Introdução
As evoluções complexas e constantes no sector da saúde e na abordagem à pessoa exigem dos enfermeiros novas formas identitárias profissionais, em busca da inovação e da criatividade, tal como o desejo de desenvolvimento, que se encontram em estreita relação com a implicação, a pertença à profissão e o sentido dos cuidados. A mercantilização na saúde impõe desafios identitários profissionais que podem colocar em causa a pertença e o envolvimento profissional. Em face deste momento conturbado da Enfermagem, pretende-se conhecer as identidades profissionais de enfermeiros e os sentidos das transições em curso.
Referenciais histórico-sociais e conceptuais na identidade dos enfermeiros portugueses
O conhecimento histórico da profissão permite desenvolver o pensamento crítico sobre o passado; em consequência, permite reforçar a identidade profissional dos enfermeiros e contribuir para dar resposta aos desafios atuais e futuros na complexidade de cuidados 1. Neste sentido, abordam-se nos parágrafos seguintes as principais influências históricas e sociais passadas e presentes para os enfermeiros portugueses.
Na época que decorre desde a Idade Média até ao século XX, não existia o reconhecimento da necessidade de outros conhecimentos para além dos considerados práticos e morais, veiculandose valores como submissão e obediência quer à instituição, querao médico 2, com consequências identitárias naqueles profissionais, nos seus contextos de trabalho e que, por estas caraterísticas, se pode denominar por Era Vocacional dos Enfermeiros.
O período designado de Era Profissional dos Enfermeiros tem início no século XX. O Ensino de Enfermagem passava a ser ministrado nas Escolas de Enfermagem, mas com predomínio do ensino biomédico ou tecnicista 3. Todavia, com sinais subtis na tentativa de autonomização dos enfermeiros, com algumas atividades profissionais autónomas nos contextos de ensino e de trabalho ligadas à revalorização da relação e com evoluções na formação ao nível das especialidades, que ainda se mantêm atualmente.
Na Era da Autonomização dos Enfermeiros, estes desencadearam um reconhecimento da autonomização profissional com a entrada do Ensino de Enfermagem para o Ensino Superior, ao nível do Ensino Superior Politécnico, em 1988. A esta autonomização, seguiu-se a publicação do Regulamento do Exercício Profissional dos Enfermeiros em 1996, com a regulamentação de cuidados autónomos e interdependentes, e a identificação da profissão de Enfermagem com um campo disciplinar próprio e distinto, através do desenvolvimento da investigação no âmbito dos mestrados em Enfermagem, em 1991, e do doutoramento em Enfermagem, em 2002; e ainda, através da conquista de espaços de intervenção autónomos. Apesar de constarem, também, os cuidados interdependentes na execução de atos prescritos por outros profissionais, as ações interdependentes exigem uma atitude crítica e ativa por parte dos enfermeiros. De facto, esta seria a época "dourada" para a Enfermagem, dando-se o reconhecimento social da disciplina, crucial para a população. No entanto, se, a nível profissional, a evolução da profissão ocorreu de forma favorável, as condições económicas e políticas foram desfavoráveis a esse reconhecimento profissional.
Se, inicialmente, as transformações sociais decorrentes da entrada de Portugal na União Europeia originam reformas no ensino com o Processo de Bolonha, nas organizações e instituições de saúde, em 2008, em face da crise económica e financeira, os países e, mais especificamente Portugal, entram num período de austeridade, cujo declínio económico se reflete nas condições de trabalho dos enfermeiros. Segundo a Comissão Europeia 4, o número de enfermeiros em Portugal, no ano de 2017, é inferior à média da União Europeia, com 6,3/1000 habitantes, comparativamente com 8,4/1000, sendo também este um dos possíveis fatores responsáveis pela sobrecarga laboral e descontentamento profissional.
