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Opinión Jurídica

Print version ISSN 1692-2530On-line version ISSN 2248-4078

Opin. jurid. vol.20 no.spe43 Medellín Dec. 2021  Epub Nov 22, 2021

https://doi.org/10.22395/ojum.v20n43a7 

Artigos

A atuação das Bartolinas Sisas no processo constituinte da Bolívia: um olhar pela perspectiva do Feminismo Descolonial

The Performance of Bartolinas Sisas in the Constituent Process of Bolivia: A Look from the Perspective of Decolonial Feminism

La actuación de Bartolinas Sisas en el proceso constituyente de Bolivia: una mirada desde la perspectiva del feminismo descolonial

Denise Tatiane Girardon dos Santos* 
http://orcid.org/0000-0001-9782-8039

Fernanda Lavinia Birck Schubert** 
http://orcid.org/0000-0002-2032-9028

* Universidade de Cruz Alta, Cruz Alta, Brasil desantos@unicruz.edu.br; dtgsjno@hotmail.com https://orcid.org/0000-0001-9782-8039

** Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, Ijuí, Brasil fernanda_lbs@hotmail.com https://orcid.org/0000-0002-2032-9028


RESUMO

O artigo busca analisar a atuação das mulheres da Confederación Nacional de Mujeres Campesinas, Indígenas y Originárias - Bartolina Sisa no processo constituinte da Bolívia e sua influência na positivação de direitos, pela perspectiva do feminismo descolonial. O problema que orienta a pesquisa pode ser sintetizado na seguinte pergunta: Como as mulheres Bartolinas Sisas contribuíram para o debate e a positivação de direitos na Constitución Política del Estado de 2009? O objetivo geral do texto é, partindo da compreensão do feminismo descolonial, verificar a atuação das Bartolinas Sisas no processo Constituinte da Bolívia. O método de pesquisa aplicado foi o qualitativo, mediante o emprego de técnica de pesquisa bibliográfica e documental, com estratégia explicativa. Como resultado da pesquisa, tem-se que as Bartolinas Sisas compuseram/compõem um grupo de mulheres latinas e marginalizadas, cuja luta pode ser caracterizada como feminista descolonial, por ser pautada na busca pela eliminação das desigualdades de gênero na Bolívia e na despatriarcalização da sua sociedade, além de sua descolonização, com reflexos diretos de sua participação no processo constituinte boliviano. Em decorrência da sua atuação, a Bolívia passou a contar com direitos políticos a mulheres indígenas, o reconhecimento do Estado Plurinacional, a previsão de direitos coletivos.

Palavras-chave: Bartolinas Sisas; processo constituinte; Bolívia; feminismo descolonial; direitos

ABSTRACT

The article seeks to assess the role of women in the National Confederation of Campesinas, Indígenas y Originarias - Bartolina Sisa in the Bolivian constituent process and their influence on the positivization of rights, from the perspective of decolonial feminism. The problem that guides the research can be summarized in the following question: How did Bartolina Sisa’s women contribute to the debate and the positivization of rights in the 2009 Political Constitution? The general objective of the text is, starting from the understanding of decolonial feminism, to analyze the performance of the Bartolinas Sisa’s women in the Constituent process in Bolivia. The research method applied was qualitative, through the use of bibliographic and documentary research techniques, with an explanatory strategy. As a result of the research, it appears that the Bartolina Sisa’s women composed/compose a group of Latino and marginalized women, whose struggle can be characterized as decolonial-feminist, as it is based on the search for the elimination of gender inequalities in Bolivia and on the depatriarchization of its society, in addition to its decolonization, with direct consequences of its participation in the Bolivian constituent process. As a result of its performance, Bolivia now has political rights for indigenous women, recognition of the Plurinational State, and provision of collective rights.

Keywords: Sisa Bartolina; constituent process; Bolivia; decolonial feminism; rights

RESUMEN

El artículo busca evaluar el rol de la mujer en la Confederación Nacional de Campesinas, Indígenas y Originárias - Bartolina Sisa en el proceso constituyente boliviano y su influencia en la positivización de derechos, desde la perspectiva del feminismo descolonial. El problema que guía la investigación se puede resumir en la siguiente pregunta: ¿Cómo contribuyeron las mujeres Bartolinas Sisas al debate y la positivización de derechos en la Constitución Política del Estado 2009? El objetivo general del texto es, por la comprensión del feminismo descolonial, analizar la actuación de Bartolinas Sisas en el proceso constituyente en Bolivia. El método de investigación aplicado fue cualitativo, mediante el uso de técnica de investigación bibliográfica y documental, con una estrategia explicativa. Como resultado de la investigación, parece que Bartolinas Sisas compuso / componen un grupo de mujeres latinas y marginadas, cuya lucha se puede caracterizar como feminista descolonial, ya que se basa en la búsqueda de la eliminación de las desigualdades de género en Bolivia y en el despatriarcado de su sociedad, además de su descolonización, con consecuencias directas de su participación en el proceso constituyente boliviano. Como resultado de su desempeño, Bolivia ahora cuenta con derechos políticos para las mujeres indígenas, reconocimiento del Estado Plurinacional y provisión de derechos colectivos.

Palabras clave: Bartolinas Sisas; proceso constituyente; Bolivia; feminismo descolonial; derechos

INTRODUÇÃO

Este artigo decorre da atividade investigativa de suas autoras, e expõe parte dos resultados de pesquisa monográfica realizada no âmbito da graduação no curso de Direito na Universidade de Cruz Alta (UNICRUZ), que foi intitulada o feminismo descolonial e sua contribuição para a garantia dos direitos das mulheres: um estudo do Brasil e da Bolívia.

Sua pretensão é analisar a atuação das mulheres da Confederación Nacional de Mujeres Campesinas, Indígenas y Originárias - Bartolina Sisa no processo constituinte da Bolívia e sua influência na positivação de direitos, pela perspectiva do feminismo descolonial. Trata-se de tema que apresenta especial relevância, diante da necessidade de trazer à academia pautas de um feminismo não hegemônico, que se dá a partir das mulheres latino-americanas. Essas mulheres, além de experimentarem o preconceito de gênero, compartilham experiências decorrentes da colonialidade, do racismo, da classe, dentre outros elementos que aprofundam a invisibilização, o silenciamento e a subalternidade.

O artigo foi construído tendo por problema de pesquisa a seguinte pergunta: como as mulheres Bartolinas Sisas contribuíram para o debate e a positivação de direitos na Constitución Política del Estado de Bolivia de 2009? Como hipótese inicial, levando-se em consideração os dados levantados a partir de um conjunto de pesquisas realizadas sobre o tema, refletidas na bibliografia que dá sustentação ao presente estudo, torna-se possível afirmar que Como hipótese a ser constatada no presente trabalho, considera-se que as Bartolinas Sisas, mulheres que integraram/integram a Confederación Nacional de Mujeres Campesinas, Indígenas y Originarias de Bolivia - Bartolina Sisa, promoverem a discussão sobre o não reconhecimento dos direitos das mulheres e das minorias, e atuaram fortemente no âmbito político, com presença na Asamblea Constituyente.

Como objetivo geral, a pesquisa busca, a partir da compreensão do feminismo descolonial, verificar a atuação das Bartolinas Sisas no processo Constituinte da Bolívia. Para dar concretude ao objetivo geral, os objetivos específicos do texto, que se refletem na sua estrutura em duas seções, são: a) estudar aspectos conceituais do feminismo descolonial; b) investigar a atuação das mulheres Bartolinas Sisas no processo constituinte boliviano como contributo para a previsão legal dos direitos das mulheres na Constitución Política del Estado de Bolívia de 2009, pela perspectiva do feminismo descolonial.

O método de pesquisa aplicado foi o qualitativo, mediante o emprego de técnica de pesquisa bibliográfica e documental, com estratégia é explicativa.

1. ASPECTOS CONCEITUAIS DO FEMINISMO DESCOLONIAL

Este tópico abordará o feminismo descolonial um feminismo crítico e autônomo, desenvolvido sob a influência do feminismo negro dos Estados Unidos e da perspectiva da colonialidade, trazida por Aníbal Quijano e desenvolvida no âmbito do grupo Modernidade/Colonialidade, assim como das propostas e debates travados pelos feminismos latino-americanos. O feminismo descolonial é pautado pela contestação da universalização das mulheres e pela denúncia de situações e relações que subjugam as mulheres com base em indicadores como classe, raça, etnia, cultura, orientação sexual, nacionalidade, geografia. Antes de adentrar, no entanto, nas especificidades do feminismo descolonial, é importante entender alguns aspectos desses movimentos e das teorias que o influenciaram.

