Introdução
Estomia é uma abertura criada artificialmente no intuito de desviar o trajeto habitual de eliminação ou alimentação. As estomias de eliminação a partir do trato gastrointestinal são nomeadas a partir do segmento intestinal afetado: denominam-se ileostomias, quando o estoma é realizado na altura do intestino delgado, e colostomias, quando são confeccionadas no intestino grosso. No trato urinário, o desvio do fluxo de urina é intitulado urostomia. O procedimento pode ser classificado como temporário ou definitivo de acordo com a possibilidade de reestabelecimento do trajeto habitual das eliminações (1). Para fins de padronização, neste estudo, será adotado o termo estomia por ser utilizado pela Sociedade Brasileira de Estomaterapia (Sobest) e por ser o mais apropriado à língua portuguesa, conforme recomendação da Academia Brasileira de Letras.
Segundo a United Ostomy Associations of America (UOAA), estima-se que, em 2013, existam aproximadamente 700 mil estomizados nos Estados Unidos da América. No Brasil, conforme a Associação Brasileira de Ostomizado (Abraso), há 33.864 pessoas estomizadas; destas, 4.176 se encontram no Nordeste, e 450, no Rio Grande do Norte (2, 3).
A realização da cirurgia de derivação acontece pelos mais diversos fatores, tais como: traumas, anomalias congênitas, neoplasias e doenças inflamatórias. Ressalta-se a ocorrência de câncer de cólon e reto como uma das principais indicações de realização da estomia (4).
Considerando essa neoplasia como importante causa de estabelecimento de estomias, estimam-se 17.620 novos casos da neoplasia de cólon e reto em mulheres e 16.660 casos em homens para 2016. Avalia-se, segundo estimativas mundiais do ano de 2012, que a neoplasia é a terceira mais comum em pessoas do sexo masculino, incidindo em 746 mil homens; no sexo feminino, por sua vez, é a segunda, determinando 614 mil novos casos (5).
A construção da estomia acarreta diversas consequências, tanto físicas quanto psicológicas, para o indivíduo; dentre elas, destacam-se fadiga, náuseas e vômitos, dor, constipação, diarreia, impacto financeiro, alterações na imagem corporal, função sexual, entre outras (6).
A imagem corporal pode ser entendida como uma imagem tridimensional, que envolve aspectos psicológicos, sociológicos e fisiológicos que cada indivíduo forma de si mesmo. Corroborando com isso, a North American Nursing Diagnosis Association (NANDA) define o diagnóstico de enfermagem (DE) como “distúrbio na imagem corporal”, uma “confusão na imagem mental do eu físico de uma pessoa”. Para determinar um DE, é imprescindível o reconhecimento dos dados objetivos e subjetivos, adquiridos durante a coleta de dados do processo de enfermagem, os quais compõem as características definidoras do diagnóstico em questão (7, 8, 9).
As características definidoras são elementos essenciais para a inferência diagnóstica; trata-se de um conjunto de sinais e sintomas inerentes ao indivíduo que permite observar a presença ou a ausência de um DE (10).
Nesse sentido, as alterações na imagem corporal causadas pela estomia, como o desconforto com a aparência física, a falta de controle sobre o barulho ocasionado pelos movimentos intestinais e a eliminação dos gases, os vazamentos de conteúdo fecal, a rejeição e a vergonha da nova imagem culminam em isolamento social, alterações na sexualidade e mudanças no estilo de vida (11).
A variável “imagem corporal” é abordada em diversos estudos que tratam da qualidade de vida das pessoas estomizadas, a fim de avaliar o impacto desse aspecto na adaptação a essa nova conformação física e fisiológica (11, 12).
Isso posto, objetivou-se, neste estudo, identificar, na literatura científica, as características definidoras do diagnóstico de enfermagem “distúrbio na imagem corporal” em estudos desenvolvidos com pessoas estomizadas.
Metodologia
Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, na modalidade revisão integrativa da literatura, descritiva e com abordagem qualitativa. Esse tipo de revisão sintetiza os estudos disponíveis sobre determinado tema e conduz a prática baseando-se em conhecimento científico (13).
Para a construção deste estudo, utilizou-se as seguintes etapas: identificação do tema e elaboração da questão de pesquisa, estabelecimento de critérios para inclusão e exclusão de estudos, definição dos dados a serem obtidos a partir dos estudos selecionados, categorização dos estudos, avaliação dos estudos escolhidos, interpretação dos resultados e exibição da síntese das informações (14).