Apesar do reconhecimento da cientificidade dos saberes em Enfermagem a nível académico, a nível político-económico-social, com as medidas de contenção, verificou-se o congelamento das progressões a partir de 2005; além disso, as estruturas sindicais desencadearam uma reformulação da carreira em 2009, que não foi devidamente concretizada, originando a estagnação da carreira profissional existente e, deste modo, não se reconhecendo os investimentos na formação e a experiência clínica destes profissionais. Por conseguinte, os enfermeiros encontram-se em crise identitária profissional, crise decorrente dos constrangimentos económicos e sociopolíticos do país que se estendem por vários anos.
No entanto, Portugal e os enfermeiros portugueses não são os únicos afetados pelo designado neoliberalismo 5; a nível internacional, verifica-se que os fatores sociais, culturais e organizacionais interferem com os valores e comportamentos dos profissionais de saúde, com a saúde e os cuidados. A identidade de Enfermagem carateriza-se pela articulação entre as competências técnico-científicas e os atributos do cuidar; uma sociedade com ideais de mercado reforça as primeiras competências, mas fragiliza os valores inerentes ao cuidar, na respetiva competitividade económica 5.
A identidade profissional dos enfermeiros constrói-se na formação académica, mas não termina neste contexto; ela transforma-se no tempo noutro espaço - no contexto de trabalho e nas interações profissionais intra e intergrupais 6,7. São estes os espaços e os momentos essenciais para clarificar e fortalecer os valores concernentes à atividade de enfermagem e consequentemente o reforço da identidade profissional dos enfermeiros 5.
As alterações que a sociedade e a profissão de Enfermagem sofreram desencadearam perfis identitários que necessitam de ser explorados, para reconhecer quais os sentidos que os enfermeiros desejam seguir nas suas transições identitárias, num tempo e espaços conturbados para a Enfermagem.
Assim, serão explicitadas as concetualizações teóricas do estudo das identidades utilizadas para sua análise e transições identitárias.
Referenciais teóricos no estudo das identidades
Os referenciais teóricos do estudo das identidades desta pesquisa basearam-se na Teoria das Representações Sociais de Moscovici, na Teoria da Dinâmica da Identidade de Dubar, na Teoria do Núcleo Central e Elementos Periféricos de Abric e na Teoria dosSelvesPossíveis de Markus e Nurius.
A identidade assume caráter dinâmico e múltiplo, reconhecendo não uma única identidade profissional, mas uma pluralidade de identidades profissionais, pois os sujeitos suscitam crises identitárias ante mutações sociais e relacionais 8.
A Teoria das Representações Sociais possibilita aceder à identidade do sujeito e esta aos seus pensamentos, ideologias e comportamentos. O estudo das representações sociais permite conhecer não o comportamento ou o processamento de informações, mas o pensamento do sujeito, isto é, quando ele se questiona e procura respostas 9. Através da linguagem, ou seja, da relação, referenciação e significação dos signos/palavras, consegue-se aceder ao agir, aos comportamentos desse sujeito 10. O indivíduo não é um ser passivo, mas sim ativo e criativo, que, apesar de estar ligado a uma história social, também apresenta uma história individual, estando estas histórias e representações intrinsecamente relacionadas, permitindo as representações sociais entender comportamentos e interações sociais 11.
Osselvespodem ser explorados através de representações sociais, reconhecendo uma elaboração individual e simultaneamente coletiva (social), com influências do contexto sociocultural e histórico, abrangendo uma forma construtiva e inovadora da pessoa, mas também a forma como oselfé delimitado socialmente 12.
Os selves incluem o self real, o self ideal e o self rejeitado; o selfreal refere-se a como a pessoa reconhece o seu potencial (o que sou); oselfideal demonstra o que a pessoa deseja, as suas aspirações (aquilo que posso ser ou gostaria de ser) e oselfrejeitado exprime o que se rejeita para si (o que tenho medo de ser). Os autores explicitam que a dinâmica entre estes possíveisselvespermite entender as ligações entre o potencial, as motivações e o desenvolvimento possível. Oselfdesejado relembra ao indivíduo os seus desejos ou objetivos, com vista ao seu alcance, sendo conotado como o desenvolvimento possível porque é reconhecido e desejado, numa mudança temporária ou duradoura 12.
