Introdução
A filosofia e vivência dos cuidados paliativos tiveram início na Inglaterra, em 1967, a partir da iniciativa de Cicely Saunders, uma assistente social, enfermeira e médica, a qual foi responsável por disseminar uma nova modalidade de cuidado, focada em compreender as necessidades dos pacientes em fim de vida, contemplando-o como um ser integral. Nesse contexto, Cicely propõe a abordagem e o manejo do que definiu como “dor total’’: buscar o alívio das dores físicas, emocionais, sociais e espirituais, responsáveis pelas diversas manifestações do sofrimento humano 1.
A Organização Mundial da Saúde (OMS), por sua vez, define cuidados paliativos como sendo “abordagem que melhora a qualidade de vida dos pacientes e suas famílias, que enfrentam problemas inerentes a uma doença que ameaça a vida, através da prevenção e alívio do sofrimento, por meio da identificação precoce, avaliação e tratamento impecáveis da dor e de outros problemas físicos, psicossociais e espirituais’’ 2.
O grande avanço da área da medicina nas últimas décadas tem levado a um prolongamento da vida de pacientes gravemente enfermos. Entretanto, a OMS relata que apenas uma pequena minoria dos profissionais de saúde em todo o mundo tem conhecimento dos princípios dos cuidados paliativos e como são praticados 2. Percebe-se, assim, que as questões éticas relacionadas a esse prolongamento precisam ser avaliadas de forma mais efetiva. A rápida incorporação dos avanços tecnológicos, tais como os utilizados nas unidades de terapia intensiva (UTI), que permitem delongar o momento da morte, torna as decisões sobre os limites dessas intervenções muito complexas e desafiadoras.
Em 2019, a Academia Nacional de Cuidados Paliativos realizou um levantamento sobre os serviços de cuidados paliativos disponíveis no Brasil 3. Foram contabilizados 191 serviços atuantes no país, o que revela que apenas 5% dos hospitais de todo o país disponibilizam equipes capacitadas para essa modalidade de cuidado. Para efeito de comparação, um levantamento realizado em 2017 pelo Center for Advanced Palliative Care sobre o número de equipes de cuidados paliativos nos Estados Unidos, revelou 1.800 equipes de cuidados paliativos atuantes, cobrindo mais de 75% dos hospitais estadunidenses. Além disso, o levantamento brasileiro demonstrou que a instauração dos cuidados paliativos é bastante recente no Brasil, uma vez que mais da metade das atividades foi iniciada na década de 2010 4. Torna-se evidente, então, que a oferta de cuidados paliativos de qualidade ainda é uma realidade para poucos em nosso país e, por consequência, muitos pacientes com doenças graves e sem possibilidade de cura não recebem tratamento e controle adequado dos seus sintomas.
Sabe-se, ainda, que aliada à incorporação da tecnologia em saúde, a expectativa de vida tem aumentado a cada ano em todo o mundo, levando a um aumento no número de pacientes com doenças crônicas não transmissíveis, tais como doenças cardiovasculares, neurodegenerativas, cânceres e doenças respiratórias crônicas. Publicação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de 2018 apresenta que, desde 1940, já são 30,8 anos a mais que se espera que a população viva 5. Entre 2017 e 2018, a expectativa de vida dos brasileiros aumentou em 3 meses e 4 dias, alcançando 76,3 anos. Para as mulheres, espera-se maior longevidade: 79,9 anos 5. Esses dados reforçam as informações mundiais de envelhecimento populacional e, com ele, o aumento de doenças crônicas não transmissíveis, elegíveis aos cuidados paliativos.
O Código de Ética Médica de 2019, com base na Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) 2.217/2018, destacou os cuidados paliativos como prática essencial aos pacientes em fim de vida, descrevendo ser vedado ao médico:
Art. 41 Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal. Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal (6:28).
Tal resolução reitera a importância das questões bioéticas relacionadas à prática dos cuidad paliativos, com destaque aos dois aspectos bioéticos abordados neste estudo: “morrer com dignidade” e “obstinação e futilidade terapêuticas” 7.
Diante desse cenário, entende-se que a boa prática dos cuidados paliativos passa pelo conhecimento de seus princípios norteadores, bem como sobre as questões bioéticas que emergem dessa prática, incluindo a discussão sobre adequação terapêutica, obstinação terapêutica, diretivas antecipadas de vontade, sedação paliativa e extubação paliativa.
Este é mais um estudo que reforça a necessidade de uma reflexão acerca dos aspectos bioéticos relacionados aos cuidados de pacientes em fim de vida, bem como identificação das circunstâncias relacionadas a esses aspectos bioéticos, incluindo as dificuldades encontradas pelos pacientes, pelos familiares e pelos profissionais de saúde nesse processo. Entende-se que uma revisão integrativa servirá como um panorama para se compreender melhor esse cenário, colaborando também para a realização de novas pesquisas na área. Desse modo, este artigo tem como objetivo evidenciar e discutir os aspectos bioéticos relacionados aos cuidados a pacientes em fim de vida no contexto brasileiro. Especificamente, busca identificar as circunstâncias relacionadas a esses aspectos bioéticos, bem como seus fatores desencadeantes.
Metodologia
Esta pesquisa trata-se de uma revisão integrativa, para a qual foram percorridas as seguintes etapas: definição da pergunta norteadora, definição dos critérios de inclusão e exclusão, levantamento dos artigos na literatura, análise e extração dos dados, categorização dos aspectos bioéticos encontrados, interpretação dos resultados, apresentação da revisão.
Para a elaboração da pergunta norteadora, utilizou-se a estratégia PVO (acrônimo para patient, variable, outcomes), considerando-se: (P) paciente adulto em fim de vida; (V) circunstâncias relacionadas aos aspectos bioéticos e seus fatores desencadeantes; (O) aspectos bioéticos encontrados no processo de cuidado. A aplicação dessa estratégia resultou na seguinte questão: quais aspectos bioéticos são identificados na assistência a pacientes em fim de vida e quais as circunstâncias e fatores relacionados?
