Introdução
A segurança do profissional enfermeiro é considerada para o alcance e o provimento das práticas assistenciais seguras e da segurança do paciente no cotidiano da atenção primária à saúde (APS), ao ocupar o papel central perante os cuidados primários e ao vivenciar questões éticas e bioéticas 1. A temática “segurança do profissional” advém da cultura de segurança do paciente, em uma abordagem de “cultura na qual todos os trabalhadores, incluindo profissionais envolvidos no cuidado e gestores, assumem responsabilidade pela sua própria segurança, pela segurança de seus colegas, pacientes e familiares” (2, p. 2).
Para a segurança do profissional enfermeiro, precisa-se considerar as dimensões éticas e bioéticas que o envolvem, alusivos ao conhecimento, às emoções e às interações do profissional para com o mundo e as dimensões inerentes ao agir profissional, integrando os processos de consciência, empatia, responsabilidades, tomada de decisão com autonomia, coragem e discernimento 3, articulando essas dimensões aos valores, às obrigações e aos comportamentos do Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem (Cepe) 4.
A ética pode ser concebida como ideia ou ação capaz de produzir valores ou sentimentos impostos pelo dever, pelo agir e pelo fazer em sua máxima objetiva moral. Dessa maneira, a ética é formal, racional e universal, capaz de oferecer aos sujeitos razões e caminhos corretos e responsáveis em torno do agir humano 5. A bioética cotidiana “relaciona-se e está mais próxima à experiência e à vida das pessoas, cujo objeto principal é a reflexão moral das questões sociais ocultadas, omitidas ou negligenciadas e todos os seus obstáculos que acabam por incluir ou excluir indivíduos ou grupos” (6, p. 9-10).
A ética e bioética na Enfermagem interligam aspectos subjetivos e humanos da vida, da saúde e do cuidado às reflexões, valores, responsabilidades, posicionamentos e tomadas de decisão, capazes de estimular uma consciência moral interna, guiando ações e práticas de Enfermagem em referência à proteção, segurança, autonomia, direitos e escolhas do trinômio paciente-profissional-família 7,8.
No Brasil, estudos destacam problemas éticos e bioéticos que envolvem principalmente o cuidado ao usuário; os limites dos profissionais como mediadores de ações intersetoriais, pela fragmentação da rede de serviços de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS), pela vivência curativista na atenção à saúde e suas fragilidades; o regime e a condição de trabalho; a sobrecarga e o processo de trabalho da equipe multiprofissional; a inter-relação usuário-profissional; a vulnerabilidade social; a gestão e a cogestão do sus 9,10.
Mesmo em condições de trabalho adversas, a atuação da enfermagem brasileira destaca-se pelas estratégias assistenciais potencializadoras de cuidado e segurança, tais como:
procedimentos técnicos, em especial a lavagem das mãos, a não contaminação e o uso de equipamentos de proteção individual; à ética profissional envoltos pela empatia e a disposição do trabalhador, bem como sua ética a respeito da(s) situação(ões) de usuários e seus familiares e os processos de acolhimento e escuta qualificada. (11, p. 6-7)
Em âmbito internacional, os problemas éticos e bioéticos na APS originam-se de comunicação deficiente, sobrecarga de trabalho, omissões ou erros ligados à assistência, despreparo e insegurança do profissional 12,13. Quando não solucionados ou esquecidos, são capazes de provocar impotências, conflitos e distanciamento entre a identidade pessoal, a ética e o profissional 14.
A partir dos problemas éticos e bioéticos, além do conhecimento técnico-científico, o profissional de enfermagem deve apropriar-se de ferramentas e estratégias que permitam identificar, visualizar, gerir e solucionar as situações éticas e bioéticas, que trazem consigo uma série de corolários que implicam a segurança ou a insegurança dos profissionais ante a produção dos serviços e as decisões cotidianas 15.
O estímulo à segurança potencializa estratégias para a melhoria da qualidade e a redução de incidentes na APS, tais como a formação em serviço por meio da educação permanente, treinamentos, workshops e capacitações; do envolvimento do usuário no seu cuidado; do uso de tecnologias - prontuário e prescrições eletrônicas, sistemas de apoio às decisões clínicas e compartilhamento de informações; necessidade de superação da cultura punitiva; adequação de recursos humanos e físicos e elaboração de novas pesquisas e protocolos, como recursos e ferramentas potencializadores de segurança 16.
A compreensão de fatores que impactam na segurança do profissional enfermeiro perante os problemas éticos e bioéticos pode subsidiar intervenções que garantam boas práticas e decisões seguras. Destarte, questiona-se: como os problemas éticos e bioéticos existentes na APS podem influenciar a segurança do profissional enfermeiro e, consequentemente, a sua prática cotidiana? Como o enfermeiro busca favorecer a sua segurança no cotidiano da APS?
Nesse sentido, este estudo teve por objetivo compreender os problemas éticos e bioéticos nas vivências de enfermeiros no cotidiano da APS e seu impacto sobre a segurança do profissional.
Método
O estudo é de abordagem qualitativa, delineado pelo método de estudo de casos múltiplos holístico 17, fundamentado no referencial teórico da sociologia compreensiva do cotidiano 18, originado de uma dissertação de mestrado.