O feminismo negro, que teve grande importância para o desenvolvimento dos estudos feministas descoloniais, adquiriu consistência em meados dos anos de 1960 e 1980, especialmente quando foi fundada a National Black Feminist. Ele pode ser descrito, segundo Ribeiro (2019, p. 49) , como “[...] um movimento político, intelectual e de construção teórica de mulheres negras”, que discute projetos democráticos a partir de novos marcos, com o intuito de restituir a humanidade que lhes foi negada. O feminismo negro passou a confrontar “[...] tanto o predomínio masculino no movimento negro quanto a predominância branca e burguesa no feminismo, apresentando novas pautas de reivindicações e também um novo enquadramento”, conforme Biroli e Miguel (2014, pp. 59-60) , ao mesmo tempo em que realizou uma síntese das demandas do movimento negro e de mulheres. Ao questionar a unicidade da categoria mulher, o feminismo negro trouxe à discussão marcadores sociais que atravessam mulheres não brancas e colocam-nas em posições sociais diversas.

Outro aspecto importante para pensar o feminismo descolonial é a colonialidade. Acerca do assunto, é possível dizer que a experiência colonial não esteve restrita ao período em que a América Latina foi colônia de Portugal e Espanha, submissa a seu controle político, o que caracterizou o colonialismo. Isso porque, as formas coloniais de exploração não desapareceram com a independência dos Estados Nacionais, mas permaneceram arraigadas sob diversas formas de dominação e exploração, quando se desnudaram, em maior escala, a colonialidade e a racialização do poder. A colonialidade caracteriza-se, segundo Quijano (1992) , pela racialização das populações e das relações entre colonizados/colonizadores, a exploração das estruturas de trabalho em torno da hegemonia do capital, a manutenção do eurocentrismo como referencial de modo de produção, o controle de autoridade que excluiu as populações racializadas, enquanto inferiores.

O termo feminismo descolonial foi cunhado por Maria Lugones (1944-2020), que foi filósofa, crítica social e feminista, nascida na Argentina. O salto de sua teorização se deu a partir de sua integração ao Grupo Modernidad/Colonialidad, que se debruça sobre discussões críticas das relações de poder experimentadas a partir da colonização da América (Gonçalves & Ribeiro, 2018).

Um dos aspectos centrais do feminismo descolonial é a compreensão da colonialidade de gênero. Lugones (2008, p. 93) destaca que o sistema de gênero foi constitutivo da colonialidade do poder, assim como a colonialidade do poder foi constitutiva do sistema de gênero, que “[...] no puede existir sin la colonialidad del poder, ya que la clasificación de la población en términos de raza es una condición necesaria para su posibilidad”.

Ao enfrentar a colonialidade de gênero, Lugones complexificou a própria compreensão da colonialidade, marcada pela opressão resultante da interação de sistemas econômicos, racializantes e engendrados. Esses sistemas são formadores de uma sociedade patriarcal fundada na hierarquização do sistema de gênero, cuja maior expressão é, justamente, a diferenciação racial1 que, no seu ponto mais crítico, nega a própria humanidade às pessoas (Lugones, 2020). A partir desse quadro, Lugones (2020) tratou do que chamou de sistema moderno-colonial de gênero, que Espinosa explica ser

aquel mediante el cual el colonizador produce e impone a los pueblos colonizado, al mismo tempo y sin disociación, un régimen epistémico de diferenciación dicotómica jerárquica que distingue inicial y fundamentalmente entre lo humano y lo no humano y del cual se desprenden las categorias de clasificación social de raza-género. (2012, p. 153 )

Apesar de apoiar-se na perspectiva da colonialidade para desenvolver seu estudo sobre o sistema moderno-colonial de gênero, Lugones criticou a forma como Quijano abordou o gênero, considerando sua construção limitada, por entender que a base se encontra numa compreensão ainda patriarcal e heterossexual (Lugones, 2020).

Para Lugones, a abordagem de gênero trazida por Quijano se restringe ao eixo da colonialidade e “[...] o gênero parece estar contido dentro da organização daquele ‘âmbito básico da vida’, que ele chama ‘sexo, seus recursos e produtos’” (2020, p. 60), razão pela qual seria insuficiente. Por Quijano se pautar em pressupostos como o dimorfismo sexual, a heterossexualidade, a distribuição patriarcal de poder, Lugones entende sua abordagem como “estreita e hiperbiologizada” e explica:

Parece-me que, em seu trabalho, ele [Quijano] assume que as diferenças de gênero são formadas nas disputas pelo controle do sexo, seus recursos e produtos. As diferenças se configurariam de acordo com a maneira como esse controle está organizado. Quijano entende o sexo como atributos biológicos que podem ser elaborados como categorias sociais. Diferente do sexo, o fenótipo não possui atributos biológicos de diferenciação. De um lado, “cor da pele, a forma e a cor do cabelo, dos olhos, a forma e o tamanho do nariz etc. não têm nenhum impacto na estrutura biológica da pessoa”. Mas para Quijano o sexo parece ser inquestionavelmente biológico. (2020, pp. 60-61)

Assim, Lugones compreende que Quijano parece estabelecer que a disputa pelo controle do sexo é feita pelos homens, que lutam pela dominação dos recursos, que são as próprias mulheres. Por essa ótica, a proposição de Quijano é insuficiente e equivocada, sendo que, para fundamentar esse posicionamento, Lugones aponta indícios aptos à confirmação de que o gênero é, também, uma categoria colonial (Lugones, 2020).

O primeiro desses indícios é a intersexualidade. Pessoas intersexuais, em razão de sua condição de nascimento, não se encaixam nas categorias sexuais binárias - homem x mulher - tradicionalmente, impostas e, segundo Lugones, socialmente, construídas. Por terem genitálias tidas como inadequadas, essas pessoas passam por tratamentos hormonais ou procedimentos cirúrgicos para se ajustarem ao dimorfismo sexual. Esse dimorfismo, segundo Lugones, é uma característica do sistema de gênero moderno/colonial, pois:

Os medos sexuais dos colonizadores os fizeram imaginar que os indígenas das Américas eram hermafroditas ou intersexuais, com pênis enormes e peitos imensos vertendo leite. Mas como esclarece Paula Gunn Allen e outros/as, indivíduos intersexuais eram reconhecidos em muitas sociedades tribais anteriores à colonização sem serem assimilados à classificação sexual binária. (2020, p. 64)

Outro indício que, para Lugones (2020) , corrobora o entendimento de que a classificação de gênero foi introduzida pela colonização e o capitalismo eurocêntrico global, é a inexistência de generificação em comunidades nativas na América, mesmo nas que eram matriarcais e ginocêntricas e/ou reconheciam relações homossexuais, de acordo com os estudos realizados por Paula Gunn Allen. Eles possuem grande importância para a compreensão do gênero enquanto categoria colonial, já que evidenciam, segundo Lugones, que:

“[...] muitas tribos eram ginocráticas, entre elas os susquehannas, hurões, iroqueses, cheroquis, pueblos, navajos, narragansettes, algonquinos da Costa, montagnais. Ela também diz que entre as 88 tribos que reconheciam a homossexualidade, dentre aquelas que a reconheciam de maneira positiva, estavam os apaches, navajos, winnebagos, cheyennes, pimas, crows, shoshonis, paiutes, osages, acomas, zunis, siouxies, pawnees, choctaws, creeks, seminoles, Illinois, mohaves, shastas, aleuts, sacs e foxies, iowas, kansas, yumas, astecas, tlingites, maias, naskapis, poncãs, maricopas, lamaths, quinaults, yukis, chilulas e kamias. Vinte dessas tribos tinham referências específicas ao lesbianismo”. (2020, p. 70)

Relato semelhante é feito por Oyewùmí (2020) , ao tratar da sociedade Iorubá, do Continente Africano, que, até a colonização ocidental, não tinha o gênero como princípio organizador e hierarquizante. Somente a partir da colonização que as anafêmeas foram excluídas dos espaços de poder dos Iorubás, o que foi feito com a colaboração dos machos da comunidade (Lugones, 2020). Oyewùmí (2020) destaca que esse modelo de família generificada é, ainda, alienígena no Continente Africano, onde algumas sociedades, como a Iorubá, do sudoeste da Nigéria, apresentam uma maneira diversa de organização familiar, normalmente, tendo como base a consanguinidade, não as relações conjugais. No caso Iorubá, é possível verificar uma fluidez nos relacionamentos e uma posição não estática dos papéis sociais, que são atribuídos não em função do gênero, mas, sim, de acordo com o contexto, levando em conta, por exemplo, a ancianidade (idade relativa).

