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Universitas Psychologica

Print version ISSN 1657-9267

Univ. Psychol. vol.9 no.3 Bogotá Sept./Dec. 2010

 

Eventos Estressores e Indicadores de Ajustamento entre Adolescentes em Situação de Vulnerabilidade Social no Brasil*

Eventos estresantes e indicadores de ajuste en adolescentes en situación de vulnerabilidad social en Brasil

NORMANDA ARAÚJO DE MORAIS **

SÍLVIA HELENA KOLLER ***

MARCELA RAFFAELLI ****

* Artigo de pesquisa, parte da dissertação de Doutorado da primeira autora, sobre orientação da segunda autora e co-orientação da terceira autora As autoras agradecem à CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) pelas bolsas de doutorado e de doutorado sanduíche concedidas à primeira autora para a realização do seu doutoramento.

** Rua Ramiro Barcelos, 2600/104, Porto Alegre, RS, CEP: 90035-006, Brasil. E-mail: normandaaraujo@ gmail.com

*** Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil, E-mail: silvia.koller@gmail.com

**** University of Illinois at Urbana-Champaign, Illinois, U.S.A., 2003 Doris Kelley Christopher Hall, MC-081, 904 West Nevada Street, Urbana, IL 61801, U.S.A. Email: mraffael@illinois.edu

Recibido: julio 18 de 2009 Revisado: enero 14 de 2010 Aceptado: marzo 1 de 2010


Para citar este artículo

Araujo de Morais, N., Koller, S.H. & Raffaelli, M. (2010). Eventos Estressores e Indicadores de Ajustamento entre adolescentes em Situação de Vulnerabilidade Social no Brasil. Universitas Psychologica, 9 (3), 787-806.


Resumo

Este artigo objetivou caracterizar diferentes perfis de crianças e adolescentes (11-18 anos) que vivem em situação de vulnerabilidade social (um grupo em situação de rua-G1 e um grupo que vive com suas famílias-G2). G1 e G2 (N = 98) foram caracterizados quanto ao risco (eventos estressores) e ao ajustamento (número de sintomas físicos, comportamento suicida, uso de drogas, comportamento sexual de risco, afeto positivo e afeto negativo) e análises comparativas entre os grupos foram realizadas. Testouse, ainda, a associação do número e impacto dos eventos estressores com um indicador geral de mau ajustamento. Os resultados mostraram que G1 apresentou maior número de eventos estressores e piores indicadores de ajustamento (à exceção da variável afeto positivo) que G2. Apenas o número de eventos estressores esteve associado ao mau ajustamento.

Palavras-chave autor : Fatores de risco; eventos estressores; ajustamento; crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade; crianças e adolescentes em situação de rua.

Palabras clave descriptor : Conducta del adolescente, Brasil, factores de riesgo, sucesos vitales, vulnerabilidad social.


Abstract

This study aimed to characterize different profiles of children and adolescents (11-18 years old), living in situations of social vulnerability (one group of street children and adolescents-G1 and one group living with their families-G2). G1 and G2 (n = 98) were characterized according to risk (stressful events), and adjustment (physical health symptoms, drug use, sexual risk taking behavior, suicidal behavior and positive/negative affect and comparative analysis between the groups was conducted. The association of stressful events and social support networks with maladjustment was tested. Results showed that G1 experienced a larger number of stressful events and lower indicators of adjustment (with the exception of positive affect) than G2. Only the number of stressful events was independently associated with maladjustment.

Keywords authors : Risk factors; stressful events, adjustment, children and adolescents in vulnerable situations, street children and adolescents.

Keywords plus : Adolescent Behavior, Brazil, Risk Factors, Life Events, Social Vulnerability.


Introdução

Nas últimas décadas, a preocupação pelo estudo do desenvolvimento de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social tem aumentado consideravelmente. Na área da Psicologia do Desenvolvimento, essa preocupação está intrínsecamente relacionada à emergência e expansão de linhas teóricas contextualistas, assim como ao desenvolvimento da chamada Psicopatologia do Desenvolvimento. Entre as abordagens contextualistas, as quais pressupõem que o desenvolvimento é resultado da relação entre pessoa e ambiente, destacase a Abordagem Bioecológica do Desenvolvimento Humano, desenvolvida por Urie Bronfenbrenner (ver Koller, 2004 para revisão). Já no campo da Psicopatologia do Desenvolvimento, situase o interesse pelo estudo dos fatores de risco e proteção (Rutter & Sroufer, 2000; Sameroff, 2000).

Como parte da diversidade de contextos (históricos, culturais e sociais) e da multiplicidade de demandas sociais que se têm apresentado à psicologia do desenvolvimento, está a realidade de crianças e adolescentes que vivem em situação de vulnerabilidade social. De acordo com Abramovay, Castro, Pinheiro, Lima, e Martinelli (2002), vulnerabilidade social é o resultado negativo da relação entre a disponibilidade dos recursos materiais ou simbólicos dos atores, sejam eles indivíduos ou grupos, e o acesso à estrutura de oportunidades sociais, econômicas e culturais que provêem do Estado, do mercado e da sociedade. Esse resultado se traduz em debilidades ou desvantagens para o desempenho e mobilidade social dos atores e está relacionado com o maior ou menor grau de qualidade de vida das pessoas (Rocha, 2007).

O conceito de vulnerabilidade social deve ser usado em contraposição ao de "grupos de risco", conforme alerta Guareschi, Reis, Huning e Bertuzzi (2007). Sendo assim, enquanto a noção de grupos de risco tende a individualizar e personificar a adversidade vivida (seja o uso de droga, a AIDS etc.), relacionando-a simplesmente a uma questão de conduta, a perspectiva de vulnerabilidade social propõese a entendêla como resultado de um processo social que remete à condição de vida e aos suportes sociais. No caso da população infanto-juvenil, Malvasi (2008) afirma que a vulnerabilidade está associada a alguns aspectos negativos, como por exemplo: a falta de garantia dos direitos e oportunidades nas áreas de educação, saúde e proteção social, o envolvimento com drogas e com situações de violência (doméstica e comunitária), a situação de rua, o trabalho infantil, dentre outras.

Dentre as condições adversas, ressaltase a situação de rua. Em termos históricos, compreendese que foi no contexto de desigualdade crescente e de emergência de movimentos sociais que caracterizaram a década de 801, que se começou a questionar a existência de tantas crianças e adolescentes nas ruas das cidades. Foi nesse contexto, que a problemática social dos(as) meninos(as) em situação de rua ganhou visibilidade, tanto por parte da sociedade civil quanto do mundo acadêmico e das políticas sociais (Rizzini & Butler, 2003). No entanto, autores como Rizzini, Barker e Cassaniga (2000), por exemplo, chamaram a atenção para o fato de que as crianças em situação de rua seriam apenas uma pequena parcela de crianças e jovens de baixa renda existentes no Brasil. Essa parcela, por ser visível e percebida como mais ameaçadora, atraiu maior atenção das políticas oficiais, em comparação com um amplo contingente de crianças e adolescentes que, mesmo morando com suas famílias, também não têm acesso a bons serviços de educação, saúde, programas sociais e outras formas de apoio que contribuam para o seu pleno de senvolvimento.

