O Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro oferece à população serviço amplo, integral e gratuito que abrange desde o atendimento na atenção básica até os níveis de mais complexos, como o nível hospitalar 1. As Redes de Atenção à Saúde (RAS) consistem em ações e serviços de saúde, compostas de diferentes densidades tecnológicas, que se unem através de sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão 2.
Em relação à saúde bucal, as redes de atenção têm se reorganizado, a partir de 2004, com as Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB) 3, estabelecendo, então, o redirecionamento e a ampliação nos níveis secundários e terciarios 2. Assim, foi proporcionada a integração e a articulação entre diferentes esferas e atores para que a atenção à saúde seja ofertada ao usuário de forma contínua e integral 4. Ainda, em 2004, foi lançado o programa "Brasil Sorridente", que consiste em um conjunto de ações a fim de melhorar o acesso à atenção odontológica 3, o qual incentivou a inclusão das equipes de saúde bucal (ESB) na estratégia de saúde na família (ESF) 5, além da criação dos Centros de Especialidades Odontolotógicas (CEO) via Portaria N.° 648/GM 6.
Os CEO, caracterizados como nível de atenção secundária, são unidades que recebem pacientes referenciados pela atenção primária, de modo a ampliar e qualificar a atenção especializada em saúde bucal. Os CEO surgiram devido à carência por serviços de média e alta densidade tecnológica no âmbito da saúde bucal 7. Os serviços oferecidos são das áreas de: diagnóstico bucal com ênfase na detecção do câncer bucal, endodontia, periodontia especializada, atendimento a pacientes com necessidades especiais e cirurgia oral menor dos tecidos moles e duros 8,9. A entrada dos pacientes deve acontecer por meio de encaminhamentos realizados pela Unidade Básica de Saúde (UBS), com ou sem ESF, com os critérios previamente definidos para que haja diminuição das filas de espera, economia de recursos e otimização no atendimento 10.
Os CEO funcionam por 40 horas semanais com número de profissionais que variam conforme o tipo: Tipo I - possuem três cadeiras odontológicas e tem como meta a realização de no mínio 35 procedimentos endodônticos; Tipo II - possuem de quatro a seis cadeiras odontológicas e necessitam da realização de pelo menos 60 procedimentos endodônticos; Tipo III - possuem acima de sete cadeiras odontológicas e tem como meta mínima a realização de 85 procedimentos endodônticos 11,12. Sendo assim, é de suma importância o estabelecimento de critérios em relação aos serviços prestados e o perfil dos usuários para que os incentivos mensais repassados pelo governo, Estado e município se mantenham 12.
No estado do Paraná há atualmente 53 CEO 13. A portaria ministerial permite que os CEO sejam habilitados por Instituições de nível superior junto ao Ministério da Saúde e aos órgãos colegiados do SUS 14. O CEO Positivo (Tipo III) foi inaugurado em setembro de 2016 e veio a se somar aos demais existentes em Curitiba: CEO Rosário, localizado no bairro São Francisco, e CEO Sylvio Gevaerd, no bairro Portão. Foi idealizado para uma maior rapidez no atendimento aos pacientes, diminuindo as filas de espera e fornecendo um serviço especializado.
Dentre os modelos de Sistema de Saúde, os Universais têm como forte característica o acesso universal, possibilitando maior justiça social. Porém, um dos desafios reside na atenção especializada, notadamente marcada pelo grande tempo de espera despendido 15. A fila de espera é formada por uma lista de pacientes que estão aguardando por um mesmo tratamento, onde a demanda é maior que a oferta, sendo muitas vezes inevitável 16.
Em Curitiba, na década de 1990, foi criada a Central de Marcação de Consultas Especializadas com a proposta de organizar e controlar a oferta desse tipo de serviço vinculados ao SUS, caracterizada por ser uma fila não presencial, com agendamento gerado a partir da consulta na UBS 16. Esse modelo de gestão de atendimento, via uma Central, é utilizado em outra localidade e promove a equidade no atendimento 7.
No ano de 2016 foi instaurada uma mudança no agendamento das consultas nos CEO do município, onde a confirmação prévia começou a ser realizada, resultando em maior comparecimento dos pacientes aos locais de atendimento. Quando em tempos anteriores cerca de 25% das consultas eram desperdiçadas, atualmente esse número não passa de 10% pois assim que o paciente avisa que não poderá comparecer, a reposição é feita imediatamente por outro que está na fila aguardando.