No que se refere à existência, ou não, da generificação das sociedades pré-colombianas, é importante salientar que existem diversos entendimentos sobre o assunto. Enquanto Lugones e Oyewùmí, como mencionado, compreende que a classificação de gênero inexistia nas comunidades nativas, outra autora de destaque para o feminismo descolonial, Rita Segato, defende, a partir de indícios históricos e relatos etnográficos, que já existiam relações hierárquicas entre gêneros nas Américas, apesar de ser diverso do sistema implantado a partir da invasão dos colonizadores, ao que ela nomeia como patriarcado de baixa intensidade (de Castro, 2020).

Mesmo com essa divergência, é possível compreender o lugar do gênero nas sociedades pré-colombianas de forma mais complexa, dado o alcance das mudanças trazidas a partir da colonialidade. Tais mudanças não foram abruptas, mas heterogêneas e descontínuas, apesar de permanentes, e asseguraram a quebra das estruturas sociais, econômicas, espirituais até então existentes, que não eram pautadas pela generificação (Lugones, 2020).

Em função dessas mudanças, a categoria mulher passou a ser compreendida como grupo de mulheres brancas burguesas europeias, que eram consideradas frágeis, sexualmente passivas e intelectualmente inferiores, imagem que amparou as críticas de vários feminismos do século XX. As outras2 - não brancas - eram animalizadas, reduzidas a fêmeas, e tratadas como seres sem gênero, já que, apesar de serem sexualmente fêmeas, não eram dotadas dos mesmos traços de feminilidade das europeias. Quando foram atribuídas de gênero, as mulheres colonizadas receberam o status de inferioridade inerente à condição feminina, mas, ainda, sem gozarem das mesmas condições das mulheres burguesas brancas (Lugones, 2020).

As mulheres negras, por serem consideradas fortes, eram consideradas aptas ao desenvolvimento de qualquer trabalho. Sobre elas recaía o estereótipo de sexualmente agressivas, o que serviu como justificativa para que fossem violentadas sexualmente por homens brancos. A hipersexualização pesa não apenas sobre as mulheres negras, mas sobre as não-europeias em geral, que eram alocadas na posição de perversas e sexualmente agressivas, corroborando com o argumento de serem inferiores, já que, por não terem gênero, poderiam ser comparadas a animais (Lugones, 2020).

O sistema moderno-colonial de gênero se consolidou, portanto, a partir do avanço do projeto colonial de Espanha e Portugal. Lugones refere que ele possui um lado visível/iluminado, que constrói o gênero e suas relações a partir de uma concepção hegemônica. Esse lado “[...] organiza apenas as vidas de homens e mulheres brancos e burgueses, mas dá forma ao significado colonial/moderno de ‘homem’ e ‘mulher’” (Lugones, 2020, p. 78 ). Ele é marcado, também, pela heterossexualidade compulsória. O outro lado do sistema de gênero, de acordo com Lugones, é oculto/obscuro, na medida em que se constituiu a partir da violência e do despojamento das populações tradicionais de toda sua estrutura social, econômica, política, reduzindo-as à animalidade, ao sexo forçado com colonizadores, à exploração laboral (Lugones, 2020).

Assim, Lugones defende que o gênero, enquanto categoria dicotômica de organização hierárquica da sociedade, é uma construção colonial e, portanto, deve ser centralizado no projeto colonial-moderno, e não ser visto como um elemento subordinado à classificação racial (Lugones, 2020). A partir da atribuição de centralidade ao gênero, Costa explica ser possível

[...] traçar uma genealogia de sua formação e utilização como um mecanismo fundamental pelo qual o capitalismo colonial global estruturou as assimetrias de poder no mundo contemporâneo. Ver o gênero como categoria colonial também nos permite historicizar o patriarcado, salientando as maneiras pelas quais a heteronormatividade, o capitalismo e a classificação racial se encontram sempre já imbricados. (Costa, 2020, p. 326 )

É importante mencionar que a inclusão da colonialidade de gênero na teorização da colonialidade por teóricas feministas descoloniais torna possível o que Catherine Walsh denomina de pensamientos propios latino-americanos, que marcados pela criticidade e pela divergência do pensamento universal, são necessários à construção de novas dinâmicas e epistemologias a partir da América Latina. Apesar de Walsh não se deter nos estudos do feminismo descolonial, nem incluir, expressamente, os movimentos feministas no artigo que trata do pensamiento propio, sua contribuição é importante, já que integra o movimento de descolonização do saber, pelo qual perpassa o feminismo descolonial. (Costa, 2020).

Assim, o feminismo descolonial - arraigado na luta de mulheres indígenas, negras, mestiças, de setores populares, camponesas que, segundo Curiel (2007), antes mesmo da introdução do conceito de colonialidade no âmbito teórico, já lutavam contra os sistemas de dominação - vai de encontro à modernidade ocidental, ao hetero-patriarcado e, até mesmo, à teoria feminista que universaliza mulheres. Espinosa entende que o encontro da descolonialidade, do antirracismo e do feminismo na América Latina proporciona um vasto campo de investigação e análise crítica,

[...] haciendo posible la tarea de des-eurocentrar el feminismo en el continente abandonando los tratamentos fraccionados de la opresión/dominación y la mirada categorial a la que nos acostumbró la modernidade para dar passo poco a poco a tratamentos más complejos, geopolíticos y co-determinantes del género, la sexualidad, el racismo, el capitalismo y la colonialidad. (2012, p. 162 )

Essa tarefa de deseurocentrar o feminismo foi protagonizada por mulheres cujas atuações coletivas que pautam a descolonização, a despatriarcalização, a superação do capitalismo e a criação de uma nova relação com a natureza, podem ser consideradas feministas descoloniais (Aguinaga, Lang, Mokrani e Santillana, 2020).

As demandas do feminismo descolonial podem ser vislumbradas, por exemplo, nos movimentos de mulheres andinas, muitas das quais pertencem ao que se denomina de feminismo comunitário, que, segundo Paredes (2020) , se constitui como luta e proposta política de vida a ser construído não perante o homem, mas, sim, junto dele em relação à comunidade, que não se restringe somente às comunidades campesinas e indígenas, abrangendo todos os grupamentos humanos existentes em sociedade e se apresentando como uma alternativa às sociedades individualistas. Aguinaga, Lang, Mokrani e Santillana (2020, p. 235) explicam que, “[...] a partir de seus contextos, experiências, produções culturais da vida cotidiana e situação trabalhista, e onde a Natureza, a Pacha Mama, aparece como categoria central de encontro e também de mobilização”.

A presença do feminismo descolonial pode ser percebida, também, em movimentos agroecológicos, que objetivam a redução de impactos socioambientais da produção alimentícia, dentro dos quais as mulheres passaram a reivindicar a indissociação da agroecologia e do feminismo. As mulheres integrantes desses movimentos, por enxergarem a relação de gênero e meio ambiente de maneira diversa, vêm desempenhando sua luta e resistência descolonial pautadas na esfera do cuidado, da valorização de saberes tradicionais, promovendo o resgate da memória, do respeito à natureza, ou seja, como “[...] uma forma de ressignificar a relação das pessoas com o território em que vivem e de repensar as relações sociais, de educação, de trabalho e de alimentação, para além da questão da produção”, de acordo com Costa (2020, p. 292) 3.

A reunião de pautas do movimento feminista descolonial e do movimento agroecológico culminou na reivindicação de um conceito, até então, restrito à filosofia dos povos andinos: bem viver, ou Sumaq Kawsay, em Qechua, ou Sumak Qamaña, em Aymara.

Ele tem sido reivindicado para construir uma forma alternativa de relação entre humanidade e natureza (que não a de divisão) e foi alçado como uma das bases do Estado Plurinacional, por intermédio do constitucionalismo latino-americano. Costa ressalta que:

Nesse contexto, mais uma vez, as mulheres dos movimentos populares campesinos e da agroeocologia vêm sendo responsáveis por sublinhar noções de bem viver a partir de articulações comunitárias em defesa dos bens comuns aliados às esferas de cuidado, dos saberes tradicionais etc. apontando para a construção de estratégias políticas, epistemológicas e uma crítica própria de mulheres camponesas. (2020, p. 290)

Assim, o feminismo descolonial quebrou a hegemonia do pensamento feminista euronorcêntrico e deu visibilidade a grupos de mulheres, até então, inferiorizadas dentro do próprio movimento feminista, como, por exemplo, indígenas, negras, latinas, imigrantes, agricultoras, empregadas domésticas. Sua redução a uma posição inferior (ou até a uma categoria de não-mulher) em relação a de outras mulheres fez/faz com que experimentassem/experimentem o patriarcado, o racismo e a colonialidade a partir de uma perspectiva diversa, ainda mais violenta.

