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Aquichan
Print version ISSN 1657-5997
Aquichan vol.13 no.2 Bogotá May/Aug. 2013
Necessidades assistenciais de mulheres que denunciam na delegacia de polícia a vivência da violência6
Necesidades de asistencia de las mujeres que denuncian en comisaría de policía la violencia vivida
Assistance Needs of Women who Report Incidents of Personal Violence to the Police
Letícia Becker-Vieira1
Stela Maris de Mello-Padoin2
Ivis Emília de Oliveira-Souza3
Cristiane Cardoso de Paula4
Marlene Gomes-Terra5
1 Enfermeira. Doutoranda de Enfermagem. Vice-líder, Universidade Federal de Santa Maria, UFSM, Santa Maria, Brasil.
lebvieira@hotmail.com
2 Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Docente, Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, Brasil.
stelamaris_padoin@hotmail.com
3 Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Titular de Enfermagem Obstétrica, Escola de Enfermagem Anna Nery, Rio de Janeiro, Brasil.
ivis@superig.com.br
4 Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Docente, Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, Brasil.
cris_depaula1@hotmail.com
5 Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Docente, Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria, Brasil.
martesm@terra.com.br
6 Texto inédito elaborado a partir da dissertação: "Perspectivas de mulheres que denunciam o vivido da violência: cuidado de Enfermagem à luz de Schütz", aprovada pelo Programa de Pós-graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Maria -UFSM-Santa Maria (RS), Brasil. Bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Recibido: 8 de noviembre de 2012 Enviado a pares: 20 de enero de 2013 Aceptado por pares: 17 de junio de 2013 Aprobado: 17 de junio de 2013
RESUMO
Devido aos impactos da violência na vida das mulheres, o Estado, o setor saúde e a sociedade civil a entendem como uma ação que anula os direitos humanos e consideram esta problemática importante no campo da pesquisa. Objetivo: apreender as necessidades assistenciais da mulher que denuncia, na delegacia de polícia, o vivido em situação de violência. Método: estudo na abordagem qualitativa pautado no referencial teórico-metodológico da Fenomenologia Social de Alfred Schütz. Desenvolvido em delegacias de um município do sul do Brasil mediante entrevista fenomenológica com 13 mulheres. Resultados: a intencionalidade da mulher para a ação de denunciar expressa as expectativas que remetem às necessidades assistenciais de justiça, de ajuda institucional e de proteção sua e dos filhos. Conclusão: a denúncia está relacionada às demandas institucionais e sociais, bem como sinaliza a importância de vislumbrar esta clientela na sua dimensão humana e social no mundo da vida.
PALAVRAS-CHAVE
Saúde da mulher, violência contra a mulher, determinação de necessidades de cuidados de saúde, enfermagem. (Fonte: DeCS, BIREME).
RESUMEN
Debido al impacto de la violencia en la vida de las mujeres, el Estado, el sector de la salud y la sociedad civil la entienden como una acción que niega los derechos humanos y la consideran una cuestión importante en la investigación. Objetivo: comprender las necesidades de asistencia de la mujer que revela, en una comisaría de policía, la situación de violencia vivida. Método: estudio de enfoque cualitativo guiado por el marco teórico y metodológico de la fenomenología social de Alfred Schütz. Se llevó a cabo en comisarías de policía de una ciudad en el sur de Brasil a través de entrevistas fenomenológicas con 13 mujeres. Resultados: la intención de la mujer para denunciar la violencia que se vive expresa la esperanza que se refiere a las necesidades asistenciales de justicia, de ayuda institucional y de protección para ella y para su hijo(s). Conclusión: la denuncia está relacionada a las demandas institucionales y sociales, lo que indica la importancia de entrever a las afectadas en su dimensión humana y social en el mundo.
PALABRAS CLAVE
Salud de la mujer, violencia contra la mujer, evaluación de necesidades, enfermería. (Fuente: DeCS, BIREME).
ABSTRACT
Violence has a serious impact on women's lives and, for that reason, it is understood by the State, the health sector and civil society as an act that denies human rights and is an important issue in research. Objective: The purpose of this study is to understand the assistance needs of women who report incidents of personal violence to the police. Method: It is a qualitative study guided by the theoretical and methodological framework of the social phenomenology of Alfred Schütz. It was conducted at police stations in a city in southern Brazil through phenomenological interviews with 13 women. Results: Women's intention in denouncing incidents of violence perpetrated against them is an expression of hope with respect to their need for legal aid, institutional assistance and protection for themselves and their children. Conclusion: The complaint is related to institutional and social demands, which indicates the importance of viewing the victims in light of their human and social dimension.
