Oensino da bioética nos cursos superiores na área da saúde perpassou por momentos distintos. A introdução da bioética como disciplina nos cursos de formação superior no Brasil se iniciou em 1994, no curso de Medicina da Universidade de Brasília. Em 2001, a bioética foi incluída nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) dos cursos da saúde, preconizando sobre a necessidade da formação voltada para o desenvolvimento de atividades sustentadas em princípios bioéticos 1.
Diante dessa restruturação na formação, advindas da necessidade social de prover profissionais de saúde habilidosos, mais comprometidos e responsáveis, urge como desafio a formação ética dos acadêmicos 2. Assim, as DCN dos cursos de medicina, enfermagem, odontologia, fisioterapia, farmácia e educação física incluem a ética ou bioética nas condutas enquanto profissionais 3. Dessa forma, instituem nestes cursos, a necessidade de uma formação que habilite a tomada de decisão balizada na bioética.
A necessidade desta formação torna-se mais evidente quando são abordadas as demandas sociais vigentes, fruto das vulnerabilidades, nas quais, os princípios bioéticos, quando postos de forma utilitarista, em contratos, não correspondem à necessidade para suprir o cuidado nos serviços de saúde 4.
Para tanto, a formação ética que se almeja alcançar vai além dos deveres profissionais - deontologia - uma ética normativa, e alcança a compreensão de valores humanísticos 5, que auxiliem no pensar e agir, contribuindo para uma formação profissional mais crítica e reflexiva.
O ensino da bioética na formação dos acadêmicos dos cursos da saúde apresenta algumas características que predispõem às discrepâncias entre cursos, como por exemplo, as distintas matrizes curriculares dos cursos da saúde, quanto à oferta da disciplina bioética 6.
Além disso, a ética assume algumas concepções nas graduações com as divergências conceituais, como expõem Finkler et al. 2, ao constatarem as duas concepções de ética entre os docentes: profissional, de base deontológica, e a denominada bioética, com base nas reflexões pessoais.
Ademais, acrescentam Ribeiro e Medeiro-Junior 7, que as metodologias utilizadas no processo de ensino-aprendizagem devem se adequar às transformações sociais, sendo flexíveis diante das necessidades locais.
A expectativa ao estudar os aspectos formativos nos cursos da saúde é que sejam promovidos espaços de diálogo sobre o tema e aprofunde-se a discussão sobre a necessidade do fortalecimento do ensino da bioética no contexto das universidades, evidenciando as estratégias que podem contribuir para a formação de profissionais-cidadãos, comprometidos com as reflexões que envolvem aspectos da vida humana em sociedade.
Nesse sentido, o objetivo desse estudo foi analisar a utilização das metodologias ativas no processo de ensino-aprendizagem da bioética, sob a ótica dos acadêmicos dos cursos da área de saúde, em uma universidade pública do Estado da Bahia.
METODOLOGIA
Trata-se de uma pesquisa exploratória, descritiva e transversal, com abordagem quantitativa, oriunda de um projeto maior, intitulado "A influência da bioética e da espiritualidade na saúde", aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, sob parecer de N°. 805 380, com inclusão por meio de notificação, a qual foi aceita pelo referido CEP.
O estudo foi desenvolvido em uma Universidade pública no Sudoeste baiano, onde foram encontrados os participantes do estudo. Os critérios de inclusão utilizados foram: cursar o último semestre da graduação e ter em sua matriz curricular, disciplinas sobre ética/ bioética.
Foram excluídos da pesquisa, os acadêmicos não encontrados em até três visitas, em dias de aulas programadas, os acadêmicos do curso de medicina, pois não apresentavam turma cursando o último semestre; além dos acadêmicos de educação física e farmácia, que não continham em sua matriz curricular, disciplina correlata com a bioética.
A coleta de dados ocorreu nos meses de agosto a dezembro de 2015. Para coletar os dados, utilizou-se o questionário intitulado "Questionário de Indicadores Formativos em Bioética, em Profissões de Saúde: inquérito", validado no estudo de Bouças 8, composto de 60 questões respondidas através da escala de Linkert de 1 (totalmente em desacordo) à 6 (totalmente em acordo), com nível de respostas intermediárias de 2 (em desacordo), 3 (parcialmente em desacordo), 4 (parcialmente em acordo) e 5 (em acordo). As respostas foram agrupadas em três categorias 1 e 2 (discordância); 3 e 4 (parcialidade); e 5 e 6 (concordância). Os participantes do estudo manifestaram sua anuência mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE.
Foram selecionadas duas questões que versavam sobre as práticas formativas em bioética, na perspectiva dos acadêmicos, aplicadas aos cursos de enfermagem, fisioterapia e odontologia, cujas matrizes curriculares apresentam disciplinas específicas direcionadas ao ensino-aprendizagem da bioética.