Face a esse quadro, resistem a partir da criação de teorias e, principalmente, por meio de ativismo sob diversos movimentos, ainda que não autodeclarados feministas descoloniais, e vão em busca de descolonização do gênero e rompimento das amarras que lhes foram impostas, como ocorreu na Bolívia, o que será abordado no tópico a seguir.

2. A CONFEDERACIÓN NACIONAL DE MUJERES CAMPESINAS INDÍGENAS ORIGINÁRIAS DE BOLIVIA - BARTOLINA SISA (CNMCIOB - “BS”) E O PROCESSO CONSTITUINTE BOLIVIANO

Este tópico se destina a analisar, a partir de uma perspectiva do feminismo descolonial, aspectos dos movimentos sociais de mulheres, especialmente, das Bartolinas Sisas, e sua atuação na Asamblea Constituyente na/da Bolívia.

A transição democrática na Bolívia ocorreu em 1982, quando, por meio de eleições diretas, Hernán Siles Zuazo foi eleito presidente (Mallmann, 2008). À época, ocorreu o fortalecimento dos movimentos indígenas sociais e reivindicatórios no cenário boliviano, que, apesar de já existirem desde a década de 1930, passaram a ter maior expressão entre as décadas de 1950 e 1970, com reflexos na esfera política a partir da década de 1980 (Santos, 2014).

O início da década de 1980 foi marcado, também, pelo nascimento da Federación Nacional de Mujeres Campesinas de Bolivia - Bartolina Sisa (FNMCB “BS”), conhecidas como Bartolinas, uma organização representativa de mulheres campesinas, indígenas e originárias da região andina e de partes do trópico da Bolívia, associada, à época, à Confederación Sindical Única de Trabajadores Campesinos de Bolivia (CSUTCB). À época, houve certa resistência na criação da FNMCB “BS” por parte de alguns trabalhadores que faziam parte da CSUTCB, sob a justificativa de que isso ocasionaria a cisão e consequente enfraquecimento das pautas campesinas (Sánchez, 2015).

A Federación foi assim denominada em homenagem à Bartolina Sisa, general aymara que protagonizou a luta em favor dos povos indígenas no século XVIII. Pati, Mamani e Quispe (2007, pp. 180-181) ressaltam que “Bartolina Sisa desde esa época se constituye en el paradigma de la mujer guerrera, valiente y leal a sus convicciones de lucha por la libertad y la justicia de su pueblo [...] En los referentes históricos se tiene a la pareja de Tupac Katari y Bartolina Sisa como símbolo de lucha del chacha-warmi porque ambos compartían el ideal de libertad y justicia para el pueblo aymara”.

Surgiu com o nome Federación Nacional de Mujeres Campesinas de Bolivia - Bartolina Sisa (FNMCB “BS”) e, em 2008, passa a se denominar Confederación Nacional de Mujeres Campesinas Indígenas Originárias de Bolivia - Bartolina Sisa (CNMCIOB - “BS”), visando a atender a diversidade das mulheres a ela pertencentes, bem como, em atenção aos novos dispositivos constitucionais (Rousseau & Morales, 2018).

Desde o seu nascimento, a FNMCB “BS” teve o intento de reunir as mulheres campesinas e indígenas da Bolívia e lutar pelos seus direitos, o que se reflete nos seus princípios fundadores, como destacam Pati, Mamani e Quispe:

Liberar a la mujer campesina originaria e indígena de todo tipo de opresión que afecte su desarrollo como persona.

Defender y promover los derechos humanos de la mujer campesina indígena y originaria.

Hacer que la mujer participe en los niveles de decisión. Sin importar el nivel en que se desenvuelva.

Disminuir hasta eliminar la discriminación y violencia social y política ejercida contra la mujer.

Lograr que su participación, conocimientos e iniciativas contribuyan a la seguridad alimentaria de sus familias y comunidades.

Lograr, como objetivo institucional de fondo, mayor participación de las mujeres campesinas e indígenas, tanto al interior de las organizaciones obrerocampesinas-indígenas, como en otros espacios políticos y de la sociedad civil. (2007, p. 184)

A transição democrática representou o estabelecimento de alguns marcos institucionais sobre as questões de gênero na Bolívia. Em 1991, foi criado o Consejo Nacional de Política Social, responsável pela confecção de um plano decenal de ação para a mulher. Em 1992, surgiu o Organismo Nacional del Menor, Mujer y la Familia, que desenvolveu o Programa Nacional de la Mujer, com a finalidade de desenvolver políticas públicas voltadas à melhoria de vida das mulheres. Em 1993, foi criado o Ministerio de Desarrollo Humano e, com ele, a Secretaría Nacional de Asuntos Étnicos, de Género y Generacionales e a Subsecretaria de Asuntos de Género, o que consolidou a presença dessa pauta na estrutural estatal (Cepal, 2004).

A década de 1990 foi marcada, também, pela expansão das Bartolinas, que começaram a formar federações departamentais, com o objetivo de tornar mais mulheres membras. Antes disso, elas formavam centrais departamentais de mulheres junto à CSUTCB, estando, portanto, no início de sua criação, mais vinculadas a essa Confederação Sindical. Isso gerou uma tensão entre ambos nos anos iniciais, já que a CSUTCB tentou exercer controle sobre as Bartolinas pelas suas habilidades e capacidade de mobilização. As Bartolinas não cederam e conseguiram se consolidar enquanto movimento social boliviano, como destacam Rousseau e Morales:

La acumulación de experiencia como campesinas organizadas, así como el contexto cambiante de la sociedad boliviana a partir de los años noventa, facilitaron la consolidación de las Bartolinas como representantes de las voces de las mujeres del ámbito rural em la esfera pública. (2018, p. 83)

Entre 1997 a 2001, a Bolívia foi presidida por Hugo Banzer Suárez e, à época, precisou lidar com diversos problemas decorrentes da distância histórica entre os interesses do Estado, da sociedade nacional e dos povos indígenas. No ano seguinte, Gonzalo Sánchez de Lozada foi eleito em meio a uma crise política e em um momento em que as movimentações sociais e as discussões acerca de um Referendum e de uma Asamblea Constituyente avançavam (Santos, 2014)4.

No mesmo período, ocorreu uma reorganização do Poder Executivo na Bolívia, oportunidade em que foi criado o Viceministerio de Asuntos de Género, Generacionales y Familia y la Dirección de Género, o qual estava vinculado ao Ministerio de Desarrollo Sostenible y Planificación. O ano de 2001 foi marcado pela aprovação das seguintes políticas de Estado voltadas às mulheres bolivianas: Plan Nacional de Equidad de Género, Plan Nacional de Prevención y Erradicación de la Violencia en Razón de Género e Programa de Reducción de la Pobreza relativa a la Mujer 2001-2003. Esses planos foram aprovados por meio do Decreto Supremo Nº 26350, de 11 de outubro de 2001 (Cepal, 2004).

Além disso, é importante destacar os avanços legislativos da época, no que se refere à questão de gênero. A Ley INRA (Ley Nº 1715 del 18 de Octubre de 1996) estabeleceu a utilização de critérios de equidade na distribuição, administração e aproveitamento da terra em prol da mulher, independentemente, de seu estado civil. A Ley de Partidos (Ley num. 1983 del 25 de junio de 1999) passou a prever que os partidos tem, como dever, promover a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres militantes, e respeitar uma cota mínima de 30% (trinta por cento) de ocupação de mulheres nos cargos de direção partidária e candidaturas. O Código Electoral estabeleceu a predileção de mulheres na lista de candidatos deputados por cada departamiento, além de prever a alternância entre homem-mulher nos municípios (Cepal, 2004).

