Introdução
A busca da informação em saúde não é um fenômeno moderno. A troca de receitas de chás e banhos de ervas caseiros entre vizinhos, a adoção de práticas curativas sem orientação profissional, ou o uso de uma medicação indicada por um amigo são apenas algumas das muitas situações por meio das quais podemos exemplificar como, indistintamente, a informação em saúde sempre fez parte, em alguma proporção, da vida das pessoas e de suas condutas com vistas para o autocuidado.
Com interesse sobre esse fenômeno, realizamos um estudo acadêmico que objetivou compreender como e porque membros de uma comunidade quilombola de Sergipe buscam se instruir sobre saúde por meio das plataformas digitais. Com a amplitude de achados acerca das razões que contribuem para a busca e o consumo de informação digital em saúde, este artigo apresenta um recorte voltado para a motivação exclusiva de “cuidado consigo e com o outro”.
Como foco de análise, nos fundamentamos na perspectiva da informação digital em saúde marcada por características como: a multiplicidade de fontes; a diversidade de conteúdos e de assuntos; os diferentes formatos e plataformas; a quantidade e tempo de consulta; a dificuldade de verificação e certificação da confiabilidade da informação e/ou do seu emissor; entre outras questões relevantes.
Esse é um contexto em que a informação em saúde é mediada pelo uso da tecnologia digital e impulsionada pelos mais variados motivos, e não rara são as vezes, que essa alternativa acaba por substituir o contato com os profissionais da saúde. O estudo desse comportamento é relevante porque é suporte para as mais diversas decisões, que não dizem respeito apenas à própria saúde, mas também, à saúde das pessoas mais próximas.
Aqui nos debruçamos sobre uma conjuntura em que a informação digital em saú- de ultrapassa os limites sociais e geográficos da vizinhança e do círculo de amizades, que se expande como um acontecimento incontestável e contínuo, e que não acontece de forma isolada com alguns sujeitos ou grupos específicos. Nesse contexto, a informação digital em saúde é marcadamente reconhecida por atributos contraditórios.
O fato é que ao mesmo tempo em que o acesso à informação em saúde é condição fundamental para o fomento do autocuidado, isso nem sempre acontece. Quando esse contato se dá com informação de má qualidade ou mal intencionada, ou quando não há por parte dos sujeitos letramento digital e/ou em saúde1 suficientes, o acesso à informação pode resultar em compreensões pouco assertivas e, consequentemente, em decisões destoantes com as pretensas práticas de autocuidado e do cuidado com o próximo (Soares, 2004).
Fundamentado nas considerações de achados teóricos e empíricos acerca do letramento digital e em saúde (Ala-Mutka, 2011; Roberto et al., 2015), e de suas implicações no âmbito do autocuidado, nos interessou como foco de estudo, a conduta de busca e consumo de informação digital em saúde por membros de comunidades quilombolas, mais especificamente do agrupamento constituído no Bairro Porto D’Areia, localizado na zona urbana da cidade de Estância, em Sergipe (Brasil).
As comunidades quilombolas são grupamentos historicamente mantidos geográfica e socialmente à margem dos grandes centros urbanos, que no Brasil, não têm suas políticas públicas específicas efetivadas à contento. Assim, não lhes são garantidos, na prática, atendimento médico hospitalar, condições de vida como: saneamento básico, alimentação balanceada, áreas de desporto, educação, cultura, entre outros. Contudo, os remanescentes quilombolas são sujeitos sociais que também estão em contato com tecnologias que os põem em relações diversas com informações em saúde.
Além disso, é importante salientar que assim como diversas outras comunidades e/ou agrupamentos sociais, os membros da comunidade quilombola Bairro Porto D’Areia também vivenciam contextos marcados por fragilidade quanto às políticas públicas básicas. Ou seja, o cotidiano deles tanto é marcado por circunstâncias de dificuldade de acesso à saúde formal e de contato com os profissionais, como também são sujeitos que se inserem no quadro da população que nos últimos anos, entre outras coisas, passou a ter acesso à internet, e a tê-la como meio para a busca e o consumo de informações em saúde.