Com base na ressalva feita, portanto, é que o presente artigo centra o seu foco de interesse em dois grupos de crianças e adolescentes: um grupo com experiência de rua e outro que vive com sua família, mas que também está inserido em um contexto de vulnerabilidade social, tal como descrito por Abramovay, Castro, Pinheiro, Lima e Martinelli (2002). Esses dois grupos serão estudados de forma conjunta, uma vez que outros estudos realizados com crianças e adolescentes em situação de rua (McCaskill, Toro, & Wolfe, 1998; Rabideau & Toro, 1997; Rafferty & Shinn, 1991; Toro et al., 1995) têm mencionado a necessidade de incluir em suas análises grupos de comparação. A inclusão dos grupos de comparação justificase pela necessidade de estudar mais detalhadamente o que seria efeito da pobreza e da situação de rua no seu desenvolvimento. Ademais, há quem defenda que "a experiência de rua é um evento ao longo do continuum da experiência de pobreza da criança" (Panter-Brick, 2001, p. 92).

Eventos Estressores como Fatores de Risco ao Desenvolvimento

Fatores de risco são aquelas condições ou variáveis que estão associadas com a maior probabilidade de resultados desenvolvimentais negativos ou indesejáveis-morbidade, mortalidade, de acordo com 0uso mais clássico, ou mais recentemente, comportamentos que podem comprometer a saúde, bemestar ou performance social (Cowan, Cowan & Schulz, 1996; Jessor et al., 1995). Na literatura da Psicologia do Desenvolvimento, sobretudo a partir da década de 60, estudos sobre os fatores de risco e suas conseqüências negativas ao desenvolvimento começaram a ser desenvolvidos.

De acordo com Martins (2004), esses estudos tinham como objetivo identificar fatores de risco e adversidades presentes na vida de crianças e adolescentes, a fim de avaliar a influência no desenvolvimento destas e, assim, propor intervenções que visassem à redução de problemas de comportamento ou déficits desenvolvimentais. Inicialmente, esses estudos enfatizavam os riscos biológicos envolvidos no período pré, perinatal e pós-natal e as suas conseqüências sobre determinados resultados (os déficits) encontrados em fases posteriores da vida da criança.

Martins (2004) revisou os modelos de risco e dividiu a trajetória da evolução desse conceito em dois modelos: simples de risco e complexos de risco. No primeiro conjunto de trabalhos, incluiu os estudos que apresentavam limitações na conceitualização do risco. Esses estudos defendiam, por exemplo, uma visão estática do risco e previam uma relação causal e linear entre risco e mau ajustamento. Os chamados modelos complexos de risco tiveram o seu desenvolvimento a partir da década de 80, com a realização de pesquisas sobre fatores de proteção e resiliência. Esse segundo modelo propõe uma visão do risco como "processo", segundo a qual o risco não é considerado per se, mas a partir da sua relação com variáveis chamadas "protetoras". Tais variáveis atuariam como antagonistas à emergência dos problemas que foram precipitados pelos fatores de risco.

De acordo com o modelo complexo de risco, portanto, a presença de um evento adverso na vida de um adolescente (situação de pobreza, por exemplo) não é por si só a causa de um resultado de mau ajustamento (uso de drogas, por exemplo), pois não se poderia determinar uma relação linear e causal entre pobreza e uso de droga. De acordo com Jessor, Turbin e Costa (1998), há muitas variáveis que podem se interpor à situação de desvantagem (risco) e os resultados desenvolvimentais (ajustamento). Ao mesmo tempo, há heterogeneidade e variabilidade em termos de resultados desenvolvimentais. O princípio da equifinalidade na psicologia do desenvolvimento faz referência justamente a essa variabilidade, no sentido de que trajetórias diferentes podem conduzir a resultados desenvolvimentais semelhantes, da mesma forma que trajetórias semelhantes não conduzem necessariamente aos mesmos resultados (Lordelo, 2002). Sendo assim, é de fundamental importância a consideração dos processos pelos quais o evento adverso age.

Eventos Estressores

Alguns eventos de vida têm sido descritos na literatura como estressores e, portanto, são considerados fatores de risco ao desenvolvimento, uma vez que aumentam a probabilidade de conseqüências negativas acontecerem. De acordo com Masten e Garmezy (1985), eventos estressores são aqueles que alteram o ambiente e que provocam um alto grau de tensão, influenciando nas respostas dos indivíduos. Condições de pobreza, desagregação familiar, vivência de algum tipo de violência ou maustratos, experiências de doença (do próprio indivíduo ou na família), institucionalização, abandono e perdas importantes são alguns exemplos de eventos adversos de vida (Pesce, Assis, Santos & Oliveira, 2004; Sapienza & Pedromônico, 2005).

No caso dos eventos adversos de vida, os estudos desenvolvidos por Sameroff et al. (1987) no Rochester Risk Program, foram fundamentais para a compreensão do efeito cumulativo do risco. Estes pesquisadores avaliaram crianças de 215 famílias em relação a fatores de risco relacionadas ao quociente intelectual (QI): doença mental materna; níveis elevados de ansiedade materna; perspectivas parentais limitadas; interação limitada entre a criança e a mãe; baixa escolaridade materna; chefe da família sem ocupação qualificada; famílias monoparentais; presença de eventos estressores e famílias com quatro filhos ou mais. Os resultados mostraram que o efeito cumulativo de múltiplas adversidades aumentava a probabilidade de comprometimento no desenvolvimento da criança. Além disso, verificou-se que diferentes combinações em igual número de fatores de risco produziram resultados similares de QI. Garmezy (1993) também comprovou o efeito cumulativo de eventos estressores familiares (discórdia entre os pais, criminalidade na família, desordem psiquiátrica da mãe, ausência de cuidados parentais) na potencialização de problemas psiquiátricos em crianças. O pesquisador verificou que a presença de um único estressor (ou nenhum estressor) produzia aumento de um por cento nas chances de desordem psiquiátrica da criança, enquanto dois estressores aumentavam para cinco por cento; três estressores para seis por cento e quatro ou mais eventos somavam 21 por cento de chances da criança desenvolver uma desordem psiquiátrica.

O efeito cumulativo do risco tende a ocorrer, já que as adversidades não costumam estar isoladas, fazendo parte de um mesmo contexto social. Sendo assim, dificilmente, encontramse eventos estressores como eventos isolados. Comumente, eles fazem parte de um contexto complexo, sendo ainda responsáveis por desencadear outros eventos estressores. Por exemplo: uma criança submetida à violência familiar no ambiente doméstico pode fugir para a rua, como uma alternativa para evitar o tratamento austero e a violência sofrida. Na rua, porém, outros eventos adversos continuam a ocorrer (fome, frio, violência de policiais, exposição à s drogas, exploração sexual etc.). Essas experiências adversas se acumulam ao longo da sua história de vida. Porém, Haggerty, Sherrod, Garmezy e Rutter (2000) explicam que o efeito do acúmulo de risco pode ser pior nas populações mais pobres, para as quais as adversidades tendem a estar mais associadas entre si e as fontes de apoio (fatores de proteção) mais escassas. Conforme proposto no modelo cumulativo do risco (Haggerty et al., 2000; Sameroff et al., 1987), a associação de eventos estressores aumenta a probabilidade de resultados negativos para os indivíduos. Nesse sentido, Sapienza e Pedromônico (2005) concluem que os problemas de comportamento são, em sua maioria, resultantes da combinação de múltiplos fatores de risco.