No contexto das práticas cotidianas, inserem-se questões éticas e bioéticas vivenciadas por enfermeiros na APS, as quais podem influenciar na segurança desses profissionais. Nesse sentido, torna-se oportuno lançar o olhar da sociologia compreensiva do cotidiano 18 sobre o objeto deste estudo. Para Maffesoli, “não há uma única realidade, mas maneiras diferentes de concebê-las” (18, p. 30). Então, “é preciso saber ouvir o mato crescer, isto é, estar atento a coisas simples e pequenas” (18, p. 41), para compreender determinados fenômenos do ser, do viver e do conviver inerentes à vida cotidiana e ao trabalho.
Este estudo integra dois casos definidos pelos cenários do estudo: Florianópolis (421.240 habitantes), capital do estado de Santa Catarina, Brasil, com 89,53% de cobertura populacional pela Estratégia Saúde da Família (ESF), e Belo Horizonte (2.375.151 habitantes), capital do estado de Minas Gerais, Brasil, com 78,67% de cobertura populacional pela ESF. A cidade de Florianópolis foi escolhida devido à inserção da professora orientadora em pesquisa de pós-doutorado nesse cenário e Belo Horizonte, por ser o local residencial da pesquisadora/mestranda.
Configura-se um estudo de casos múltiplos holístico 17, com uma única unidade de análise: “problemas éticos e bioéticos vivenciados por enfermeiros no quotidiano da APS”.
Os participantes foram 54 enfermeiros atuantes na APS, dos quais 23 são de Florianópolis e 31, de Belo Horizonte, cujas participações foram voluntárias. O critério de inclusão foi atuação de no mínimo seis meses na função ou no cargo, e o de exclusão, enfermeiros em férias ou afastados do trabalho no período da coleta de dados, totalizando cinco excluídos. Seis recusaram-se a participar e 11 não puderam participar, em Belo Horizonte, devido à elevada demanda de trabalho nos dias previamente agendados para a entrevista.
Em relação ao sexo, 50 participantes são do sexo feminino e quatro participantes, do masculino; a média de idade foi de 41 anos; o tempo médio de exercício da profissão foi de 16 anos; 34 enfermeiros formaram-se em instituições públicas; 18 enfermeiros trabalham na APS tradicional, com média de atuação de seis anos; 36 enfermeiros trabalham na ESF, com média de atuação de sete anos; 48 enfermeiros realizaram algum tipo de pós-graduação.
As fontes de evidências foram a entrevista individual aberta com roteiro semiestruturado e as notas de campo. Utilizou-se da Portaria 2.436, de 21 de setembro de 2017, com fins de análise das experiências cotidianas segundo as atribuições do enfermeiro e as atribuições comuns aos membros da equipe e o Código de Ética dos Profissionais da Enfermagem. A entrevista abordou as características dos participantes da pesquisa, a segurança do profissional enfermeiro e os problemas éticos e bioéticos na aps. Foi realizado um pré-teste do roteiro de entrevista.
A coleta de dados ocorreu em agosto de 2018 e em maio e junho de 2019; foi encerrada quando se constatou a saturação dos dados em cada um dos casos deste estudo, isto é, quando se obteve um número suficiente de informações replicadas, configurando a replicação literal dos dados 17.
As entrevistas foram conduzidas pela pesquisadora; tiveram uma duração média de 12 minutos com os participantes de Florianópolis e de 17 minutos com os de Belo Horizonte. Foram realizadas conforme a disponibilidade do enfermeiro, em espaço privativo na unidade de saúde onde estavam presentes apenas a pesquisadora e o participante. Após o esclarecimento sobre a pesquisa e a aceitação em participar voluntariamente dela, o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), elaborado em duas vias, foi assinado. Para a manutenção do sigilo e do anonimato dos participantes da pesquisa, foram utilizados códigos alfanuméricos simbolizados pela letra “E” (de entrevistado), seguido do número da entrevista de forma sequencial. Para a apresentação dos resultados, optou-se pela preservação do nome das capitais, cenários deste estudo.
A entrevista foi gravada em arquivo digital e validada, depois de realizada, pela audição do participante, com ciência e liberdade de autorização dos dados na íntegra ou com a opção de correção. Todos os participantes autorizaram a utilização dos dados da sua entrevista na íntegra. Os áudios das gravações ficarão arquivados com a pesquisadora responsável, por um período mínimo de cinco anos e, após esse tempo, serão destruídos. Os dados coletados foram tratados com segurança, a fim de garantir a confidencialidade e o sigilo das informações em todas as etapas do estudo. Os resultados foram disponibilizados para os cenários desta pesquisa e utilizados para fins científicos.
Utilizou-se da análise de conteúdo temática 19 em consonância ao referencial metodológico de estudo de casos múltiplos holístico-qualitativo para a análise dos dados 17.
A pesquisa foi desenvolvida segundo a Resolução do Conselho Nacional de Saúde do Brasil 466, de 12 de dezembro de 2012. A coleta de dados iniciou-se após as aprovações do projeto sob o Parecer 3.137.192 do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São João del-Rei, campus Centro-Oeste, além do Parecer 3.260.376 do Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte, Brasil.
Resultados
A apresentação dos resultados se configura em duas subcategorias. A subcategoria “Segurança do profissional enfermeiro: vivências no quotidiano da APS” apresenta uma interface entre a cultura organizacional e a cultura de segurança das unidades de saúde; essas culturas são necessárias ao estabelecimento da segurança do profissional.