KEYWORDS
Women's health, violence against women, needs assessment, nursing. (Source: DeCS, BIREME).
Introdução
Em âmbito mundial, foi nos anos de 1990 que, oficialmente, o setor de saúde passou a compreender a violência como um dos fatores geradores de adoecimento e no campo da pesquisa é notória a participação acadêmica para dar maior visibilidade ao fenômeno, bem como evidência científica. Tal valorização decorreu do impacto que provoca na vida das pessoas, das famílias e da sociedade, devido às lesões físicas, psíquicas e morais, que implicam demanda de atenção e cuidados dos serviços médico -hospitalares (1).
Já a violência contra as mulheres adquiriu, nas últimas décadas do século XX, um caráter público a partir de reivindicações de movimentos sociais e de mulheres que começaram a denunciar as situações de violência vividas dentro dos lares. Até então possuía um caráter privado, sendo exercida e resolvida entre a mulher e o companheiro, e naturalizada pela sociedade. Ao ganhar visibilidade e comprovar seus impactos sociais, econômicos e de saúde, passaram a ser exigidas, nas agendas governamentais, ações de combate e prevenção da violência em âmbito mundial (2).
Essas ações surgem na forma de movimentos por parte da sociedade civil e do Estado, como convenções, conferências, e em políticas públicas e legislação, que tratam a violência como uma infração legal e uma ação que anula os direitos humanos do segmento feminino. No entanto, muitas mulheres, em seu mundo da vida cotidiana, ainda convivem e se relacionam com companheiros agressivos, ora em uma atitude de naturalização de tais situações imposta culturalmente pela sociedade, ora buscando meios para romper com o ciclo da violência (3).
O Relatório Mundial sobre Violência e Saúde, elaborado pela Organização Mundial de Saúde, refere que a forma mais prevalente de violência contra mulheres é aquela praticada pelo seu parceiro íntimo no espaço privado, ainda que não se restrinja ao espaço doméstico. As taxas de ocorrência dessa violência variam entre 15% e 52% de mulheres que experimentaram algum tipo de violência cometida pelo companheiro (4). Para a Organização Pan-americana de Saúde, estima-se que, entre 20% e 60% das mulheres na América, encontrem-se em situação de violência (5).
A realidade brasileira revela que uma em cada cinco mulheres considera já ter sofrido alguma vez algum tipo de violência por parte de algum homem, conhecido ou desconhecido. Estudo de base populacional mediu a ocorrência de violência contra as mulheres no país. Nessa investigação revelou-se que 43% das mulheres declararam ter sofrido violência praticada por um homem na vida; um terço admitiu ter sofrido alguma forma de violência física; 13%, sexual, e 27%, psicológica (6).
Aponta-se como responsabilidade do Estado apoiar as mulheres em situação de violência, criando condições específicas de atendimento, encaminhando-as para cuidados efetivos. Estes devem partir de uma atenção multidisciplinar e da conjunção de setores da sociedade, a fim de prestar o atendimento integral e humanizado que contemple estratégias voltadas para as suas necessidades sociais e de saúde. Além disso, ao visar a respostas adequadas às demandas femininas, uma importante estratégia consiste em dar voz às mulheres que acessam os serviços sociais e de saúde. Com base em seus conhecimentos, valores e vivências que traduzam as necessidades de atenção e assistência, quando buscam por apoio e suporte (7).
Mulheres que vivenciam situações de violência nas suas variáveis mais graves de agressão são mais propensas a buscar ajuda através de meios formais e informais. Deve-se garantir que os prestadores de serviços profissionais, bem como membros da comunidade em geral estejam preparados e equipados para explorar questões de segurança e proteção às mulheres, buscando promover a sua saúde e bem-estar (8).
Dentre os documentos fundamentais e voltados para o atendimento, tem-se no Brasil um instrumento legal e essencial para proteção da mulher e prevenção da violência, a Lei 11.340 - conhecida como Lei Maria da Penha. Esse dispositivo cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra as mulheres ao definir a violência como uma infração legal, e representa um importante marco de efetivação da política pública para as mulheres (9).