Outra discussão que a área de estudo do risco propõe diz respeito à diferença pela qual o impacto de cada evento estressor tende a ser avaliado pelos indivíduos. Sabese que cada pessoa tem uma percepção subjetiva diferenciada sobre o que considera mais ou menos estressante (Kristensen, Dell'Aglio, Leon & D'Incao, 2004; Yunes & Szymanski, 2001). Assim sendo, alguns autores (Dumont & Provost, 1999; Mullis, Youngs, Mullis & Rathge, 1993) têm destacado a necessidade de mensurar não somente a experiência objetiva (presença do estressor), mas também a experiência subjetiva (intensidade atribuída ao evento estressor por quem o vivencia). Para uma criança/ adolescente, por exemplo, alguns eventos crônicos ou micro eventos diários, tais como discussões ou conflitos familiares, podem trazer um impacto mais negativo do que eventos estressores agudos, como a morte de um familiar, por exemplo, (Feijó, Raupp & John, 1999; Lohman & Jarvis, 2000). Para outros indivíduos, porém, a morte de um familiar pode ser vista como mais estressante. De acordo com Koller e De Antoni (2004), essa variação na forma como as pessoas se relacionam com os eventos estressores está relacionada aos diferentes graus de ocorrência, intensidade, freqüência, duração e severidade dos eventos. Esses critérios são tanto objetivos (número de vezes e estágio desenvolvimental em que ocorreu) quanto subjetivos, já que envolvem a avaliação subjetiva dos indivíduos que os sofreram e que irão avaliar os eventos como mais ou menos estressantes.

O presente artigo tem como objetivos: 1) investigar o número e o impacto de eventos estressores de vida em dois grupos de adolescentes (adolescentes em situação de rua e adolescentes em situação de vulnerabilidade social que vivem com suas famílias); 2) descrever e comparar os resultados de indicadores de ajustamento (número de sintomas físicos, comportamento suicida, uso de drogas, comportamento sexual de risco, afeto positivo e afeto negativo) nos dois grupos; e 3) avaliar a associação dos eventos estressores com o indicador geral de mau ajustamento, criado a partir da soma dos diferentes indicadores de ajustamento avaliados.

Método

Delineamento e Participantes

Tratase de um estudo transversal e exploratório (com caráter analítico), que foi realizado com 98 adolescentes, divididos em dois grupos: aqueles que vivem em situação de rua (n = 32; 32,7%) e os que moram com suas famílias e freqüentam uma instituição para jovens em situação de vulnerabilidade social (n = 66; 67,3%). No grupo de adolescentes com baserua (G1), a maioria (n = 27; 84,4%) era do sexo masculino, com idade média de 14,69 anos (SD = 1,85). Já no grupo de adolescentes com base-familiar (G2), 38 (57,6%) eram do sexo feminino e tinham em média 15,53 anos (SD = 1,12).

Instrumentos

Inventário de Eventos Estressores: 61 itens que avaliam a presença/ausência de eventos de vida estressores, como por exemplo: ter tido problemas com professores, morte de um dos pais, ter sofrido agressão física, ter dormido na rua, etc. Para cada item, os participantes deveriam indicar a ocorrência do evento como sim/não e, a partir disso, pontuar em uma escala de cinco pontos o impacto atribuído a cada evento experienciado (1-nenhum pouco estressante a 5-totalmente estressante). Esse inventário foi adaptado de Kristensen, Dell'Aglio, Leon, e D'Incao (2004). Aos 60 itens iniciais foi acrescentado mais um no presente estudo: "ter sido internado para tratamento de dependência química". A semelhança do que Kristensen et al. (2004) fizeram, nesse estudo foram realizadas análises separadas para os escores de ocorrência e de impacto do Inventário de Eventos Estressores. Com relação à ocorrência, calculouse o número total de eventos estressores para cada participante, somandose o número de respostas "sim" aos 61 itens do inventário. A média do impacto total do inventário foi calculada através da divisão da soma total dos valores de impactos atribuídos para cada evento já ocorrido pelo número total de eventos com impacto válido.

Checklist de Sintomas Físicos: os participantes relataram a presença (0-não, 1-sim) de 11 sintomas (febre, dor de cabeça, problema respiratório etc.) durante o último mês anterior à realização da pesquisa. Esses itens foram construídos com base nos estudos de Altshuler e Poertner (2002), Panter-Brick (2001), Morais (2005) e Raffaelli, Koller e Morais (2007). Criouse um índice de Sintomas Físicos, com base na soma das respostas afirmativas, variando de 0-nenhum sintoma a 11-todos os sintomas.

Escala sobre o Uso de Drogas: os participantes relataram a freqüência de uso de drogas (lícitas e ilícitas) no último mês, usando para isso uma escala que variou de 1-não usou a 4-usou quase todos os dias (20 dias ou mais), baseada no estudo de Noto et al. (2004). Foi criada uma escala para avaliar a média do uso geral de drogas no último mês pelos participantes, tendo como base as drogas lícitas e ilícitas, a qual apresentou uma adequada consistência interna (Alpha = 0,87).

Escore de Risco para Comportamento Suicida: foram realizadas duas questões sobre a ideação e tentativa de suicídio ao longo da vida pelos participantes, as quais foram categorizadas em 0-não ou 1-sim. Caso a resposta sobre a tentativa tenha sido afirmativa, os participantes foram perguntados sobre o número de tentativas de suicídio. Uma vez que a literatura sobre suicídio afirma existir certo continuum entre a ideação, tentativa e perpetração do suicídio (Botega, Barros, Oliveira, Dalgalarrondo & Marin-León, 2005) e dado o alto percentual de uma tentativa ou mais de suicídio no subgrupo de adolescentes em situação de rua, optouse por se criar um Escore de Risco para o Comportamento Suicida. O escore foi criado através da junção das questões de se "já pensou, já tentou e quantas vezes tentou o suicídio". Os valores foram os seguintes: 0-Não pensou e não tentou; 1-Pensou e não tentou; 2-Tentou uma vez e, 3-Tentou duas vezes ou mais.