Como essa mudança nos agendamentos é recente, esta pesquisa se justifica pela importância de ser avaliado o perfil do paciente e as informações relevantes de tempo de espera para uma especialidade considerada de certa forma crítica, o que pode embasar estratégias para a melhoria da qualidade da agilidade e do atendimento prestado. Sendo assim, o objetivo do presente estudo foi avaliar o perfil dos pacientes encaminhados de quatro Unidades de Saúde para a realização do tratamento endodôntico no CEO Positivo, Curitiba, PR, Brasil.
MATERIAL E MÉTODOS
Aspectos éticos
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Positivo (Parecer N.° 2.533.946).
Seleção da amostra
Este estudo descritivo teve delineamento transversal. Foram analisados 77 prontuários de pacientes encaminhados por quatro unidades de saúde para tratamento endodôntico no CEO Positivo. A amostra foi selecionada por conveniência, nas quais foram incluídas duas unidades ESF e duas UBS dos Distritos Sanitários de Santa Felicidade (União das Vilas-ESF e Campina do Siqueira-UBs) e da Cidade Industrial de Curitiba (CIC) (Jardim Gabineto-ESF e Atenas-UBs). As unidades selecionadas foram as mais próximas do CEO, consequentemente, mais próximas das casas dos usuários encaminhados.
Os prontuários foram acessados via e-Saúde por um único pesquisador. Este sistema viabiliza o registro dos atendimentos prestados pela Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba em sua rede de atenção 17. Foi adotado como critério de inclusão os prontuários de pacientes que foram atendidos no período de primeiro de março a 31 de julho de 2017.
Análise dos dados
Os dados foram tabulados e analisados descritivamente por meio do Statistical Package for the Social Sciences (IBM® SPSS® Chicago, IL, EUA), versão 21.0. As variáveis extraídas de interesse foram: idade, gênero, dentes acometidos, diagnóstico, fluxo de agendamento de consultas e tempo de espera na fila.
RESULTADOS
Na Tabela 1 estão apresentadas as características dos usuários e dos encaminhamentos recebidos no CEO Positivo. A média de idade foi de 35,5 anos (DP = 14,4; idade mínima 10 e máxima 76), com maior frequência de pacientes mulheres (56,0%).
Variável | n | % |
---|---|---|
Idade | ||
Menor de 18 anos | 9 | 12,0 |
Entre 19 e 60 anos | 62 | 81,0 |
Acima de 61 anos | 6 | 8,0 |
Sexo | ||
Feminino | 43 | 56,0 |
Masculino | 34 | 44,0 |
Tempo de espera* | ||
Menos que seis meses | 6 | 8,0 |
Seis meses a um ano | 47 | 61,0 |
Mais de um ano | 24 | 31,0 |
Encaminhamentos por Unidade de Saúde | ||
Atenas | 19 | 25,3 |
Jardim Gabineto | 23 | 28,0 |
União das Vilas | 19 | 25,3 |
Campina do Siqueira | 16 | 21,3 |
*Tempo de espera-desde a data de inclusão do paciente até a data da coleta de dados.
A distribuição dos encaminhamentos por Unidade de Saúde foi semelhante, mas Unidade de Saúde Jardim Gabineto representou 28,0% dos referenciamentos realizados. Quanto ao tempo de espera a média foi de 10,8 meses (DP = 2,4).
A frequência dos grupos dentários encaminhados para a realização do tratamento endodôntico está representada na Tabela 2. Os dentes póstero-inferiores foram o que mais precisavam de tratamento, seguidos dos dentes póstero-superiores e, por último, os dentes anteroinferiores. Majoritariamente os dentes anteriores (superiores e inferiores) foram mais frequentes nos tratamentos dos usuários.
DISCUSSÃO
O acesso ao atendimento especializado em Odontologia ainda é uma realidade no SUS, fato que motivou a presente pesquisa, juntamente com a necessidade de ser identificado o perfil do paciente que procura esse serviço. Os achados deste estudo mostram um perfil de paciente comumente encontrado em outros serviços de saúde e um tempo de espera considerado longo para a realização do tratamento endodôntico.
Quanto à idade dos pacientes atendidos, houve uma variação entre 10 e 76 anos, valores similares aos encontrados por Laroque et al.7, com mínima de 10 e máxima de 87 anos. Nesse quesito, destaca-se a necessidade de preparo daqueles que atuam nessa unidade, a fim de prestarem atendimento adequado mediante tal variabilidade.
No presente estudo constatou-se a maior procura pelo tratamento por parte das mulheres, fato que corrobora os achados de Pandolfo et al.18 e de Laroque et al.18. Uma justificativa para essa diferença reside no fato de as mulheres procurarem mais os serviços de saúde, como reflexo do maior autocuidado 19.