A cultura organizacional reflexiona as características, as atitudes e os valores do ser humano, necessários à implementação da cultura de segurança e, consequentemente, à segurança do profissional, ao considerar os objetos ou as variáveis utilizadas pelos trabalhadores ao assumir responsabilidades em torno da sua própria segurança pessoal e coletiva.
Os elementos, os objetos ou as variáveis imprescindíveis à segurança do profissional são de natureza significativa ou atitudinal, como a experiência e as habilidades que podem conferir ao enfermeiro confiança em seu exercício profissional com segurança.
Na assistência eu me sinto insegura. [...] eu preciso estudar bastante, mas eu sei que eu tenho o apoio de outros colegas, então eu me sinto segura, porque eu não estou sozinha nessa unidade. (E17)
No meu fazer, eu me sinto segura, mais isso foi ao longo do tempo, de 10 anos para hoje, a experiência tornou-me segura no que eu falo, nas minhas condutas e ações, então, com certeza, fez toda diferença. (E52)
As variáveis relevantes à segurança do profissional se relacionam às condições de infraestrutura, aos procedimentos, à organização do trabalho, ao trabalho em equipe, ao ambiente e à ambiência, capazes de conferir segurança ou insegurança ao cotidiano do profissional:
No município, temos os protocolos de Enfermagem e o Pack Brasil (Practical Approach to Care Kit). São protocolos clínicos para qualquer dúvida que o profissional tenha. O perfil epidemiológico também colabora, porque vêm muitas pessoas com as mesmas queixas, então tu acabas ficando mais calejado com aquela questão clínica e existem algumas questões mais raras que tem que pedir ajuda para os colegas. Temos também grupos de WhatsApp com a Vigilância Epidemiológica, então, qualquer dúvida, a gente pergunta. Então, eu me sinto bastante segura na prática, porque as questões que não dão segurança, a gente tem quem nos socorra. (E1)
Sinto-me bastante segura, tenho uma equipe que eu posso confiar e os pacientes são pessoas relativamente tranquilas. Eu tenho segurança nas atividades e técnicas que desenvolvo, nos materiais que eu estou usando e no meu usuário, de ele não ser uma pessoa violenta. (E6)
Eu percebo que deveríamos ter mais tempo para treinamentos. Por ser um ambiente muito precário, as pessoas estão precisando alinhar até os sentimentos, para além do que é técnico, do que é físico, porque são angústias, são necessidades que você não dá conta de cumprir e de manter. As questões que a gente traz da vida não dá para excluí-las do ambiente de trabalho. (E38)
Eu me sinto segura, mas tem questões delicadas, as fragilidades, então, trabalhar com ser humano não é uma coisa fácil! Relacionamento interpessoal entre os colegas de trabalho. Observa-se, atualmente, uma insatisfação até pela questão política, então o usuário chega mais agressivo nas unidades, estamos vivenciando cada vez mais agressões aos profissionais, que sempre teve, mas quando você está doente, quando você está com uma dor, às vezes, seu limiar de tolerância ele é diferenciado. Como profissional também, às vezes, você não está em um dia bom, então você não tem aquele olhar, aquela sensibilidade de tratar o outro na sua fragilidade. (E46)
Por sua vez, a subcategoria “Ética e bioética na APS: problemas vivenciados e enfrentamento” revela problemas que envolvem a equipe, a família e o usuário, os membros da equipe, a equipe e a gestão, colocando em evidência a importância da segurança do profissional não apenas para segurança de si, mas também o impacto que ela traz sobre o ser enfermeiro ante os cuidados, a assistência e a segurança de seus pacientes e familiares.
Apresentaram a comunicação como geradora de problemas éticos, questões como sigilo de informações, acesso ao prontuário eletrônico, trabalho em equipe, compartilhamento de informações e a cotidianidade dos agentes comunitários de saúde (ACS) na comunidade e com as famílias:
Existem muitos conflitos éticos e muita ambiguidade, especialmente no tratamento das famílias [...] eu vejo como o principal problema a comunicação [...] distúrbios de comunicação, especialmente relacionados às famílias e aos profissionais, em especial os ACS, que podem estar falando o que não deveriam para familiares. (E1)
Em uma equipe as pessoas têm culturas diferentes, posturas diferentes e isso é bastante delicado no dia a dia. [...] o que sempre me preocupou é a questão do prontuário eletrônico circulando a informação [...] outra preocupação é com o ACS que reside no bairro, conhece as pessoas, precisa compartilhar a informação, mas tem que ter um limite esse compartilhamento. (E16)
Uma paciente que ficou insatisfeita queria agredir a médica. [...] nessa situação se a comunicação fosse melhor entre os profissionais, entre a gerência e os profissionais, teríamos menos consequência, mas não é só a nossa comunicação que tem que melhorar, a com o paciente também [...] o enfermeiro fica numa situação pior porque ele tem que lidar com o povo, porque a gente é a porta de entrada, a cara do centro de saúde, vamos falar assim, e temos muita dificuldade de comunicação com outros profissionais, alguns aceitam bem e outros não. (E34)
O uso de redes sociais no cotidiano e a dificuldade para a discussão presencial e resolução de problemas:
Hoje a gestão é pouco participativa, porque trabalha-se muito com WhatsApp, e muitos problemas eles acham que tem que resolver por WhatsApp e achamos que não, e isso prejudica muito. (E24)
Surgem os problemas éticos e bioéticos que envolvem os membros da equipe e suas interfaces.
