Introdução
Diariamente somos surpreendidos por novas descobertas, uma vez que a busca por novos conhecimentos, e consequentemente novas tecnologias, é uma característica inerente do homem (Araújo, 2003).
Os profissionais que se dedicam à atividade de pesquisa científica constituem a classe caracterizada por uma incansável busca de conhecimento. Para esses profissionais, tudo o que é publicado deve ser divulgado como dado original, ou seja, relativo a algum aspecto até então desconhecido na respectiva especialidade (Forattini, 1994). A tecnologia do mundo moderno nos abre um caminho ao futuro, às reflexões relativas às novas práticas e aos desafios de novas descobertas, entretanto parece nos distanciar de reflexões básicas e fundamentais, como as discussões éticas (Muccioli, 2004).
O aspecto ético da pesquisa científica é um tema importante que jamais devem ser negligenciados em qualquer tipo de trabalho científico. Segundo Schnaider (2008), o objetivo da pesquisa em seres humanos é fazer com que as pessoas atinjam um bem-estar físico, mental, social e espiritual. Uma pesquisa só é aceitável quando responde de forma primária às conveniências do diagnóstico e da terapêutica do experimentado, a fim de restabelecer sua saúde ou minimizar seu sofrimento. Portanto, para assegurar a integridade e o respeito aos participantes de pesquisas foram desenvolvidos documentos em âmbito internacional como o Código de Nuremberg (1947), Declaração de Helsinki (1964) e Diretrizes Internacionais para Pesquisas Biomédicas Envolvendo Seres Humanos (1982).
No Brasil o Conselho Nacional de Saúde (CNS) propôs, através da Resolução no 1/1988 (Conselho Nacional de Saúde, 1988), a criação de Comitês de Ética em todas as instituições brasileiras que realizassem projetos de pesquisa na área de saúde, tais como Universidades e centros de pesquisas públicos e privados. Posteriormente por meio da Resolução no 196/1996 (Conselho Nacional de Saúde, 1996), que foi revogada pela Resolução no 466/2012 (Conselho Nacional de Saúde, 2012), o CNS regulamentou e normatizou os Comitês de Ética em Pesquisa em Seres Humanos, estabelecendo os parâmetros para o desenvolvimento e acompanhamento das pesquisas. A resolução no 466/2012 (Conselho Nacional de Saúde, 2012) é uma adaptação das principais declarações e diretrizes internacionais sobre as pesquisas com seres humanos à realidade legal e jurídica brasileira. O documento trata ainda sobre a assistência, benefícios ou danos resultantes da pesquisa, formas de ressarcimento e/ou indenização aos indivíduos, a fim de “assegurar os direitos e deveres que dizem respeito aos participantes da pesquisa, à comunidade científica e ao Estado”. Salienta-se que a Declaração de Helsinki, tida como referência na maioria das diretrizes nacionais e internacionais sofreu diversas revisões, sendo a última delas no ano de 2013 (World Medical Association, 2013); sendo que a mesma não é utilizada como parâmetro da resolução no 466/2012 (Conselho Nacional de Saúde, 2012).
A ética em pesquisa também está relacionada com a conduta do pesquisador em relação à obtenção de resultados. As pesquisas científicas, principalmente as relacionadas à área da saúde, têm grande impacto na população mundial, visto que seus resultados irão gerar novos tratamentos e procedimentos. Entretanto, esses trabalhos apenas terão impacto positivo na humanidade se forem realizados com honestidade (Lohsiriwat e Lohsiriwat, 2007). Segundo Forattini (1994) três tipos de comportamento inadequado na pesquisa merecem atenção, sendo eles a má-conduta científica, hábitos questionáveis, e outras práticas inconvenientes na pesquisa, não peculiares à vida científica e sujeitas à legislação vigente. A má-conduta pode incluir desde a fabricação de dados, o plágio, e a falsificação, até mesmo sustentação de artigo provadamente indefensável. Tais situações se enquadram, sem limites nítidos, nas condutas chamadas de questionáveis.
Peh e Ng (2010) citam que as formas mais comuns de má conduta científica são a apropriação indevida de ideias, a violação das práticas de pesquisa de aceitação geral, o não cumprimento de requisitos legais e regulamentares, a falsificação de dados e os comportamentos inadequados em relação à falta cometida. As faltas menos graves, contudo mais frequentes, que são relatadas na literatura são as repetições de dados em publicações redundantes, cópia ou plágio de partes substanciais de outras publicações, isto é, exploração deliberada de ideias de outros autores, o que se caracteriza como alocação indevida de autoria (Reyes, 2007).