O conhecimento dos possíveisselvesé importante para entender os incentivos aos possíveis comportamentos, isto é, o que eu quero aproximar e o que quero afastar de mim, reconhecendo o sentido do passado e as referências para atitudes atuais e futuras. Os desenvolvimentos ou mudanças futuras não são pensadas isoladamente, mas reelaboradas, em função dos contextos que nos rodeiam 12.
A dinâmica da identidade profissional pode ser estudada através dos possíveisselvesprofissionais. A identidade é formada por um núcleo central, com maior dificuldade na mudança, ligado à história coletiva e a contextos organizacionais, e núcleos periféricos, que são mais maleáveis e situacionais, mas são estes últimos, os núcleos periféricos, que permitem as transições identitárias se inseridas num contexto transformador 12.
A pesquisa, sendo baseada nestes pressupostos teóricos, utilizou uma metodologia que incluísse estas teorias no estudo do seu objeto de estudo. Considerando que, no núcleo central das identidades, se encontram as orientações dos comportamentos e, nos elementos periféricos, as possíveis transformações que podem ocorrer 13. Assim, realiza-se a assimilação das dinâmicas identitárias, explorando as ligações entre oselfreivindicado do indivíduo(selfreal), o que aspira ou deseja atingir(selfideal) e o que rejeita ou se opõe(selfrejeitado), isto a nível identitário profissional 12.
As identidades estruturam-se entre o meio interior - indivíduo - e o meio exterior - sociedade - que se processam na memória social e onde se consegue aceder através da palavra 14. Com base nessas premissas, Zavalloni e Louis-Guérin construíram o Inventário da Identidade Psicossocial, que se utilizou nesta pesquisa, visto que, através do discurso dos entrevistados, se consegue aceder ao coletivo através do individual, à conceção deselfe de mundo.
Materiais e método
Estudo descritivo transversal de abordagem mista, com recolha de dados efetuada em duas fases, entre 2016 e 2017. Na primeira fase, recorreu-se a uma amostra não probabilística por redes ousnowballing,por se utilizar um inventário que exigia abstração e reflexividade acerca do objeto na colocação de palavras (significado) que definissem o seu pensamento. Estabeleceu-se como critério de inclusão: enfermeiros com 10 ou mais anos de exercício de Enfermagem em Portugal. Nesta fase, os dados foram recolhidos, junto duma amostra constituída por 102 enfermeiros, através do Inventário da Identidade Psicossocial de Zavalloni e Louis-Guérin, adaptado 15 na sua parte inicial, tendo sido utilizadas as primeiras impressões ou as evocações dos indivíduos e assumiu-se a ordem de aparição de palavras. Assim, foram colocadas das primeiras para seguintes evocações de palavras (como um processo de evocação de palavras). Solicitou-se aos participantes que referissem três ou mais vocábulos que completassem as seguintes frases: "Nós enfermeiros somos...."; "O enfermeiro ideal é...." e "O enfermeiro péssimo é...."; também se considerou a ordem pela qual os sujeitos escreviam nos inventários. Após o preenchimento do inventário, os participantes foram questionados acerca da sua disponibilidade para a continuação do estudo com entrevista caso se justificasse, solicitando-se que se identificassem, se assim o desejassem. Posteriormente, na segunda fase, realizaram-se entrevistas semidiretivas até ocorrer a saturação de dados conseguida com a participação de 19 dos 102 enfermeiros que participaram na primeira fase deste estudo, na procura da resposta à seguinte questão: "Quais as condicionantes que não permitem atingir o Enfermeiro Ideal?".
A estratégia quantitativa permitiu aceder rapidamente aos elementos centrais e periféricos das identidades, assim como encontrar identidades marginais. A opção por complementar com a qualitativa deveu-se à necessidade de continuar o método de Zavalloni para compreender as condicionantes que os sujeitos referenciam para a dificuldade de atingir o enfermeiro ideal, que veio fornecer contributos para reforçar os dados obtidos na primeira fase - a de mercantilização da saúde. Assim, para o tratamento de dados, foram utilizados doissoftwares;na primeira fase, recorreu-se ao openEvoc 0,83, desenvolvido por Hugo Cristo, e, na segunda fase, ao NVivo 10.