A busca foi realizada de outubro de 2020 a novembro de 2020. A seleção dos estudos foi investigada pelas bases eletrônicas PubMed e SciELO, incluindo publicações de 2014 a 2020, dados o vasto número de pesquisas encontrados e o exponencial avanço da relevância do assunto nos últimos anos. Foram utilizados os seguintes descritores reconhecidos nos vocabulários de indexação científica - Descritores em Ciências da Saúde (DECS): bioética, cuidados paliativos e doente terminal. A seleção foi realizada com base nos critérios de inclusão e exclusão. Dessa forma, foram incluídos artigos que contemplaram o contexto brasileiro e que abordaram diretamente aspectos bioéticos que podem ser relacionados aos cuidados paliativos de pacientes adultos, tais como conflitos e tomadas de decisão no contexto de fim de vida. Foram excluídos os artigos não disponibilizados na íntegra nas plataformas eletrônicas PubMed e SciELO, textos incompletos, artigos relacionados à pediatria, artigos que citam a expressão “cuidados paliativos”, mas não estabelecem relação com aspectos bioéticos nem com cuidados de fim de vida, trabalhos não realizados por autores brasileiros.
Primeiramente, foram avaliados os títulos e os resumos para a seleção inicial dos artigos potencialmente elegíveis. Sequencialmente, foram analisados todos os textos completos dos artigos potencialmente elegíveis. A seleção foi realizada de acordo com a pergunta norteadora. Nos casos de dúvidas sobre a inclusão do artigo, foi solicitado parecer de um segundo revisor. Os estudos duplicados foram excluídos.
Seguindo-se as estratégias estabelecidas, as buscas geraram um montante de 231 estudos publicados, sendo 153 disponíveis na base de dados PubMed e 78 no banco de dados SciELO. Aplicados os critérios de inclusão exclusão, resultaram um total de 24 textos selecionados para a análise temática (Figura 1). As informações coletadas dos estudos foram sumarizadas e distribuídas em categorias temáticas.
Resultados
Foram selecionados 24 estudos, cuja caracterização quanto a autores, ano, delineamento e achados dos autores sobre a temática está apresentada no Quadro 1. Todos os artigos foram publicados em português.
Autores | Ano | Delineamento | Principais achados sobre aspectos bioéticos relacionados aos cuidados de fim de vida |
---|---|---|---|
Abreu CBB de, Fortes PA de C. 8 | 2014 | Qualitativo Entrevista semiestruturada com 11 profissionais de saúde | Estudo aborda o conflito entre os princípios bioéticos autonomia e beneficência. O autor coloca algumas situações nas quais a vontade de escolha do paciente pode gerar esse conflito, tais como a negação de uma intervenção médica, a preferência pelo lugar de tratamento e morte, as limitações emocionais aos quais está exposto e, ainda, o estabelecimento do cerco do silêncio durante o processo de cuidado. |
Vicensi M do C 9 | 2016 | Ensaio reflexivo | Estudo aborda a dificuldade do enfrentamento da morte pelos profissionais de saúde. Constatou-se que essa dificuldade é fruto não apenas da educação contemporânea, mas também da formação desses profissionais, pouco humanizada e distante da conscientização da morte e do processo de morrer como parte da vida. |
Santana JCB, Dutra BS, Carlos JMM, Barros JKA 10 | 2017 | Qualitativo Entrevista nãoestruturada com 12 enfermeiros | Autor sugere o processo de morte como um dilema ético-profissional complexo, repleto de emoções que precisam ser moldadas, repensadas e discutidas à luz dos princípios bioéticos e legais. Levanta que a disponibilidade de amplo aparato tecnológico pode afastar o profissional de seu paciente e torná-lo mais mecanicista e menos humano. “O desconhecimento das leis sobre terminalidade gera profissionais inseguros em relação à tomada de decisão e adoção da prática de ortotanásia’’. |
Nunes ECDA, Sousa J de O 11 | 2017 | Qualitativo Entrevista semiestruturada com 14 médicos | Estudo aborda o medo dos médicos com relação à sua responsabilidade deontológica de estabelecer diagnósticos de doença incurável, especialmente pela falta de linearidade do quadro clínico do paciente com doença incurável avançada. |
Eich M, Verdi MIM, Finkler M, Martins PPS 12 | 2018 | Qualitativo Entrevista semiestruturada com 10 profissionais de saúde | Estudo propõe compreender os sentidos que os profissionais de saúde atribuem ao recurso da sedação paliativa durante o processo de morrer, as relações que fazem com a eutanásia, e verificar quais são os princípios e valores implicados na tomada de decisão. O autor afirma que muitos profissionais limitam a prática da sedação paliativa em questões técnicas relacionadas à prescrição/administração de medicamentos, sem ampliar a reflexão ética sobre os fatos e valores na tomada de decisão. Também discute a dificuldade em aceitar a morte como processo natural da vida, relacionada ao modelo biomédico de formação. |
Kovács MJ 13 | 2014 | Ensaio reflexivo | A autora levanta a necessidade de mudar a mentalidade sobre os cuidados paliativos, ainda muito associados à “morte e desistência’’, e não à qualidade de vida. Afirma que mesmo profissionais de saúde ainda relacionam e confundem o conceito dos cuidados paliativos com eutanásia ou suicídio assistido. O estudo também discute a dificuldade social e cultural de lidar com a morte. |