A violência contra as mulheres, concebida como uma questão legal, jurídica, social e de saúde, impõe desafios na sua implementação, e traz à tona a discussão de um problema iminente. Para dar conta destas questões, a Lei prevê medidas, nos seus Art. 9 e 29, "Da assistência à mulher em situação de violência" e "Da equipe de atendimento multidisciplinar", respectivamente. De acordo com o texto legal, a equipe deve "Ser integrada por profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde", e visar, assim, a ações articuladas de proteção e assistência (9).
No entanto, não se pode perder de vista que a trajetória da mulher, na tentativa de ruptura do ciclo da violência, é ambivalente e irregular e não se restringe ao compasso institucional; concretiza-se na construção da cidadania feminina em conformidade com suas necessidades e decisões (10). Desse modo, reconhece-se que as razões que levam as mulheres a denunciarem o companheiro desse relacionamento permeado de violência envolve a preocupação com os filhos e o medo de serem mortas (3).
Nessa perspectiva, a temática implica reconhecer que assumir uma atitude de enfrentamento da violência exige das mulheres não só coragem como também a renúncia a um projeto de vida em família - na conjugalidade e no modelo idealizado de mulher. Ao mesmo tempo, implica a necessidade de buscar a garantia de sobrevivência e o apoio institucional como policial, jurídico, assistencial e de saúde, os quais muitas das vezes podem representar a busca de proteção de sua própria vida (11).
Diante da intencionalidade da ação (12) de denunciar a violência, é de extrema importância a atenção à saúde dessas mulheres, de modo que a ação profissional atenda as demandas clínicas e sociais, a partir das necessidades assistenciais que emergem do mundo da vida dessa clientela (3). Essas necessidades assumem importância social, visto que trazem à tona a questão da violência no campo das relações humanas (13).
Portanto, como integrante da equipe multiprofissional, cabe ao enfermeiro e sua equipe desenvolver o processo de cuidado, desde o diagnóstico de enfermagem advindo da situação de violência até o acompanhamento das demandas e do desfecho da denúncia na vida da mulher e sua família. Nesse sentido, as inquietações quanto ao tema violência contra as mulheres são frutos de vivências e discussões junto a profissionais de saúde de um hospital universitário do sul do Brasil, com vistas a construir coletivamente uma rede assistencial que permita às mulheres uma assistência qualificada (14).
Desse modo, a questão orientadora desta investigação foi: Quais as necessidades assistenciais de mulheres que denunciam a situação de violência? O estudo objetivou, em uma perspectiva sociofenomenológica, apreender as necessidades assistenciais da mulher que denuncia, na delegacia de polícia, o vivido em situação de violência.
Método
O estudo constituiu-se de uma investigação na abordagem qualitativa, fundamentada na Fenomenologia Social de Alfred Schütz. O campo de pensamento de Schütz é marcado por uma sociologia da ação, sustentada na compreensão da vida social e do conjunto de ações sociais. Analisaram-se fatores fundamentais determinantes do comportamento do indivíduo no mundo da vida, de modo que sua ação é vista como um processo fundamentado em funções de motivação, razões e objetivos, guiados por antecipações na forma de planejamento e projeções (13).
Os critérios de inclusão foram mulheres na faixa etária de 18 a 59 anos, que realizaram o registro da violência na Delegacia de Polícia para a Mulher (DPPM) e Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento (DPPA) de um município do interior do Rio Grande do Sul (RS), Brasil. As entrevistas foram desenvolvidas nessas instituições em sala que possibilitasse privacidade, disponibilizada pelo serviço. A pesquisadora abordou as mulheres na sala de espera do atendimento, onde realizou o convite para participar da pesquisa após a denúncia da violência. A seleção das mulheres deu-se de forma aleatória, mediante a aceitação.
A produção dos dados aconteceu entre março e abril de 2010. As entrevistas transcorreram com tempo médio de 22 minutos e tiveram por diretriz um roteiro que contemplava a situação biográfica da entrevistada e a questão orientadora: O que você tem em vista quando realiza a denúncia da violência?