Houve, portanto, uma inserção paulatina de pautas relacionadas às mulheres nos âmbitos executivo, legislativo, judiciário da Bolívia. Essa inserção foi influenciada por movimentos sociais com participação e protagonismo de mulheres, como é o caso dos comandos femininos do Movimiento Nacional Revolucionario (MNR), entre as décadas de 1940 e 1950, a participação feminina da Guerra del Agua e da Guerra del Gas, no início dos anos 2000, além da Federación Nacional de Mujeres Campesinas Indígenas Originarias de Bolivia Bartolina Sisa (FNMCIOB-“BS”) e a Federación Nacional de Trabajadoras del Hogar de Bolivia, fundadas, respectivamente, em 1980 e 1993, e que seguiram atuando no século XXI (Arancibia & Fuño, 2015).

Foi no ano de 2006, já sob a presidência do indígena Juan Evo Morales Aima, que o Congresso Nacional da Bolívia aprovou a Ley Especial de Convocatoria a la Asamblea Constituyente e a Ley de Convocatoria al Referéndum de Autonomías. Essa aprovação foi influenciada por um processo prévio de resistência e busca por mudanças, sendo que se pode considerar a Marcha de los Pueblos Indígenas y Originarios, em 2002, que já falava em Estado Plurinacional, seu ponto de partida. Teve importância, também, o Pacto de Unidad Indígena, Originario y Campesino, criado em 2004, com a incumbência de elaborar uma lei convocatória para a Asamblea Constituyente participativa. Ele foi composto por diversas organizações, dentre as quais estavam a FNMCIOB - “BS” (Santos, 2007), a única organização de mulheres a integrá-lo durante o tempo em que ele existiu (de 2004 a 2011) (Rousseau & Morales, 2018), e que, além de influenciar, passou a apresentar propostas decorrentes de suas próprias pautas (Sánchez & Uriona, 2014).

Essa convocação se deu, segundo Sánchez e Uriona (2014, p. 25 ) , em meio a uma crise institucional e de representação, frente à “[...] urgente necesidad de abrir el paso a una transformación radical que permita configurar un nuevo pacto social centrado en la superación de todas las formas de exclusión existentes”. Nesse período, segundo o Fondo de Población de las Naciones Unidas,

[...] han tenido lugar eventos trascendentales para la institucionalidad democrática de Bolivia. El Gobierno nacional recién posesionado promulgó una nueva Ley de Organización del Poder Ejecutivo; se dio inicio a los procesos de nacionalización de los hidrocarburos y del sector minero; se convocó y llevó a cabo un referéndum de carácter vinculante para la consideración de las autonomías departamentales en la Asamblea Constituyente; se elaboró y presentó el PND; se llevaron adelante acciones para poner en vigencia un nuevo seguro de salud ampliado, y se elaboró y remitió al Poder Legislativo un proyecto de ley que supone una profunda transformación del sistema educativo boliviano. Asimismo, a comienzos de 2006 tuvo lugar el inicio de labores de nueve prefectos departamentales, electos mediante voto por primera vez en la historia del país. (2007, p. 40)

A convocação da Asamblea Constituyente foi marcada, desde o início, por um cenário político permeado por novos atores e novas atrizes, além de novos sujeitos coletivos. Houve uma grande mobilização e influência da sociedade civil e de movimentos sociais, especialmente, dos indígenas, campesinos e periurbanos. As eleições para composição da Assembleia foram marcadas, também, por um conjunto de medidas que tinham o intuito de assegurar a participação das mulheres. Sánchez e Uriona, explicam que:

La elección de 255 constituyentes incluye el criterio de equidad de género, estableciendo la alternancia entre mujeres y hombres para la postulación de candidaturas, tanto en la lista de circunscripción territorial como en la plurinominal. Se dispone que haya tres candidatos a constituyentes por cada circunscripción territorial, y que los dos primeros conformen necesariamente un binomio (hombre-mujer/mujer-hombre). De los cinco candidatos a constituyentes por cada circunscripción departamental, dos como mínimo deberán ser mujeres, respetando la alternancia (hombre-mujer/mujer-hombre). (2014, p. 26)

Além dessas medidas, a mobilização das redes Coordinadora de la Mujer, Articulación de Mujeres por la Equidad y la Igualdad (AMUPEI), Plataforma de la Mujer, Foro Político Nacional de Mujeres e Red de Trabajadores/as de la Información y Comunicación (Red-ADA) por todos os departamientos da Bolívia culminou no fortalecimento da ação política Movimiento de Mujeres Presentes en la Historia, que criou uma agenda comum de mulheres de diferentes realidades étnicas, culturais, territoriais, de classe. Conforme Uriona, ele travou sua luta pautado em cinco elementos constitutivos do Estado Boliviano, a serem revertidos na Asamblea Constituyente:

“[...] Estado colonial que ha generado la subordinación y exclusión de pueblos y naciones considerados como inferiores por el orden dominante de un grupo o elite que ha impuesto sus visiones de vida, sus instituciones y sus normas, planteando una homogenización que no reconoce la diversidad, las diferencias ni las especificidades. […] Estado capitalista desde el cual se establecieron modos de producción, propiedad privada y tenencia de la tierra, basados en la explotación y la división del trabajo, generando así una división entre ricos y pobres. [...] Estado centralista como forma de gobierno que ha generado un desarrollo desigual de las regiones, los municipios y las comunidades, sin criterios de redistribución y equidad, expresado también en la ausencia del Estado en todo el territorio nacional. [...] Estado patriarcal que establece un sistema de relaciones de poder desde el cual se discrimina, subordina y excluye a las mujeres. Las mujeres enfrentan las más altas tasas de mortalidad, menor acceso a la educación, mayores índices de violencia, menores oportunidades de acceso al trabajo y a la producción, a los servicios básicos y a la vivienda; menor acceso a la tierra y a la participación en los espacios de decisión. La mayoría de las mujeres no cuenta con seguro médico ni jubilación [...] Estado confesional. Bolivia es un país de múltiples expresiones espirituales y religiosas, sin embargo define a su Estado como católico, existiendo una relación e influencia directa de la doctrina religiosa sobre las decisiones políticas del Estado y su marco normativo. Las políticas públicas, en muchos casos, han sido influenciadas por la Iglesia, limitando de manera particular el ejercicio de los derechos de las mujeres. (2008, pp. 1-2)

Além de contribuir para o fortalecimento da referida ação política, a mobilização dessas redes corroborou para a decisiva participação de mulheres no processo Constituinte, com expressões como: nunca más sin nosotras, por un nuevo pacto social con las mujeres. A Federación Nacional de Mujeres Campesinas de Bolivia “Bartolina Sisa” desse foi uma das participantes desse movimento. Sánchez e Uriona ressaltam que estiveram envolvidos

[...] 170 municipios, urbanos y rurales, en más de 400 espacios de encuentro y más de 1.200 organizaciones en el proceso de elaboración de la propuesta, y participaron en él más de 25.000 mujeres. El proceso incluyó, a nivel nacional, espacios de debate político, de participación y diálogo con y entre mujeres dirigentas y representantes de organizaciones sociales matrices, mujeres feministas y de diferentes expresiones organizativas del movimiento. (2014, p. 37)

Essa mobilização em busca de representatividade de mulheres na Asamblea Constituyente, e da inauguração de um novo Estado se refletiu na conjuntura eleitoral boliviana: das 2.112 pessoas candidatas à composição da Assembleia, 42,6% eram mulheres5, conforme dados da Corte Nacional Electoral, o que, apesar de não representar exatamente a metade, consistia em 899 candidatas, um número inédito e muito superior às eleições anteriores (Fondo de Población de las Naciones Unidas, 2007).

Dentre as candidatas à Asamblea Constituyente, foram eleitas 87 mulheres, perfazendo o total de 34,5% do número total de Constituintes6, o que revelou a tendência à participação feminina no Parlamento, se comparado aos anos anteriores7. Das mulheres eleitas, 18 eram indígenas originárias campesinas, que integravam ou haviam integrado a Federación Nacional de Mujeres Campesinas de Bolivia “Bartolina Sisa”, dentre as quais se pode citar Silvia Lazarte, que presidiu a Asamblea Constituyente. Pati, Mamani e Quispe salientam que

[...] la participación de las mujeres como asambleístas no sólo significaba la presencia de la mujer, sino también de protagonistas capaces de plantear y defender los temas que afectan a los pueblos porque ellas son y fueron parte de sus luchas y tienen no sólo el discurso, sino también la experiencia vivencial de las formas de exclusión y discriminación de la vida republicana. (2009, p. 217)

Nesse sentido, Rousseau e Morales ressaltam como foi simbólica a presença de tantas mulheres, no âmbito público, para o enfrentamento de características colonialistas predominantes na sociedade boliviana:

Esta fue la primera vez que mujeres de origen humilde, pero con impresionantes trayectorias como lideresas sociales, obtuvieron cargos de ministras, viceministras, senadoras, presidenta de la Asamblea Constituyente, entre otros. Esto definitivamente transformo el simbolismo del poder político y rompió las barreras de género, clase y etnicidad [...] Evo Morales, orgullosamente, nombró a mujeres en el 50% de su gabinete, otro hecho sin precedentes que las Bartolinas consideran como una de sus victorias por la influencia central que tienen en el MAS. No todas mujeres nombradas ministras pertenecían a las Bartolinas, pero sí algunas de ellas. (2018, pp. 84-85)

Os trabalhos da Asamblea Constituyente iniciaram em agosto de 2006 e as/os Constituintes estavam divididas/os em 21 comissões de trabalho, encarregadas de receber, analisar e estudar propostas para a construção da nova Constituição da Bolívia (Pati, Mamani & Quispe, 2009).

