INTRODUÇÃO
Este trabalho corresponde à uma parte de um dos capítulos da dissertação de mestrado, em desenvolvimento, da primeira autora, no Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Rural Sustentável, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná - Unioeste. A pesquisa, com projeto intitulado: Avanços e Retrocessos do Direito Humano à Alimentação Adequada no Município de Cascavel - Paraná é realizada com recurso de bolsa de pós-graduação pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
O Direito Humano à Alimentação Adequada - DHAA é um direito com um denso conteúdo e, por isso, sua interpretação não pode ser reducionista; abrange todo o sistema alimentar, que se inicia com o agricultor e finaliza com descarte; visa o direito a uma vida livre da fome e da má nutrição, mas também ao direito a uma alimentação adequada (culturalmente, socialmente, economicamente e ambientalmente).
Por se tratar de um pressuposto para existência humana (digna), os Estados têm a obrigação de realizar esse direito em todas as suas dimensões. Assim, o reconhecimento do DHAA não pode se limitar a sua positivação, mas requer medidas efetivas dos Estados para que ele seja realizado.
Desse modo, esse trabalho tem o objetivo de apresentar uma síntese da construção do DHAA em nível internacional, no âmbito da América Latina e Caribe, no Brasil e no estado do Paraná - Brasil. E, também, no âmbito brasileiro, fazer uma breve análise sobre a recente extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - CONSEA, dentro da perspectiva do princípio da proibição do retrocesso e da concepção de realização progressiva dos direitos sociais.
No que concerne à estrutura metodológica, este estudo, de cunho exploratório e analítico, caracteriza-se como uma revisão de literatura narrativa, por meio de um levantamento bibliográfico e documental a partir de bancos de dados disponíveis na internet (Portal de Periódicos CAPES/MEC e Google Acadêmico), bibliografias, legislações nacionais, tratados internacionais e documentos de sites oficiais (ex. FAO).
Quanto à estrutura, este artigo foi divido em duas partes. A primeira aborda o histórico do DHAA, se subdividindo em: nível mundial; o empenho da América Latina e Caribe para concretizar o DHAA; uma breve contextualização do DHAA no Brasil; e o DHAA no estado do Paraná. Já a segunda parte, analisa-se a obrigação do Estado na realização progressiva do DHAA e o princípio da proibição do retrocesso em face da extinção do CONSEA.
1 HISTÓRICO
1.1 Nível Mundial
O reconhecimento da alimentação como um direito humano é fruto da luta histórica pela vida digna. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, significou um grande passo na promoção e proteção dos direitos humanos, inclusive para o direito à alimentação.
O referido documento foi publicado num contexto pós Segunda Guerra Mundial, período no qual foi Criada a Organização das Nações Unidas - ONU. A declaração foi elaborada para expressar o compromisso dos Estados em garantir os direitos humanos (Burity et al., 2010) e foi responsável por impulsionar diversos pactos internacionais (Siqueira, 2015).
Nesse contexto, em 1966, foi criado o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais - PIDESC1, no qual a expressão “Direito Humano à Alimentação Adequada” foi utilizada pela primeira vez (Burity et al., 2010). O Pacto instituiu aos Estados signatários o compromisso de desenvolverem progressivamente políticas para assegurar o pleno exercício dos direitos nele previstos. De acordo com o PIDESC, o DHAA possui duas dimensões: (i) o direito de estar livre da fome e da má nutrição; e (ii) o direito à alimentação adequada (Burity et al., 2010; Restrepo-Yepes et al., 2020). Desse modo, a abrangência do DHAA não se limita a uma ideia de sobrevivência, mas a garantia do bem estar e de um nível sadio de vida (Ferraz, 2013).
Em 1996, ocorreu a Cúpula Mundial da Alimentação da FAO - Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura. Após tal evento, a FAO passou a ter um maior envolvimento na promoção do DHAA (Leão, 2013).
Durante a Cúpula Mundial da Alimentação, os países participantes firmaram a Declaração de Roma sobre a Segurança Alimentar e Nutricional, documento que trouxe sete compromissos visando acabar com a fome. Ainda, a declaração frisou a importância da Segurança Alimentar e Nutricional e a associou de forma definitiva ao papel do DHAA para a sua garantia (Burity et al., 2010).
Em 1999, por meio do Plano de Ação da Cúpula Mundial da Alimentação, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos foi convidado a definir o artigo 11 do PIDESC e propor meios para realização do DHAA. Assim, foi elaborado o Comentário Geral Número 12, do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Burity et al., 2010).