Para o desenvolvimento desta revisão, formulou-se a seguinte questão norteadora: quais as características definidoras relacionadas ao diagnóstico de enfermagem “distúrbio na imagem corporal” em pessoas com estomias? Iniciou-se a etapa de estratégia de busca no mês de novembro de 2015, nas bases de dados Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), Medical Literature Analysis and Retrieval System Online (MEDLINE), Índice Bibliográfico Espanhol de Ciências da Saúde (IBECS), PubMed Central, Cumulative Index to Nursing and Allied Health Literature (CINAHL), Web Of Science e SciVerse Scopus (SCOPUS ).
Durante o levantamento das publicações, foram utilizados descritores não controlados do vocabulário Medical Subject Headings (MeSH), na língua inglesa: “ostomy” e “body image”. A opção por descritores não controlados ocorreu em virtude da quantidade limitada de publicações referentes ao objetivo deste estudo. O cruzamento desses descritores ocorreu por meio do operador booleano AND, sendo esta uma combinação restritiva. Não houve delimitação temporal, de ano ou de idioma, uma vez que se buscou encontrar o maior número de evidências que pudessem expressar a presença das características definidoras nesse público.
Foram incluídos na pesquisa os estudos que obedeceram aos seguintes critérios: artigos disponíveis na íntegra e gratuitamente nas bases de dados supracitadas e os que apresentassem nos seus resultados pelo menos uma característica definidora do DE estudado. Foram excluídos os gêneros textuais editorial, carta ao editor e revisão de literatura, além de estudos de natureza acadêmica, como monografias, dissertações e teses.
Por fim, após a leitura na íntegra dos artigos selecionados na etapa anterior, foram definidos os artigos que conformaram a amostra final desta revisão integrativa da literatura.
A análise dos estudos ocorreu a partir da taxonomia NANDA-I e buscou-se identificar as características definidoras do diagnóstico em questão. Para análise do nível de evidência, utilizou-se como parâmetro o Instituto Joanna Briggs, que classifica os estudos em quatro níveis de evidência científica: “nível I ─ evidência obtida a partir de revisão sistemática que continha apenas ensaios clínicos controlados randomizados; nível II ─ evidência obtida a partir de, pelo menos, um ensaio clínico controlado randomizado; nível III.1 ─ evidência obtida a partir de ensaios clínicos controlados bem delineados, sem randomização; nível III.2 ─ evidência obtida a partir de estudos de coorte bem delineados ou caso-controle, estudos analíticos, preferencialmente de mais de um centro ou grupo de pesquisa; nível III.3 ─ evidência obtida a partir de séries temporais múltiplas, com ou sem intervenção e resultados dramáticos em experimentos não controlados; nível IV ─ parecer de autoridades respeitadas, baseadas em critérios clínicos e experiências, estudos descritivos ou relatórios de comitês de especialistas (15).
A Figura 1 descreve quantitativamente os passos realizados nas bases de dados para obtenção dos 43 estudos que compõem a amostra final desta revisão.
Resultados
A caracterização da amostra evidencia que a maioria dos estudos possuía abordagem qualitativa (58,1 %), realizados em território internacional (74,4 %), publicados há mais de cinco anos (44,1 %) e com nível de evidência IV (76,7 %).
Sobre as características definidoras (CD), 14 do total de 37 foram identificadas nos estudos. Mudança real na estrutura (100 %), relatos de percepções que refletem uma visão alterada na aparência do próprio corpo (88,4 %) e sentimentos negativos em relação ao corpo (79,1 %) foram as mais reconhecidas na literatura. A Tabela 1 descreve a distribuição dos estudos conforme identificação das CD.
Discussão
Verificou-se, nesta pesquisa, a predominância dos estudos descritivos, que têm como propósito observar, descrever e documentar determinada situação. Sobre o nível de evidência, o IV, caracterizado por pareceres de autoridades respeitadas, baseados em critérios clínicos e experiências, estudos descritivos ou relatórios de comitês de especialistas, mostrou-se maioria e evidencia a necessidade de estudos que possam basear a prática clínica, em especial relacionada a pessoas com estomias, visto que há perspectiva de aumento da incidência desse procedimento associado ao crescimento da incidência de câncer (14, 57, 58).
Quanto ao local de realização do estudo, a maior parte dos estudos que abordam a temática em questão é internacional, com destaque para os Estados Unidos da América. Apenas um estudo nacional compôs a amostra final deste estudo; notoriamente, esse fato deve-se tanto à quantidade superior de bases internacionais em comparação às nacionais quanto à utilização de descritores em inglês para realização deste estudo.
No que se refere ao DE “distúrbio na imagem corporal”, sabe-se que este é dividido em CD objetivas e subjetivas, como exposto na Tabela 1. A objetividade refere-se às condições de vida da pessoa; em contrapartida, a subjetividade está relacionada às avaliações que a pessoa faz da sua vida (59).