Paiva FCL de, Almeida Júnior JJ de, Damásio AC 14 | 2014 | Revisão narrativa | Estudo aborda os conceitos de “futilidade” e “obstinação terapêutica”, utilizados para definir o excesso de recursos tecnológicos, aparentemente com finalidades curativas, que valorizam a continuidade da vida do paciente, mesmo que isso traga como consequência o aumento de seu sofrimento. |
Crippa A, Lufiego CAF, Feijó AG dos S, Carli GAD, Gomes I (15) | 2015 | Revisão sistemática | Estudo discute os princípios bioéticos autonomia e beneficência e aponta a importância (e constante falha) da humanização acadêmica na formação dos profissionais de saúde. Os autores abordam a dificuldade dos familiares e dos profissionais da saúde em compreender a morte como um processo natural, relacionada a questões culturais, ao modelo biomédico de ensino e, muitas vezes, à estrutura dos próprios serviços de saúde que acabam dificultando o respeito à autonomia do paciente. |
Lima M de LF, Rego ST de A, Siqueira-Batista R 16 | 2015 | Revisão narrativa | O artigo aborda sobre limitações do respeito à autonomia no que tange aos processos decisórios envolvidos, relacionando paciente, familiar e profissional de saúde. O autor identifica como justificativas para essa prática: a ‘’assimetria nas relações entre profissionais da saúde (detentor de conhecimento) e pacientes (portador de enfermidade)” |
Eich M, Verdi MIM, Martins PPS 17 | 2015 | Qualitativo Entrevista semiestruturada com 10 profissionais de saúde | O artigo discorre sobre a relevância do protagonismo da pessoa enferma e de seus familiares na tomada de decisão em cuidados paliativos, entendendo que a decisão é apenas parte de um processo dinâmico, no qual também se faz necessária a análise das vivências e experiências da pessoa em estágio avançado da doença e sem possibilidade de cura, bem como as de seus familiares. |
Costa RS da, Santos AGB, Yarid SD, Sena EL da S, Boery RNS de O 18 | 2016 | Ensaio reflexivo | Estudo aborda a relação dos Cuidados Paliativos com os princípios da bioética médica e reflete sobre a falta de entendimento dos profissionais de saúde sobre a temática. |
Pessini L 19 | 2016 | Ensaio reflexivo | Autor reflete sobre os diversos aspectos do sofrimento (físico, psíquico, social e espiritual), os quais são muitas vezes desconsiderados e limitados ao componente físico. Essa prática muitas vezes justifica a continuidade de tratamentos fúteis. O estudo aborda, ainda, a sensação de falha e frustração diante da morte, propondo um conflito entre a medicina baseada na cura x paradigma do cuidado. |
Manchola C, Brazão E, Pulschen A, Santos M 20 | 2016 | Qualitativa Entrevistas com 6 profissionais, pacientes e familiares | O artigo propõe uma reflexão sobre o desconhecimento do mundo acadêmico no que se refere à importância e negação da natureza complexa da espiritualidade e seu papel na vida das pessoas bem como a falta de habilidade de comunicação durante a formação acadêmica dos profissionais da saúde. |
Clos MB, Grossi PK 21 | 2016 | Qualitativo Entrevistas semiestruturadas com 19 técnicos e 13 familiares | O artigo aponta a implantação de cuidados específicos para idosos que estão em processo de fim de vida é temática difícil, pois envolve superação de preconceitos e reconhecimento da morte como parte da vida humana. Os principais conflitos colocados pelo autor nesse processo foram: o enfrentamento direto da mercantilização do cuidado, a proteção social e a implantação de estruturas adequadas. |
Silva RS da, Evangelista CL de S, Santos RD dos, Paixão GP do N, Marinho CLA, Lira GG, et al. 22 | 2016 | Qualitativo Questionário aplicado a 8 enfermeiras | Estudo aponta que, apesar de haver um bom entendimento dos conceitos que permeia os cuidados paliativos pelas profissionais enfermeiras, a prática efetiva desses princípios não ocorre, evidenciando indícios de futilidade e obstinação terapêutica na prática assistencial. |
Poletto S, Bettinelli LA, Santin JR 23 | 2016 | Qualitativo Entrevista semiestruturada com 11 médicos | O autor evidencia a morte como um fenômeno complexo, com o qual a maioria dos indivíduos não sabe lidar e aceitar, especialmente os profissionais. |
Silva CF da, Silva JV da, Ribeiro M de P 24 | 2019 | Qualitativo Entrevista semiestruturada com 20 cuidadores formais | Pesquisa propõe identificar e compreender possíveis hiatos na formação dos cuidadores formais, levantando as seguintes problemáticas: falta de reflexão sobre a própria prática e sobre a morte. Deficiência do desenvolvimento de habilidades de comunicação durante a formação acadêmica, bem como a dificuldade em aceitar a morte como processo natural da vida (do profissional e do núcleo familiar do paciente enfermo). |
Maingué PM, Sganzerla A, Guirro ÚB do P, Perini CC 25 | 2020 | Quantitativo Questionário aplicado a 45 profissionais de equipes multidisciplinares | Autores constataram a preocupação dos profissionais em respeitar a autonomia, proteger a dignidade e preservar a qualidade de vida de pacientes e familiares por meio da decisão compartilhada. Porém, identificaram tendência de obstinação terapêutica com a justificativa de “cumprir o dever profissional’’, bem como a carência de habilidades de comunicação dos profissionais de saúde com o paciente e familiares. |