Tal documento apontava que a fome e a desnutrição não estão relacionadas à disponibilidade dos alimentos, mas à falta de acesso a eles (ONU, 1999) e ao de longo dos 41 itens aprofunda-se a interpretação do DHAA; cabendo destacar o item 6 que se refere ao conteúdo normativo do artigo 11 do PIDESC:
6. O direito à alimentação adequada realiza-se quando cada homem, mulher e criança, sozinho ou em companhia de outros, tem acesso físico e econômico, ininterruptamente, à alimentação adequada ou aos meios para sua obtenção. O direito à alimentação adequada não deverá, portanto, ser interpretado em um sentido estrito ou restritivo, que o equaciona em termos de um pacote mínimo de calorias, proteínas e outros nutrientes específicos. O direito à alimentação adequada terá de ser resolvido de maneira progressiva. No entanto, os estados têm a obrigação precípua de implementar as ações necessárias para mitigar e aliviar a fome, como estipulado no parágrafo 2 do artigo 11, mesmo em épocas de desastres, naturais ou não. (ONU, 1999)
Ainda, o Comentário Geral Número 12, entende que a disponibilidade do alimento pode se referir tanto ao acesso diretamente à terra produtiva quanto o acesso por meio de sistemas de distribuição, processamento e venda. E que, este direito, além de garantir um alimento nutricionalmente adequado, deve ser culturalmente adequado (ONU, 1999).
O Comentário dispõe que a acessibilidade pode ser econômica ou física. A acessibilidade econômica diz respeito aos custos para a aquisição de alimentos, para uma determinada dieta, os quais não devem ameaçar outras necessidades básicas; a física está relacionada a uma alimentação adequada e acessível a todas as pessoas (ONU, 1999).
Posteriormente, a Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável - Rio + 20, realizada no Brasil em 2012, originou um importante relatório final: “O Futuro que Queremos”. O relatório compromete os Estados a promoverem medidas para um futuro econômico, social e ambientalmente sustentável (ONU, 2012).
Especificamente quanto ao Direito à Alimentação Adequada, o documento, nos itens 108 a 118, trata sobre a “Segurança alimentar, nutrição e agricultura sustentável”; dentre eles, destacam-se principalmente os itens 108 e 109 (ONU, 2012).
O item 108 reafirma o compromisso de todos terem acesso a alimentos saudáveis, nutritivos e em quantidade suficientes, bem como o de aumentar segurança nutricional (ONU, 2012).
No item 109, o relatório aborda a pobreza no meio rural e a necessidade de medidas que atendam grupos vulneráveis, pequenos produtores, comunidades indígenas e mulheres. Também se reconhece a importância das tradicionais práticas agrícolas sustentáveis, reconhecendo a dimensão cultural do DHAA (Siqueira, 2015).
Por fim, cabe ressaltar a declaração da Cúpula das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável 2015 “Transformando Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”. Acordada por 193 Estados-membros da ONU, a Agenda é composta de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável - ODS’s e 169 metas visando a concretização dos direitos humanos até 2030, equilibrando as dimensões (a econômica, social e ambiental) do desenvolvimento sustentável (ONU, 2015).
Quanto ao DHAA, a Agenda 2030 prevê o Objetivo 2: Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável. Tal objetivo estabelece medidas desde o acesso à terra e garantia de sistemas sustentáveis de produção de alimentos até ás medidas para garantir o funcionamento adequado do mercado de commodities de alimentos (ONU, 2015).
Diante disso, ficou evidente a importância do desenvolvimento rural sustentável para garantir uma vida livre da fome e da má nutrição.
1.2 O empenho da América Latina e Caribe em concretizar o DHAA
Maluf e Prado (2015) apontam que a questão alimentar na América Latina está, principalmente, relacionada à equidade social. O histórico dos países da região, marcado pelo colonialismo e exploração, é o principal responsável pela desigualdade e pobreza.
Apontam os autores que existem dois elos entre a questão alimentar e a equidade social. O primeiro está relacionado à disponibilidade de quantidades suficientes de alimentos e preços acessíveis; já o segundo está relacionado “às oportunidades de trabalho e renda oferecidas pelas próprias atividades de produção, distribuição e consumo de alimentos nas formas da agricultura de base familiar, agroindústrias de menor porte, pequeno varejo e serviços de alimentação” (Maluf & Prado, 2015, p. 14 ).