índice Geral de Comportamento Sexual de Risco: os participantes responderam a seis questões sobre o comportamento sexual, com base no estudo de Noto et al. (2004). Exemplos das questões são os seguintes: "você já transou alguma vez na vida?", "quantos parceiros você teve no último ano", "atualmente você tem um parceiro 'fixo', 'não fixo' ou 'ambos', etc. O índice geral de comportamento sexual de risco foi criado a partir das seguintes variáveis: já ter transado na vida, ter tido três parceiros ou mais no último ano, ter transado antes dos 13 anos, não ter usado camisinha na última relação sexual e ter tido alguma DST no último ano (Cerqueira-Santos, 2008; Donovan, Jessor & Costa, 1988; Jessor et al., 1995). Respostas afirmativas a cada uma dessas questões foram somadas, a fim de compor o índice geral de comportamento sexual de risco para cada participante, o qual poderia variar de 0-nenhum risco a 5-presença de todos os comportamentos sexuais de risco.

Escala de Afeto Positivo e Negativo: Essa escala é formada por 40 itens (sendo 20 em cada sub-escala) e constitui uma versão ampliada das PANAS-C (Positive and Negative Affect Schedule for Children), originalmente desenvolvido por Laurent et al. (1999). Os participantes indicaram, em valores de 1-nenhum pouco a 5-muitíssimo, o quanto se sentiam felizes, alegres, tristes, deprimidos, etc. com relação a cada item. Os coeficientes alpha obtidos no presente estudo para a subescala de Afeto Positivo foi de 0,88 e de 0,92 para a subescala de Afeto Negativo, sendo considerados consistentemente satisfatórios.

Indicador Geral de Mau Ajustamento: é um compósito que foi formado a partir da soma dos seis indicadores de ajustamento (sintomas físicos, uso de drogas, comportamento suicida, comportamento sexual de risco, afeto positivo e afeto negativo). Para sua criação, foram realizados os seguintes passos: 1) a inversão dos itens da Escala de Afeto Positivo, de forma que os escores mais altos representassem menor afeto positivo, ou seja, maior "mau ajustamento"; 2) a transformação de cada indicador de ajustamento em um escore padronizado (escore z), o qual permitiu a comparação dessas medidas, obtidas a partir de diferentes escalas de mensuração; e 3) a soma dos escores padronizados (escore z) de todos os indicadores (sintomas físicos, uso de drogas, comportamento suicida, comportamento sexual de risco, afeto positivo e afeto negativo) a fim de formar o indicador geral de mau ajustamento.

Procedimentos

Coleta de Dados

Os participantes foram recrutados em instituições de atendimento para adolescentes em situação de vulnerabilidade social. No caso do grupo com base-familiar, os dados foram coletados em uma ONG, localizada em um bairro da periferia da cidade de Porto Alegre, caracterizado por altos índices de pobreza, violência e por ser uma região que "manda" muitas crianças e adolescentes não só para o centro da cidade, quanto para áreas da redondeza do mesmo bairro, a fim de esmolar, trabalhar, brincar etc. Essa ONG oferece atividades socioeducativas em turno inverso ao da escola para crianças e adolescentes da comunidade, com o objetivo de promover os direitos destas.

Os dados dos adolescentes do grupo de baserua foram coletados em duas instituições da rede de atendimento especializada à infância e adolescência em situação de rua da cidade de Porto Alegre.

Ambas as instituições (abrigo diurno e albergue noturno) estão localizadas na região central da cidade e se caracterizam por oferecer alimentação, cuidados de higiene, lugar para pernoitar e atividades lúdico-pedagógicas (vídeo-game, oficina de teatro, televisão, pintura, etc.) e esportivas.

O processo de coleta de dados teve como base o procedimento da Inserção Ecológica, desenvolvida por Cecconello e Koller (2003) e Eschiletti-Prati et al. (2008), como uma operacionalização metodológica da Abordagem Bioecológica do Desenvolvimento Humano, elaborada por Urie Bronfenbrenner (1979/1996; 1989, 1999) e Bonfenbrenner e Morris (1998). No caso dessa pesquisa, a inserção consistiu em visitas sistemáticas da primeira autora a cada uma das três instituições por um período de sete meses. Em média, foram realizadas duas visitas por semana a cada instituição. Durante essas visitas, a pesquisadora engajouse em atividades do cotidiano de cada espaço, procurando conhecer e fazer parte das mesmas, ao mesmo tempo em que conseguia a vinculação com adolescentes e educadores das instituições. Tal vinculação é considerada essencial à realização da Inserção Ecológica, uma vez que permite um maior conhecimento da realidade estudada pelos pesquisadores (garantindo validade ecológica aos dados coletados). Mas também e, sobretudo, porque pressupõe uma relação diferenciada entre pesquisador(a) e participante do estudo (tanto o(a) adolescente entrevistado(a) quanto a instituição). Entre estes, portanto, passa a existir uma relação de reciprocidade, de forma que o processo de coleta de dados não fica alheio do cotidiano dos participantes, nem restrito a um único encontro. Pesquisadores e participantes podem, assim, ao longo do tempo e das atividades que compartilham, conheceremse mais, compartilhar experiências de vida e significados culturais. Mais do que isso, a Inserção Ecológica permite, sobretudo em se tratando de populações em situações de vulnerabilidade social (tradicionalmente vítimas de diversos tipos de violação de direitos ao longo da sua vida), que o (a) pesquisador(a) possa atuar em cada contexto como um agente de proteção e como uma figura de apoio positiva para esses adolescentes e profissionais com quem interage.

Concretamente, nessa pesquisa, a "proteção" e o "apoio" podem ser expressos através dos momentos de conversa e escuta dos adolescentes, partilha de diferentes conhecimentos (saúde, educação, etc.), ou no caso dos profissionais, através dos constantes feedbacks (sobre adolescentes específicos, dinâmica da instituição, etc.) que a inserção no contexto foi permitindo. Com a maior vinculação entre a pesquisadora e os participantes, o procedimento de aplicação dos instrumentos pôde ter início.

No caso do grupo de adolescentes em situação de rua, todos os instrumentos foram aplicados individualmente. Em média, cada adolescente do grupo de base-rua levou três encontros (com duração média de 1 hora cada) para responder a todos os instrumentos usados na pesquisa. No grupo de base-familiar, dado o maior grau de escolaridade e maior facilidade com a leitura, optouse por aplicar coletivamente (turmas de 15 adolescentes cada) o Inventário de Eventos Estressores e a Escala de Afeto Positivo e Negativo. Os dados sobre saúde física uso de drogas, comportamento suicida e comportamento sexual de risco foram obtidos durante a entrevista, realizada individualmente com cada adolescente. No grupo com base-familiar foram necessários, portanto, dois encontros com cada adolescente, sendo que o primeiro (coletivo) durou em média 45 minutos e o segundo (individual) durou em média uma hora.

Aspectos éticos

Todos os procedimentos éticos necessários à execução desse estudo foram respeitados. Desde a aprovação pelo Comitê de ética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Protocolo n. 2006533), passando pela apresentação do projeto de pesquisa aos dirigentes das instituições, assim como pela assinatura do Termo de Concordância para a realização de pesquisa por estes. Além disto, a cada adolescente participante, foram apresentados os objetivos da pesquisa, assim como explicados os critérios do sigilo de sua identidade e o seu direito de aceitar participar ou não do estudo, assim como de desistir em qualquer fase da realização do mesmo.