Eram elas: 1. Visão de país, da qual participaram Valentina Carvallo de Guzmán e Esperanza Huanca Mendoza; 2. Cidadania, nacionalidade, da qual participaram Ana Calvimontes Gonzáles, Saturnina Mamani Alaza, Nancy Flores Barco e Román Loayza; 3. Deveres, direitos e garantias, da qual participaram Sabina Cuellar Leaños e Irma Mamani Nino; 4. Organização e estrutura do Estado, da qual participaram Isabel Domínguez, Benedicta Huanca de Nina e Nelida Faldin Chure; 5. Poder Legislativo; 6. Poder Judiciário, da qual participaram Marcela Choque Barrionuevo, Jimena Leonardo Choque e Lidia Choque Olazo; 7. Poder Executivo, da qual participou Freslinda Flores Enríquez; 8. Outros órgãos do Estado; 9. Autonomias departamentais, provinciais, municipais e indígenas, descentralização e organização territorial; 10. Educação e interculturalidade, da qual participaram Emiliana Ilaya de Tancara, Cornelia Flores Choque e Peregrina Cussi Viza e Gladyz Siacara Martínez; 11. Desenvolvimento social integral, da qual participaram Avelina Vera Cazon de Serrano, Elvira Vega Sillo e Lilina Poita Sardina de García; 12. Hidrocarbonetos, da qual participaram Dora Romero Llacsi e Agustina Quimaya Vargas; 13. Mineração e metalurgia; 14. Recursos hídricos e energia; 15. Desenvolvimento produtivo rural, agropecuário e agroindustrial, da qual participou Olimpia Rosas; 16. Recursos naturais renováveis, terra, território e meio ambiente, da qual participou Paulina Pérez Colque; 17. Desenvolvimento amazônico integral; 18. Coca, da qual participaram Virginia Mamani Condorena, Elsa Veliz e Margarita Terán Gonzáles; 19. Desenvolvimento econômico e finanças, da qual participaram Teodora Tapia Aruni, Nilda Copa e Dora Arteaga; 20. Fronteiras nacionais, relações internacionais e integração, da qual participaram Miriam Cadima Coca e Cristina Laura Morales; 21. Segurança e defesa nacional (Pati, Mamani & Quispe, 2009).

Além da presença das Bartolinas Sisas na Asamblea Constituyente da Bolívia, assumindo a figura de Constituintes, a Federación encaminhou, em 2007, sua própria proposta à Assembleia, que foi denominada Las Bartolinas en la Asamblea Constituyente - Propuestas para el nuevo Estado Plurinacional, na qual postularam, segundo Sánchez e Uriona, que:

Se respetan los derechos de la mujer con justicia social y equidad de género. Como mujeres somos discriminadas doblemente. Por un lado, porque somos campesinas indígenas originarias y, por otro, somos discriminadas por nuestros compañeros del sindicato y nuestros maridos que no quieren que participemos. Por eso necesitamos alfabetizarnos, organizarnos y capacitarnos en cuanto a las diferentes leyes nacionales. (2014, p. 73)

A proposta elaborada pelas Bartolinas Sisas se assemelha àquela apresentada pelo Pacto de Unidad, do qual a Federación fazia parte, com inclusão de seis novos elementos, expostos por Jáuregui:

[...] la equidad de género en la distribución de tierras, el apoyo a las mujeres campesinas para la gestión de microempresas, la prohibición de la venta de tierras a extranjeros, el control campesino de la tierra bajo criterios ecológicos que garanticen la soberanía alimentaria, la inclusión de la lógica del cuidado de la naturaleza y el ecosistema (diferente a la noción de dominio y propiedad que proponía el PU) y el derecho a la educación y a la salud para las mujeres. (2018, p. 106)

Apesar de as Bartolinas já serem, naquele período, uma Federación autônoma e com reivindicações específicas vinculadas a assuntos atinentes às mulheres rurais, elas se uniram, também, a mulheres urbanas, mesmo porque, embora tivessem diferenças culturais, econômicas, políticas, compartilhavam uma mesma condição: a de serem mulheres bolivianas. Dialogaram, também, com alas masculinas, mestiças, indígenas, o que fez com que a Constitución Política del Estado fosse construída a partir da deliberação coletiva, a despeito das divergências existentes (Franco, 2017).

Essa atuação propiciou a aprovação de pontos importantes que atingiriam as Bartolinas Sisas diretamente, como: a declaração da Bolívia como Estado Plurinacional; a laicidade estatal; o reconhecimento da equidade de gênero como um princípio do Estado; a vedação a todas as formas de discriminação e violência; a garantia da participação política; a previsão de direitos coletivos dos povos, tais como acesso ao serviço de água potável e de segurança alimentar; o direito à educação laica e intercultural, observando a cultura, língua, necessidades e aspirações de cada povo; o direito à terra para mulheres, conquistas estas que serão pormenorizadas a seguir (Sanchez & Uriona, 2014).

A Constituição Política do Estado da Bolívia previu, em seu Artículo 1, que a Bolívia se constitui como um Estado Unitário Social de Direito Plurinacional Comunitário, “[...] libre, independiente, soberano, democrático, intercultural, descentralizado y con autonomías. Bolivia se funda en la pluralidad y el pluralismo político, económico, jurídico, cultural y lingüístico, dentro del proceso integrador del país” (Constitución Política de Bolivia, 2009, s/p.). Esse dispositivo reflete a inovação que representa o movimento constitucional latino-americano, marcado pela valorização das formas de governo próprias, que busca a redistribuição da riqueza social, a descolonização e a democracia igualitária (Santos, 2019). Sobre esse movimento, Bragato e Castilho (2014, p. 11) advertem que

Não há entre os estudiosos do tema sequer uma convergência em torno da denominação do movimento constitucional latino-americano das últimas décadas. Como aponta Brandão (2013), diversas são as denominações adotadas, como Novo Constitucionalismo Latino-Americano (Viciano e Dalmau), Constitucionalismo Mestiço (Baldi), Constitucionalismo Andino e Constitucionalismo Pluralista Intercultural (Antonio Carlos Wolkmer), Neoconstitucionalismo Transformador (Santamaría), Constitucionalismo Pluralista (Raquel Yrigoyen), Constitucionalismo Experimental ou Constitucionalismo Transformador (Boaventura de Sousa Santos), Constitucionalismo da Diversidade (Uprimmy) e outros. A diversidade de denominações vai ao encontro da advertência de Uprimny (2011), no sentido de que existem diferenças nacionais muito importantes entre as reformas constitucionais recentes da América Latina, mas também traços comuns que permitem visualizar as orientações comuns dessa evolução”. Apesar das distintas nomenclaturas, apresenta-se como uma prática constitucional alternativa ao modelo constitucional europeu e norte-americano, pensado desde a América Latina, com características descolonizadoras e o intuito de incluir sujeitos, historicamente, excluídos e invisibilizados.