Mudança real na estrutura
Essa característica definidora reporta-se ao procedimento cirúrgico para realização da estomia e, por esse motivo, foi identificada em todos os estudos. Refere-se à alteração física e fisiológica do trajeto percorrido pelo conteúdo urinário e/ou intestinal. Resulta em um orifício abdominal que substitui as vias de eliminação de excretas, o que modifica interna e externamente a estrutura corporal (1).
Comportamentos de monitorar o próprio corpo
O distúrbio na imagem corporal não é uma alteração somente física, pois se caracteriza como o indivíduo se enxerga, se sente e se comporta após a mudança. Essa alteração interfere diretamente em um aspecto psicológico de suma importância: a autoestima, que se apresenta como uma avaliação global do indivíduo e evidencia-se como uma expressão de aprovação ou desaprovação de si mesmo (42).
Nesse sentido, a monitoração constante do corpo constitui uma ação nítida nas falas das pessoas com estomias e é motivada pela preocupação com a possibilidade de vazamentos do conteúdo intestinal, alteração na imagem corporal e outras preocupações associadas a esse procedimento, como as alterações nos padrões de atividade sexual, a qual demanda cuidados especiais com a bolsa coletora para mantê-la limpa e segura (15, 60, 61, 62).
Soma-se a isso a forte influência da mídia na idealização do corpo “perfeito”. Monitorar, cuidar, modificar e adequar o formato corporal ao preconizado como modelo são atitudes frequentes na população contemporânea. Caso contrário, o distúrbio na imagem corporal torna-se evidente, a autoestima diminui, a marginalização e o preconceito, por parte dos que se consideram dentro dos “padrões”, afastam e constrangem os que estão fora deles (62, 63, 64).
Assim, com os estomizados, não poderia ser diferente, visto que a mudança real na estrutura ganha destaque na nova conformação corporal, a qual está longe de ser o que a mídia propaga como belo, levando a pessoa com estomia ao comportamento de monitoramento constante da sua condição física distinta (62, 65).
Sentimentos negativos com relação ao corpo
Sobre as principais questões que traspassam essa característica, destacam-se as dificuldades de ajustamento físico, psicológico e social encarados por algumas pessoas com estomias. A literatura demonstra uma forte relação do distúrbio na imagem corporal com o tempo de estomia, de modo que essa perturbação é mais acentuada nos pacientes que realizaram a estomia imediatamente após a cirurgia de ressecção do câncer colorretal, em comparação com os que a fizeram mais tardiamente. Além disso, há poucas evidências de ajustamento do distúrbio na imagem corporal, visto que a insatisfação aumentou ao longo do tempo (66).
Por conseguinte, observou-se, nos resultados deste estudo, uma presença significativa do distúrbio na imagem corporal em pessoas com estomia, especialmente no sexo feminino. Um estudo sobre estresse psicológico e enfrentamento em mulheres com câncer demonstra influência das maneiras pessoais das mulheres de avaliar, enfrentar e superar situações de estresse e adoecimento, de modo que percepções mais positivas, otimistas, flexíveis e diretas de lidar com os momentos estressantes favoreceram adaptações mais saudáveis e a minimização do impacto do estresse durante o processo de adequação. Ademais, para as mulheres com estomia, o apoio do companheiro é fundamental para um processo adaptativo eficaz, o que demonstra a necessidade de aceitação do outro para melhoria do bem-estar físico e psicológico (67).
Esconder intencionalmente parte do corpo
As alterações no estilo de vestir-se constituem uma etapa fundamental para o processo adaptativo e são necessárias para manter a bolsa coletora da ostomia segura, firme e escondida. Para isso, independentemente do padrão corporal, a maioria dos estomizados opta por roupas largas e folgadas (60, 62).
O estilo de roupas, principalmente as femininas, possui forte relação com o momento histórico vivido pelas diferentes culturas e sociedades. O século XX caracteriza-se pela “reabilitação do corpo”, que se torna pilar da identidade social, transformando o autoconceito da sociedade em geral (68). A valorização social do corpo e os novos padrões de estética corporal influenciam a vestimenta e estabelecem uma nova relação com o corpo. O que antes escondia e apertava, agora realça e dá mais visibilidade. Nesse sentido, as mulheres estomizadas vão de encontro a esse movimento ao retrocederem à época da repressão do corpo, escondendo-o e ofuscando sua própria feminilidade (69).
Preocupação com a mudança
Inúmeras são as razões que preocupam o estomizados. Destacam-se: a necessidade de manter a bolsa sempre limpa, protegida e escondida; o odor e os ruídos desagradáveis que provêm dos vazamentos, da incontinência, principalmente de flatos e alteração do fluxo das excretas; as modificações na dieta, no estilo de vestir-se e a busca incessante por alternativas que auxiliem o processo adaptativo a essa nova condição física e psicológica (12).