Assédio moral:
Outra questão foi tentativa de abuso entre colegas de trabalho, uma situação muito delicada dentro da unidade, e eu tive muita dificuldade de lidar, porque a pessoa não queria que eu levasse para a gerência, e não posso ficar com isso só para mim, é muito sério! (E25)
Problemas em relação às condutas adotadas e à iatrogenia:
Colegas fazerem procedimentos inadequados, a questão de eu ficar sabendo e lidar com a situação, de advertir o colega, mas lidar, às vezes, com a questão da não compreensão. Por mais que você é muito clara, não é só a questão da penalização, é a pessoa realmente compreender o risco que está gerando. (E25)
Eu já tive várias vivências com médicos que não confiam no que a gente faz! (E23)
Não tem uma normatização certa para as coisas, igual, quantos pacientes o médico da ESF tem que atender? Qual a situação que ele vai fugir daquela clínica dele? (E34)
Eu vejo a questão ética “dos jeitinhos brasileiros” uma consulta aqui, aí privilegia esse ou aquele e não observa a fila das prioridades alta, média e baixa, isso é um problema. (E43)
Eu converso com vários usuários, aí o que você faz? Não registra? Aí você fica sem respaldo e fere a ética com o paciente porque, às vezes, ele fala que você falou uma coisa e não tem como provar uma orientação realizada e não está registrado? Isso me deixa angustiado e impotente. (E48)
Prioridade nos investimentos:
Um grande dilema ético é a questão dos investimentos. Qual vai ser a prioridade de investimento? Vai ser medicamentos ou aparelhos? São dilemas éticos que permeiam e afetam diretamente toda a rede da APS e a secundária também. (E1)
A demanda reprimida é considerada:
Incomoda muito a fila de espera para exames e consultas com especialidades que demoram de três a quatro meses, e, algumas consultas, anos. E os pacientes vêm e a gente não consegue resolver. (E23)
Vulnerabilidade social que gera insegurança:
Os problemas que envolvem a questão social, a dificuldade de denunciar pelo risco da violência, pela retaliação, isso é muito característico da APS. Por mais que tenha o ACS, vemos a negligência de famílias principalmente com idoso, de violência com o deficiente físico e a criança. A mulher é a questão que está tendo mais. Como não lidar com isso? (E25)
Sobrecarga de trabalho e falta de privacidade nos atendimentos:
Essa questão de não ter uma limitação das tarefas e ficar apagando fogo, atender em qualquer lugar, no corredor, eu sempre tento chamar o paciente para dentro da sala, para ele ter privacidade, porque tem coisa que não dá para responder no meio do corredor, mas nem o paciente entende isso. (E48)
Sofrimento moral:
Eu vi o paciente chorando ali na sala de espera, eu fiquei bem frustrada porque eu acho que não foi atendida a demanda dele. (E23)
Outro problema que gera o adoecimento é a sobrecarga de trabalho. (E43)
A vivência da falta de material, por exemplo, você inicia um curativo e está indo bem, mas você sabe que não vai evoluir porque não vai ter material, principalmente na visita domiciliar você vai já sabendo que não vai conseguir dar continuidade. (E52)
Problemas de não uso das ações e serviços pelo usuário e da falta de participação popular:
O paciente que não sabe usar o serviço, gerando gastos de recursos desnecessários. Absenteísmo aqui 99% é do paciente, não vai às consultas e não repassa para o próximo da fila, aí as pessoas ficam meses esperando uma vaga de uma consulta especializada [...] outra coisa, comissão local de saúde, toda sexta feira, e a gente pede os ACS para incentivar a população a participar, porque isso foi muito importante para o início da formação do SUS. Aí você vê as mesmas quatro pessoas na reunião e o paciente quando vem reclamar de uma consulta, ele não sabe que não somos nós que estamos o impedindo de ter uma consulta, é o próprio usuário que faz ficar “agarrado”. (E43)
As indicações apresentadas de como auxiliar no esclarecimento e no provimento dos problemas éticos e bioéticos, assim como no fortalecimento da segurança do profissional:
A principal estratégia é registrar no prontuário do paciente lá no campo de lista de problemas. Só que esse campo não é todo profissional que tem acesso. Da mesma forma, o paciente não quer que todos os profissionais tenham acesso àquela informação. Então, acaba recaindo muito mais nos profissionais de nível superior que tem acesso ao prontuário completo a ter o cuidado com o sigilo. (E1)
Trabalhar em rede e fazer um encaminhamento de determinada paciente em sigilo, para que os papéis não passassem aqui onde essa paciente tem conhecidos. (E1)
A sensibilização das equipes e a discussão junto do paciente são o melhor caminho, porque cada caso é um caso, não existe uma fórmula mágica. (E1)
A criação de espaços de discussão é importante. Em especial, entre os enfermeiros, espaços que tragam esses temas de Ética, de Bioética, casos que enfrentou e como os colegas agiriam e como a legislação traz. (E1)
Enquanto não tivermos um alinhamento da questão política com a atuação profissional, eu acho que não vamos conseguir resolver essa questão da violência [...] eu só acho que nós, enfermeiros, temos que nos resguardar, nos unir, nos municiar, porque nós estamos muito expostos, muito sozinhos e desunidos. E quando você considera que nós somos a grande força de trabalho, nós estamos perdendo nosso tempo, precisamos nos organizar. (E32)
Um dos pontos primordiais para diminuir a violência no local que eu trabalho é capacitação seja ela qual for, para melhorar o trabalhador. Agora, se puder ter um segurança, é bom, mas o mundo não se resolve só com armas. (E43)
Penso que a mídia é relevante para população, mas a mídia fica a desejar. O Ministério da Saúde determina “pode ir ao centro de saúde que você será atendido”. [...] mas, por que não fazer um trabalho de conscientização do sus na televisão? [...] conscientização do usuário e do trabalhador, precisamos fortalecer o SUS. (E43)
O enfermeiro demonstrou-se inseguro perante os riscos inerentes ao desempenho de ações e procedimentos, à disponibilidade de infraestrutura e nas inter-relações profissionais e com usuários, associando os riscos aos problemas éticos e bioéticos vivenciados na APS. Mesmo diante das dificuldades cotidianas, o enfermeiro se mostra alentado e resiliente ao repensar sua prática e atitudes, e praticar novas estratégias capazes de minimizar danos à sua segurança, a do paciente e a de seus familiares (notas de campo).