Aos aspectos legais exigidos, destacase a preocupação da equipe de pesquisa de orientar a sua prática pelas concepções acerca da infância e adolescência proposta pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), assim como pelas recomendações propostas na literatura sobre a pesquisa com crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, incluindo aqueles em situação de rua (Hutz & Koller, 1999; Neiva-Silva, Morais & Koller, no prelo).

Resultados

Os resultados foram analisados através do uso do Software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 13. Adotouse um p < 0,05 como nível de significância crítico para todas as análises.

Os resultados estão apresentados em três partes. Na primeira delas, é apresentada uma comparação entre os dois grupos (G1 e G2) de todas as variáveis estudadas (eventos estressores-número e impacto; sintomas físicos; uso de drogas; comportamento suicida; comportamento sexual de risco; afeto positivo; afeto negativo e indicador geral de mau ajustamento). As médias foram comparadas através do Teste t de Student e do Teste de Mann-Whitney, dependendo do grau de normalidade da variável. Apenas no grupo de base-familiar foram realizadas análises comparativas por sexo das variáveis de número e impacto dos eventos estressores e para os seis indicadores de ajustamento. Na segunda parte, é apresentado o resultado de correlações (de Pearson e de Spearman) entre o número/impacto dos eventos estressores com todos os indicadores de ajustamento. As correlações de Pearson foram utilizadas quando se tratava de duas variáveis com distribuição normal, enquanto a correlação de Spearman foi utilizada quando pelo menos uma das variáveis da análise de correlação não tinha uma distribuição normal. Por fim, na terceira parte, análises de regressão linear foram realizadas para testar a associação entre as variáveis número e impacto de eventos estressores com a variável de desfecho (mau ajustamento).

Comparação entre os Grupos: Eventos Estressores e Indicadores de Ajustamento

Verificou-se que o grupo de base-rua apresentou maior média de eventos estressores (t = -3,39; df = 44; p < 0,001) e maiores valores de impacto (U = 605; z = -2,28; p < 0,05), comparado ao grupo de base-familiar, conforme mostra a Tabela 1.

Os eventos estressores de vida mais freqüentemente citados (em ordem decrescente) pelos adolescentes que vivem em situação de rua foram: ter dormido na rua, discutir com amigos, rodar de ano na escola, ter brigas com irmãos e ir para o Conselho Tutelar. Já as maiores médias de impacto foram atribuídas aos seguintes eventos (em ordem decrescente): rodar de ano na escola, morte de outro familiar, discutir com amigos, ter dormido na rua e ter brigas com irmãos. No grupo com base na família, os eventos estressores de vida mais freqüentemente citados foram: ter que obedecer à s ordens dos pais, ter brigas com os irmãos, tirar notas baixas na escola, morte de outro familiar e alguém da família não conseguir emprego. No que se refere ao impacto, as maiores médias foram atribuídas aos seguintes eventos: ter brigas com irmãos, morte de outro familiar, ter que obedecer à s ordens de seus pais, ter algum familiar que bebe muito e tirar notas baixas na escola.

Os grupos também se distinguiram quanto aos indicadores de ajustamento, conforme se poder ver na Tabela 1. O grupo de base-rua apresentou médias maiores que o grupo de base-familiar em todos os indicadores: sintomas físicos (U = 315; z = -2,94; p < 0,005), uso de drogas (U = 194; z = -4,42; p < 0,001), comportamento suicida (U = 399; z = 1,92; p < 0,05), comportamento sexual de risco (U = 301; z = -2,79; p < 0,005), afeto positivo (t = -2,01; df = 92; p < 0,05) e afeto negativo (t = -4,51; df = 92; p < 0,001). Diferenças de gênero foram encontradas apenas para a variável de comportamento sexual de risco entre os adolescentes com base-familiar. Nesse caso, os meninos apresentaram uma média mais alta que as meninas (M = 1,38; SD = 0,91 versus M = 0,36; SD = 0,55; U = 101; z = -3,89; p < 0,001).. No grupo da rua não foram realizadas análises comparativas por gênero, dado o pequeno número de adolescentes do sexo feminino (n = 4; 12,5%).

O grupo de base-rua também apresentou um pior indicador geral de mau ajustamento quando comparado ao grupo de base-familiar, conforme mostra o resultado do teste de Mann Whitney (U = 218; z = -3,45; p < 0,001). As médias apresentadas por cada grupo são descritas na Tabela 1. Em se tratando de um indicador que é negativo (mau ajustamento), compreende-se que quanto mais positivo o valor da medida, pior o ajustamento (maior o "mau ajustamento"). Quanto mais negativo, porém, melhor o ajustamento (pior o "mau ajustamento"). Os valores do indicador de mau ajustamento variaram entre os participantes de-6,32 (melhor ajustamento) a 9,17 (pior ajustamento).

Correlações entre as Variáveis Sociodemográficas, os Eventos Estressores (Número e Impacto) e os Indicadores de Ajustamento

A Tabela 2 apresenta os resultados das análises bivariadas entre as variáveis sociodemográficas (idade e sexo), os eventos estressores (número e impacto) e os indicadores de ajustamento para o grupo de base-rua e o de base-familiar.

Conforme mostra a Tabela 2, nenhuma correlação foi encontrada entre idade e as demais variáveis analisadas no grupo de base-familiar. Nesse grupo, a variável sexo se correlacionou positivamente com o comportamento sexual de risco, o que sugere que no grupo dos meninos o comportamento sexual de risco tende a ser maior. Nesse grupo, foram encontradas correlações positivas entre número de eventos estressores e as seguintes variáveis: impacto, sintomas físicos, uso de drogas, comportamento suicida e afeto negativo. O impacto também correlacionou positivamente com o comportamento suicida e o afeto negativo. Entre os indicadores de ajustamento, apenas duas correlações positivas emergiram: entre sintomas físicos e uso de drogas e entre sintomas físicos e comportamento suicida. O indicador geral de mau ajustamento, porém, correlacionouse positivamente com cinco dos seis indicadores (sintomas físicos, uso de drogas, comportamento suicida, comportamento sexual de risco e afeto negativo), mostrando uma correlação negativa apenas com a variável de afeto positivo. Por fim, verificou-se que o indicador geral de mau ajustamento está correlacionado positivamente com o número e com o impacto dos eventos estressores.

No grupo da rua, idade e sexo não apresentaram nenhuma correlação significativa com as demais variáveis. O número de eventos estressores esteve positivamente correlacionado com as variáveis de impacto de eventos estressores, sintomas físicos, comportamento suicida e afeto negativo. O impacto também esteve correlacionado com o afeto negativo. Um maior número de indicadores de ajustamento esteve correlacionado entre si (sintomas físicos com uso de drogas, sintomas físicos e suicídio; sintomas físicos e afeto negativo; drogas e suicídio; suicídio e afeto negativo). Por fim, o mau ajustamento se correlacionou positivamente com cinco dos seis indicadores de ajustamento (a exceção foi a variável de afeto positivo) e com o número de eventos estressores.