Nesse contexto, Burity et al. (2015) entendem que as violações do DHAA, na América Latina, estão relacionadas à persistência de regimes políticos antidemocráticos; aos obstáculos encontrados pelos titulares do DHAA para participarem do processo de criação, execução e monitoramento de políticas públicas relacionado a esse direito; e a concentração dos recursos relacionados ao processo alimentar nas mãos de poucos e os conflitos gerados por isso.
Em 2018, 42,5 milhões de pessoas estavam em situação de fome na América Latina e Caribe, número que, se comparado a 2014, sofreu um acréscimo de 4,5 milhões. Todavia, ao passo que a fome e a desnutrição aumentaram, o número de pessoas obesas ou acima do peso também aumentou. Para cada pessoa que está passando fome na América Latina e Caribe, mais seis estão obesas ou acima do peso (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura [FAO] et al., 2019).
Mesmo enfrentando tais desafios, a luta contra a insegurança alimentar na América Latina e no Caribe não é recente, pelo que existe um grande empenho dos países da região para combater a insegurança alimentar. Todavia, ao mesmo tempo que muitos países da região têm empenhado esforços, ao longo dos anos, para promover a segurança alimentar e, consequentemente o DHAA, a fragilidade democrática que muitos países ainda enfrentam afeta diretamente a continuidade dessas ações. Um exemplo disso é o caso do Brasil que, logo após sair do Mapa da Fome da FAO2, em 2014, sofreu um desmonte nas políticas e ações que visavam garantir o DHAA, tema que será analisado à frente.
No âmbito internacional, em especial na América Latina, cabe destacar o Protocolo Facultativo à Convenção Americana de Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, “Protocolo de San Salvador”, que entrou em vigor em 1999. Por se tratar de lei internacional regional, tal documento foi de extrema relevância, pois consolidou a Convenção Americana de Direitos Humanos, garantindo o Direito Humano à Alimentação e obrigando os Estados-parte a efetivá-lo (Comissão Interamericana de Direitos Humanos, 1999).
Já em nível nacional, o México foi o pioneiro a promover uma política de segurança alimentar: o Sistema Alimentar Mexicano, em 1980; embora, tenha tido uma curta duração e pouco impacto, tornou-se um referencial para a América Latina e impulsionou novas abordagens na região (Maluf & Prado, 2015).
Em 2003, a Argentina contava com a Lei de Criação do Programa Nacional de Nutrição e alimentação, com o objetivo de trazer ao Estado o papel de garantidor do DHAA (Camera & Wegner, 2017). Posteriormente, diversos outros países da América Latina e Caribe adotaram leis e políticas, diretas ou indiretas, voltadas a Segurança Alimentar e Nutricional - SAN.
Segundo a FAO (2011), a Guatemala destaca-se como um dos primeiros países da America Latina a ter uma lei para o direito à alimentação. Em 2005, o país promulgou o Decreto Legislativo nº 32/2005 que criou o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sistema Nacional de Seguridad Alimentaria y Nutricional - SINASAN), que possibilitou a criação de uma política nacional de Segurança Alimentar e Nutricional com três linhas de atuação: elaboração de políticas, planejamento técnico e coordenação e implementação.
Também em 2005, na Guatemala, foi lançada a Iniciativa América Latina e Caribe sem Fome, pelo diretor da FAO na época, José Graziano da Silva. O Brasil destacou-se por ser um dos primeiros países a se comprometer com a Iniciativa juntamente com a América Central. Posteriormente, em 2006, a Iniciativa foi incorporada como linha de trabalho prioritária da FAO (Iniciativa América Latina y Caribe Sin Hambre [IALCSH], [2020]).
Nesse sentido, Maluf e Prado (2015, p. 34) destacam que a Iniciativa se estruturou em três princípios: “i) a fome como um problema político; ii) a fome como violação dos direitos humanos; iii) o combate à fome pode ser realizado ativamente através da cooperação internacional para o desenvolvimento”.
Em 2009, com o objetivo de assegurar o compromisso assumido na Iniciativa América Latina e Caribe sem Fome 2025, foi criada a Frente Parlamentar contra a Fome da América Latina e Caribe. Essa frente nasceu com o apoio do Programa Espanha da FAO e tem como temáticas principais a agricultura familiar, alimentação escolar e mudanças climáticas (Frente Parlamentario Contra el Hambre de América Latina y el Caribe, 2020).