A entrevista fenomenológica oportunizou o relato de suas vivências no que se refere ao tema da questão e desvelou a intencionalidade de sua ação. Para Schütz, a pessoa explicita seu "motivo para", sua intencionalidade, por meio da comunicação (13). Essa intencionalidade envolve a expressão de significados que indicam perspectivas, necessidades, demandas e projetos de vida. Assim, a Fenomenologia Social de Alfred Schütz propõe que, em toda ação que o sujeito estabelece, existe um sentido intencional que busca atender suas expectativas, suas necessidades (15). Contudo, esse sentido e significado somente o próprio indivíduo pode desvelar (13).
As mulheres do estudo, ao denunciarem o vivido da violência, têm expectativas que remetem às suas necessidades assistenciais, que estão relacionadas com seu mundo da vida. A captação destas requer admitir um conceito de necessidades que transcenda o cunho clínico ou biológico e que articule as demandas sociais.
Assim, saber escutar o que o sujeito tem a dizer, compreender e significar as necessidades a partir do seu vivido é fundamental nas práticas de saúde (16).
A etapa de campo foi concluída diante da suficiência de significados, comuns na intencionalidade da ação das mulheres ou, ainda, a suficiência do conteúdo dos "motivos para", expresso nas falas das entrevistadas, em convergência ao objetivo proposto no estudo (17).
Para a análise foram desenvolvidos os seguintes passos (15, 18): escuta do conteúdo gravado nas entrevistas; transcrição; leitura do texto na íntegra; agrupamento das falas por afinidade (ideias comuns); captação dos "motivos para" que respondiam à pergunta da pesquisa (categorias concretas do vivido); releitura do texto na íntegra, a fim de identificação das relações das categorias entre si, chegando ao típico da ação. A interpretação dos significados expressos nas categorias concretas do vivido fundamentou-se nas concepções teóricas da Fenomenologia Social de Alfred Schütz (13).
O estudo seguiu os princípios éticos determinados na Resolução 196/1996 do Conselho Nacional de Saúde e foi aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Maria (RS), sob o número do processo 23081.015518/2009-66. Para preservar o anonimato das participantes, foram utilizados nomes fictícios de flores escolhidos pelas próprias mulheres.
Resultados
Foram entrevistadas 13 mulheres entre 18 e 49 anos. O número de filhos variou de um a oito, com uma média de 2,38 filhos. Quanto à situação civil, quatro declararam estar casadas e nove moravam com o companheiro. Dez referiram trabalhar, duas não trabalhar, e uma identificou-se como sendo dona de casa. A escolaridade apontou oito mulheres com ensino médio incompleto, uma com o ensino médio completo, três com ensino superior incompleto, e outra com ensino superior completo. Na situação biográfica, com relação à violência, relataram ter realizado entre uma a cinco denúncias do companheiro na delegacia de polícia respaldadas na Lei 11.340/2006 (9).
A análise das falas das entrevistadas, representadas neste espaço pelo discurso de algumas mulheres, tendo por referência o significado do "motivo para" da ação, permitiu apreender suas intencionalidades e apontar necessidades assistenciais relacionadas a seguir.
Justiça e proteção legal
Eu espero que haja justiça, pra eu pelo menos ter um pouco de paz! Por isso que eu estou aqui! Eu não vou deixar impune, eu quero tocar pra frente! Eu quero que a justiça seja feita! [...] Existem leis, agora tem a Maria da Penha! Eu peço que todas as mulheres que sejam agredidas, até verbalmente, que denunciem! Que sejam fortes, que elas não vão ser desamparadas! Como eu não tô sendo agora! (Girassol)
Eu espero que tenha uma providência, ou que eu saia de casa, ou arrumem um jeito dele sair! Assim, com nós dois dentro de casa, não dá mais! Eu espero que tenha providência! (Violeta)
Eu espero que alguma coisa seja feita dessa vez! Ele tem que pagar! Eu espero que dessa vez prendam ele, que ele pare, que ele leve assim, nem que seja um susto para aprender que não é assim as coisas! (Rosa)
A intencionalidade das mulheres ao denunciar a violência vivida focaliza-se em sua necessidade de justiça e de proteção com o cumprimento da lei. Apreende-se sua expectativa com relação ao companheiro e que este seja punido e/ou preso pelos seus atos agressivos. No que diz respeito à lei, expressam a relevância de cumprimento desta e, por vezes, exprimem incertezas quanto seu desfecho.