A má conduta por fraude pode ser definida como enganar alguém para obter dinheiro ou bens, ou para fingir ter qualidades que realmente não tem, no caso dos pesquisadores, um comportamento inaceitável ou desonesto de alguém em posição de confiança, e pode ser materializada nas formas de falsificação, fabricação e/ou manipulação de resultados de pesquisas (Lohsiriwat e Lohsiriwat, 2007).
A fraude cientifica nos processos editoriais expõe os leitores e a comunidade científica a uma informação falsa e de má qualidade. As medidas tomadas contra os autores que cometem fraude em geral são brandas, pelas proporções dos danos que esse comportamento pode gerar (Palacios e Ramírez, 2008). Seja qual for a caracterização ou nível do pesquisador na produção científica, pressupõe-se que os mesmo obedeça as normas e preceitos éticos desde a elaboração do projeto até a divulgação dos resultados (World Association of Medical Editors, 2011).
É evidente que a pressão sobre os pesquisadores, para publicar cada vez mais as suas descobertas científicas no mundo acadêmico, tem aumentado significativamente o número de trabalhos publicados, nos quais o rigor científico e ético pode ser questionado. Isto pode impedir o progresso da investigação, além de o público acadêmico ter confiança em todos os avanços científicos (Foo e Wilson, 2012). Assim, para manter a confiança dos leitores e para defender a reputação de uma revista ou de um artigo, é fundamental que cada etapa da investigação, principalmente a obtenção e discussão dos resultados, seja realizada dentro da ética (Peh e Ng, 2010).
A partir do exposto, o objetivo deste estudo foi avaliar se a produção científica e a obtenção de resultados estiveram pautadas na ética e no princípio da neutralidade, por meio de uma revisão integrativa da literatura.
Métodos
Uma revisão integrativa da literatura foi elaborada, uma vez que consiste em um dos métodos mais amplos de abordagem metodológica referente a revisões, possibilitando a exploração abrangente de determinado assunto, a fim de reconhecer o atual estado da arte e apontar as lacunas do conhecimento. Trata-se de estudo com coleta de dados realizado em bases de pesquisa científica, por meio do levantamento bibliográfico. Com a finalidade de aumentar o rigor desta revisão, a pesquisa atendeu a seis fases distintas: elaboração da pergunta norteadora, busca na literatura, coleta de dados, análise crítica dos estudos incluídos, discussão dos resultados e apresentação da revisão integrativa (Souza et al., 2010).
Buscas:
As buscas foram realizadas durante a primeira semana de Dezembro de 2014. As bases de dados escolhidas para a realização das buscas foram PubMed e BIREME. Foram procurados artigos de publicações de acordo com os descritores desse trabalho, os quais são: Má conduta científica (Scientific misconduct), Ética em pesquisa (Ethics, Research) e Responsabilidade social (Social responsibility). Os critérios de inclusão utilizados foram: artigos de pesquisas originais, de opinião, revisões da literatura, relatos de casos e editoriais, nos idiomas inglês, espanhol e português, e que tenham sido publicados nos últimos 20 anos; e os critérios de exclusão: estudos com delineamento pouco definidos ou explicitados. Na primeira etapa, foram compilados 1227 artigos na base de dados PubMed e 793 na BIREME; dos quais após a aplicação dos critérios de inclusão e exclusão, selecionou-se 26 artigos para esta revisão integrativa. Os mesmos foram classificados em relação ao país da publicação (tabela 1), motivos que o autor apontava como a causa da fraude (tabela 2), e opinião do autor em relação à situação em que se encontra comunidade científica em relação à fraude (tabela 3).