Essa perspectiva de acesso dos remanescentes quilombolas à internet, em especial de suas condutas de busca e consumo de informações em saúde, endossou nosso interesse por compreender as suas motivações e modos de compreensão dos conteúdos. Para o desenvolvimento do estudo, nos utilizamos do método da Teoria Fundamentada em Dados (TFD) ou Grounded Theory para coletar, analisar e apresentar os resultados empíricos que constroem uma formulação teórica a respeito do fenômeno de interesse.
Procedimentos metodológicos
Imerso em um paradigma indutivo-interpretativo, o método da TFD privilegia a construção de formulações teóricas a partir de dados substantivos obtidos juntos aos atores envolvidos no fenômeno investigado, seus entendimentos e percepções em contexto e em conexão com os processos destacados em pesquisa. Com os dados originados dos sujeitos do fenômeno estudado, as orientações guias do método nos conduzem para a análise e construção das estruturas teóricas que desvelam as questões de estudo, sempre a partir e, fundamentalmente, da perspectiva dos sujeitos, em um processo interpretativo rigoroso e honesto do pesquisador (Strauss e Corbin, 2008).
Para a construção das categorias fonte de dados, a TFD recomenda sete procedimentos básicos: 1 - Envolvimento simultâneo na coleta dos dados e análise; 2 - Construção de códigos analíticos e categorias surgidas a partir dos dados; 3 - Uso do método comparativo constante que envolve todas as fases de investigação; 4 - Avanço do desenvolvimento teórico durante cada passo da coleta de dados; 5 - Escrita de memorandos para elaborar categorias; 6. Saturação amostral de dados; e 7 - Condução da revisão de literatura após a análise dos dados pelo pesquisador (Charmaz, apud Ferreira, 2010).
No contato inicial com a comunidade foram contatados dez moradores e, com uma conversa guiada, constatamos que esses sujeitos, de forma variada, buscam informação digital em saúde em seu cotidiano. Na sequência, definimos o critério estratégico da amostragem teórica, que resultou em entrevistas realizadas com doze sujeitos que nos proporcionaram saturação teórica, conforme preconizado pelo método adotado. Abaixo, descrição da amostra no tabela 1.
Elaborado a partir da conversa guiada, o guia para a entrevista em profundidade serviu como um roteiro dos temas explorados (informação em saúde, motivações, sentidos e estratégias de usos), não havendo, necessariamente, perguntas pré-estabelecidas.
As entrevistas em profundidade, gravadas integralmente de forma digital, aconteceram em locais diversos, como a sede da associação de moradores, residências dos respondentes, e locais públicos do bairro, realizadas em doze dias diferentes.
Logo após cada coleta de campo, os conteúdos das gravações foram transcritos e importados para o software Maxqda, utilizado no processo de codificação e análise dos dados substantivos. Este procedimento se deu em concordância com as indicações da TFD, ao sugerir que coleta, transcrição e análise devem ser procedimentos concomitantes.
Com a codificação aberta, examinamos os dados por meio das similaridades e diferenças entre eles, sendo divididos e dispostos em categorias. O processo de categorização dos dados nos guiou para a rotulação da informação a partir da nomeação, sintetização e organização deles. Assim, foi possível desenvolvermos as categorias iniciais que, ao longo das entrevistas, foram sendo redefinidas em função dos entendimentos assimilados e suas propriedades específicas.
Nesse procedimento inicial de análise (codificação aberta) das doze entrevistas em profundidade realizadas, foram codificados 422 segmentos, que resultaram em 39 códigos obtidos a partir da transcrição dos dados substantivos.
A partir da separação dos dados em categorias, iniciamos a fase da codificação axial, na qual os relacionamentos e/ou conexões entre as categorias foram exploradas com o intuído do desenvolvimento dos conceitos a serem estabelecidos para a apresentação dos resultados. Essa etapa possibilitou a integração e o relacionamento entre as categorias e as subcategorias, propriedades e dimensões, bem como a reunião de informações para validar a coerência da análise em fase de desenvolvimento.