Essa configuração é fundada, segundo Pati, Mamani & Quispe (2009) , em uma sociedade plural, calcada no diálogo entre os diversos grupos que a compõem, na equidade, na solidariedade, na participação dos cidadãos e cidadãs no controle social. O Estado Plurinacional se constitui, conforme Sánchez, como uma forma de descolonização, com “[...] nuevos principios y valores, con la inclusión de otros símbolos patrios, y con el reconocimiento de lenguas y creencias espirituales, entre otras medidas inclusivas que reivindican a los pueblos y naciones indígenas preexistentes a la colonia” (2015, p. 9). Yrigoyen explica que

Al definirse como un Estado plurinacional, resultado de un pacto entre pueblos, no es un Estado ajeno el que “reconoce” derechos a los indígenas, sino que los colectivos indígenas mismos se yerguen como sujetos constituyentes y, como tales y junto con otros pueblos, tienen poder de definir el nuevo modelo de Estado y las relaciones entre los pueblos que lo conforman [...] Esta demanda se traduce en nuevos derechos sociales que incorporan la perspectiva indígena, como el derecho al agua, al “buen vivir” y a la seguridad alimentaria, entre otros. Y asimismo reconocen el ejercicio del derecho propio en el marco de la cosmovisión indígena. (2011, p. 149)

Para corroborar o disposto no Artículo 1, os subsequentes (Artículo 2 e 3) declaram a presença pré-colonial dos povos indígenas na Bolívia, bem como, asseguram sua autonomia, seu autogoverno, suas instituições, suas culturas, no que se incluem os idiomas aymara, araona, baure, bésiro, canichana, cavineño, cayubaba, chácobo, chimán, ese ejja, guaraní, guarasu’we, guarayu, itonama, leco, machajuyai-kallawaya, machineri, maropa, mojeño-trinitario, mojeño-ignaciano, moré, mosetén, movima, pacawara, puquina, quechua, sirionó, tacana, tapiete, toromona, uru-chipaya, weenhayek, yaminawa, yuki, yuracaré y zamuco, que passaram a ser considerados, juntamente com o espanhol, como os idiomas oficiais do Estado. Além disso, afirma que a Bolívia é constituída por bolivianos e bolivianas, nações e povos indígenas, afrobolivianos e comunidades interculturais8 9 (Constitución Política de Bolivia, 2009).

A laicidade do Estado está prevista no Artículo 4º da Constituição Política, que dispõe que: “El Estado respeta y garantiza la libertad de religión y de creencias espirituales, de acuerdo a sus cosmovisiones. El Estado es independiente de la religión” (Bolivia, 2009, s/p.). A mudança foi bastante significativa, já que, até então, a religião católica era tida como a oficial do Estado (Constitución Política de Bolivia, 1967, s/p.). A laicidade deve atingir, também, o âmbito da educação, conforme previsto no Artículo 86 da Constituição:

Artículo 86. En los centros educativos se reconocerá y garantizará la libertad de conciencia y religión, así como la espiritualidad de las naciones y pueblos indígena originario campesinos, y se fomentará el respeto y la convivencia mutua entre las personas con diversas opciones religiosas, sin imposición dogmática. En estos centros no se discriminará en la aceptación y permanencia de las alumnas y los alumnos por su opción religiosa.

Além de ser laica, a educação deve fomentar, de acordo com o Artículo 79 da Constituição, “[...] el civismo, el diálogo intercultural y los valores éticos y morales”, além de incorporar, em seus valores, a equidade de gênero10. Seu acesso e permanência devem ser garantidos pelo Estado a todos os cidadãos e todas as cidadãs, sem discriminação, conforme previsão nos Artículos 1711 e 82. I12 (Constitución Política de Bolivia, 2009).

A Constitución Política de 2009 é marcada, também, pelo reconhecimento da equidade de gênero dentre os valores e princípios do Estado. Em seus Artículos 8 e 270 assim dispõe:

Artículo 8. El Estado se sustentan en valores de unidad, igualdad, inclusión, dignidad, libertad, solidaridad, reciprocidad, respeto, complementariedad, armonía trasparencia, equilibrio, igualdad de oportunidades equidad social y de género en la participación, bienestar común, responsabilidad, justicia social, distribución y redistribución de los productos y bienes sociales, para vivir bien.

Artículo 270. Los principios que rigen la organización territorial y las entidades territoriales descentralizadas y autónomas son: la unidad, voluntariedad, solidaridad, equidad, bien común, autogobierno, igualdad, complementariedad, reciprocidad, equidad de género, subsidiariedad, gradualidad, coordinación y lealtad institucional, transparencia, participación y control social, provisión de recursos económicos y preexistencia de las naciones y pueblos indígena originario campesinos, en los términos establecidos en esta Constitución. (Constitución Política de Bolivia, 2009, s/p. )

A Constituição assegura a participação política das mulheres, colocando-as em equivalência de condições com os homens, pois a forma do Estado é democrática, participativa e comunitária de governo, de acordo com seu Artículo 1113. Além disso, a eleição de membros da Assembleia, de dirigentes, candidatos e candidatas de grupos cidadãos e partidos políticos deverá garantir a igualdade de participação entre homens e mulheres, conforme Artículos 148 II14 e 210 II15 da Constituição (Constitución Política de Bolivia, 2009).

Além da participação política, foram assegurados às mulheres os direitos à posse de terra, herança e propriedade, o que deve ser objeto de políticas públicas, com a finalidade de eliminar as formas de discriminação contra as mulheres nesse contexto. A Constituição Boliviana preceitua:

Artículo 395. I. [...] La dotación se realizará de acuerdo con las políticas de desarrollo rural sustentable y la titularidad de las mujeres al acceso, distribución y redistribución de la tierra, sin discriminación por estado civil o unión conyugal.

Artículo 402. El Estado tiene la obligación de:

2. Promover políticas dirigidas a eliminar todas las formas de discriminación contra las mujeres en el acceso, tenencia y herencia de la tierra. (2009, s/p.)

A Constituição veda todas as formas de discriminação e violência em função de “[...] sexo, color, edad, orientación sexual, identidad de género, origen, cultura, nacionalidad, ciudadanía, idioma, credo religioso, ideología, filiación política o filosófica, estado civil, condición económica o social, tipo de ocupación, grado de instrucción, discapacidad, embarazo”, conforme Artículo 14, II, quando houver intuito de prejudicar o reconhecimento, o gozo ou exercício de direitos, o que deve ser assegurado pelo Estado. A Constitución Política de Bolivia prevê, nesse sentido,

Artículo 15. I. Toda persona tiene derecho a la vida y a la integridad física, psicológica y sexual. Nadie será torturado, ni sufrirá tratos crueles, inhumanos, degradantes o humillantes. No existe la pena de muerte.

  1. Todas las personas, en particular las mujeres, tienen derecho a no sufrir violencia física, sexual o psicológica, tanto en la familia como en la sociedad.

  2. El Estado adoptará las medidas necesarias para prevenir, eliminar y san-cionar la violencia de género y generacional, así como toda acción u omisión que tenga por objeto degradar la condición humana, causar muerte, dolor y sufrimiento físico, sexual o psicológico, tanto en el ámbito público como privado. (2009, s/p.)

Além disso, a Constituição da Bolívia representa importante avanço para a desconstrução do sexismo linguístico, uma vez que adotou, ao longo do Texto Constitucional, a flexão de gênero dos sujeitos, como se verifica no preâmbulo: “Nosotros, mujeres y hombres, a través de la Asamblea Constituyente y con el poder originario del pueblo, manifestamos nuestro compromiso con la unidad e integridad del país” (Constitución Política de Bolivia, 2009, s/p. ), o que representa a força dos movimentos feministas descoloniais e a sua participação na Constituinte.

Portanto, ante as considerações tecidas, é possível verificar que as Bartolinas Sisas construíram sua luta de forma paulatina, desde 1980, até alcançarem, em 2006, a possibilidade de participar da Asamblea Constituyente da Bolívia, ou seja, da elaboração do Documento fundante do Estado. Atuaram como Constituintes protagonistas à aprovação de diversas e importantes demandas, não apenas das mulheres indígenas, mas de outros segmentos da sociedade com os quais dialogaram, como a definição da Bolívia como um Estado Plurinacional. Além disso, asseguraram, constitucionalmente, o seu espaço na política, o direito à terra para mulheres, a equidade de gênero, a vedação à discriminação e à violência, a laicidade estatal.

As Bartolinas Sisas compuseram/compõem um grupo de mulheres latinas e marginalizadas que não participaram da construção de algumas das premissas históricas do feminismo16, cujo protagonismo for nortista, mas que, ainda assim, trouxeram contribuições às mulheres latinas e marginalizadas. Sua luta se revela como feminista, por ser pautada na busca pela eliminação das desigualdades de gênero na Bolívia e na despatriarcalização da sua sociedade, além de sua descolonização, com reflexos diretos de sua participação na Constitución Política del Estado da Bolívia.