Discussão
A segurança do profissional enfermeiro no quotidiano da APS se apresenta em sua dimensão cultural, social, de ambiente e ambiência que envolve sua prática.
Cada organização possui seus próprios elementos-chave para uma cultura organizacional ou de segurança, cruciais a determinar medidas necessárias que impactam positiva ou negativamente a segurança do profissional 20.
No cotidiano da APS, pode projetar-se a segurança do profissional a partir das peculiaridades e das prioridades centrais desse nível de atenção; dos valores, das vivências e dos compartilhamentos entre os profissionais da equipe; das práticas baseadas em evidências; dos treinamentos, das capacitações e da educação continuada 21.
Um estudo realizado na região sul do Brasil evidenciou diferenças significativas em relação à cultura de segurança na APS e às categorias profissionais investigadas, apontando os enfermeiros como os profissionais com maior pontuação geral (67,7%), seguidos pelos dentistas (58,06%), médicos (51,79%) e ACS (46,73%) 15.
Os enfermeiros, participantes deste estudo, trouxeram a experiência e as habilidades adquiridas durante os anos de exercício da profissão como favorável ao estabelecimento da sua segurança. A familiaridade com os pacientes e suas queixas, rotinas, obrigações e procedimentos da APS proporciona-lhes essa segurança 22,23.
Corroborando com esses achados, um estudo brasileiro relevou, como elementos de alta relevância entre os enfermeiros para uma atuação ética e deliberação moral, a experiência profissional adquirida (62,7%) seguida pelos princípios éticos e bioéticos (58,1%) e pelo Código de Ética/Lei do exercício profissional (58%) 24.
Considerando a identidade do profissional enfermeiro,
a dinâmica de ir e vir, de desconstrução e reconstrução, contribuem na construção da identidade profissional dos enfermeiros, visto que cada pessoa só se constrói a partir das interações que se estabelecem ao longo da trajetória de vida e do percurso profissional que experimentam. Ao longo dessa trajetória, o profissional passa por transformações que influenciam a vida pessoal e suas percepções de mundo, da profissão, dos valores, da ética, da postura, do modo de atuar e agir, e nas decisões frente à equipe de trabalho. (25, p. 133-134)
Segundo o pensamento maffesoliano,
a experiência diária nos ensina e deveria encorajar-nos a não reduzir o conhecimento apenas ao cognitivo, mas a pensar com os sentidos, colocando em prática o que eu chamei de razão sensível. [...] A existência cotidiana é aparentemente anódina, mas secretamente intensa, o que exige também que saibamos pensar com o coração. (26, p. 7)
Destarte, “por mais alto que e nossos conceitos e, com isso, por mais que façamos abstração da sensibilidade contida a eles, estão sempre ligadas representações da imaginação, cuja função própria consiste em torná-las derivadas da experiência, que não são capazes de servir para o uso na experiência” (27, p. 46, grifo nosso).
Os protocolos operacionais padrões são outro fator que confere segurança ao profissional enfermeiro, ao sistematizar, potencializar e minimizar equívocos. São construídos a partir da realidade do município e dos serviços de saúde, levando sempre em consideração a segurança do paciente e a interdisciplinaridade 28.
As redes sociais foram relatadas como um dos elementos para ampliar a segurança, de forma rápida, em momentos de dúvidas. Contextualiza-se a tecnossocialidade como ferramenta de aproximação e informação 29. Um estudo realizado nos Estados Unidos trouxe o uso de mídias sociais, web e tecnologias móveis, o Connect App (uma plataforma parecida com o WhatsApp), como ferramentas favoráveis à segurança do profissional 21.
Em consonância, o uso de Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação em especial, aplicativo de trocas de mensagens, no cenário hospitalar brasileiro, mostrou-se como uma das ferramentas mais utilizadas entre os enfermeiros nas atividades de gerenciamento de riscos (52,4%), treinamentos em enfermagem (52,4%), investigação científica (52,4%) e gestão de recursos humanos e materiais (47,6%) 30.