A Frente Parlamentar contra a Fome da América Latina e Caribe se subdivide em frentes regionais e nacionais. As Frentes regionais são: Frente Parlamentario contra El Hambre del Parlamento Andino - Parlandino, Frente Parlamentario contra El Hambre del Parlamento Latinoamericano y Caribeño - Parlatino, Frente Parlamentario contra El Hambre del Parlamento del Mercosur - Parlasur e, Frente Parlamentario contra El Hambre del Parlamento Centroamericano - Parlacen (Frente Parlamentario Contra el Hambre de América Latina y el Caribe, 2020).
Em 2015, a Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos - CELAC adotou, com apoio da FAO, o Plano de Segurança Alimentar, Nutrição e Erradicação da Fome 2025, baseado nas próprias políticas públicas que tiveram êxito nos Estados (FAO, 2020).
O Plano de Segurança Alimentar, Nutrição e Erradicação da Fome 2025 possui 4 pilares: (i) estratégias coordenadas de segurança alimentar por meio da formulação de políticas públicas nacionais e regionais de segurança alimentar, com uma abordagem de gênero e com uma perspectiva dos direitos humanos, em particular o DHAA; (ii) acesso oportuno e sustentável a um alimento seguro, adequado, suficiente, culturalmente relevante e nutritivo para todas as pessoas; (iii) bem estar nutricional e garantia de nutrientes para grupos vulneráveis, respeitando a diversidade dos hábitos alimentares; e (iv) produção estável e oportuna atenção a desastres sociais e naturais que possam afetar a disponibilidade de alimentos (United Nations [UN], 2016).
Por fim, também cabe destacar o Escritório Regional da FAO para a América Latina e o Caribe, que trabalha diretamente com o objetivo de promover segurança alimentar na região. Nesse sentido, foram estabelecidas três iniciativas regionais prioritárias: (i) América Latina e Caribe sem fome; (ii) erradicar a fome e a pobreza para empoderar o setor rural; e (iii) uso sustentável dos recursos naturais, adaptação às mudanças climáticas e gestão de riscos de desastres (FAO, 2020).
Assim, é possível perceber que a América Latina e o Caribe têm traçado uma longa caminhada para promover o DHAA. Os países da região têm desenvolvido legislações, políticas públicas e alianças para que a insegurança alimentar seja minimizada. Não obstante, muitos desafios ainda persistem, em especial para superar as desigualdades sociais e fortalecer os regimes democráticos.
1.3 Uma breve contextualização do DHAA no Brasil
Embora as previsões legais sobre o DHAA sejam recentes no Brasil, a luta por esse direito pela sociedade brasileira é antiga. Em especial no que se refere à luta contra a fome e distúrbios nutricionais, seja na “luta cotidiana pela sobrevivência, seja por meio de movimentos sociais organizados, ou ainda de esforços acadêmicos e de profissionais que atuam na área” (Valente, 2002, p. 44 ).
O pioneiro a estudar e denunciar a fome e pobreza no Brasil foi Josué de Castro. Médico, professor, geógrafo, sociólogo e político, teve um importante papel na construção do DHAA. Em seu livro Geografia da Fome (1984), analisou a fome em seus mais diversos aspectos em todo o território brasileiro e apontou que ela era produto de fatores sociais e políticos (Castro, 1984).
Esse trabalho se restringirá a temática do DHAA no contexto histórico recente do Brasil, posterior a Constituição Cidadã de 1988, período em que a democracia se reestabeleceu no país e a vida livre da fome passa a ser vista como um direito.
Na década de 90, período de amplas mobilizações sociais, o sociólogo Hebert de Souza, conhecido como Betinho, exerceu um importante papel, na luta contra a fome, por meio da Ação da Cidadania Contra a Fome, Miséria e Pela Vida. Nesse momento, iniciaram-se debates a respeito da Segurança Alimentar e Nutricional pela sociedade civil e organizações não governamentais e movimentos sociais (Brasil, 2011).
Assim, durante o Governo Itamar Franco em 1993, nasceu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - CONSEA, órgão que integrava sociedade civil e o governo na agenda de combate a fome. O Conselho teve um importante papel na mudança de paradigma sobre a fome no país, relacionando-a com a miséria e violência (Valente, 2002). Entretanto, o Conselho durou apenas dois anos, sendo extinto no Governo Fernando Henrique Cardoso.