Ao se tratar de Endodontia o ponto negativo de destaque é a demora para o atendimento, que pode durar meses. É de extrema importância ser avaliado esse tempo para que o indicador de qualidade aumente, de modo comparativo a outros centros e a outras especialidades. Algumas hipóteses podem ser discutidas em relação a esse ponto. Há casos em que, dependendo da situação do elemento dentário, além da abertura e limpeza dos canais radiculares, a recuperação dos tecidos lesionados através de trocas de curativo pode se estender por diversas consultas, adiando a reabilitação que será feita mediante contrarreferência 10. Na pesquisa de Pandolfo et al.18, os autores relataram que em geral não são necessárias mais de três consultas para a conclusão da maioria dos casos, contudo em um dos casos apresentado pelos mesmos houve a necessidade de 10 consultas até a conclusão do caso. A maior necessidade de consultas é desvantajosa, dada a necessidade de cumprimento de metas mínimas de trabalho estabelecidas para o CEO 20, além do impacto em termos de custo que isso gera.
Outro fator que pode influenciar o tempo de espera é que o tratamento endodôntico geralmente não é realizado na atenção primária, além de ter alto custo nos serviços particulares, o que aumenta a procura pelos CEO.
Dias da Silva 21 cita também a necessidade de um diagnóstico correto para que o procedimento seja bem realizado e no lugar apropriado, para isso é imprescindível o conhecimento, a experiência e bom senso clínico profissional, pois algumas vezes quando o paciente é chamado para o atendimento o dente já possui indicação de exodontia 7. Este fato ressalta a necessidade da capacitação dos profissionais que fazem o atendimento inicial, para que as referências sejam mais precisas. Esse apontamento já foi feito por outros autores 7. A resolução das necessidades odontológicas nos níveis de atenção adequados é fundamental para a otimização do serviço público de saúde bucal 22.
Laroque et al.7 identificaram o maior tempo de espera em relação ao tratamento endodôntico de molares, sendo este de 170 dias, ou seja, os pacientes esperavam aproximadamente seis meses para a primeira consulta no CEO, diferente do tempo médio de espera de quase quatro meses da presente pesquisa.
Dentre as Unidades de Saúde estudadas, a Jardim Gabineto foi a que mais encaminhou pacientes para o CEO Positivo. Este dado se justifica dada a proximidade entre os referidos locais.
Quanto aos dentes que mais indicados ao tratamento, Hollanda et al.23 afirmam que os posteriores prevalecem. Uma pesquisa conduzida em outro CEO sul brasileiro identificou que os primeiros molares foram os dentes mais tratados, correspondendo a 28,9% dos atendimentos prestados no período analisado 18. Isto se deve à sua complexidade anatômica que dificulta a higienização, bem como ao maior tempo de exposição na cavidade bucal 24.
No estudo de Bulgareli et al.25 os autores afirmam que os modelos ESF ainda apresentam algumas dificuldades, pois teoricamente, a população deveria acessar todos os níveis de atenção, o que nem sempre ocorre. Isso se reflete em Endodontia, uma das especialidades odontológicas mais procuradas, de forma geral. Os autores ainda afirmam que mesmo com a implantação dos CEO existem dúvidas se realmente houve um aumento quantitativo ou mudanças nos tipos de procedimentos ofertados para a população, pois é fato que no Brasil ainda há insuficiência de procedimentos coletivos e individuais. Sabe-se também que há a necessidade de atualização quanto ao acesso, cobertura, realização de diagnóstico individual de saúde bucal rotineiramente, protocolos de referência e de contrarreferência 25. Sendo assim, é importante a realização de estudos mais profundos em relação à temática.
Apesar da escassez de estudos nessa temática, existe uma tendência crescente de pesquisas serem voltadas para a análise dos serviços prestados nos CEO, sendo considerados fatores como assistência à saúde bucal 26, desempenho desses centros 18,27, metas propostas para cada tipo de CEO 28, e qualidade dos tratamentos endodônticos realizados nos mesmos 18,29.
Concluiu-se que os pacientes encaminhados para os CEO Positivo, para a especialidade de Endodontia, esperam um tempo considerável para serem atendidos, portanto fica evidente a necessidade da redução desse tempo, além da necessidade de maior diálogo com a atenção básica no sentido de serem realizadas estratégias de promoção de saúde que visem a redução dos agravos bucais que levam à necessidade da intervenção endodôntica, aliada ao treinamento profissional mais aprofundado na atenção básica ♦