Desse processo de refinamento das categorias que foram inicialmente obtidas a partir dos dados substantivos, elencamos aquelas que nos pareceram mais pertinentes na empreitada de desvelar o fenômeno em questão. Isso posto, os resultados apresentados na sequência deste estudo são compostos por três grupos de análise assim definidos: 1) Motivos para a busca e o consumo da informação digital em saúde; 2) Estratégias de usos dos aparatos e suportes na busca por informação digital em Saúde; 3) Critérios para interpretação, tomada de decisão e decisão sobre o uso da informação3.
Para o artigo em tela, é apresentado o achado referente ao motivo para a busca e o consumo da informação digital em saúde, atrelado especificamente à razão “cuidado consigo e com outro”. Conforme a abordagem teórica de Usos e Gratificações (U&G), o processo de de audiência dos conteúdos midiáticos está sempre relacionado à premissa de que os sujeitos operam esse comportamento a partir de necessidades e/ou desejos, ainda que não reconhecidamente manifestados, e que são prontamente “atendidos” mediante à exposição aos conteúdos selecionados.
Resultados
Os respondentes relacionam suas buscas por conteúdos digitais sobre saúde à necessidade fundamental de obterem informações que possam conduzir suas decisões com o cuidado consigo e com o outro.
Segundo Maurício4 (41 anos) “De saúde o que eu vejo mais é quando tenho precisão, por causa de alguma doença, sabe? (...) assim, os dois né? Porque tem as coisas de precisão e as coisas de curiosidade. De cirurgia mesmo é só pela curiosidade”.
Vejo coisas de saúde sempre que aparece alguma necessidade. Só procuro mesmo quando tem a necessidade. É assim, eu vejo mais coisas de necessidade mesmo, coisas do menino. (...) aqui a gente não tem desses peixes com veneno, mas eu vejo, eu gosto de ver como faz pra cuidar se a pessoa se machucar com eles, só pela curiosidade mesmo (Manoel, 51 anos).
Mesmo quando afirmam que suas pesquisas restringem somente à curiosidade, há também motivações relativas ao cuidado, visto que não são buscados assuntos aleatórios sobre saúde, mas sim de motivações que, sejam para o presente ou em perspectiva futura, coadunam para o fim prático do autocuidado.
Rodrigo (32 anos) afirma: “Eu pesquiso por tudo. Tem razão que é mesmo necessidade minha, e também por curiosidade, muita curiosidade. Eu sempre tô querendo saber mais, pra me cuidar”.
A entrevistada Katia (35 anos) declara: “Assim por necessidade eu olho muito sobre coisas da mulher, né. Eu tenho nódulo nos seios, então ajuda. (...) por curiosidade tem os assuntos de coisa de útero. Eu não tenho nada, mas eu também pesquiso sobre essas coisas”.
No que se refere à busca por informação digital em saúde para outras pessoas, esta ação ocorre tanto em casos em que a necessidade de cuidado do outro é por ele próprio manifestada, como em casos em que a pretensa necessidade é somente percebida pelo autor da busca.
O marido da minha irmã tá sempre pedindo para eu olhar alguma coisa pra ele. Quando ele sente alguma coisa já diz pra eu pesquisar, pra ver o que pode ser (...) ele tem sempre uma dor de estômago, aí melhora uns dias e depois volta. É muito por causa disso que ele me pede (Ana, 31 anos).
A mãe da minha vizinha tava com uns negócios no pé, uns negócios feios mesmo, parecia que o pé da mulher ia se desmanchar... E o povo dela tava ficando já agoniado, porque não conseguia fazer nada pra melhorar. Pra ajuda eu peguei e pesquisei no YouTube. (...) a gente viu uns vídeos de pessoas com os pés igualzinho o dela, a mesma coisa. Aí o médico tava explicando no vídeo que aquilo aconteceu muito na pessoa que é diabético, e a mãe dela é, só que não sabia que tinha que cuidar dos pés, ela achava que só tinha problema se tivesse alguma ferida ou algum corte. Só que no vídeo a gente viu que não, ela tinha que cuidar dos pés, passar uns cremes, secar bem quando molhasse. Ela viu que não podia usar os produtos de limpeza no chão porque fazia ficar pior. (...) aprendeu ela e eu, porque se um dia precisar, eu já sei (Vinicius, 35 anos).