Com osoftwareopenEvoc, trataram-se os primeiros dados do Inventário, com a identificação dos elementos centrais e periféricos mais evocados noselfreal ou reivindicado, noselfideal e noselfrejeitado para identificar as diversas dinâmicas identitárias presentes, utilizando-se medidas de estatística descritiva. Posteriormente, procedemos à análise de conteúdo como técnica de tratamento de dados e análise de informação. Com recurso aosoftwareNVivo, criaram-se categorias 16 que permitiram entender algumas das interligações efetuadas na primeira fase.
Este estudo seguiu as considerações éticas e legais da Declaração de Helsínquia, revista em 2013, e foi aprovado favoravelmente pela Comissão de Ética do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa.
Na recolha de dados pelo inventário, os sujeitos foram devidamente informados do objetivo deste estudo, dos objetivos do instrumento de recolha de dados, bem como do caráter anónimo e da confidencialidade das informações obtidas. Para a realização das entrevistas, foram pedidas, aos participantes, a autorização de gravação, bem como a assinatura do consentimento informado. Após a transcrição das entrevistas, foi devolvido o discurso em suporte escrito aos sujeitos, sendo-lhes dada a liberdade de modificá-lo. Foi, ainda, explicada a possibilidade de recusa da participação em qualquer momento da pesquisa.
Resultados
Dos 102 enfermeiros que participaram no estudo, 80 são do sexo feminino e 22 do sexo masculino, apresentando uma média de idades de 39,63 anos, um desvio-padrão de 5,98, com idade mínima de 31 anos e idade máxima de 60.
Os participantes exercem funções como enfermeiros no Norte, Centro e Sul de Portugal continental, têm uma média de 17,42 anos de serviço, um desvio-padrão de 5,46. A maioria dos enfermeiros possui o grau de licenciatura, havendo ainda quem possua o de bacharel (três), o de mestrado (dezasseis) e um enfermeiro, o doutoramento. Destes enfermeiros, 40 referem apresentar desde pós-graduações (dezasseis) a pós-licenciaturas de especialização em Enfermagem (vinte e quatro).
No programa openEvoc 0,83, introduziram-se todas as palavras registadas pelos participantes, respeitando a ordem colocada, e solicitou-se ao software para gerar as tabelas de frequências e ordem, também denominada deRangmot,com indicação de frequência de 1,4, ordem 2,1 e com palavras com frequência mínima de 0,84, para os trêsselvesem estudo.
No núcleo central, encontram-se as palavras mais citadas e mais importantes; nos elementos de primeira periferia, estão as palavras mais citadas de menor importância; e os elementos de segunda periferia foram os pouco citados, mas foi-lhes atribuída muita importância, isto é, um pequeno número de pessoas referiu o que julga ser importante; nos elementos de terceira periferia, situam-se os considerados menos frequentes e com menor grau de importância 17.
Como podemos observar pela Tabela 1, em relação ao "self do enfermeiro real ou reivindicado", foram evocadas 360 palavras; no quadrante respeitante ao núcleo central, destacam-se os vocábulos: competentes, responsáveis, polivalentes; nos elementos de primeira periferia, salientam-se: profissionais, humanos, trabalhadores e cuidadores. Verifica-se a existência de um subgrupo de enfermeiros que se carateriza pelos vocábulos compreensivos e amigos. O facto de se considerarem mal remunerados é uma caraterização, mas, apesar de ser referida, é relegada para segundo plano.
Na Tabela 2, apresentam-se as evocações registadas para a caracterização do"selfdo enfermeiro ideal", com o total de 358 palavras. No núcleo central, o enfermeiro ideal possui, como destaque, as caraterísticas de humano, amigo e simpático; nos elementos de primeira periferia, destacam-se o competente, empático, responsável e disponível. O subgrupo de enfermeiros destaca o atencioso, o cuidador e os conhecimentos científicos.