Assim, “a internet é o vetor essencial. Ela é para a sociedade de hoje o que a ágora era para as cidades gregas, ou a praça pública para as aldeias e cidades do mundo tradicional. O lugar, o vazio, onde acontece o estar-junto” (26, p. 27).
Os resultados trouxeram os aspectos institucionais como fatores positivos à segurança do profissional: ambiente tranquilo; trabalho em equipe significativo e cooperativo; confiança e respeito entre profissional-usuário; material suficiente, profissional seguro para exercer com autonomia, e responsabilidade suas atividades. Esses itens são considerados significativos à qualidade de vida no trabalho 31.
Vivências de satisfação, prazer e bem-estar no ambiente de trabalho dos enfermeiros da APS também se associam à resolutividade e à autonomia do trabalho, ao relacionamento terapêutico com a comunidade, ao retorno profissional positivo e à identificação com o trabalho na enfermagem e na saúde pública, fatores esses que coadjuvam e otimizam ações e práticas de cuidados seguros aos usuários, às famílias e à comunidade 32.
O cotidiano do enfermeiro na APS é complexo e reflexivo, abrange do vínculo com o usuário e sua família ao ambiente no qual ele está inserido. Assim, “paradoxalmente, o quotidiano não se mostra apenas como cenário, mas sobretudo integra as cenas do viver e do conviver” (33, p. 8).
Destarte, os aspectos institucionais, além de promoverem proteção, devem garantir a concretização da assistência por intermédio da valorização do vínculo; da promoção do lócus de atuação; das redes de apoio; o compartilhamento e a união entre os profissionais; a provisão e a qualidade dos insumos/materiais necessários à segurança do paciente e do profissional 34,35.
No caso 1, os enfermeiros trouxeram que o ambiente favorável e circunspecto faz toda a diferença à segurança do profissional. Os enfermeiros do caso 2 trouxeram como fator negativo para sua segurança: o ambiente inseguro; a precariedade do sistema e do atendimento devido à sobrecarga de trabalho; o esgotamento do profissional; a carência da estrutura física e material; a violência física e verbal sofrida no cotidiano; as fragilidades em torno do usuário e do profissional, vivenciadas pela impaciência, pela incompreensão, pela agressividade e pelas angústias pessoais.
Na “perspectiva deontológica, uma experiência crucial unindo todos os aspectos aparentemente desconexos da experiência humana, tanto individual quanto coletiva, um situacionismo deontológico que se vive no dia a dia” (26, p. 60).
Nas últimas décadas,
a elaboração e a afirmação de princípios concernentes à relação entre trabalho, economia, saúde e segurança foram definidos e estabelecidos pelas bases éticas, morais, históricas, quotidianas e comportamentais, experencia- das e interpretadas de modos diferentes, por diversos sujeitos e nas várias regiões do mundo. (6, p. 131-133)
Nesse sentido, a saúde do profissional, a proteção e a segurança do ambiente necessitam ser repensadas. As desigualdades das instituições, a carência de leis adequadas e as intransigências ambientais e sindicais e seus impactos, se omitidas, podem causar danos insuperáveis à saúde, para a natureza social, pessoal e econômica de pessoas 6. “O problema ético, que envolve o conflito de interesse entre as instituições e seus colaboradores raramente pode ser resolvido a posteriori, porque isso significaria sacrificar uns ou outros” (6, p. 167).
Dessa maneira, faz-se necessário, portanto, implementar também medidas cuja finalidade seja aumentar e promover terapias de relaxamentos, autocuidado e descanso “favorecendo assim, um ambiente de trabalho estável e harmonioso, fazendo com que os enfermeiros possam desenvolver com qualidade suas atribuições diárias e melhorar sua qualidade de vida” (36, p. 60).
Os resultados deste estudo mostram que o ambiente/ambiência da APS pode trazer insegurança ao profissional. Dessa maneira, defende-se a ideia de que, antes de fornecer cuidados seguros ao usuário, o profissional precisa sentir-se seguro, em paz e amparado no seu próprio local de trabalho 37.
Estudo brasileiro mostrou que as vivências dos enfermeiros da APS “são marcadas pela (des)motivação, (des)valorização e pouco envolvimento dos profissionais na sua prática. Esses fatores interferem na atuação profissional, ocasionando insegurança, angústia e sofrimento moral, podendo impactar a qualidade da assistência” (38, p. 8).
Assim, age “de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca/simplesmente como meio” (39, p. 69).
Ademais, a promoção da segurança psicológica entre os trabalhadores da área da saúde torna-se parte essencial de um ambiente de trabalho saudável e seguro. Estudo evidenciou que “membros da equipe que se sentem psicologicamente seguro são capazes de criar ambientes propícios ao aprendizado organizacional onde há compartilhamentos, trocas de ideias, informações e feedbacks quotidianos sobre as questões/problemas de saúde vivenciados, sem que haja medo de repercussões” (40, p. 838).
Ao desempenhar suas atribuições, o enfermeiro vivencia exaustões emocionais, físicas, sociais, psicológicas e de violências, capazes de interferir significativamente em seu desempenho individual, profissional e coletivo 41.
A exposição à violência verbal e psicológica pode resultar em adoecimento, estresse, baixa autoestima; insegurança clínica pela intimidação sofrida 42. Perante o assédio moral, torna-se “extremamente necessário encorajar os trabalhadores a reportar eventos de violência e possibilitar ambientes livres e seguros de quaisquer tipos de violência” (43, p. 7).