Campos VF, Silva JM da, Silva JJ da 26 | 2019 | Qualitativa Entrevistas semiestruturada com 6 profissionais, pacientes e familiares | Autores abordam a importância da comunicação de qualidade no processo dos cuidados paliativos. Refletem sobre o estabelecimento do cerco do silêncio e da Interferência da dimensão afetiva no processo de tomada de decisão, tais como vivências passadas ou contratransferência dos familiares e profissionais de saúde que, por vezes, com a intenção de respeitar as limitações emocionais do paciente, acaba suplantando sua autodeterminação. |
Utida AR da S, Faco A da S, Mousfi GKJ 27 | 2019 | Ensaio reflexivo | Artigo objetiva refletir sobre as circunstâncias envolvidas no período pré-morte, mas também aponta a dificuldade em aceitar a morte como processo natural da vida, bem como a falta de objetividade e linearidade do quadro clínico do paciente com doença incurável avançada. |
Pessini L, Siqueira JE de 28 | 2019 | Ensaio reflexivo | Autores discutem amplamente sobre o excesso de recursos tecnológicos influenciarem na qualidade de vida e morte dos pacientes, que muitas vezes terminam sua vida invadidos em uma unidade de terapia intensiva. Abordam, ainda, as limitações dos serviços de saúde brasileiros, que por vezes inviabilizam um cuidado adequado e pautado no respeito da autonomia e na dignidade. |
Brito PCC, Sobreiro IM, Atzingen DANC von, Silva JV da, Mendonça AR dos A 29 | 2020 | Qualitativo Entrevista semiestruturada com 60 estudantes de Medicina | Estudo realizado em uma universidade para avaliar o entendimento dos acadêmicos de todos os anos do curso de medicina sobre a terminalidade da vida. Destacaram-se no estudo as falhas do ensino médico no que tange à concepção de que cuidar do paciente é sinônimo de eliminar a doença a qualquer custo. O entendimento dos cuidados paliativos como desistência ou procedimentos de segunda linha, e não como tratamentos ativos capazes de aliviar o sofrimento também foram citados pelos autores. |
Gaspar RB, Silva MM da, Zepeda KGM, Silva ÍR 30 | 2019 | Qualitativo Teoria fundamentada nos dados Entrevistas com 10 enfermeiros, 8 médicos e 15 técnicos de enfermagem | Estudo que propõe compreender a forma como os enfermeiros lidam com a autonomia do paciente idoso. O autor destaca a importância da comunicação assertiva entre a equipe, bem como com o paciente e seus familiares - especialmente na comunicação de más notícias. Outro ponto discutido refere-se às limitações dos serviços de saúde no que tange a proporcionar a autonomia do paciente. |
Tavares AP dos S, Santos CG da S, Tzanno-Martins C, Barros Neto J, Silva AMM da, Lotaif L et al 31 | 2020 | Ensaio reflexivo | Autor aborda a importância dos cuidados paliativos na nefrologia, especialmente em pacientes dialíticos, bem como no contexto da pandemia da covid-19. O estudo reforça a importância da boa comunicação e do respeito a autonomia no processo da doença. Levanta também as limitações das clínicas de hemodiálise na estruturação dessa modalidade de cuidado. |
Fonte: elaboração própria (2022).
Da análise dos 24 artigos selecionados, emergiram três categorias temáticas referentes aos aspectos bioéticos: “(não) morrer com dignidade” e “obstinação e futilidade terapêuticas”. Conforme a revisão foi sendo formatada, os principais aspectos foram sendo evidenciados pelos autores e categorizados conforme Tabelas 1 e 2.
Circunstâncias relacionadas ao aspecto bioético “não morrer com dignidade” | Fatores desencadeantes | Estudos de referência | % de estudos que evidenciaram o fator desencadeante |
---|---|---|---|
Resistência à realização da ortotanásia por ser entendida como “falha’’, impotência ou abandono perante a morte. | Dificuldade em aceitar a morte como processo natural da vida, relacionada ao modelo biomédico de formação. | 8, 9, 10, 13, 14, 15, 17, 18, 21, 23, 25, 27, 28, 30 | 58,3% |
*16 dos 24 estudos abordaram essa circunstância (67%). | Não aceitação da finitude pelo núcleo familiar. | 8, 9, 13, 14, 18, 19, 21, 23, 24, 28, 30 | 45,8 % |
Estabelecimento do cerco do silêncio durante o processo de cuidado. | Tentativa dos profissionais de saúde e familiares de respeitar as limitações emocionais do paciente, suplantando sua autodeterminação. | 8, 10, 15, 16, 21, 23, 26 | 29,2% |
*19 dos 24 estudos abordaram essa circunstância (80%). | Deficiência do desenvolvimento de habilidades de comunicação durante a formação acadêmica dos profissionais da saúde. | 9, 11, 13, 15, 18, 19, 20, 23, 24, 26, 28, 29, 30, 31 | 53,8% |
Desrespeito à autonomia do paciente no processo de cuidado. *18 dos 24 estudos abordaram essa circunstância (75%). | Assimetria nas relações entre profissionais da saúde (detentor de conhecimento) e pacientes (portador de enfermidade). | 16, 21, 25, 28 | 16% |
Limitação dos serviços e da família de respeitar a autonomia do paciente. | 8, 9, 21, 28, 30, 31 | 25% | |
Não priorização da autonomia diante dos conflitos entre os demais princípios bioéticos (principalmente justiça e beneficência). | 8, 16, 18, 22, 25, 28, 29 | 29,2% | |
Tomada de decisão sem base na vontade da pessoa doente, desconhecendo seus valores e culturas. | 12, 17, 18, 26 | 16% |
Fonte: elaboração própria (2022).