Variáveis Independentemente Associadas ao Mau Ajustamento: A Influência do Número/ Impacto dos Eventos Estressores

Uma análise de regressão linear (ver Tabela 3) foi realizada a fim de verificar a associação existente entre idade, sexo, tipo de grupo (base-familiar e base-rua), número e impacto dos eventos estressores de vida com o Indicador geral de Mau Ajustamento.

Conforme mostra a Tabela 3, no primeiro modelo foram inseridas as variáveis idade, sexo e tipo de grupo (base-familiar e base-rua). Este modelo teve uma variância explicada de 24% e mostrou que "tipo de grupo" foi independentemente associado com o índice geral de mau ajustamento. Ou seja, ser do grupo de base-rua aumentou a probabilidade de mau ajustamento. No modelo final, foram inseridas as variáveis número e impacto de eventos estressores e a variância explicada aumentou para 41%. Nesse modelo, por sua vez, apenas a variável número de eventos estressores mostrouse independentemente associada ao mau ajustamento. Ou seja, os participantes com maior número de eventos estressores apresentaram maiores chances de ter um escore maior de mau ajustamento. O modelo foi significativo [F (4, 65) = 9,80, p < 0,001].

Discussão

Os resultados desse estudo vêm sublinhar o contexto de adversidade vivenciado especialmente pelo grupo de adolescentes que vivem em situação de rua. Esta condição já foi amplamente apontada na literatura (Alves et al., 2002; Koller & Hutz, 1996; Morais, 2005, 2009; Noto et al., 2004).

Comparativamente, o grupo de base-rua apresentou um número médio de eventos estressores maiores que o grupo de base-familiar (ver Tabela 1). Os escores de eventos estressores encontrados no presente estudo foram também superiores aos valores encontrados por Poletto, Dell'Aglio, e Koller (2009) e Paludo (2008) que investigaram a ocorrência e o impacto de eventos estressores em dois grupos de crianças e adolescentes (que moram com a família e que moram em abrigos) de Porto Alegre e Rio Grande (cidade do interior do Rio Grande do Sul), respectivamente.

No estudo de Poletto, Dell'Aglio, e Koller (2009) realizado com 297 participantes com média de idade de 11 anos, os valores médios de eventos estressores variaram de 19,16 eventos ( SD = 9,37) no grupo de crianças e adolescentes que moram com suas famílias a 26,79 eventos ( SD = 8,67) para as crianças e adolescentes que viviam em abrigos. No estudo de Paludo (2008), que teve 856 participantes com média de idade de 11 anos, a média da ocorrência de eventos estressores foi maior no grupo de crianças e adolescentes que morava em abrigo (M = 27,47; SD = 10,26) quando comparado aos adolescentes do grupo que morava com as famílias (M = 16,70; SD = 9,13). Embora a média de idade dos adolescentes do presente estudo tenha sido relativamente maior que a do estudo de Poletto, Dell'Aglio, e Koller, (2009) e Paludo (2008), a comparação pode ser válida, dada a semelhança de perfis dos jovens entrevistados, os quais foram recrutados em bairros periféricos com baixos indicadores sociais na cidade de Porto Alegre e Rio Grande. Sendo assim, pode-se concluir que os adolescentes em situação de rua desse estudo apresentaram uma média maior de eventos estressores que os adolescentes entrevistados em abrigos (Paludo, 2008; Poletto, Dell'Aglio & Koller, 2009), os quais também apresentam médias maiores que os adolescentes que vivem com suas famílias, tanto no presente estudo quanto no das autoras citadas.

No caso dos adolescentes em situação de rua participantes desse estudo, pode-se afirmar que muitos dos eventos estressores aconteceram antes da sua vinda para a rua. Durante a entrevista, por exemplo, isso ficou bastante claro, tanto no que se refere aos eventos estressores relacionados à violência no contexto familiar, dificuldades financeiras e no contexto escolar (problemas com professores, reprovação, abandono da escola, etc.). Ou seja, as dificuldades com a família, financeiras e com a escola não passaram a existir somente após a ida da criança/adolescente para a rua, mas, ao contrário, são anteriores. E, claramente, os eventos estressores relacionados à violência familiar vivenciada estiveram diretamente relacionados à sua saída de casa e ida para a rua. A questão, porém, como destacado por outros estudos (Morais, 2005; Ribeiro, 2001, 2003), era que na rua, a violência também continuou, ao invés de cessar. Mais uma vez, confirmouse a "contradição" destacada por Noto et al. (2004) acerca da rua na vida dos adolescentes que nela vivem, bem como o lugar de destaque que a violência parece ter nas relações estabelecidas nos diferentes espaços que freqüentam. Se por um lado, eles informam buscar a rua como uma alternativa para se libertarem dos constantes castigos, ameaças físicas e agressões verbais vivenciados na sua casa, na rua, continuavam a sofrer estes e/ou outros tipos de violência (ameaça com armas, agressão física, ameaças de abuso sexual, estupro, etc.). Na rua, os agressores não eram mais os próprios familiares, mas os companheiros, integrantes de gangs, policiais, e a população em geral que os exclui e tem medo deles. Acerca da violência vivenciada pelos adolescentes em situação de rua, Ribeiro e Ciampone (2001) afirmaram que "durante as suas trajetórias de vida eles viveram em muitas situações diferentes, mas em todas as violências parece ter sido a protagonista" (p. 47). Este é um aspecto que pareceu se repetir na amostra aqui estudada.

O valor do impacto dos eventos estressores também foi diferente entre os grupos, sendo maior no grupo de base-rua (ver Tabela 1). No estudo de Poletto (2007) não foi realizado o cálculo do impacto médio geral por grupo, mas comparado o impacto de cada evento estressor entre os grupos (família e abrigo). Nesse caso, as diferenças significativas mostravam que o maior impacto tendia a ser atribuído pelos participantes do grupo que vivia com a família. Paludo (2008), ao contrário, encontrou que a média do impacto dos eventos estressores foi significativamente maior no grupo de crianças e adolescentes que morava em abrigo quando comparado à queles que moravam com as famílias.

Os resultados dos grupos nos indicadores de ajustamento mostraram que as médias de sintomas físicos, uso de drogas, comportamento suicida, comportamento sexual de risco e de afeto negativo foram sempre maiores no grupo de base-rua, quando comparado ao grupo com base-familiar (ver Tabela 1).

As variações encontradas no número de sintomas físicos presentes nos dois grupos de adolescentes ilustram os condicionantes sócio-ambientais do processo saúde-doença, uma vez que sugerem a relação entre condições de vida (ou falta destas) no processo de adoecimento (Morais & Koller, 2006, 2009). Uma vez que os adolescentes em situação de rua estão mais sujeitos à s intempéries do ambiente (frio, chuva, etc.) é realmente mais provável que os mesmos tendessem a apresentar um maior número de sintomas que o grupo de adolescentes que viviam com suas famílias.