A violência no local de trabalho é considerada uma injustiça social, ao ferir o ser humano em seu direito mais básico: segurança. Nesse sentido, “devemos buscar medidas preventivas, em âmbito coletivo, de sensibilização, acolhimento, apoio, orientação, mudanças no planejamento e organização do trabalho” (44, p. 559).
Ademais, é válido ressaltar que o Cepe contém as obrigações e os deveres que são da ordem da moral e, portanto, instrumentalizados pela deontologia. Assim, designa que o profissional dessa área deve exercer suas atividades com “liberdade e autonomia, segurança técnica, científica e ambiental, segundo os princípios e pressupostos legais, éticos e dos direitos humanos para promoção do ser humano na sua integralidade” (4, p. 2). Contudo, como apontam os resultados deste estudo, o profissional enfermeiro encontra dificultadores em seu cotidiano para exercer suas atividades e condutas com a devida segurança. É preciso pensar e concretizar ambientes e ambiência que promovam a cultura de segurança e a segurança do profissional.
Os problemas éticos mais frequentes se relacionam à comunicação e suas nuances. As narrativas em torno do sigilo, da confidencialidade e do compartilhamento de informações dentro da equipe envolvem o trabalho e a cotidianidade dos ACS. O ACS, por ser da comunidade, consegue facilitar o vínculo e a confiança entre usuário e profissional. Contudo, justamente por essa aproximação, acaba ficando difícil lidar com o sigilo e a privacidade daqueles com quem se relaciona. “Lidar com essa questão ética e bioética pode ser difícil, principalmente porque os ACS não são fortemente capacitados e tampouco podem se apoiar em um código de ética profissional como as demais profissões” (45, p. 107-108).
A Política Nacional da Atenção Básica delineia que os profissionais devem exercer suas atribuições e responsabilidades conforme legislação profissional. Contudo, ao estabelecer como atividades dos ACS a aferição da pressão arterial, a realização da medição da glicemia capilar e a realização de técnicas limpas de curativo, a própria política acaba desdizendo o Cepe que determina que os conhecimentos e os procedimentos próprios da profissão devem ser executados pelos enfermeiros/técnicos observando os preceitos éticos e legais da profissão 4,46.
O compartilhamento, a privacidade e o sigilo das informações em prontuários eletrônicos são preocupações dos enfermeiros. Esses achados nos revela a necessidade de aperfeiçoamento dessa ferramenta 47. Contudo, a omissão de quaisquer informações por parte do usuário pode atrasar, influenciar e comprometer o seu tratamento 48.
Falhas, imprecisões e incompreensões no processo comunicacional, além de prejudicarem o vínculo e a confiança, afetam o consentimento informado do usuário sobre seu estado de saúde 34,49. O objetivo principal da comunicação entre as equipes é o cuidado centrado na excelência e na segurança do usuário. Dessa forma, uma comunicação eficiente é capaz de evitar erros desnecessários. Uma das maiores fragilidades da comunicação entre a equipe e a gestão diz respeito à comunicação informal por meio do uso de tecnologias (WhatsApp). Esse tipo de comunicação, apesar de moderno, é capaz de afetar o compromisso profissional, a colaboração multidisciplinar e a reflexão dialógica nos ambientes da APS 50.
As fragilidades oriundas de recursos e financiamento da APS implicam problemas éticos e bioéticos. O desfinanciamento e o subfinanciamento de algumas ações afetam diretamente outros níveis de atenção, as necessidades da população e a mecânica de trabalho de toda equipe multiprofissional 51.
A demanda reprimida também foi considerada como um problema ético e bioético. O impacto gerado pela demora no agendamento das consultas e dos exames especializados, e a desestruturação de redes de atenção são capazes de gerar uma angústia entre os enfermeiros em relação à resolutividade e à efetividade em seus atendimentos 52.
Em determinada
cenestesia, está também uma alma individual, em obra no corpo social. O reconhecimento de uma tal ambivalência limita-se a sublinhar que no contraposto de uma moral, feita de boas intenções, mas um tanto abstrata, há uma ética, mais real, fundada mais próximo da realidade. Ética de todo dia, que não se partilha, mas tem, sempre, a necessidade do seu contrário para atingir sua plenitude. (53, p. 105-106)
Todavia,
apesar do mais agudo exame de consciência, não possamos encontrar nada, fora do motivo moral do dever, que pudesse ser suficientemente forte para nos impelir a tal ou tal boa ação ou a tal grande sacrifício [...] Em realidade, mesmo pelo exame mais esforçado, nunca podemos penetrar completamente até os móbiles secretos dos nossos atos, porque quando se fala de valor moral, não é das ações visíveis que se trata, mas dos seus princípios íntimos. (39, p. 40)
Outrossim, merecem destaque os liames entre a sobrecarga de trabalho e o sofrimento moral, constituindo uma ameaça real à dignidade humana e coletiva; dessa forma, a compreensão do cotidiano do profissional e suas implicações em sua prática segura possibilitará refutar e precaver o sofrimento moral 54,55.
O cotidiano de trabalho não deve ser acompanhado por “sofrimentos a serem suportados em consequência de leis humanas imutáveis, mas sim como um direito que pode transformar-se em expressão de liberdade, saúde física e mental” (6, p. 131).