Ajuda institucional na resolutividade da sua demanda
Espero que dessa vez eu não ouça a mesma coisa que eu ouvi aqui, que eu tô doente! Eu tô doente, eu sei que estou! Mas eu espero não ouvir isso hoje! Eu espero hoje sair daqui com ao menos: nós vamos te ajudar a viver melhor! (Gérbera).
Vou pedir pra falar com o juiz, com o advogado; vou pedir pra falar com o mundo e ninguém faz nada? Já falei com o promotor! Já falei na Delegacia da Mulher! Eu não acredito então nessa Maria da Penha [...] Não acontece nada! (Rosa).
Eu já o denunciei uma vez, mas eu não sei o que deu, porque o processo nem chegou lá em casa, e, daí, assim eu parei de denunciar, porque ele [companheiro] sabia que não ia da em nada, né! (Violeta).
Eu queria muito ajuda! Que acontecesse que a justiça, o juiz desse um afastamento dele de casa, isso ia melhorar muito a nossa [a dos filhos também] vida, ia facilitar tudo! (Girassol).
As mulheres do estudo que realizam a denúncia da violência expressam a expectativa de que os profissionais que prestam atendimento ajudem nas demandas por elas trazidas, com vistas a haver resolutividade do processo de afastamento do companheiro de suas vidas.
Proteção dos filhos
Ele vivia dizendo isso, que ia se matar, se eu não quisesse viver com ele, só que eu não sei até que ponto ali, numa hora pra outra, ele podia se virar contra mim, e se ele tirasse a minha vida, eu não ia poder criar o meu filho! Eu não ia poder ver meu filho crescer! [...] Então eu fugi porque eu queria ver meu filho crescer; se ele quisesse tirar a vida dele, problema é dele, eu quero viver pra criar o meu filho! Então, o que me motivou na verdade foi isso. Foi meu filho. (Crisântemo).
Porque ele ameaçou a minha filha, de pegar ela! Eu não me preocupo comigo, eu me preocupo com ela. Eu me preocupo que ele faça algo pra ela! Pra mim não, porque, ele me matando, só vai acabar tudo! [...] Me preocupo com ela! (Onze-horas).
Isso eu digo pra eles [filhos], o que o pai de vocês faz comigo eu não quero que vocês façam isso com as esposas! Não quero isso pras minhas noras! (Tulipa).
As falas das mulheres revelam que o projeto intencional de realizar a denúncia da violência vivida está associado à necessidade de proteger, criar e cuidar de seus filhos livre da violência. Exprimem a preocupação com as repercussões que essa situação possa gerar na vida e saúde dos filhos, bem como a preocupação com a reprodução da violência.
Discussão
A análise permitiu apreender que a mulher em situação de violência, ao realizar a denúncia do companheiro em uma delegacia de polícia, concebe como necessidades assistenciais a justiça e a proteção legal, a ajuda institucional e a proteção dos filhos. Tais expectativas estão relacionadas às demandas institucionais e sociais, e sinalizam a importância de vislumbrar essa clientela na sua dimensão humana e social no mundo da vida.
As falas das mulheres que realizam a ação de denunciar confluíram para a construção do "motivo para": necessidade de justiça e de proteção legal. Ao se referirem às expectativas com relação à denúncia, expressam o desejo de que ela seja conduzida até o final, apesar de, muitas vezes, serem questionadas por pessoas da sua rede sobre o prosseguimento, se terão capacidade emocional e condições financeiras de seguir com o processo.
Tais expectativas da mulher surgem do seu vivido no cotidiano e do seu interesse, ou seja, aquilo que está à mão do sujeito social, sendo este eminentemente prático. Trata-se, portanto, de uma instância prioritária dentro de um sistema maior de interesses inter-relacionados, que determinará o que será pensado e projetado, e que levará a uma ação. Nessa situação, e de acordo com Schütz, este sistema não é homogêneo, pois pode mudar de acordo com o papel desempenhado pelo sujeito em diferentes âmbitos do mundo social. Também não é constante, porque pode adquirir maior ou menor prioridade entre o agora e o agora que acabou de passar (13).