Essa CD possui forte relação sobre todas as outras, de modo que, como dito anteriormente, o controle e a atenção permanente com as alterações no corpo são motivados pelas inquietações que a ostomia proporciona. Além desta, outras CD que recebem essa influência são a “mudança no envolvimento social” e “relatos de mudança no estilo de vida” em virtude da alteração na função social e as restrições de lazer motivadas pela vergonha, a insegurança na aderência da bolsa de estomia e as dificuldades para realizar a irrigação e a higiene do dispositivo (60, 70).
A realização da irrigação tem a finalidade de esvaziar o colón de gases, muco e fezes, o que permite ao estomizado a regularidade do trânsito intestinal e possibilita o manejo do estoma sem a necessidade do uso do dispositivo coletor por um período de tempo (59, 60). A técnica é feita introduzindo o cateter no estoma, o que leva à fluidez de 500 a 1.500 ml de água tépida por um período de 5 a 10 minutos; grande parte dos efluentes será expelida em 10 a 15 minutos (59). Considerado um procedimento seguro e eficaz, ressalta-se sua importância como técnica de alívio e conforto que facilita o convívio da pessoa estomizada em sociedade e que contribui para melhoria do bem-estar e da qualidade de vida dos estomizados (61).
As possibilidades de viagens também estão limitadas em decorrência da necessidade de cuidados específicos com a bolsa, os quais exigem tempo e espaço adequados para esse fim. Soma-se a isso o fato de muitos dos ostomizados se sentirem marginalizados e estigmatizados pela família, o que os leva ainda mais para o isolamento social e físico (60, 70).
O “medo da reação dos outros”, CD subjetiva, também se correlaciona com a “preocupação com a mudança”, principalmente no quesito sexual. Diversos estudos revelam a aflição que muitos ostomizados enfrentam no âmbito da sexualidade. O receio de não ser aceito pelo companheiro após as mudanças físicas, a vergonha de se expor e a insatisfação pessoal com a nova conformação corporal permeiam a adaptação sexual da pessoa com ostomia (12, 16, 60, 61).
Vale ressaltar que a sexualidade é um dos múltiplos componentes da qualidade de vida de um indivíduo, em especial do ostomizado, já que, durante o tratamento para o câncer, ele é submetido a várias técnicas cirúrgicas e antineoplásicas (quimioterapia e/ou radioterapia) que alteram a função sexual fisiológica e psicologicamente (61).
Ênfase nos pontos positivos que permaneceram
A aceitação da ostomia constitui-se um produto final de estratégias eficazes de enfrentamento. Vários fatores contribuem e dificultam o processo adaptativo do ostomizado, como a presença de comorbidades associadas, relacionamentos instáveis, sentimentos positivistas e esperançosos, facilidades e entraves no acesso ao serviço de saúde e de apoio especializado, apoio familiar, entre outros. Isso posto, é pertinente ressaltar que escores maiores de qualidade de vida são observados em ostomizados que aceitaram a ostomia e enfrentaram de maneira positiva e ativa essa nova condição (60, 71, 72, 73).
Por fim, o entendimento da qualidade de vida de um indivíduo envolve a conciliação de fatores subjetivos e objetivos que refletem a satisfação, a aceitação e a adaptação a essa novidade que afeta o ostomizado em diversas vertentes físicas e psicológicas (71, 72).
Conclusões
Com base na análise desenvolvida, os estudos demonstraram que o diagnóstico de enfermagem “Distúrbio na Imagem Corporal” pode estar relacionado com pessoas ostomizadas, visto que se identificou na literatura 14 das 37 características definidoras desse diagnóstico.
Dentre essas características, as mais frequentes foram: mudança real na estrutura, comportamentos de monitorar o próprio corpo, mudanças no estilo de vida, relato de percepções que refletem uma visão alterada na aparência do próprio corpo, sentimentos negativos com relação ao corpo, esconder intencionalmente parte do corpo e preocupação com a mudança.
Este estudo evidencia a necessidade de uma percepção mais ampliada desse diagnóstico, que não se restrinja apenas à imagem corporal física, mas também que o considere como um distúrbio que recebe influências, que incluem o gênero, a capacidade de resiliência, coping e a adaptação do ostomizado, e que causa impacto significativo na qualidade de vida, na sexualidade, no estilo de vida e no envolvimento social.
Baseado nisso, o DE, componente fundamental do processo de enfermagem e da sistematização da assistência de enfermagem, poderá contribuir para o planejamento e a execução do cuidado integral para essa população, compreendendo a ostomia além do procedimento cirúrgico e técnico, a fim de proporcionar um apoio holístico à pessoa com ostomia.
Finalmente, as limitações do estudo incluem a dificuldade em obter na íntegra todos os artigos potencialmente relevantes ao objeto de estudo e a necessidade de síntese dos resultados do grande quantitativo de estudos obtidos.