As Bartolinas Sisas ascenderam um espaço público de poder na Asamblea Constituyente, feito simbólico não somente por serem mulheres, mas por serem mulheres indígenas originárias campesinas. A importância reside no fato de sua participação legítima representar milhares de outras mulheres anônimas que faziam, ou não, parte da Confederación Nacional de Mujeres Campesinas Indígenas Originárias de Bolivia - Bartolina Sisa (CNMCIOB - “BS”), mas que possuíam experiências individuais e coletivas semelhantes.

Essas vivências e experiências foram marcadas pelas relações de poder do patriarcado, da colonialidade e do capitalismo, estruturas contras quais as Bartolinas Sisas lutaram e lutam. Sua resistência, marcada por uma identidade étnica e uma história comum de exploração e marginalização, se desenha para o rompimento das amarras que lhes foram impostas a partir da colonização da América Latina. Pela visibilidade às mulheres indígenas, até então, inferiorizadas dentro do próprio movimento feminista, as Bartolinas Sisas demonstraram a possibilidade de ressignificar a própria luta das mulheres na Bolívia em busca da descolonização do gênero, razão pela qual, podem ser denominadas de feministas descoloniais.

CONCLUSÕES

O presente artigo teve como escopo principal estudar, a partir da compreensão do feminismo descolonial, a contribuição das mulheres que integraram/integram a Confederación Nacional de Mujeres Campesinas Indígenas Originárias de Bolivia - Bartolina Sisa (CNMCIOB - “BS”) para o debate e a positivação de direitos na Constitucion Política del Estado de Bolivia de 2009.

Para tanto, foi realizado, no primeiro tópico, um estudo acerca do feminismo descolonial, marcado pela contestação da universalização das mulheres, e alicerçado na compreensão da colonialidade de gênero, e no entrecruzamento de questões de gênero, raça, classe. Ele deu visibilidade a grupos de mulheres, até então, inferiorizadas dentro do próprio movimento feminista, como, por exemplo, indígenas, negras, latinas, imigrantes, agricultoras, empregadas domésticas.

No segundo tópico, buscou-se verificar a forma como as Bartolinas Sisas se mobilizaram (por meio de encontros, reuniões, propostas) e quais das suas demandas foram incluídas nas Constituições (o que foi feito por meio da análise dos Textos Constitucionais). O que se verificou foi uma forte participação política das mulheres que integravam a Confederación Nacional de Mujeres Campesinas Indígenas Originárias de Bolivia - Bartolina Sisa (CNMCIOB - “BS”).

Como resultado dessa atuação, as Bartolinas contribuíram para a construção e aprovação de pautas constitucionais como: a declaração da Bolívia como Estado Plurinacional (Artículo 1 da Constitución Política de 2009); a laicidade estatal (Artículo 4º da Constitución Política de 2009), o reconhecimento da equidade de gênero como um princípio do Estado (Artículos 8 e 270 da Constitución Política de 2009), a garantia da participação política (Artículo 11 da Constitución Política de 2009), o direito à educação laica e intercultural, observando a cultura, língua, necessidades e aspirações de cada povo (Artículo 79 da Constitución Política de 2009), o direito à terra para mulheres (Artículo 395. I. e Artículo 402 da Constitución Política de 2009).

As Bartolinas Sisas compuseram/compõem um grupo de mulheres latinas e marginalizadas, cujas vivências, experiências e resistências são marcadas pela identidade étnica e pela história comum de exploração e marginalização, decorrentes dos processos colonizatórios da América Latina e das relações de poder que deles decorreram. Pelo protagonismo assumido por mulheres indígenas, campesinas e originárias, até então, inferiorizadas dentro do próprio movimento feminista, as Bartolinas Sisas demonstraram a possibilidade de ressignificar a própria luta das mulheres na Bolívia em busca da descolonização do gênero, o que permite que sua luta seja compreendida a partir da perspectiva do feminismo descolonial.

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1 Cabe salientar que, ao se tratar de colonialidade, a questão de raça não está adstrita à dicotomia negro x branco, mas sim, à categorização de pessoas e grupos, em que estão comportados, também, a relação mulher x homem, pobre x rico.

2A categoria de Outro, pela perspectiva feminista, foi criada por Simone de Beauvoir, segundo a qual o pensamento humano sempre se baseou da dualidade do Mesmo e do Outro, aqueles que não pertencem ao Mesmo e, por isso, representam uma ameaça. “O outro é a passividade diante da atividade, a diversidade que quebra a unicidade, a matéria oposta à forma, a desordem que resiste à ordem. A mulher é, assim, votada ao mal” (Beauvoir, 2016, p. 116), ambivalência que marcará a mulher durante toda sua história. Grada Kilomba avança nessa categoria, para dizer que a mulher negra é o Outro do Outro, já que “[...] por serem nem brancas e nem homens, ocupam um lugar muito mais difícil na sociedade suprematista branca, uma espécie de carência dupla, a antítese de branquitude e masculinidade [...] nesse esquema, a mulher negra só pode ser o Outro e nunca em si mesma”. (Ribeiro, 2019, pp. 38-39)

3No Brasil, como exemplo de movimentos que levantaram essa pauta, pode-se referir a Marcha das Margaridas, a Rede Carioca de Agricultura Urbana e a Articulação Nacional de Agroecologia (Costa, 2020).

4Lozada renunciou ao cargo de Presidente no ano de 2003, que passou a ser ocupado pelo Vice-Presidente Carlos Diego Mesa Gisbert, até junho de 2005, quando renunciou. Em seu lugar, assumiu o presidente da Suprema Corte de Justiça, Eduardo Rodríguez Veltzé, que se manteve até o final do mandato, em janeiro de 2006 (Santos, 2014).

5Foram 1.213 homens candidatos (Fondo de Población de las Naciones Unidas, 2007).

6Foram de 168 homens eleitos (Fondo de Población de las Naciones Unidas, 2007).

7O Congresso Nacional boliviano em 1996, contava com a participação de 3,7% de mulheres no Senado, e 9,2% na Câmara. Em 2004, esses números subiram, respectivamente, para 14,8% e 17,7% (Fondo de Población de las Naciones Unidas, 2007).

8“Artículo 2. Dada la existencia precolonial de las naciones y pueblos indígena originario campesinos y su dominio ancestral sobre sus territorios, se garantiza su libre determinación en el marco de la unidad del Estado, que consiste en su derecho a la autonomía, al autogobierno, a su cultura, al reconocimiento de sus instituciones y a la consolidación de sus entidades territoriales, conforme a esta Constitución y la ley” (Constitución Política de Bolivia, 2009, s/p.).

9“Artículo 3. La nación boliviana está conformada por la totalidad de las bolivianas y los bolivianos, las naciones y pueblos indígena originario campesinos, y las comunidades interculturales y afrobolivianas que en conjunto constituyen el pueblo boliviano” (Constitución Política de Bolivia, 2009, s/p.).

10“Artículo 79. La educación fomentará el civismo, el diálogo intercultural y los valores éticos y morales. Los valores incorporarán la equidad de género, la no diferencia de roles, la no violencia y la vigencia plena de los derechos humanos” (Bolivia, 2009, s/p.).

11“Artículo 17. Toda persona tiene derecho a recibir educación en todos los niveles de manera universal, productiva, gratuita, integral e intercultural, sin discriminación” (Bolivia, 2009, s/p.).

12“Artículo 82. I. El Estado garantizará el acceso a la educación y la permanencia de todas las ciudadanas y los ciudadanos en condiciones de plena igualdad” (Bolivia, 2009, s/p.).

13“Artículo 11. El Estado adopta para su gobierno la forma democrática participativa, representativa y comunitaria, con equivalencia de condiciones entre hombres y mujeres” (Constitución Política de Bolivia, 2009, s/p.).

14“En la elección de asambleístas se garantizará la igual participación de hombres y mujeres” (Constitución Política de Bolivia, 2009, s/p.).

15“La elección interna de las dirigentes y los dirigentes y de las candidatas y los candidatos de las agrupaciones ciudadanas y de los partidos políticos será regulada y fiscalizada por el Órgano Electoral Plurinacional, que garantizará la igual participación de hombres y mujeres” (Constitución Política de Bolivia, 2009, s/p.).

16Como feminismo, nesse contexto, refere-se ao feminismo hegemônico, euronorcêntrico, integrado por mulheres de classe média-alta que restringiam sua luta às demandas de mulheres de mesma classe, deixando de incluir pautas de mulheres marginalizadas e ignorando o imbricamento de raça, gênero e classe, que sobre elas recaia.

Recebido: 30 de Junho de 2021; Aceito: 25 de Agosto de 2021

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