A intenção das mulheres ao denunciarem envolve a expectativa e aponta para a necessidade de proteção por meio da justiça legal. Elas expressam a relevância de acreditar na justiça, esperam providências com relação à sua situação. Reconhecem a Lei Maria da Penha (7) como um instrumento mediador de justiça e esperam do serviço policial e judiciário a proteção e a ajuda de que necessitam. Entretanto, apontam as incertezas e dúvidas no que diz respeito aos desfechos legais e desafios a serem superados no acolhimento institucional.
Segundo Schütz, a dúvida se refere a uma certeza empírica já vivenciada, que se torna questionável (13). Nesse sentido, as mulheres questionam a efetivação da lei por já terem vivenciado situações em que nada foi feito. Pode acontecer por diferentes interpretações da legislação ou por desqualificação da violência pela instituição policial ou jurídica (7, 19).
As mulheres relatam, ainda, que a medida protetiva não foi respeitada pelo companheiro e que as situações de violência após a denúncia se tornaram mais frequentes. Esse fato leva muitas mulheres a realizarem a denúncia várias vezes, o que evidencia a falta de resolutividade nas demandas assistenciais delas. Ao analisar o projeto almejado pela mulher ao realizar a denúncia, vislumbram-se as expectativas com relação ao cumprimento da lei de forma efetiva. Na corrente de pensamento de Schütz, o intercâmbio de pontos de vista e o acordo prático dos sistemas de escolhas constituem a tese geral da reciprocidade de perspectivas (13). Desse modo, tem-se a tese geral que pressupõe objetivos em comum, a intersubjetividade e a comunicação entre o profissional que atende e a mulher que denuncia situações de violência.
A reciprocidade de perspectivas compreende a apreensão de objetos e seus aspectos conhecidos pela mulher e potencialmente conhecidos pelo profissional, como um conhecimento de todos (13). Nessa linha de pensamento, a mulher em situação de violência toma certa atitude e espera que o profissional envolvido no apoio institucional responda de uma determinada forma. Ela age na expectativa de que o outro reaja motivado por causa da sua ação. A partir da interação, pode-se alcançar o projeto intencional e intersubjetivo para resolutividade das necessidades assistenciais das mulheres e que estão relacionadas com seu mundo da vida.
Ao confluir para a necessidade de ajuda institucional e resolutividade da sua demanda, demonstra-se que as mulheres acabam estabelecendo graus de familiaridade e de anonimato (13). Nessa investigação, o afastamento do companheiro significa uma relação de anonimato. Quanto mais anônima for a relação, mais afastada estará a unicidade e a individualidade. Buscam no acolhimento institucional relações de familiaridade para enfrentamento da violência. A relação de familiaridade é vivida sob a forma do "nós" e permite a apreensão do outro como único em sua individualidade (3, 13).
Entretanto, ao se reportarem em especial à delegacia, apontam a incerteza quanto à resolutividade da lei e da proteção. O que remete para a falta de intercâmbio de pontos de vista entre as mulheres e os profissionais, o déficit de comunicação entre os envolvidos e os desencontros assistenciais no apoio institucional. Na maioria das vezes, são priorizadas as necessidades preestabelecidas pelo olhar profissional (7, 14, 19).
Assim, são divergentes aos princípios de humanização, integralidade, cidadania e cuidado, inscritos nas políticas públicas sociais e de saúde brasileiras. Dessa forma, faz-se necessário reconhecer a situação de violência e abordá-la com responsabilidade, como uma das maneiras de assegurar à mulher o direito de ser cuidada, de viver sem violência, de garantir sua cidadania e preservar sua saúde (20).
As necessidades assistenciais expressas pelas mulheres do estudo em tela contemplam as ações de combate, assistência e garantia dos direitos das mulheres conforme determinado na Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (21). No que se refere ao combate à violência, as mulheres expressaram a expectativa com relação ao estabelecimento e cumprimento de normas penais que garantam a punição e a responsabilização dos agressores/autores. No que tange à assistência, exprimem sua expectativa em receber um atendimento humanizado e qualificado. No que diz respeito aos direitos humanos das mulheres, estar protegida e proteger os filhos.
Ao denunciar o vivido da violência, o "motivo para" das mulheres diz respeito à intenção de proteção dos filhos. O projeto intencional da denúncia está associado à necessidade de proteger, criar e cuidar de seus filhos livre da violência por eles presenciada.