Em 1998, foi criado o Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional - FBSAN, que posteriormente tornou-se o Fórum Brasileiro de Segurança e Soberania Alimentar e Nutricional. O Fórum “constituiu uma rede nacional da sociedade civil, congregando organizações sociais, pesquisadores e técnicos governamentais, com ramificações na forma de fóruns estaduais” (Organização Pan-Americana da Saúde [OPA], 2017, p. 33) e até hoje é um instrumento na luta pelo DHAA no país.
Em 2003, o Governo Lula, por meio da Medida Provisória nº 1033 de 1º de janeiro de 2003, recriou o CONSEA, órgão de assessoramento da Presidência da República no tocante ao DHAA4.
Em 2006, como resultado de amplos debates de diversos setores da sociedade, foi sancionada a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional - Losan (Lei nº 11.346/2006), considerada como um marco na promoção do DHAA no país. A Losan possui os seguintes princípios: (i) universalidade e equidade no acesso à alimentação adequada; (ii) preservação da autonomia e respeito à dignidade das pessoas; (iii) participação social; e (iv) transparência (Brasil, 2006).
A Losan foi responsável por criar o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - Sisan, com o objetivo de assegurar o DHAA. Ao Sisan integram: o Consea, a Conferência Nacional de Segurança Alimentar, a Câmera Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional - Caisan5, os órgãos e entidades de Segurança Alimentar de todos os Entes e as instituições privadas, com ou sem fins lucrativos, que manifestem interesse na adesão e respeitem aos parâmetros do Sisan (Brasil, 2011).
Ainda, estabeleceu que o Estado tem o dever de “respeitar, proteger, promover, prover, informar, monitorar, fiscalizar e avaliar” a realização do DHAA. Além disso, previu que o Poder Público brasileiro, ao adotar políticas e ações para promover o DHAA, deve considerar as dimensões ambientais, culturais, econômicas, regionais e sociais (Brasil, 2006).
A Losan também definiu o conceito de Segurança Alimentar e Nutricional e abordou a questão da soberania alimentar:
Art. 3º A segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis.
Art. 5º A consecução do direito humano à alimentação adequada e da segurança alimentar e nutricional requer o respeito à soberania, que confere aos países a primazia de suas decisões sobre a produção e o consumo de alimentos. (Brasil, 2006)
Posteriormente, em 2010, foi aprovada pelo Congresso Nacional a Emenda Constitucional nº 646, importante marco legal no país, pois incluiu o Direito à Alimentação no rol dos direitos sociais do artigo sexto da Constituição Federal7. Tal aprovação trata-se de conquista de grande valor para a sociedade brasileira, haja vista que a garantia constitucional do DHAA tornou cada cidadão titular e não mais mero beneficiário do DHAA e das políticas públicas voltadas à garantia da Segurança Alimentar e Nutricional - SAN (Leão, 2013).
Nesse sentido, sobre a proteção jurídica do direito à alimentação e a aprovação da Emenda Constitucional nº 64, o relator Olivier De Schutter em missão ao Brasil em 2009, expôs em seu relatório:
16. No dia 3 de fevereiro de 2010, a Câmara dos Deputados brasileira aprovou, em última rodada de votação, a Emenda Constitucional que garante o direito à alimentação. A adoção desta emenda confirma ainda mais o papel de liderança do Brasil na garantia institucional e legal do direito à alimentação. A adoção da emenda é especialmente importante na medida em que os tribunais parecem relutantes em aplicar diretamente o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, apesar do nítido mandato constitucional contido no artigo 5°, parágrafo 3 da Constituição, que os obriga a reconhecer a aplicabilidade dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico nacional. O Relator Especial ficou impressionado pelo grau de envolvimento das organizações da sociedade civil no trâmite da emenda constitucional. (ONU, 2009)
Em seguida, por meio do Decreto nº 7.272/2010, a Losan foi regulamentada e também instituída a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - PNSAN, bem como seus objetivos, diretrizes e gestão; também foram estabelecidos parâmetros para a elaboração do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - Plansan. Desse modo, possibilitou-se aos outros entes federativos a adesão ao Sisan (Brasil, 2011).
Cabe destacar, nesse momento, as seguintes políticas públicas, que foram essenciais para a realização do DHAA no Brasil: a Estratégia Fome Zero, o Programa Bolsa Família, o Programa de Aquisição de Alimentos - PAA, o Programa Nacional de Alimentação Escolar - PNAE e o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar - PRONAF (FAO, 2014).