Por se tratar de uma ação que pressupõe a existência de proximidade na convivência entre os sujeitos, no caso específico do cuidado voltado para familiares, observamos a recorrência dela entre pais e filhos (as), e vice-versa, sendo também verificada, entre netos (as) e avós, e entre parentes de maior distância de grau, como sobrinhos (as) e cunhados (as).
Na minha família tem meu sobrinho que é esquizofrênico, ai eu também fico olhando pra saber essas coisas. Sempre tem coisas assim da família que eu olho, até pra poder ajudar. Coisa de epilepsia mesmo, eu olho um pouco porque uma sobrinha minha tem, e na casa dela eles não usam muito a internet. Aí eu vejo as informações que ajuda e falo pra minha cunhada. (...) procuro pra ajudar eles (Josefa, 48 anos).
Há também aqueles que afirmam buscar informações para si ou para outras pessoas como uma ação indiferenciada, ou seja, apenas pelo próprio interesse que têm pelos conteúdos sobre saúde e pela busca por estes na internet, considerando que a atitude já se configura como sendo um hábito.
Pesquiso pra outras pessoas até quando não me pedem [risos]. Por exemplo, se a pessoa mencionar que está com dor de cabeça, eu já paro o que eu tô fazendo e vou pesquisar, é mais ou menos isso. É uma coisa assim, automaticamente [risos]. As pessoas não me procuram diretamente pra isso, mas já sabem que só de comentar comigo eu vou olhar. É só mesmo eu ouvir alguém falar. Essa semana foi o vizinho que comentou que tava com dor na coluna, já puxei o celular na mesma hora e fui olhar o que era bom pra dor na coluna. Eu olho logo tudo, os remédios, os chás, tudo mesmo. Eu vejo isso como um hábito mesmo (Rodrigo, 32 anos).
Cabe salientar que o outro nesta categoria tanto pode ser um amigo ou membro da família, e que em qualquer que seja o grau da relação entre os sujeitos, a busca da informação digital em saúde relacionado ao cuidado do outro ocorre tanto o motivo sendo pautado pela necessidade declarada, quanto à busca sendo fundamen- tada na percepção do praticante da ação diante da pretensa necessidade a quem é direcionada a informação, podendo ainda ser uma conduta resultante do consumo e da compreensão do conteúdo. Nos relatos abaixo, são explicitadas falas em que o outro é representado por familiares.
Segundo a Ana (31 anos), (...) quando vejo meus irmãos ou meu pai com alguma coisa, a gente já procura na internet. Um dia desses mesmo eu disse: olha painho, ele tava gripado, vi que é bom tomar, durante 7 dias, de manhã bem cedo, uma xicara de café morno com um pingo de limão dentro, sem açúcar (...) eu pesquisei e ele tomou (...) fiz igual e ficou bom logo.
Minha mãe tem um problema de queimação, queimava muito a garganta dela e o estômago, aí quando dava 4, 5 horas da manhã ela não conseguia mais dormir, porque ficava com a boca queimando, como se ela tivesse mastigado pimenta. A gente achava muito estranho porque nada resolvia. Aí eu disse: vou pesquisar para ver um remédio, alguma coisa. Aí eu pesquisei (...) resolveu, eu vi direitinho como fazer e resolveu (Katia, 35 anos).
Gosto de ver principalmente sobre como tratar a saúde de criança. Porque as vezes se você maltratar uma criança desse tamanho (cerca de 3 anos), dizer palavras que magoa, pensando que porque é pequenininho não fica triste, porque não entende, mas quando ele fica grande ele fica com trauma. Então é necessário que a gente saiba como lidar com elas, pra mais tarde, futuramente, elas não vir sofrer consequências. Meu interesse não é só na saúde do presente. Também me preocupo de fazer certo pra no futuro não ter problemas (Maria Veronica, 61 anos).