Na Tabela 3, foram evidenciadas as 339 evocações do"selfdo enfermeiro rejeitado"; no núcleo central, salienta-se a distanciação ao desumano e arrogante; nos elementos de primeira periferia, a oposição a incompetente, irresponsável, conflituoso e desinteressado. O subgrupo de enfermeiros rejeita para si, como profissional enfermeiro, o ser mal-humorado e despreocupado.
Posteriormente, foram questionados 19 dos 102 enfermeiros acerca dascondicionantes que não permitiam atingir o enfermeiro ideale emergiram como categorias os défices de recursos, quer humanos, quer materiais e condições físicas dos espaços de trabalho; em segundo plano, a falta de motivação (Gráfico 1).
A resposta que carateriza melhoro défice de recursos humanosé "[...] a dotação do serviço, ter mais profissionais para dar tempo para fazer as coisas com mais fluidez, com mais rigor, se calhar demorar mais tempo com as pessoas, dar-lhes mais tempo, tem a ver com isso!" (Participante n.° 12).
Nodéfice de recursos materiais e condições do espaço físico,a resposta que caracteriza esta categoria é: "[...] os espaços físicos, falta de espaços ideais para trabalhar" (Participante n.° 30).
Adesmotivaçãoé referida, tendo em conta "[... ] o retorno económico que poderia ser uma motivação adicional - se bem que ache que isso não é o mais importante! O reconhecimento social da nossa importância e autonomia, era essencial" (Participante n.° 21).
Discussão
Na análise dos dados apresentados, pode-se identificar um grupo dominante de enfermeiros que se define profissionalmente com o núcleo central relacionado com as competências, a responsabilidade e a polivalência; esta última centrada na lógica de mercado na saúde. Porém, os enfermeiros reconhecem no núcleo central o desejo de desenvolver a humanização, a amizade e a simpatia, sendo características da área das relações humanas que não só desejam desenvolver como também têm receio que, ao invés disso, se possam distanciar, com a oposição à desumanização e à arrogância.
Reconhece-se que estes enfermeiros se encontram numa dualidade identitária nos elementos mais situacionais e em mudança, seja na tentativa de corresponder ao exigido pelas organizações institucionais na profissionalização e como trabalhadores, seja na tentativa de corresponder à sua profissão como cuidadores e humanos. Encontra-se, também, apesar de em menor destaque, a sua caraterização como profissionais mal remunerados.
Num estudo realizado em Portugal, a profissão de Enfermagem depara-se com a diminuição do reconhecimento social, da remuneração e o aumento da burocratização, consequências da empresarialização na saúde e da instabilidade profissional 18. Apesar de os enfermeiros se verem confrontados com o enquadramento da lógica de mercado e de eficiência nos cuidados, eles desejam resgatar o cuidado 19 com a manutenção e o desenvolvimento nas relações humanas, que sentem em risco para corresponder ao solicitado pela instituição e conquistar a autonomia profissional, através da reivindicação das suas competências e responsabilidades profissionais.
Com efeito, a Enfermagem encontra-se numa tensão constante ao nível identitário, entre a orientação para a instituição e a orientação para o cuidar 20 e na conquista da autonomia. Numa pesquisa realizada na Colômbia 21, as enfermeiras, perante as exigências burocráticas, administrativas e as pressões economicistas nas instituições de saúde, apesar de centrarem a sua motivação no cuidado de forma holística, enfrentam as exigências de cuidar num ambiente com sobrecarga de trabalho e desempenhando tarefas que não reconhecem como funções de Enfermagem, suscitando sentimentos de culpa, esgotamento, stress e limitação de autonomia.
Identifica-se um subgrupo de enfermeiros que reclama para si vocábulos como compreensivo e amigo, que deseja desenvolver o ser atencioso, cuidador e os seus conhecimentos científicos; da mesma maneira, rejeita para si o mau humor e a despreocupação. Este subgrupo de enfermeiros enquadra-se numa identidade muito próxima das relações interpessoais, com as possíveis transições no seu aperfeiçoamento na área relacional e no desenvolvimento dos conhecimentos científicos, distanciando-se, quer do modelo biomédico, quer do modelo vocacional submisso, de épocas anteriores 22,23.