País da publicação | Autor(es), ano de publicação |
Inglaterra | Basu, 2006; McDonald, 2006; Marcovitch, 2007; Cehreli et al., 2007; Slesser & Qureshi, 2009; Fanelli, 2009; Albuquerque, 2011; Farthing, 2014 |
Estados Unidos | Meguid, 1999; Altman & Broad, 2005; Maurer, 2007; Anderson et al., 2007; Parrish & Noonan, 2009; Fang et al.,2012; Gupta, 2013 |
Brasil | Foratini, 1994; Grieger, 2007; Miziara, 2010 |
Paquistão | Qazi, 2006 |
Tailândia | Lohsiriwat & Lohsiriwat, 2007 |
Noruega | Hofmann, 2007 |
Colômbia | Palacios & Ramírez, 2008 |
Hungria | Kakuk, 2009 |
Cuba | Manzanet, 2009 |
Alemanha | Beisiegel, 2010 |
Índia | Sharma, 2015 |
Motivo apontado como causa | Autor(es) , ano de publicação |
Reconhecimento no meio acadêmico | Foratini, 1994; Meguid, 1999; Altman & Broad, 2005; Basu, 2006; Qazi, 2006; Lohsiriwat & Lohsiriwat, 2007; Cehreli et al., 2007; Miziara, 2010; Albuquerque, 2011; Gupta, 2013; Sharma, 2015 |
Competição entre pesquisadores | Meguid, 1999; Maurer, 2007; Marcovitch, 2007; Anderson et al., 2007; Slesser & Qureshi, 2009; Albuquerque, 2011; Gupta, 2013 |
Falta de cuidados com anotação dos dados | Maurer, 2007; Marcovitch, 2007; Fanelli, 2009 |
Pressão por publicação | Lohsiriwat & Lohsiriwat, 2007; Miziara, 2010; Sharma, 2015 |
Facilidade de reprodução de palavras e fotos devido a internet | McDonald, 2006; Manzanet, 2009 |
Relativa facilidade para manipulação de dados | Hofmann, 2007; Parrish & Noonan, 2009 |
Impunidade | Palacios & Ramírez, 2008; Farthing, 2014 |
Financiamento de patrocinadores | Kakuk, 2009; Slesser & Qureshi, 2009 |
Resultados comprados por empresas | Grieger, 2007 |
Meios de mensuração inadequados | Beisiegel, 2010 |
Aumento no numero de publicações | Fang et al., 2012 |
Interesses financeiros | Gupta, 2013 |
Fuente: elaboración propia.
Percepção da comunidade científica | Autor(es) , ano de publicação |
Prática aumentando diariamente | Altman & Broad, 2005; Lohsiriwat & Lohsiriwat, 2007; Manzanet, 2009; Parrish & Noonan, 2009; Gupta, 2013; Farthing, 2014; Sharma, 2015 |
Dificuldade de detectar esse tipo de má conduta nas publicações | Meguid, 1999; McDonald, 2006; Lohsiriwat & Lohsiriwat, 2007; Grieger, 2007; Cehreli et al., 2007 |
Necessário que as mesmas sejam identificadas | Basu, 2006; Qazi, 2006; Marcovitch, 2007; Palacios & Ramírez, 2008 |
Compromete a integridade da literatura científica | Anderson et al., 2007 |
Combater através de conscientização | Slesser & Qureshi, 2009 |
Prevalência é relativamente baixa | Kakuk, 2009 |
Fuente: elaboración propia.
Resultados & discussão
Observou-se que os 26 estudos selecionados reconhecem a existência de fraude na obtenção de resultados; sendo que 7 destes afirmam que essa prática está aumentando diariamente; enquanto somente 1 cita que sua prevalência é relativamente baixa. Ainda, 5 dos estudos relatam que é difícil detectar esse tipo de má conduta nas publicações; e outros 3 que é necessário que as mesmas sejam identificadas. Considerações como o comprometimento da integridade da literatura científica e também o combate através de conscientização também foram abordados.
Quanto aos motivos relatados pelos autores sobre possíveis fraudes em pesquisas, 11 estudos citam o reconhecimento no meio acadêmico como o principal motivo que levou os pesquisadores a cometerem fraude; 7 citam a competição entre pesquisadores; e 3 a falta de cuidado na anotação dos dados e a pressão por publicação, respectivamente. O financiamento de patrocinadores, a impunidade, a facilidade de reprodução de palavras e fotos devido à internet, e a relativa facilidade para manipulação de dados foi observado, respectivamente, em 2 estudos levantados; enquanto em somente 1 observou-se, respectivamente, os interesses financeiros, o aumento no numero de publicações, os meios de mensuração inadequados, e resultados comprados por empresas.
O país que mais apresentou trabalhos sobre o tema em questão foi a Inglaterra com 30,76% (08) dos trabalhos encontrados, seguindo pelos Estados Unidos com 26,92% (07), e o Brasil com 11,52% (03). Países como Paquistão, Tailândia, Noruega, Colômbia, Cuba, Alemanha, Hungria e Índia também apresentaram trabalhos sobre o tema e correspondem a 3,85% (01) cada.
Apesar do número de artigos encontrados que versam sobre o aumento da fraude no meio acadêmico, ter sido relativamente baixo, a maioria dos autores reconhece que a manipulação e falsificação de resultados é um fato real. A falsificação e fabricação de resultados na ciência não é uma novidade. Na década de oitenta, os Estado Unidos foram cenário de vários casos de fraude que foram divulgados. Indo mais longe, no século XIX, Gregor Mendel, o monge que formulou a teoria da hereditariedade, obteve resultados tão perfeitos sobre sua teoria que geneticistas modernos acreditam que ele deve ter os adaptados para caberem em suas hipóteses (Harby, 1988). Nos dias atuais, não é diferente. Para Fanelli (2009), a fraude pode ocorrer em todas as áreas do conhecimento e os resultados de sua pesquisa apontam que cerca de 2% dos pesquisadores admitiram ter cometido falsificação, fabricação ou manipulação de resultados ou dados pelo menos uma vez.