Os dados provenientes da coleta foram dispostos em tabulação, com utilização do programa Microsoft Office Excel - versão 2010, e processados para análise estatística pelo programa Statistical Package for the Social Science (SPSS) - versão 21. Em seguida, foi procedida a análise estatística descritiva, abordando as frequências absolutas e relativas das variáveis.
RESULTADOS
Os acadêmicos da área de saúde, que participaram da pesquisa, totalizaram 68 informantes, dos cursos de enfermagem (23,5%), fisioterapia (36,8%) e odontologia (39,7%), sendo a maioria do sexo feminino (69,1%).
Os dados serão apresentados nas Tabelas 1 e 2, que são constituídas pela frequência absoluta e relativa acerca da resposta dos acadêmicos para cada afirmativa. A Tabela 1 apresenta os dados obtidos de uma forma geral dos acadêmicos dos cursos da área de saúde e a tabela 2 apresenta a distinção por curso da área de saúde.
Afirmativa | C n (%) | P n (%) | D n (%) |
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1. O ensino da Bioética deve conduzir-se de modo dinâmico, com discussão de casos concretos e participação ativa de todos os intervenientes na formação | 47 (69,1) | 20 (29,4) | 1 (1,5) |
2. O treino de casos concretos, em aulas de Bioética, facilita a atuação do profissional de saúde, quando em contato com a realidade | 53 (77,9) | 15 (22,1) | 0 |
Legenda: C - concordam; P - parcialmente concordam/discordam; D - discordam. Fonte: dados da pesquisa, 2015.
Afirmativa | Enfermagem n= 16 (%) | Fisioterapia n= 25 (%) | Odontologia n= 27 (%) | ||||||
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C | P | D | C | P | D | C | P | D | |
1. O ensino da Bioética deve conduzir-se de modo dinâmico, com discussão de casos concretos e participação ativa de todos os intervenientes na formação | 11 (68,8) | 4 (25,0) | 1 (6,3) | 19 (76,0) | 6 (24,0) | 0 | 17 (63,0) | 10 (37,0) | 0 |
2. O treino de casos concretos, em aulas de Bioética, facilita a atuação do profissional de saúde, quando em contato com a realidade | 13 (81,3) | 3 (18,8) | 0 | 20 (80,0) | 5 (20,0) | 0 | 20 (74,1) | 7 (25,9) | 0 |
Legenda: C - concordam; P - parcialmente concordam/discordam; D - discordam. Fonte: dados da pesquisa, 2015.
DISCUSSÃO
A formação ética é um constructo contínuo na vida da pessoa, que perpassa pelas experiências vivenciadas e seu discernimento na tomada de decisão. É incoerente afirmar que a bioética é apenas alvo específico de unidade curricular, pois como ressaltam Junqueira et al. (2012), todo o corpo docente de uma instituição de ensino é responsável pelo ensino da bioética, não sendo exclusividade de uma disciplina, considerando a educação em bioética um processo de desenvolvimento de valores inerentes à própria cidadania 9.
A este respeito, Finkler et al. 5 trazem um questionamento interessante sobre a como promover o ensino da bioética no contexto acadêmico. Como resposta, os autores abordam os desafios pedagógicos no processo de ensino-aprendizagem, além da necessidade da transversalidade e dos métodos ativos, incluindo a problematização.
A necessidade de estratégias pedagógicas relacionadas à prática, na formação em bioética, contribuindo para uma melhor assimilação dos conteúdos teóricos, é apontada como favorável ao processo de ensino-aprendizado por Junqueira et al. 10. Quanto a este aspecto, descrito na afirmativa 1, 69,1% dos acadêmicos dos cursos da saúde concordam que o ensino da bioética deve ser desenvolvido de forma dinâmica, com participação ativa de todos os agentes na formação, uma vez que proporciona um ambiente gerador de conceitos aplicados ao ensino da bioética e competências clínicas com habilidades mais seguras que se aproximam da realidade contextual das práticas clínicas que são divulgadas através de diretrizes validadas por sociedades concernentes em relação a cada situação problema.
As metodologias ativas de aprendizagem vêm remodelando a forma de ensino nos cursos da saúde, buscando uma maior participação dos educandos e a educação prevista nas DCN, visando o "aprender a aprender" 11. Este modelo, ao ser utilizado no processo ensino-aprendizagem, visa contrapor ao modelo tradicional, centrado na figura do professor como detentor do conhecimento, no currículo baseado em disciplinas e nas metodologias de repasse de informação 12.