O maior uso de droga entre o grupo de adolescentes em situação de rua, mostrado na Tabela 1, confirma os achados de outros estudos, os quais afirmam ser o uso de droga um comportamento de risco bastante presente no contexto desses adolescentes (Forster, Tannhauser & Barros, 1996; Neiva-Silva, 2008; Noto et al., 1998, 2004) . Ao mesmo tempo, a ausência de uso de drogas ilícitas, bem como o menor uso de drogas lícitas (cigarro e álcool) pelos adolescentes do grupo de base-familiar, sugere que a vinculação familiar pode estar agindo como um fator protetivo para o menor uso de droga. A pesquisa de Neiva-Silva (2008), por exemplo, mostrou que o fato da criança ou adolescente em situação de rua não morar com a família, passar mais de oito horas por dia na rua e estar há mais de cinco anos na rua aumenta significativamente a probabilidade da mesma vir a fazer uso de drogas ilícitas no presente, bem como iniciar o uso de crack no futuro.

O maior risco dos adolescentes em situação de rua também ficou evidente com os maiores escores de comportamento sexual de risco (ver Tabela 1), fato que também tem sido mencionado em outros estudos (Carvalho et al., 2006; Raffaelli et al., 1993). Já os dados sobre comportamento suicida (ver Tabela 1) revelaram um maior percentual de ideação e tentativa no grupo de adolescentes em situação de rua. Estes dados corroboram os achados de Stiffman (1989), com jovens em situação de rua em outro contexto (nos Estados Unidos), o qual mostrou que a tentativa de suicídio estava relacionada com abuso de droga, eventos negativos de vida, fuga de casa, problemas de comportamento e instabilidade familiar. No contexto brasileiro, Noto et al. (2004) mostraram que no grupo de adolescentes em situação de rua, a tentativa de suicídio estava mais associada ao gênero, idade e diminuição da vinculação familiar.

Ao contrário talvez do que o senso comum possa supor, os jovens em situação de rua apresentaram médias de afeto positivas mais altas que o grupo de base familiar (ver Tabela 1). Médias maiores também foram encontradas para a variável do afeto negativo (ver Tabela 1). Se de um lado, poderia parecer uma tendência dos jovens em situação de rua a serem extremistas na expressão tanto dos afetos positivos quanto dos negativos, característica também apontada por alguns autores (ver Newcombe, 1996/1999, por exemplo) como sendo característica da adolescência, por outro, há ainda, o papel que a auto-percepção do afeto positivo pode está exercendo na vida desses adolescentes do grupo de base-rua. Com base em Tfouni e Moraes (2003), a auto-percepção poderia funcionar como uma "ficção", ou seja, como uma "ilusão que traz um benefício, na medida em que compensa o sofrimento de uma pobreza material e afetiva, agindo assim com um estatuto de suplência" (p. 83). Na mesma direção dessa explicação, encontrase a explicação advinda dos estudos sobre satisfação de vida, auto-estima e comparação social, segundo os quais adolescentes em situação de vulnerabilidade tendem a utilizarse de um mecanismo de comparação, denominado downward, com cognições do tipo "pelo menos eu estou vivo" para se julgarem felizes, a despeito da situação social que vivenciam (Wadsworth & Compas, 2002).

Outra possibilidade de interpretação seria a de que os adolescentes julgavamse como detentores de afetos positivos, pois continuavam tendo condições para tanto, ou seja, continuavam usando seus recursos pessoais (humor, otimismo, autoeficácia, etc.) para enfrentarem as situações que se lhes apresentavam (por mais difíceis e sofridas que fossem). Nesse sentido, ao contrário dos preconceitos e estereótipos que, muitas vezes, recaem sobre essas crianças e adolescentes, de que são apenas violentos ou mesmo vítimas de uma situação (violência, pobreza, etc.), a inserção ecológica com esses adolescentes mostrou que parte expressiva deles continuava a demonstrar a capacidade de brincar, sorrir, expressar afeto positivo etc.

Além disso, as histórias de vida, a partir do enfrentamento das inúmeras e duras situações pelas quais passaram, revelavam que, de uma forma ou de outra, ao saírem de casa, eles estavam em busca de uma forma de vida mais saudável (Leite, 1998; Morais, 2005). De acordo com Hyde (2005), não se pode, portanto, negligenciar o sense of agency dessas crianças e adolescentes, ou seja, a sua capacidade de auto-governo e de enfrentamento das situações adversas ao seu redor. Isto ficou evidente na amostra estudada, por exemplo, quando apenas os participantes do grupo de base-rua mencionaram os afetos positivos "forte" e "corajoso" entre os cinco mais citados. Ao passo que os adolescentes do grupo de base-familiar não elegeram esses afetos como os de maior relevância para si.

No estudo de Paludo (2008) e Poletto (2007), realizado com crianças e adolescentes abrigadas e que moravam com as famílias nas cidades de Rio Grande e Porto Alegre, RS, a média de afeto positivo também foi maior que a média de afeto negativo para os dois grupos de crianças (abrigadas e que moravam com as famílias) participantes dos dois estudos. Outro padrão comum nestes estudos foi o fato de que os grupos não diferiram quanto à média de afeto positivo, mas somente em relação ao afeto negativo. No grupo de crianças/adolescentes abrigadas a média de afeto negativo foi superior à média do grupo que vivia com a família. Comparandose as médias de afeto positivo e negativo do presente estudo com os resultados de Arteche e Bandeira (2003), verifica-se que os adolescentes do presente estudo apresentaram maiores médias de afeto positivo e negativo quando comparadas à s médias encontradas pelas pesquisadoras. Arteche e Bandeira compararam 193 adolescentes (14-17 anos), os quais foram classificados em três grupos, de acordo com o tipo de trabalho que realizavam: trabalho educativo (TE), trabalho regular (TR) e não trabalhadores (NT). A média geral do afeto positivo dos adolescentes foi de 3,04 (SD = 0,64), enquanto a de afeto negativo foi de 1,96 ( SD = 0,69).

Os resultados das correlações entre número e impacto dos eventos estressores com o indicador geral de mau ajustamento nos dois grupos (ver a Tabela 2) mostrou que, quanto maior o número de eventos estressores, maior o mau ajustamento dos adolescentes nos dois grupos. Já o maior impacto esteve correlacionado com o mau ajustamento apenas no grupo de adolescentes com base-familiar. Esses resultados comprovam, portanto, a hipótese do efeito cumulativo do risco, segundo a qual, quanto maior o número de riscos enfrentados, maiores os problemas de ajustamento (Martins, 2004; Sameroff et al., 1987; Sapienza & Pedromônico, 2005). No contexto brasileiro, Raffaelli, Koller, Cerqueira-Santos, e Morais (2007) examinaram a relação entre exposição ao risco e ajustamento entre 918 jovens brasileiros empobrecidos (14-19 anos) de uma cidade da região sul do país. Altos níveis de riscos desenvolvimentais, referentes a diferentes domínios (familiar, econômico e comunitário) foram avaliados e associações entre a exposição ao risco e dificuldades psicológicas (por exemplo, afeto negativo) e comportamentais (uso de droga) foram encontradas.