Ainda no caso específico do cuidado voltado para o outro, aqueles que convivem com familiares mais idosos tendem a se preocupar com a condição geral da saúde deles, o que é verificado nos relatos sobre a busca e o consumo de informações motivados pelo desejo de que eles possam contribuir, positivamente, no controle de alguma patologia crônica, e que estejam com o tratamento em curso.
Na casa dos meus pais quase todo mundo é hipertenso, os dois (...) A hora que se chegar lá tão comendo a calabresa, carne gorda, tocinho, é tudo assim. Ninguém via uma fruta ou uma verdura lá não, parecia que comida saudável era veneno pra eles. E sabe como começaram a mudar? Graças a mim e a internet [risos]. Eu comecei a botar uns vídeos pra eles ver, de gente com problema de coração, porque eles nem acreditavam que a pressão alta dava problema de coração e de rim, diziam que não acontecia nada disso não. Pois eu fazia de propósito mesmo, mostrava as coisas piores que eu achava. Não tinha condição não, eles iam se matar tudo. E meus pais, com 70 anos, comendo como se tivesse 30! (...) pois mudaram, não tão assim 100% não, mas já não é como antes. Até minha cunhada comentou comigo que lá no posto elogiaram eles porque perderam peso e não tavam mais com a pressão alta e doida como era antes (Rita. 42 anos).
Em buscas por informações voltadas para o cuidado com idosos, as necessidades se mostraram pautadas por situações de saúde recorrentes e/ou permanentes. Quando o outro são crianças, as necessidades que motivam o cuidado apareceram como condições extraordinárias, como condições agudas como viroses, campanhas de vacinação, reação a medicamentos específicos, ou machucados oriundos de quedas.
Vejo coisas pros meninos, assuntos de doença de criança. Quando meu filho tá doente eu dou uma pesquisada pra saber o que é. Vou procurar saber o que pode ser aquele sintoma. Apareceu muita doença nova de uns anos pra cá. Quando meus mais velhos eram criança as doenças eram outras, isso em 82, 85. Agora parece que as crianças têm outros problemas, é um tal de virose, tudo é virose. É não tem cura né? É uma doença que vai e vem toda hora. Só vê a criança com febre, dor de barriga, vomitando. (...) ele tem um sintoma, eu já vou atrás de ver uma informação (Manoel, 51 anos).
Ana (31 anos) continua: (...) vacina eu olho muito por causa dos meus filhos. Eu fico preocupada e com curiosidade. Que nem a vacina do HPV mesmo, eu olhei e me ajudou pra minha menina. Porque ela não tomava na época, mas eu procurei saber. Ela não tinha a idade ainda, mas eu procurei saber antes dela chegar na idade, porque meu menino tava na idade e tomou, aí eu procurei saber. (...) agora tem a dá gripe, que esse ano estendeu mais um pouquinho a idade (...) acompanho mais pelo que pesquiso na internet, é mais fácil pra achar e pra entender.
Na intenção de adquirir novos conhecimentos, os remanescentes quilombolas participantes deste estudo relatam considerações referentes ao interesse por autodiagnostico baseado em sintomas e em impressões sobre o próprio corpo, com também relacionados para a prevenção.
O participante Vinicius (35 anos) relata: (...) eu tenho o joelho, não sei direito se tem alguma coisa porque nunca fiz o raio x, mas acho que ligamento meu tem problema. Ai eu sempre procuro informação pra fortalecer o ligamento e fico fazendo. (...) eu acho que pelos sintomas e pelo que vi na internet deve ser ligamento, e tá melhorando assim.
Ao decorrer da entrevista Rodrigo (32 anos) diz: (...) eu fico com muito medo de câncer, medo mesmo sabe? Então em pesquiso coisas preventivas. Eu não tenho nada, mas eu achava que tinha, tudo que eu sentia eu já achava que podia ser câncer, aí pesquisava até mais do que hoje.