A experiência do mundo social acontece em um mundo cotidiano, onde as nossas ações e intenções indicam um mundo subjetivo. Esse mundo cotidiano representa o mundo de todos nós, espaço que nossas comunicações e relacionamentos ocorrem. Diz respeito a tudo o que está a minha volta, onde estão os meus contemporâneos, antecessores e sucessores (13).
Os contemporâneos dividem a região do espaço e tempo. Neste estudo, o contemporâneo das mulheres são seus companheiros, com os quais estabelecem uma relação face a face, de orientação para tudo o que envolve o seu mundo da vida social. Os antecessores são aqueles cujas ações podem ter influência sobre a vida das mulheres, pois já vivenciou no passado, mas sobre as quais elas não podem atuar, como a situação da violência perpetuada o seu mundo da vida social.
Nesse mundo há também aqueles que as mulheres podem exercer certa influência, os sucessores. Os filhos são seus sucessores e o fato de vivenciarem a violência entre a mãe e o pai ou padrasto as leva a denunciar. E elas expressam que isso foi determinante na sua decisão de afastar-se do companheiro, por meio do registro de ocorrência.
Desse modo, pela ação da denúncia, exercem a influência sobre seus filhos no sentido de mantê-los longe de um relacionamento imerso em discussões, agressões e humilhações. Desejam que estes tenham boa índole e que não reproduzam essa violência com suas futuras namoradas, e, no caso das filhas, que estas não se permitam e não aceitem relacionar-se com homens com perfil agressor.
Conclusão
O estudo desvelou uma faceta da intencionalidade das mulheres que denunciam o vivido da violência em uma delegacia, qual seja: suas necessidades assistenciais no contexto da violência. Conclui-se que, para apreender os motivos que levam à denúncia, requer compreender as relações que elas estabelecem com o companheiro, os filhos, os familiares, ou com os profissionais que atendem esta clientela.
Ao considerar o mundo social desta mulher, destaca-se a possibilidade de reconstrução dos sentidos de sua vida livre de agressões por meio da justiça, da proteção legal e da ajuda institucional. Essa ressignificação passa a ter relevância no seu viver e relacionar-se ao incluir aí a busca pela satisfação de suas necessidades e o rompimento com um vivido em violência. Viver/ conviver em uma relação livre de violência é um direito universal. Para concretizar esse direito, é fundamental ter como ponto de partida a mulher, seu entendimento de viver sem violência e suas necessidades assistenciais.
A percepção social de que a violência contra as mulheres é um problema da maior gravidade aponta para o reconhecimento de sua existência e das sérias consequências que a atingem - o envolvimento dos filhos na relação agressiva. Portanto, enfrentar o fenômeno da violência não se restringe à assistência apenas à mulher, mas também aos filhos que necessitam de proteção e assistência, mediada por uma atenção diferenciada desde o acolhimento institucional até os desdobramentos da ação profissional, seja esta policial, judicial ou de saúde.
Ao considerar os serviços de saúde como parte de uma rede de atendimento às mulheres em situação de violência e os profissionais como corresponsáveis nesse processo, vislumbra-se que a aproximação do contexto vivencial do outro possibilita promover espaços de diálogo, de escuta diante de relações mais familiares e menos anônimas, em consonância com suas necessidades assistenciais.
Enfatiza-se o reconhecimento da ação profissional junto à mulher em situação de violência, em especial a ação do enfermeiro como um processo interativo, e que este precisa ser vivido e compartilhado, possuir um significado para quem o realiza (enfermeiro), e para aquela que o recebe (mulher). Deve-se considerar que a interação transcende a adscrição a um serviço, significa estabelecer e fortalecer uma relação de familiaridade em um encontro subjetivo que almeje a resolutividade de suas necessidades e demandas; além disso, que permita estratégias de empoderamento das mulheres, promova o acesso à justiça e o resgate como sujeito de direitos.
Ressalta-se também a urgência de estudos que focalizem as ações assistenciais dos profissionais que atendem essa clientela, no intuito de desenvolver um cuidado voltado às necessidades das mulheres. Recomenda-se a ampliação de estudos na temática com outras abordagens metodológicas.
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