Circunstâncias relacionadas ao aspecto bioético “obstinação e futilidade terapêuticas’’ | Fatores desencadeantes | Estudos de referência | % de estudos que evidenciaram o fator desencadeante |
---|---|---|---|
Continuidade do tratamento curativo exclusivo, ainda que as condições clínicas do paciente configurem necessidade de cuidados paliativos. *13 dos 21 estudos abordaram essa circunstância (62%). | Desconhecimento das leis/normas deontológicas sobre terminalidade e receio quanto às consequências legais das condutas baseadas nos cuidados paliativos. | 10, 11, 13, 19, 23 | 23,8% |
Entendimento dos cuidados paliativos como desistência ou procedimentos de segunda linha, e não como tratamentos ativos capazes de aliviar o sofrimento humano. | 11, 13, 14, 19, 28, 29, 30 | 33,3% | |
Concepção de que cuidar do paciente é sinônimo de eliminar a doença a qualquer custo, o que gera medicalização da morte. | 13, 14, 16, 19, 24, 25, 27, 28, 29, 30 | 47,7% | |
Dificuldade de estabelecer e confirmar o diagnóstico de doença incurável avançada. *10 dos 21 estudos abordaram essa circunstância (47%). | Falta de objetividade e linearidade do quadro clínico do paciente com doença incurável avançada. | 11, 13, 14, 19, 26, 27, 28 | 33,3% |
Medo e insegurança dos médicos associados à sua responsabilidade deontológica de estabelecer diagnósticos de doença incurável. | 11, 16, 17, 28, 30 | 23,8% | |
Dificuldades do profissional, do paciente e da família no estabelecimento e aceitação das medidas adequadas que podem ser oferecidas no fim de vida. *16 dos 21 estudos abordaram essa circunstância (76%). | Excesso de recursos tecnológicos com aparente finalidade curativa, que valoriza a continuidade da vida do paciente sem considerar sua qualidade. | 9, 10, 11, 13, 14, 19, 22, 24, 25, 26, 28, 29, 30, 31 | 66,7% |
Interferência da dimensão afetiva no processo de tomada de decisão, tais como vivências passadas ou contratransferência. | 8, 12, 16, 18, 19, 26, 29 | 33,3% |
Fonte: elaboração própria (2022).
Foram identificadas práticas envolvidas no processo de cuidado a pacientes com doença incurável avançada, relacionadas aos aspectos bioéticos “(não) morrer com dignidade” e “obstinação e futilidade terapêuticas”, além de possíveis gatilhos desencadeantes constatados pelos autores, os quais podem justificar tais práticas. Para uma melhor visibilidade, os aspectos encontrados no transcorrer dos estudos foram sumarizados e dispostos nos Tabelas 1 e 2, sendo subdivididos em aspectos bioéticos, práticas relacionadas aos aspectos bioéticos, gatilhos identificados pelos autores e os estudos de referência. Por fim, uma análise quantitativa da revisão demonstrou a porcentagem de trabalhos que evidenciaram um mesmo fator desencadeante.
O aspecto “(não) morrer com dignidade” foi amplamente discutido, sendo encontrado em 100% dos artigos analisados. A principal prática a ele relacionada foi o “estabelecimento do cerco do silêncio durante o processo de cuidado”, abordada em 80% dos estudos. A “deficiência do desenvolvimento de habilidades de comunicação durante a formação acadêmica dos profissionais da saúde” foi identificada como gatilho desencadeante dessa prática por 53,8% dos autores.
O aspecto “obstinação e futilidade terapêuticas”, por sua vez, foi discutido em 87,5% dos textos analisados. A “dificuldade do profissional, do paciente e da família no estabelecimento e aceitação das medidas adequadas que podem ser oferecidas no fim de vida” foi a principal prática a ele relacionada, sendo abordada em 76% dos artigos. O principal gatilho para justificar tal prática foi a presença de “excesso de recursos tecnológicos com aparente finalidade curativa, que valoriza a continuidade da vida do paciente sem considerar sua qualidade”, sendo identificado por 66,7% dos autores.
Discussão
A discussão deste estudo foi realizada a partir dos aspectos bioéticos: “(não) morrer com dignidade” e “obstinação e futilidade terapêuticas”. Com base nos resultados encontrados na presente pesquisa, os aspectos, as respectivas circunstâncias do processo de cuidado a eles relacionadas, bem como os fatores desencadeantes identificados pelos autores foram amplamente discutidos. Foram acrescentados, ainda, conceitos e ideias de autores da Bioética para embasar a discussão.
Do aspecto ʺ(não) morrer com dignidadeʺ
O aspecto “(não) morrer com dignidade” foi amplamente citado e discutido nos artigos analisados nesta revisão integrativa. Na declaração da Organización Médica Colegial de España, intitulada “Atención médica al final de la vida: conceptos e definiciones”, “morrer com dignidade” foi conceituado da seguinte forma:
Supõe viver com dignidade até o último momento. Isso requer a consideração dos enfermos como ser humano até o momento da morte, o respeito às suas crenças e aos seus valores, assim como sua participação na tomada de decisões mediante uma relação próxima e sincera com a equipe assistencial. Associa-se o fato de morrer com dignidade à ausência de sofrimento. Também deve-se levar em conta outros fatores humanos, como a presença dos entes queridos e a criação de um entorno amável (32:9).
Essa definição engloba não somente a importância da autonomia do paciente, mas também a integração da equipe e família na divisão do cuidado e no compartilhamento das decisões, a fim de propiciar conforto e dignidade. Nesse contexto, chama a atenção o fato de 58% dos artigos analisados apontarem a prática do “desrespeito à autonomia do paciente no processo de cuidado”. O Código de Ética Médica brasileiro, ao determinar que é vedado ao médico efetuar qualquer procedimento sem o esclarecimento e consentimento prévios do paciente ou responsável, salvo em situações de perigo iminente de vida, prevê o dever da prática desse aspecto bioético 6. O respeito à autodeterminação fundamenta-se, justamente, no princípio da dignidade humana. A morte digna, portanto, depende diretamente do reconhecimento de que, ao indivíduo, cabe autogovernar-se, deliberar e tomar decisões seguindo seu próprio plano de vida e ação, embasado em crenças, aspirações e valores próprios, sempre que possível 33.