Observa-se “uma espécie de distanciamento em relação à identidade. [...] Os tempos são de deixar-ser, dando ênfase à labilidade das coisas, à vacuidade das instituições aparentemente mais sólidas” (56, p. 107).
A sobrecarga de trabalho atrelada às altas demandas de atendimentos, aos ambientes inadequados ou à disposição insuficiente de consultórios tem colocado em risco a privacidade de atendimento dos usuários 57.
Ressalta-se a corresponsabilização de usuários, ao abster-se de consultas e exames agendados. O sucesso que envolve o diagnóstico, o tratamento, a promoção e a reabilitação da saúde de usuários não é tarefa exclusiva dos profissionais. Os usuários devem ser comprometidos e corresponsáveis para melhor usufruir dos serviços de saúde que a eles são oferecidos 58.
Um estudo realizado na APS chilena 59 e outro desenvolvido em Würzburg, Alemanha 14, corroboram com os achados deste estudo, ao apresentarem os problemas éticos e bioéticos ligados aos distúrbios de comunicação; ao sigilo, confidencialidade e compartilhamento de informações em prontuários eletrônicos; à carência de recursos financeiros, humanos e materiais; ao despreparo, desrespeito e impotência do profissional no enfrentamento cotidiano.
O software clínico Primary Sense foi desenvolvido para maximização, qualidade e segurança da assistência em saúde e com o objetivo de evitar eventos adversos a medicamentos, diminuir erros profissionais, melhorar a coordenação do atendimento e apoiar decisões de tratamento informadas. Essa ferramenta permite ao profissional de saúde, em especial o enfermeiro, sinalizar em tempo real problemas de segurança, fragilidades como quedas; perda de peso e complexidade baseadas na quantidade de recursos de saúde que o paciente utiliza atualmente, a fim de apoiar, facilitar e favorecer decisões clínicas e individuais para cada paciente. Esse software reúne ainda relatórios e informações sobre condutas e atendimentos aos pacientes, tornando-se uma ferramenta de suporte segura, capaz de proporcionar melhorias, confiança e padronização nos cuidados de saúde da equipe multiprofissional 60.
Igualmente, torna-se plausível a reflexão em torno do agir ético e bioético dos profissionais 61. Nessa premissa, poderia ser possível atrelar educação profissional ao uso das mídias sociais e das tecnologias de informação e comunicação, capaz de proporcionar uma nova forma de interação, apoio e amparo entre os enfermeiros e a equipe, além de fortalecer competências profissionais e organizacionais necessárias à condução e à resolução dos conflitos éticos e bioéticos de forma rápida e com participação coletiva. Tecnologias desenvolvidas para a educação em saúde como material impresso, software e vídeo, além de maquete e suporte telefônico, têm se mostrado eficazes, auxiliadoras e esclarecedoras nas questões de saúde e no cuidado individual de usuários 62.
A amostragem intencional foi uma limitação deste estudo; no entanto, com base nas informações colhidas, esta amostragem pode ser considerada representativa em populações e condições similares em estudos de casos múltiplos com saturação dos dados por replicação literal 17. Como avanço para o campo da bioética e da ética, e para área da Enfermagem, neste estudo, apresentam-se reflexões do ser e do fazer ético perante problemas vivenciados pelo enfermeiro, enfocando a segurança do profissional para a atuação na APS mediante exigências normativas, técnicas, éticas e bioéticas da profissão.
Considerações finais
Os problemas éticos e bioéticos relacionam-se às precariedades do sistema e do atendimento, às condições de infraestrutura, ambiente e ambiência e às fragilidades em torno das relações usuário-família-equipe, equipe-equipe e equipe-gestão. Esses problemas mostram-se similares nas duas realidades pesquisadas e impactam negativamente na segurança do profissional.
A segurança do profissional enfermeiro mostrou-se favorecida mediante: a experiência e as habilidades adquiridas em seu exercício profissional; a sistematização da assistência ante os protocolos operacionais padrões; o uso consciente e responsável das redes e das mídias sociais, e a sensibilização das equipes por meio de espaços de discussão e capacitação referentes à ética e à bioética, atuação profissional e política.
Os aspectos institucionais que corroboram e propiciam um ambiente seguro e cooperativo entre seus usuários e profissionais não dependem exclusivamente das habilidades e das competências éticas de seus enfermeiros. Há envolvimento também de toda a capacidade e a disposição laboral dos gestores e dos coordenadores de saúde em fornecer um ambiente seguro que não objetive apenas a segurança do usuário, mas que considere precipuamente a saúde, o cotidiano e a realidade vivida por todos, na APS.
A originalidade desta temática, ao discutir os problemas éticos e bioéticos vivenciados pelo enfermeiro e o impacto na segurança do profissional, atrela-se à previsibilidade de que não há segurança do paciente se não há a do profissional no fazer lídimo, suscitando mais estudos que abordem questões afins como tema de pesquisa. Os resultados permitiram a compreensão dessa temática ao integrar a objetividade que normatiza as condutas éticas e bioéticas e a subjetividade de enfermeiros(as) e apontar questionamentos sobre sua segurança profissional perante sentimentos, angústias e anseios em sua prática cotidiana. Além disso, indicam a necessidade de educação permanente, recursos suficientes, ambiente, ambiência e condições seguras para a atuação ética e bioética.
*As autoras informam que não há conflito de interesses.