A busca por medicação é mencionada como prática que, na percepção dos respondentes, coaduna com a motivação da busca por informação digital em saúde com vistas para cuidar de si e do outro. Apesar de em princípio alguns respondentes não reconhecerem a busca por medicação como aliada nos cuidados pessoais e do outro na própria conduta, essa motivação foi mencionada por todos os participantes deste estudo, sendo a busca voltada para a intenção do uso de medicamentos ou de tratamentos de qualquer tipo: higiênicos, farmacológicos, homeopáticos, cirúrgicos ou físicos.
Para os respondentes, esta motivação é compreendida como natural, sendo apenas um passo adiante do que antes acontecia em uma rede limitada, nas trocas cotidianas entre os pares, e que agora acontece em uma rede estendida de participantes.
Todo mundo que já pesquisou sobre saúde na internet já olhou, pelo menos uma vez, algum remédio. Certeza disso! Nem que seja um chá já olhou. Eu mesmo olho logo tudo, os remédios de farmácia, os caseiros, banhos. Tudo mesmo, é como antigamente nossos avós e pais faziam com os vizinhos e os parentes mais velhos, perguntavam a eles o que fazer e o que tomar (Rodrigo, 32 anos).
Eu uso bastante colírio por causas dessas coisas que eu sinto nas vistas. (...) não, não é com receita de médico não, compro de olhar na internet mesmo. Eu coloco lá os sintomas e vejo o que as pessoas que tem a mesma coisa tão falando. (...) faço igual, o colírio e o jeito de usar (Vinicius, 35 anos).
Por fim, Manoel (51 anos) menciona: “(...) pelo sintoma, eu busco informação sobre um chá, um negócio assim pra melhorar, olhando pelo aquilo que tô sentindo (...) a gente sempre acha bem explicado pra que serve, como tem que fazer e como é pra usar”.
A partir dos achados apresentados nesse artigo, verificamos que os remanescentes quilombolas do bairro Porto D’Areia afirmam que a busca por informações com vistas para o que consideram ser cuidados consigo e com o outro, se relacionam à identificação de sintomas, autodiagnostico, conhecimento sobre origem de doenças, formas de tratamento e medicações possíveis. Ademais, os relatos indicam que mesmo quando pensam em buscar por informações sobre saúde motivados apenas por curiosidade, há em suas intenções uma necessidade. Ou seja, a existência de uma situação que demanda a busca pelo assunto em voga, e que se fundamenta na crença de que o conhecimento adquirido será benéfico em condutas do próprio cuidado ou no cuidado do outro.
Discussão
O cuidado consigo e com o outro representa o aspecto central da motivação dos participantes desse estudo pela busca por informações sobre saúde na internet. Poder acessar conteúdos sobre as mais diversas temáticas relativas à saúde é compreendido por eles como importante forma de auxílio para a tomada de decisões quanto ao cuidado consigo e com o outro. Este aspecto converge com a definição de autocuidado estabelecida pela Organização Mundial de Saúde, ao tomá-lo como a “capacidade de indivíduos, famílias e comunidades para promover a saúde, prevenir as doenças e se manter saudável e cooperar com a doença e incapacidades com ou sem o apoio do prestador de cuidados de saúde” (OMS, 2003).
Em nosso estudo, o entendimento por autocuidado mostrou-se ainda atrelado ao desejo ou necessidade de acesso a informações que pudessem auxiliar na tomada de decisão. Esse é um aspecto que, conforme Orem (2001) , coaduna com a Teoria do Autocuidado, que segundo a autora, funda-se no entendimento de que o desejo de cuidar de si não é uma função humana inata, e por isso necessita ser aprendida e desenvolvida nas práticas da vida diária.
De acordo com Petronilho (2012) , as perspectivas do autocuidado foram durante alguns anos predominantemente direcionadas para os sujeitos com algum tipo de comorbidade, uma vez que a existência de uma condição de saúde específica lhes exigia a adoção de medidas contínuas de cuidado. Contudo, tal característica tem passado por mudança, posto que o estímulo ao autocuidado deixou de ser incumbência restrita aos profissionais, em razão de ser cada vez maior a quantidade de informações sobre saúde disponíveis, bem como o interesse e a necessidade das pessoas por assuntos relacionados às mais diversas temáticas em saúde.