No entanto, permitir que o paciente exerça verdadeiramente sua autonomia requer, além do conhecimento teórico, o entendimento profundo dos profissionais da saúde em relação aos papéis que assumirão durante o processo de cuidado. Neste estudo, a “assimetria nas relações entre profissionais da saúde (detentor de conhecimento) e pacientes (portador de enfermidade)” foi apontada em 16% dos artigos como sendo um gatilho para o desrespeito à autonomia do paciente. Ser autônomo, portanto, não é a mesma coisa que ser respeitado como um agente autônomo. Essa prática exige não apenas a não intervenção nas decisões das pessoas, como também a obrigação de sustentar as capacidades do outro para escolher autonomamente, minimizando os medos e outras condições que prejudiquem sua autonomia. O contrário disso consiste em condutas que ignoram, insultam ou degradam a autonomia do outro, negando uma igualdade mínima entre as pessoas 34.
John Stuart Mill, filósofo utilitarista do século 19, argumentou que, por meio do princípio do dano “assegura-se que cada indivíduo tenha o direito de agir como quiser, desde que suas ações não prejudiquem outras pessoas”; “sobre si mesmo, sobre seu próprio corpo e mente, o indivíduo é soberano” 35. O processo de morrer com dignidade, portanto, enfatiza o respeito à dignidade do paciente também no sentido de não o manter artificialmente conectado a aparelhos, com respiração assistida e manutenção artificial de dados vitais, uma vez que já não exista mais possibilidade de cura e processo ativo de morte tenha iniciado 11. Porém, diante do modelo biomédico de cuidado hoje ainda predominante, focado na doença e na cura, os desafios bioéticos do prolongamento da vida e do avanço no suporte tecnológico e terapêutico, bem como o cuidado humanizado no final da vida são questões de primeira grandeza para os serviços de saúde, profissionais da área e para a sociedade atual.
Vale ressaltar que a obra Princípios da ética biomédica muito contribuiu para o crescimento do movimento bioético, com o estabelecimento de quatro princípios fundamentais da Bioética principialista: o princípio da beneficência, da autonomia, da não maleficência e da justiça 34. Os autores reiteram que não existe uma visão hierárquica entre esses princípios. No entanto, um dos fatores desencadeantes para o aspecto “(não) morrer com dignidade” encontrado nesta revisão integrativa para justificar o desrespeito à autonomia do paciente foi, justamente, a “não priorização da autonomia diante dos conflitos entre os demais princípios bioéticos, principalmente justiça e beneficência”.
Leonard M. Martin, em A ética médica diante do paciente terminal, cita o princípio 7/1984, do Código de Ética Médica de 1984, que exemplifica essa questão: “é de exclusiva competência do médico a escolha do tratamento, podendo em benefício do paciente, sempre que julgar necessário, solicitar a colaboração de colegas” (33:3). Em contrapartida, a Resolução 2.217 do CFM de 27/09/2018, relacionada ao Código de Ética mais recente, conta com as seguintes citações: “Art. 22: Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte”; “Art. 24: Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo” (6:25).
Percebe-se, nesse caso, que, apesar de uma evolução dos Códigos de Ética e uma maior valorização da autonomia dos pacientes, ainda se observa certo medicocentrismo autoritário, que um dia já teve suporte no Código de Ética Médica de 1984. Faz-se necessário lembrar que a dignidade possui um aspecto subjetivo, ímpar para cada indivíduo. Assim, é indispensável, na busca de uma morte digna, individualizar o que é morte digna para cada sujeito. Nessa busca, o médico só encontrará a resposta para essa questão quando, sentado ao lado do paciente, em um relacionamento horizontal e fraterno, buscar na biografia do enfermo, com olhar atento e ouvidos treinados para obter respostas e entendimentos.
Do aspecto "obstinação e futilidade terapêuticas"
Esse aspecto foi discutido em 21 dos 24 artigos analisados por esta revisão integrativa. Na declaração da Organización Médica Colegial de España, intitulada “Atención médica al final de la vida: conceptos e definiciones”, a obstinação terapêutica foi definida como a “instauração de medidas não indicadas, desproporcionais ou extraordinárias, com a intenção de evitar a morte em um paciente que deveria receber cuidados paliativos (32:9). Constitui negligência médica e uma infração deontológica”. Futilidade terapêutica, por sua vez, consiste no emprego de tratamentos ou intervenções fúteis em pacientes em fim de vida 36. O conjunto formado por essas duas práticas caracteriza a distanásia, que, de acordo com a definição do dicionário da língua portuguesa, significa “morte lenta, ansiosa e com muito sofrimento”.
A obstinação terapêutica pode ser entendida, portanto, como uma combinação de tratamentos inúteis na tentativa de estender a vida do paciente, mesmo que esse processo seja angustiante e até doloroso 36. O significativo crescimento do poder de intervenção do médico, sem a necessária reflexão sobre o impacto dessa nova realidade na qualidade de vida do paciente, faz com que, muitas vezes, a prioridade consista no tratamento da doença em si, em detrimento do cuidado centrado na pessoa. Assim, a obsessão de manter a vida biológica a qualquer custo conduz à obstinação e futilidade terapêuticas 37.
É notável que os avanços na prática médica também são responsáveis por inúmeros benefícios nesse campo, especialmente no que tange à resolução de condições agudas e na possibilidade de controle e tratamento das doenças crônicas. Os conhecimentos científicos propiciam diariamente o aperfeiçoamento da medicina, especialmente em termos técnicos. Por sua vez, diante do cenário evidenciado nos cuidados em saúde, especialmente no Brasil, é evidente a necessidade do equilíbrio entre o saber científico e a relação médico-paciente, bem como a correção dos conceitos errôneos, tais como o de que “quando a morte acontece, a medicina falha”, uma vez que é nessa perspectiva que ocorrem as deformações do processo do morrer 37.
Essas crenças equivocadas podem ser explicadas pelo fato de que as normas deontológicas para a prática médica brasileira foram desenvolvidas, inicialmente, visando-se aos direitos e obrigações dos médicos 38. Apenas posteriormente passouse a valorizar o bem-estar, a experiência da doença do paciente. Nesse aspecto, a reflexão bioética da prática clínica pode ser compreendida como uma ferramenta essencial, pois nutre permanente expectativa de que a pessoa humana seja privilegiada em sua unidade biopsicossocial e espiritual no processo de cuidado.