Com o objetivo de desenvolver a autonomia dos acadêmicos no processo de ensino-aprendizagem, a metodologia ativa pode gerar insegurança para os que sempre estiveram submetidos à metodologia tradicional, no momento em que exige a reflexão, a participação ativa e não apenas a escuta imparcial. Dessa forma, contribui na modificação da relação entre professores e acadêmicos, com valorização do respeito mútuo, a reflexão coletiva, o diálogo, o reconhecimento do contexto e de novas perspectivas 13.
Nessa perspectiva, existem experiências voltadas para a promoção da educação emancipatória, como descrita por Freire 14 e direcionadas aos preceitos instituídos pelas DCN, porém na maior parte das graduações, há persistências de metodologias tradicionais que insistem no repasse de informações, não mais adequados às necessidades da formação da atualidade 7.
O uso de metodologias ativas é fundamental na formação de profissionais de saúde, inclusive na disciplina de bioética, visto que, a reflexão sobre os problemas do cotidiano e seus enfrentamentos, devem ser balizados por condutas éticas, auxiliando, assim, a tomada de decisão frente aos dilemas e problemas éticos vivenciados 15. Assim também, o enfoque na problematização é necessário à formação do profissional de saúde, uma vez que estimula o agir reflexivo 7.
Nesse sentido, enquanto profissionais, enfrentarão as vulnerabilidades sociais que exigem, antes de uma relação contratual/normativa do profissional com o usuário do serviço de saúde, a construção de uma relação interpessoal de igualdade, respeito, compromisso 4, que quando analisada a luz dos princípios bioéticos, relacionam-se aos de autonomia, justiça, beneficência e não maleficência, acrescidos aos referenciais bioéticos de utilidade, confidencialidade, veracidade e fidelidade.
A discussão e o treino de casos concretos na abordagem dos conteúdos em bioética, foram considerados pelos acadêmicos como facilitadora da futura atuação enquanto profissional. Nesse ínterim, as discussões bioéticas promovidas durante a formação profissional produzem competências nas ações profissionais dos acadêmicos 16. A abordagem de temas baseados em problemas é uma das estratégias das metodologias ativas de aprendizagem, que contribui para a aproximação do acadêmico com a realidade, além da formação crítica e reflexiva 17.
Pode-se inferir que não houve discordância dos acadêmicos, quanto à necessidade de estratégias de ensino baseados em problemas, para o fortalecimento da atuação enquanto profissional são pressupostos basilares da educação permanente em saúde no sentido de promover uma atuação mais resolutiva nos serviços de saúde. A simulação e discussão dos casos clínicos, em conjunto com dilemas e problemas bioéticos encontrados no âmbito dos serviços de saúde, aproximam os estudantes a situações problemas de forma realística, contextual e multidimensional, e estão em sintonia com as práxis educacionais encontradas nos componentes basilares dos currículos de ensino nacionais para uma formação profissional mais crítica e reflexiva, objetivando a tomada de decisão dos estudantes da área de atuação na saúde.
Algumas estratégias são apontadas como formas de favorecer os debates em bioética, como os casos clínicos, embasados no cotidiano, que foram apontados por estudantes, como uma das formas de instigar o interesse sobre os temas referentes à ética e bioética 18; o uso de filmes, por apresentar recriações da realidade, estimulando as reflexões advindas das questões morais abordadas 19; e as mesas multidisciplinares, para debate sobre o tema 20.
Assim, o caráter teórico-prático favorece o desenvolvimento acadêmico diante da realidade do futuro campo de atuação profissional, contribui com a compreensão multifatorial do processo saúde-doença, bem como com a formação dos recursos humanos da saúde 21. Mesmo com a carga horária prática, presente nos cursos de graduação em saúde, a deficiência em se trabalhar de forma interdisciplinar pode se relacionar com as deficiências na formação em bioética.
O ensino da bioética ainda apresenta déficits para subsidiar a tomada de decisão de acadêmicos em situações concretas 22, refletindo, talvez, a inadequação do modelo de ensino e conteúdos abordados sobre a bioética nas graduações, visto que são observadas disparidades na contextualização do tema, atribuindo à bioética as abordagens que permeiam a ética profissional, inclusive entre os docentes 2.
Ademais, como abordam Carmo Menegaz e Schubert Backes 23, a percepção que os acadêmicos têm sobre os bons professores, remete para elementos presentes nas competências gerais das diretrizes curriculares dos cursos da saúde. Nesse sentido, a docência deve ser permeada de estímulo ao trabalho em equipe, autonomia dos acadêmicos e comunicação. Porém, os professores que conduzem suas atividades com essa abordagem, ainda são a minoria, segundo o autor.
A não condução de metodologias distintas diante das atuais necessidades da formação para a saúde pode encontrar uma de suas raízes nas concepções dos educadores, que persistem na docência balizada em uma formação tradicional, não extrapolando os muros da academia, na busca pela melhoria da qualidade da educação nas Instituições de Ensino Superior (IES) 7.