A este respeito, diversos estudos defendem que a expansão e a popularização da internet contribuíram sobremaneira não apenas para a maior disponibilização de informações sobre saúde, mas também para o interesse das pessoas por conteúdos relativos a ela (Boyer et al., 2005; Cotten e Gupta, 2014; Huh et al., 2005), propiciando, de modo geral, maior iniciativa dos indivíduos em termos de autocuidado. No entendimento de Cline e Haynes (2001) , ações em saúde como a busca por informações na internet, a adesão a programas de cuidados em ambientes digitais e a participação em grupos específicos são condutas que de alguma forma repercutem na perspectiva do autocuidado.
O fato é que as pessoas passaram a utilizar a internet como um instrumento de fácil acesso, com diversas fontes e conteúdos para a obtenção de informações sobre saúde. E esse acesso se tornou fundamental para a aquisição de novos conhecimentos e a capacitação em prol do autocuidado, seja individual ou voltado para outras pessoas (Hardey, 1999; Hardey, 2002; Eysenbach et al., 2002; Benigeri et al., 2003; Korp, 2006; Grierson et al., 2006).
Apesar dos indicativos do crescimento do autocuidado como ação reconhecidamente voltada para a prevenção, cuja importância vai além da existência de uma condição negativa de saúde (Orem, 2001), estudo realizado por Castiel e Silva (2002) indica que o referido reconhecimento do autocuidado ainda não superou o predomínio da motivação atrelada à condição atual da pessoa, como a existência de doença crônica, de modo que a necessidade permanece entre as principais justificativas para o interesse pelo autocuidado.
Nesse quesito, um aspecto a destacar, são as repercussões negativas do uso de informações que sugeririam a automedicação, que nada mais é do que o uso de medicamentos sem orientação médica. O fácil acesso à internet com sua livre fonte de informação e comunicação possibilita entre outros, conteúdos de propaganda declarada, a publicidade disfarçada, o conteúdo assinado por pseudoespecialistas, leigos, charlatões e por empresas que visam cooptar compradores de medicamentos, tratamentos ou poções mirabolantes. Questões sensíveis como essas são contextos a serem ajustados, uma vez que essa troca de sugestões tem sido entendida por diversos estudiosos, como altamente prejudicial à saúde da população (Silva e Castro, 2010).
Esses achados se alinham ao resultados apresentados neste artigo, pois, verificamos por meio dos dados substantivos obtidos com um grupo de remanescentes quilombolas, que apesar de o autocuidado já se figurar entre eles também como uma ação que visa contribuir para a adoção de práticas preventivas, ainda é atribuída maior ênfase para o autocuidado com vistas para as condições de saúde presentes, em especial para a existência de necessidades já manifestas por condições de saúde ou estados de doença, sejam elas agudas ou crônicas.
Foi comum entre os respondentes a associação do autocuidado à busca por informações motivada pela existência de sintomas, procedendo o acesso e o consumo dos conteúdos digitais sobre saúde com o intuito de obterem diretrizes para o autodiagnostico, o uso de medicamentos e a adoção de tratamentos diversos. Motivações que conforme Bessell et al. (2003) estão vinculadas ao crescimento do uso Internet nos ambientes domésticos.
Porém, obtivemos também relatos em que o autocuidado, com maior ênfase nas práticas de prevenção, foi diretamente relacionado ao fato de considerarem que o contato com informações pertinentes lhes possibilita a aquisição de novos conhecimentos, e que esta ação é parte fundamental do cuidado consigo e com o outro. Esta é uma perspectiva em concordância com os estudos de Zarcadoolas et al., (2006) , ao inferirem que o autocuidado demanda um processo espontâneo de aprendizagem, cujo progresso deve ser auxiliado pela curiosidade intelectual, instrução e experiências na realização de medidas de autocuidado.