Num outro estudo realizado no Peru 24, as enfermeiras confrontando-se com limitações de recursos materiais e humanos, jornadas de trabalho prolongadas, poucas horas de descanso, trabalho por turnos e rotatividade frequente entre especialidades, dispersaram-se em funções que as distanciaram do cuidar, podendo refletir-se num trabalho pouco humanizado. No entanto, as enfermeiras que participaram nesse estudo, apesar de sentirem estas pressões sociais e económicas, projetaram a valorização do cuidar na interação enfermeira-doente que se baseia no conhecimento científico em todas as áreas da disciplina, com enfoque nos aspetos psicossociais-culturais e humanísticos, contemplando também os processos biológicos.
No Reino Unido 25, em face das medidas de austeridade na saúde, o paradigma de mercado impregnou instituições e organizações, incorporando os valores de mercado na prática de enfermagem, não integrando o conhecimento mais humanizado e interpessoal do cuidado e despersonalizando o cuidar, numa envolvência da competitividade emergente na mercantilização da saúde. Nessa pesquisa acerca da evidência produzida na Inglaterra, confirmou-se que as culturas sociais, políticas e organizacionais influenciam os valores profissionais dos enfermeiros, mas que estes profissionais não são os potenciadores desta transformação, mas sim as alterações decorrentes da mercantilização da saúde. Esta situação impõe desafios aos quais os profissionais e especificamente os enfermeiros deverão responder com a denúncia dessas manifestações negativas no seu trabalho e na sua identidade profissional, expondo a sua indignação perante a consequente despersonalização do cuidar que se destaca na introdução de conceitos de mercado na saúde.
Os enfermeiros em Portugal, mas também a nível internacional, diante das recentes transformações na sociedade, na saúde e na profissão, procuram o incremento de pertença e de reconhecimento social, já não em ideologias identitárias passadas, mas em dinâmicas identitárias criativas, que se retroalimentam através do reconhecimento entre pares, que podem ser alteradas ou estagnadas com a empresarialização da saúde e dos cuidados, onde a "mercantilização da saúde, na qual o cuidado com o outro e a cura passam a ser objetos de lucro" 26.
Conclusões
Estão em curso transições identitárias que podem ocorrer de diversas formas, conforme as condições e transformações decorrentes dos contextos profissionais, quer em termos da correção dos défices de recursos humanos, materiais e o melhoramento de espaços físicos, quer da aposta no aumento da motivação que passa por um aumento de remuneração, mas, principalmente, pelo reconhecimento social, apoio e suporte entre pares e superiores hierárquicos.
As dinâmicas identitárias observadas nestesselvesvêm reconhecer as possíveis transições identitárias, assentes na afirmação da profissionalização baseada na conquista da autonomia profissional e no desenvolvimento do cuidar e que contracenam com as exigências de mercado, as quais transtornam essas transições, transparecendo a dificuldade na afirmação de uma identidade do cuidar. Contudo, existem uma procura e um desejo da necessidade de resgatar o cuidar para a identidade profissional restrita às exigências do mercado na saúde, o que se reflete no receio da despersonalização dos profissionais enfermeiros do cuidar.
Limitações e implicações
Este estudo, apesar de tentar aliar a metodologia qualitativa e quantitativa no tratamento dos dados, é predominantemente de natureza interpretativa e, por isso, não pode ser generalizado. Contudo, permite entender as condicionantes e os problemas que a mercantilização na saúde impõe a estes profissionais enfermeiros. Esta pesquisa poderá ter implicações para a gestão, para a docência, para a prática, para o movimento sindical e regulamentar da profissão. Urge repensar as medidas que possam conduzir às transições identitárias em prol da profissão, dos cuidados e do desenvolvimento profissional, correspondendo seja à evolução nos cuidados, seja ao envolvimento no cuidar, e não ao conceito de mercado.