Nos cursos de graduação na área da saúde, ainda não se observa o foco na estrutura interdisciplinar, que façam os projetos políticos-pedagógicos alcançarem as propostas que implicam na interação do campo teórico e prático, para que se fomentem as reflexões para a construção do conhecimento 24.
Mesmo diante destas dificuldades, alguns autores 15 apontam para que o ensino da bioética se faça a partir da articulação com a prática, uma vez que quando não há esta preocupação, a disciplina é refletida para os estudantes como uma atividade sem significados, dificultando a análise crítica pelos temas abordados na academia.
Tal compreensão infere na necessidade de abordar a bioética de forma transversal, durante a formação do profissional de saúde, visto que é um campo de estudo expresso em diversas situações vivenciadas pelos acadêmicos, não devendo ser alvo de apenas uma disciplina, mas sim, contextualizada nas diversas unidades curriculares dos cursos. Adotar o ensino da ética/bioética como transversal é considerar seu caráter social e sua consequente complexidade, por abranger diversas áreas do conhecimento e necessitar desta compreensão, que ultrapassa o conteúdo das disciplinas convencionais e se insere no currículo integrado 25.
Sobre esse aspecto, Morin 26 esclarece o sentido da disciplina como uma unidade organizadora do saber científico, com uso de teorias, linguagem, técnicas próprias, que levam a uma delimitação do saber, tornando-a autônoma nesse sentido e instituindo a divisão e especialização do trabalho.
O ensino da bioética é relevante tanto para os estudantes, quantos para os profissionais, garantindo a qualidade da assistência, o bem social e a vida das pessoas, o que torna um estudo necessário, nos ambientes universitários, visto as possíveis transformações e evidências que poderão surgir com o avanço do ensino da bioética 27.
Nesse sentido, as barreiras invisíveis que se estabelecem por meio da especialização do trabalho/conhecimento, frutos do tradicionalismo presente na formação e que são perpetuados enquanto profissional de saúde, trazem impactos negativos nas relações com os usuários dos serviços, quando não são consideradas as singularidades de cada indivíduo 4. Porém, quando se almeja uma formação voltada para o desenvolvimento das competências, o saber se torna contextualizado, envolvendo a utilização de metodologias ativas, com o intuito de agregar o saber teórico e o prático como unidade dimensional aplicado ao saber crítico, reflexivo e ético que vão além dos pressupostos teóricos ofertadas pelos componentes de ensino no seu contexto curricular.
Diante disso, conclui-se a importância do fortalecimento do ensino da bioética, com a utilização de metodologias ativas, para melhor contextualização do tema, problemática ou necessidades de saúde condizentes com as situações críticas encontradas nos serviços de saúde, sendo capaz de despertar nos acadêmicos competências clínicas compatíveis com dilemas éticos vivenciados pelos profissionais de saúde no exercício de sua profissão.
Vale salientar que as vivências contribuem para que o acadêmico adquira habilidades essenciais ao desenvolvimento de suas competências clínicas profissionais, destacando-se as boas práticas clínicas de cuidado, autonomia do exercício da sua profissão e a capacidade de ação diante dos dilemas e problemas bioéticos que possam vir a enfrentar no cotidiano de suas atividades profissionais que são desenvolvidas nos serviços públicos ou privados de saúde.
Repensar o processo de educação diante das necessidades presentes na sociedade é imperativo para que o próprio ensino da bioética seja vislumbrado e, assim, assuma destaque perante os acadêmicos e docentes das IES. Além disso, é necessário promover espaços de reflexões em interface entre a teoria e a prática que garanta a disseminação do conhecimento através do processo de ensino e aprendizagem acerca da ética e bioética, na tentativa de aproximar os discentes a reconhecerem e lidarem com os dilemas e problemas bioéticos que poderão encontrar no exercício de sua futura profissão, situações cada vez mais vivenciadas pelos profissionais no cotidiano de sua atuação profissional.
Espera-se que este estudo seja utilizado para fomentar estratégias educacionais de metodologias ativas, direcionadas a compor as novas diretrizes curriculares de educação do ensino superior e de políticas educacionais internas que favoreçam a expansão do ensino da biótica em todos os cursos da área da saúde, de modo a favorecer a capacitação dos futuros profissionais de saúde, para sua atuação profissional, proporcionando-lhes uma atuação mais humanística, sem preconceitos, com adequado manejo dos conflitos e que vise um atendimento prestado com qualidade e segurança, baseado nos pressupostos das boas práticas clínicas de ensino, e na perspectiva de preservar a vida das pessoas em todos aspectos que envolve a sua plenitude humana ♦