Para Demiris (2016) , a vasta disponibilização de informações sobre saúde na internet, muitas permeadas por termos e explicações técnicas, tornou este cenário propício para a obtenção de conhecimento centrado no autoesclarecimento e na autorresponsabilização, ao possibilitar ainda a formação de redes sociais de suporte, nas quais conhecimento técnico e leigo podem coexistir. (Ziebland et al., 2004; Fox et al., 2005). Porém, citamos Santos (2012) para ressaltar que o acesso à informação não garante aos sujeitos competências emocionais, cognitivas e comportamentais para validar o uso desses conhecimentos nos modos e contextos em que devem ser aplicados.
Quando direcionada para outras pessoas, a busca por informação digital em saúde tem como finalidade predominante o cuidado entre familiares, em especial destinado para as pessoas tidas com alguma limitação para a acessar as informações, a exemplo das crianças, idosos e pessoas consideradas inaptas pelo nível de instrução formal ou pelo poder aquisitivo (Carvalho, 2013). Predomínio que coaduna com os dados obtidos neste estudo, uma vez que os relatos indicaram maior recorrência da busca por informações para o autocuidado destinado a crianças e idosos, assim como o procedimento de tal ação destinado a pessoas com baixa escolarização (indicada muitas vezes nos relatos pelo analfabetismo), e para aquelas com pouca disponibilidade financeira para a pose de aparatos tecnológicos e uso da internet.
Os dados substantivos nos levaram ainda à percepção do cuidado consigo e com o outro pautada, predominantemente, na necessidade dos sujeitos diante de situações cotidianas que lhes impõem uma tomada de decisão, mas também ancorados no desejo pelo conhecimento de práticas preventivas. Assim, quando os respondentes afirmam que “pelas informações de saúde que vejo na internet eu consigo cuidar melhor de mim e das pessoas que tenho perto: minha mãe, irmãs e até uns vizinhos (...) dos problemas não só de doença” (Rodrigo, 32 anos), acabam por validar a ação de busca e consumo de informações digitais em saúde como potencialmente favorável ao autocuidado.
Conclusão
A busca e o consumo de informações digitais em saúde destinadas ao cuidado consigo e com o outro foi o primeiro grupo de motivos identificado na categorização dos dados empíricos que compuseram o estudo de recepção de informações digitais por membros de uma comunidade quilombola de Sergipe. Contudo, sabe salientar que além deste, também foram categorizadas as seguintes motivações: não acessando adequadamente a saúde formal; não estabelecendo diálogo com o profissional da saúde; não entendendo o profissional da saúde; e, acessando facilmente e entendendo o conteúdo disponível na internet.
Trata-se de um cenário em que o fácil acesso à informação, proporcionado pela internet, possibilitou a ampliação quantitativa e de diversidade de conteúdos produzidos tanto por profissionais da saúde e especialistas fundamentados em conhecimento científico, como também por pessoas comuns que relatam e compartilham experiências sobre diversas condições de saúde, ou ainda se reúnem em função de uma doença que lhes é comum.
Desta feita, embora a internet possibilite o acesso a informações valiosas sobre saúde, ela também traz consigo armadilhas contradições, tais como: a propaganda declarada, a publicidade disfarçada, o conteúdo assinado por pseudoespecialistas, leigos, charlatões e por empresas que visam cooptar compradores de medicamentos, tratamentos ou poções mirabolantes.
Ao tencionar compreender porque as pessoas acessam e consomem informação digital em saúde, tal como objetivou esta pesquisa junto a remanescentes quilombolas da comunidade Porto D’Areia, tornou-se possível identificar que há nesse bojo, razões que ultrapassam as próprias capacidades de escolha dos sujeitos, visto que situações como as condições estruturantes da comunidade, ou ainda a conduta de alguns profissionais da saúde diante dos pacientes, acabam sendo determinantes nas circunstâncias vivenciadas pelos remanescentes quilombolas em suas práticas cotidianas acerca da saúde. E essas condições são, em alguma medida, refletidas nos motivos que os direcionam para a busca e o consumo de informações digitais em saúde.