, com o aumento sucessivo de casos e óbitos. O agravante reside no uso de considerável quantidade de recursos financeiros em prioridades equivocadas, o que pode ser cobrado mais à frente pela própria dinâmica neoliberal, fazendo com que o subfinaciamento do SUS se acentue, para pagar a conta do desperdício.
Com efeito, assim como a eficácia clínica de possíveis tratamentos da Covid-19 deve continuar a ser investigada, a eficácia da gestão da saúde pública em uma linha curativista e sem lastro científico deve ser acompanhada e combatida, inclusive nos seus efeitos a médio e longo prazo ♠