As correlações positivas encontradas no presente estudo entre o indicador geral de mau ajustamento e os diferentes indicadores de ajustamento isoladamente (nos dois grupos) comprovaram, ainda, a hipótese de Donovan, Jessor, e Costa (1988) de que diferentes problemas comportamentais (número de sintomas físicos, uso de drogas, suicídio, comportamento sexual de risco e afeto negativo) tendem a se correlacionar positivamente.

Por fim, conforme a análise de regressão linear indicou (ver Tabela 3), apenas a variável número de eventos estressores esteve independentemente associada ao indicador geral de mau ajustamento. Nenhuma associação foi encontrada para o valor do impacto médio dos eventos estressores, assim como para as variáveis de idade, sexo e tipo de grupo. Os resultados desse estudo sugeriram, portanto, que o efeito cumulativo de diferentes estressores, mais que o impacto percebido desses eventos, exerceu um peso maior na determinação do mau ajustamento.

Considerações Finais

Esse ar0tigo investigou o número e o impacto de eventos estressores de vida em dois grupos de adolescentes (base-rua e base-familiar). Além disso, avaliou a relação desses eventos estressores com diferentes indicadores de ajustamento e com o indicador geral de mau ajustamento. Os altos índices de eventos estressores vividos pelos dois grupos, assim como a relação dos eventos estressores com o índice Geral de Mau Ajustamento, alerta para a necessidade de medidas preventivas que contribuam para a diminuição do número de eventos estressores na vida desses jovens. Espera-se, ainda, que agindo sobre a diminuição desses eventos, possa se contribuir também para a diminuição dos indicadores de mau ajustamento aqui avaliados. Em consonância com o que vem propondo a literatura na área de intervenção psicossocial, buscase dessa forma, agir não somente sobre um problema isoladamente (uso de droga ou comportamento sexual de risco, por exemplo), mas de uma forma mais global, que atinja o maior número possível de problemas psicossociais (Jessor, Turbin & Costa, 1998; Neiva-Silva, 2008). Esse modelo de intervenção é também abrangente na sua forma de ação. Ao invés de restringir sua ação a um contexto apenas (nível do indivíduo, nível da família, etc.), ele busca ser o mais abrangente possível, envolvendo tanto o adolescente, quanto a sua família, escola e comunidade. Essa necessidade é urgente e está de acordo com os resultados do presente estudo, uma vez que os eventos estressores estão relacionados a múltiplos contextos (familiar, escolar e comunitário), assim como à s questões macrossociais de pobreza e violência. Certamente, ações de intervenção em cada grupo, devem ser pensadas de forma diferente, mas devem contribuir para a redução da exposição desses adolescentes a eventos estressores e, conseqüentemente, aos comportamentos de risco à sua saúde física e psicológica.

Contribuições e Limitações do Estudo

A principal contribuição deste estudo, trazida à área de pesquisa sobre desenvolvimento em contexto de vulnerabilidade social, diz respeito ao uso de instrumentos que avaliaram o número e impacto dos eventos estressores conjuntamente, assim como diferentes indicadores de ajustamento, ao invés de um único indicador. Na área de pesquisa com adolescentes em situação de vulnerabilidade social, sobretudo no contexto brasileiro, os estudos com instrumentos desse tipo e que levem em consideração diferentes indicadores de ajustamento são escassos.

A principal limitação do estudo, no entanto, refere-se ao baixo número de adolescentes no grupo em situação de rua, especialmente de meninas. Apesar do extenso período de tempo passado pela equipe de pesquisa nas instituições destinadas a essa população, verifica-se que houve um esvaziamento das mesmas durante o período em que a pesquisa ocorreu. Esse fato, no entender dos técnicos e dirigentes das instituições está relacionado, sobretudo, com o fato de que muitos meninos e meninas "potenciais" para a situação de rua e freqüência das ruas no centro da cidade estariam ficando em suas comunidades de origem, quase sempre se envolvendo com o tráfico. De fato, tal perspectiva de análise faz muito sentido, sobretudo depois que foram capturadosnão um apenas, mas vários-relatos de adolescentes que disseram estar no "centro", porque estavam fugindo de traficantes e/ou de inimizades nas suas comunidades de origem. Outra limitação diz respeito à perda de respostas dos participantes da rua nos instrumentos que avaliavam o ajustamento. Uma vez que esses instrumentos estavam contidos na entrevista que era a última parte a ser feita no processo de coleta de dados, e dada à alta dinamicidade da vida desses adolescentes (um dia estão na instituição, outro dia não estão mais), muitos participantes acabaram não respondendo a esses instrumentos que ficavam para o final. No grupo com base na família, uma vez que a sua freqüência à instituição onde a coleta foi realizada era mais contínua, essa perda foi menor.

Sobre o pequeno número de meninas na amostra do grupo em situação de rua, verifica-se que essa é uma realidade constatada por várias pesquisas (Alves et al., 2002; Cerqueira-Santos, 2003; Neiva-Silva & Koller, 2002; Noto et al., 2004; Raffaelli et al., 2000; Santana, 2002). De acordo com esses estudos, por uma série de questões socioculturais, os meninos têm acesso mais fácil à s ruas, enquanto as meninas tendem a permanecer no ambiente doméstico cuidando dos seus irmãos mais velhos e/ ou se submeterem à exploração sexual comercial. A esse respeito um dos educadores do albergue noturno falou: "quando chega uma menina na rua, elas são logo pescadas para a prostituição".

Em termos de estudos futuros e pensandose em uma análise mais detalhada dos resultados dos dois grupos, sugerese uma análise comparativa intra-grupo, ou seja, que busque avaliar os resultados de cada participante a partir dos escores dos sujeitos do mesmo grupo. Nesse sentido, ao invés de comparar o resultado de um adolescente do grupo de base-rua com os resultados de um adolescente do grupo de base familiar, devese partir dos resultados médios do próprio grupo da rua, a fim de se entender melhor o desempenho desse adolescente. Além disso, dentro de cada grupo, pode-se, através de estudos de caso, descrever e analisar as trajetórias de vida dos indivíduos que contribuíram para os melhores ou piores resultados de ajustamento, por exemplo. Por fim, sugerese a realização de outros estudos, que partam de uma concepção mais complexa do risco, através da avaliação do impacto moderador (buffering) dos fatores de proteção. No caso da presente pesquisa, já está em andamento um estudo desse tipo, o qual testa o papel moderador que a rede de apoio (fator de proteção) tem sobre o efeito dos fatores de risco (eventos estressores) no maior ou menor ajustamento dos adolescentes.


1.Os anos 80 ficaram conhecidos como a "década perdida", sendo caracterizado pelo crescimento negativo, aumento da inflação, dívida externa e déficit fiscal. Essa situação gerou, por sua vez, uma forte dívida social e o agravamento da situação social brasileira, com a explosão dos bolsões de pobreza e do fenômeno das crianças e adolescentes nas ruas das cidades (Oliveira, 2004).


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