Para melhor esclarecimento e discussão do aspecto bioético “Obstinação e futilidade terapêuticas’’, os conceitos da ortotanásia e da eutanásia também são relevantes. O termo “ortotanásia” é amplamente utilizado para falar sobre a morte no seu tempo certo, uma vez que o prefixo grego “orto” significa “correto”. Trata-se de permitir o curso natural da doença e da vida, sem abreviação nem prolongamentos do processo de morrer 39. Diferentemente da distanásia, essa prática é sensível ao processo de humanização da morte e do alívio dos sintomas. Não incorre em prolongamentos abusivos e na aplicação de condutas e tratamentos desproporcionais, que causariam sofrimentos adicionais. Frisa-se que, na prática da ortotanásia, todos os cuidados básicos para com a saúde do enfermo devem ser mantidos, de forma a utilizar todas as ferramentas disponíveis para buscar o alívio do sofrimento físico, psíquico, espiritual e social do paciente e seus familiares 39. Pacheco, em seu livro Ortotanásia no Brasil: o direito à morte natural’, afirma que “a vida da qual deve ser protegida é a digna, isto é: aquela que reúne condições que fazem com que a dor e o sofrimento não se tornem excessivas no viver e, portanto, insuportável, transformando a própria existência em uma tortura lenta e sofrida” (39:655).
O termo “eutanásia”, por sua vez, foi proposto por Francis Bacon em 1623 na sua obra História vitae et mortis. A origem etimológica vem do grego “eu” (bem, bom) e “thanatos” (morte), portanto “boa morte” 40. No entanto, em 1968, a eutanásia foi rejeitada pela Associação Mundial de Medicina, enquanto em 1980, o Vaticano emitiu uma declaração enfatizando a importância da vida humana e afirmando que nenhuma pessoa, independentemente da idade ou condição de saúde, deveria ser morta, incluindo indivíduos que estejam sofrendo de doenças incuráveis ou que estejam em estado terminal 41. Cicely Saunders, na obra Velai comigo (1:48), afirma que “a existência de uma opção legal que proporciona um atalho para a morte implica que se atribui pouco valor à pessoa que está morrendo e à jornada que está fazendo”. Para Saunders, aqueles que acreditam na eutanásia como uma opção de “libertação” deveriam, na verdade, praticar cuidados ativos que ajudem as pessoas em situação de vulnerabilidade, procurando encorajá-las a viver e encontrar a “santidade da vida” que reside em cada indivíduo (1:49).
Nesta revisão integrativa, 62% dos artigos analisados apontaram a “continuidade do tratamento curativo exclusivo, ainda que as condições clínicas do paciente configurem necessidade de cuidados paliativos” como uma prática relacionada à obstinação e futilidade terapêuticas, o que nos remete ao conceito de distanásia previamente citado. Ainda, 23,8% dos artigos apontaram como justificativa para essa prática o “desconhecimento das leis sobre terminalidade e receio quanto às consequências legais das condutas baseadas nos cuidados paliativos”. No entanto, sabe-se que a legislação é bastante clara e protege o profissional de saúde nesse sentido, de maneira a afirmar que nenhum profissional da saúde deve empregar tratamentos desproporcionais. A Resolução 2.217/2018 do CFM determina que “nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados” (6:4). Portanto, apesar de não reduzir a complexidade das decisões que envolvem um diagnóstico de doença incurável avançada, uma regulamentação clara em relação a essa prática reforça a ideia de que ela está pautada na ética e coloca o paciente no foco da assistência.
Como alternativa e oposição à futilidade e obstinação terapêuticas, tem-se a “adequação terapêutica”, que consiste na limitação da terapêutica considerada fútil e na realização de intervenções de saúde que visam promover alívio e conforto ao paciente em fim de vida (7, 36). Nesse contexto, vale citar uma pesquisa americana realizada com 325 doentes portadores de câncer metastático, a qual comparou a preferência entre o tratamento focado no prolongamento da vida e o focado no conforto e alívio da dor 42. Do total de pacientes, 28% escolheram a primeira opção e 72%, a segunda. Destes, 68% tiveram sua decisão inicial respeitada, sendo esta probabilidade maior nos doentes que conversaram sobre fim da vida com médico 42. Esse resultado, além de demonstrar a preferência da maioria dos pacientes pela limitação (leia-se adequação) terapêutica, também reafirma a importância da comunicação e da relação equipe-paciente nos cuidados paliativos.
Nesse sentido, a “concepção de que cuidar do paciente é sinônimo de eliminar a doença a qualquer custo, gerando medicalização da morte”, apontada em 47,7% dos artigos avaliados nesta revisão como fator desencadeante para a prática da obstinação terapêutica, revela que essa é uma problemática amplamente vivenciada no contexto brasileiro. O conhecimento acerca do conceito do paradigma do cuidar (caring) pode ser bastante útil nesse cenário, já que se fundamenta no entendimento de que, a partir do momento que as terapias médicas alcançam seu limite com relação a combater doenças, novos tratamentos tornam-se fúteis. Define-se, então, como obrigação moral a cessação de condutas inúteis e a mudança do foco do cuidado para os esforços que visem minimizar o desconforto e sofrimento do paciente em fim de vida (37:94).
A morte digna, por sua vez, depende do entendimento e aceitação das limitações da medicina curativa, no sentido de encarar a morte de forma realista e serena. Segundo Pessini,
A medicina orientada para o alívio do sofrimento estará mais preocupada com a pessoa doente do que com a doença da pessoa. O objetivo do médico não pode ser curar a doença, este é o objetivo do remédio. O objetivo do médico é cuidar do doente e, quando possível, curar. Cuidar, portanto, não é o prêmio de consolação pela cura não obtida, mas sim parte integral do tratamento do paciente (43:35).