Segundo Miziara (2010) a fraude é uma prática que ocorre em vários países da Europa, assim como no Brasil e nos Estado Unidos, corroborando com os achados desse estudo, pois a maioria dos trabalhos encontrados e selecionados para essa revisão sistemática foi proveniente dos Estados Unidos e do continente europeu. Porém, também foram encontrados artigos de países da América do Sul e Ásia. Se por um lado essa informação induz ao pensamento de que haja mais casos de fraude nesses países, por outro lado ela também mostra a consciência e a preocupação que esses países têm em relação à fraude científica. Prova disso foi a criação do Escritório de Integridade da Pesquisa (Office of Research Integrity - ORI) pelo congresso dos Estados Unidos na década de 80 (Maurer, 2007) e o estabelecimento do Comitê de Ética na Publicação (Committee on Publication Ethics [COPE]) em 1997 por editores de periódicos médicos no Reino Unido (Beisiegel, 2012).
Sabe-se que no meio acadêmico, os pesquisadores são classificados pela quantidade de publicações que eles possuem, além da capacidade que suas publicações têm de gerarem citações, isto implica em: o pesquisador que tenha mais trabalhos citados estará numa melhor posição. E quanto mais trabalhos publicados em revistas de impacto, mais trabalhos são citados. Alguns autores concordam com os resultados desse estudo quando afirmam que a ambição pela fama e reconhecimento no mundo acadêmico é um forte motivo que leva os pesquisadores a cometerem fraude (Cehreli et al., 2007). Entretanto, há diversas causas para a prática de fraude na literatura científica. Essas causas podem ser desde a pressão imposta aos pesquisadores por aumento de suas publicações, até casos em que os pesquisadores cometem desvio de conduta com o objetivo de conseguirem mais financiamento para as suas pesquisas (Lohsiriwat e Lohsiriwat, 2007). Um caso que exemplifica o último motivo é a história do pesquisador sul coreano Woo-Suk Hwang, pesquisador considerado pioneiro por seus trabalhos com células-tronco e conhecido por suas publicações na revista Science em 2004 e 2005. Em 2006 foi acusado de fraude, por falsificar resultados de suas pesquisas, com o objetivo de obter mais financiamento de seus patrocinadores (Kakuk, 2009).
Assim, como os achados desse estudo, a detecção de condutas de fraude em artigos publicados para a comunidade científica é complicada, pois periódicos bem escritos, porém fraudulentos, podem passar despercebidos pelos olhos de quem os lê. Alguns autores afirmam que a fabricação e falsificação de resultados dificilmente são detectadas, mesmo por editores e leitores de revistas científicas ou por pessoas do meio acadêmico (Meguid, 1999; Grieger, 2007), sendo quase impossível verificar-se, portanto a fraude científica (Rittner et al., 2009). Isto talvez explique a afirmação de artigos citando que as prevalências das más condutas científicas são relativamente baixas em relação à quantidade de estudos que são publicados (Kakuk, 2009; Baerlocher et al., 2010), sendo assim reflexo da dificuldade em se identificar a falsificação e manipulação de resultados em artigos publicados.
Acredita-se que a forma mais adequada de combater os casos de má conduta científica é a combinação da ação dos comitês científicos, das sociedades científicas e dos editores de periódicos, com a consciência ética e responsabilidade que os autores devem ter em mente sempre que forem realizar uma pesquisa (Manzanet, 2009).
A investigação científica é um sinônimo de prosperidade e avanços da humanidade. Portanto, a integridade dos trabalhos deve ser respeitada e tratada com responsabilidade ética, com o objetivo de jamais permitir que a ciência seja corrompida. A ciência deve ser imparcial, pois é nela que se deposita toda a credibilidade do conhecimento.
Conclusão
A má conduta científica tem sido relatada e está presente em vários países, sendo considerada como uma prática condenável, de difícil identificação e que vem aumentando significativamente. Os principais motivos para sua ocorrência estiveram associados à pressão por publicações e à necessidade de reconhecimento no meio acadêmico. Desse modo, torna-se imprescindível uma conduta responsável e ética por parte dos comitês, sociedades científicas e de editores de periódicos a fim de se assegurar a credibilidade dos resultados encontrados nas pesquisas científicas.