Um dos fatores apontados nesta pesquisa como justificativa para a prática de futilidade terapêutica foi o “entendimento dos cuidados paliativos como desistência ou procedimentos de segunda linha, e não como tratamentos ativos capazes de aliviar o sofrimento humano”. Esse conceito inadequado acerca dos cuidados paliativos parece gerar nos profissionais uma falsa sensação de abandono ou mistanásia, práticas ética e juridicamente não aceitáveis. Evidencia-se, portanto, a deficiência na abordagem desses temas durante a formação acadêmica dos profissionais das ciências da saúde.
Por fim, torna-se relevante compreender que essa concepção possui uma origem histórica, já que, durante o século 19, antes do desenvolvimento da medicina científica - a qual incorporou a farmacologia química, a tecnologia aos cuidados em saúde e, principalmente, colocou como foco do cuidado salvar vida a qualquer custo -, os doentes eram mantidos em casa e apenas aguardavam a morte chegar, sem a realização de terapias fúteis ou esforços desproporcionais 37. No entanto, as novas possibilidades terapêuticas trouxeram uma falsa sensação de garantia da cura, e a morte passou a ser encarada como um fracasso terapêutico. Talvez essa seja uma das razões pelas quais os profissionais de saúde encontram tanta dificuldade em afirmar explicitamente que um paciente está em fase final de vida. A “dificuldade de estabelecer e confirmar o diagnóstico de doença incurável avançada” foi apontada em 42% dos artigos analisados por esta revisão.
É evidente, portanto, que cuidar de pacientes com doenças potencialmente fatais requer que os médicos atendam a todos os aspectos do sofrimento: físico, emocional, social e espiritual. Esse entendimento não se limita apenas ao paciente e seus familiares, mas se estende ao próprio profissional de saúde, que deve se capacitar para lidar com suas responsabilidades deontológicas. Nesse mesmo contexto, a comunicação de más notícias caracteriza outro importante desafio, o qual requer treinamento e estudos constantes, muitas vezes deficitários durante a formação acadêmica 22.
A comunicação adequada caracteriza-se em um método fundamental para o cuidado integral e humanizado, uma vez que, por meio dela, é possível reconhecer e acolher empaticamente as necessidades do paciente, bem como de seus familiares. Trata-se, pois, de um aspecto fundamental para intermediar as relações humanas, promover a sustentabilidade e a consolidação da autonomia diante da compreensão das perspectivas individuais. Traduz-se como um elemento diagnóstico e terapêutico, capaz de identificar demandas assistenciais e promover o cuidado adequado ao paciente, sendo um importante contraponto ao “abandono’’ conceituado neste estudo.
Conclusões
Esta revisão evidenciou os aspectos bioéticos relacionados aos cuidados a pacientes em fim de vida no contexto brasileiro, distribuindo-os em duas categorias temáticas: “(não) morrer com dignidade” e “obstinação e futilidade terapêuticas”. Foram identificadas as circunstâncias do processo de cuidado a pacientes com doença incurável avançada relacionadas a esses aspectos bioéticos. Além disso, foi possível evidenciar fatores desencadeantes constatados pelos autores, os quais podem justificar tais circunstâncias.
Foram encontrados alguns pontos de convergência clara nos artigos analisados. Ficou bastante evidente a importância do compartilhamento das decisões com o paciente, seus familiares e equipe multidisciplinar para a boa prática dos cuidados paliativos. A dificuldade humana em lidar com sentimentos relacionados à morte também foi apontada por diversos autores, o que demonstra ser um desafio a ser enfrentado e uma habilidade a ser desenvolvida no contexto brasileiro Nesse aspecto, fica evidente também a deficiência na abordagem do assunto nas escolas de ciências de saúde. Os profissionais, inseridos no sistema mecanicista de cuidado, muitas vezes passam por uma formação centrada na doença e no modelo biomédico, apresentando despreparo no que se refere ao manejo adequado de pacientes em fim de vida.
Existe, ainda, um conceito errôneo sobre o real papel dos cuidados paliativos no processo de assistência aos pacientes. Há uma ideia de abandono ou desistência, bem como o entendimento da prática dos cuidados paliativos como procedimento de segunda linha, e não como tratamentos ativos capazes de aliviar o sofrimento humano. Conceitos como ortotanásia, eutanásia, sedação paliativa, processos de morte e o morrer ainda parecem ser pouco compreendidos.
Pode-se afirmar que há um evidente e progressivo crescimento da demanda pelos cuidados paliativos como modalidade de cuidado, o qual compreende o paciente como ser autônomo, dono de uma história, uma cultura, convicções e desejos próprios, os quais precisam ser ouvidos atentamente. Além disso, a habilidade de enxergar o paciente e seus familiares como um todo, a fim de atender às necessidades desse núcleo de forma personalizada vem sendo cada vez mais necessária.
Nota-se, por fim, a necessidade da compreensão de que existem situações clínicas nas quais as intervenções terapêuticas que visam à cura podem, por vezes, apenas prolongar um processo penoso de sofrimento e morte. Há, no entanto, um infinito campo para a implementação dos cuidados paliativos, no sentido de manejar os sintomas e promover alívio do sofrimento dos pacientes nas suas mais diversas dimensões.
A Bioética, por sua vez, mostra-se como ferramenta efetiva e essencial no manejo de pacientes em fim de vida. São muitos os aspectos bioéticos envolvidos nesse processo, e a reflexão sobre o curso natural do adoecimento e suas particularidades não deixa dúvidas sobre necessidade de uma abordagem que leve em consideração o paciente como um todo, de forma a respeitar suas escolhas, desejos, seus valores e história de vida. Apesar de a ciência possuir aparatos incríveis para prever prognósticos e descrever protocolos, as biografias e experiências de doença de cada indivíduo são únicas e devem ser amplamente valorizadas.