Sob essa perspectiva, associada à criação de leis, ao reestabelecimento do Consea e à implementação de políticas públicas, o Brasil saiu do Mapa da Fome da FAO em 2014 e conquistou reconhecimento internacional no combate a fome (FAO, 2014).
1.4 O DHAA no Estado do Paraná - Brasil.
Partindo da estrutura base do SISAN em nível federal, os Estados e municípios brasileiros devem reaplicá-la (BRASIL, 2011). Assim, no âmbito do Estado do Paraná, o Sisan PR é composto: pela Conferência Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional; pelo Consea; pela Caisan; por órgãos e entidades de Segurança Alimentar e Nutricional da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; e pelas instituições privadas, com ou sem fins lucrativos, que manifestem interesse na adesão e que respeitem os critérios princípios e diretrizes do Sisan.
As diretrizes do Sisan PR, de acordo com a Lei estadual nº 16.565/2010, são:
Art. 7°. O Sisan PR tem como base as seguintes diretrizes:
promoção da intersetorialidade das políticas, programas e ações governamentais e não-governamentais;
descentralização das ações e articulação, em regime de colaboração, entre as esferas de governo;
monitoramento da situação alimentar e nutricional, visando a subsidiar o ciclo de gestão das políticas para a área nas diferentes esferas de governo;
conjugação de medidas diretas e imediatas de garantia de acesso à alimentação adequada, com ações que ampliem a capacidade de subsistência autônoma da população;
articulação entre orçamento e gestão; e
estímulo ao desenvolvimento de pesquisas e à capacitação de recursos humanos. (Paraná, 2010)
Assim, a partir das deliberações das Conferências Estaduais de Segurança Alimentar e Nutricional, são elaborados os Planos Estaduais de Segurança Alimentar e Nutricional, que representam “um termo de compromisso do Governo do Estado com a população paranaense, a política de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), e com o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA)” (Câmera Governamental Intersetorial de Segurança Alimentar e Nutricional do Paraná [Caisan-PR], 2017, p. 7).
De acordo com o Plano Estadual 2016-2019, o Estado do Paraná tem implantado diversas políticas públicas com o objetivo de garantir o DHAA, entre elas: o Programa Leite das Crianças, o Programa Família Paranaense, o Programa Estadual de Alimentação Escolar - PEAE, o Programa Estadual de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos - PARA/PR (Caisan-PR, 2017).
Todavia, o Plano também destaca alguns desafios que o Estado ainda enfrenta, pois, embora seja um grande produtor de orgânicos, o Paraná é considerado o terceiro maior consumidor de agrotóxicos do país (Caisan-PR, 2017); segundo Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social - Ipardes (2017), em 2015, a quantidade média de agrotóxicos consumida no Paraná foi de 8,25 kg/ha/ano.
O aumento da obesidade e do sobrepeso também tem sido uma preocupação, pois são responsáveis por diversas doenças crônicas não transmissíveis, que, proporcionalmente, também têm aumentado (Caisan-PR, 2017).
Dessa forma, observa-se a importância da replicação do Sisan em nível estadual, para que o DHAA seja realizado. Embora o estado do Paraná ainda enfrente desafios, o Sisan-PR se apresenta como um instrumento para que o DHAA seja promovido, por meio de políticas públicas e ações, e, também, direcionando e conscientizando os municípios.
2 A OBRIGAÇÃO DO ESTADO NA REALIZAÇÃO PROGRESSIVA DO DHAA E O PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DO RETROCESSO: A EXTINÇÃO DO CONSEA NO BRASIL
Como já mencionado anteriormente, o PIDESC prevê que o DHAA seja realizado de maneira progressiva, ou seja, para que esse direito seja realizado em sua mais ampla forma requer-se tempo; assim, é papel do Estado tomar todas as medidas necessárias para que o DHAA se concretize de forma eficaz.
De acordo com o Comentário Geral número 12 (1999), os Estados têm a obrigação de respeitar, proteger e satisfazer o DHAA:
[...] A obrigação de respeitar o acesso existente à alimentação adequada requer que os Estados Parte não tomem quaisquer medidas que resultem no bloqueio deste acesso. A obrigação de proteger requer que medidas sejam tomadas pelo Estado para assegurar que empresas ou indivíduos não privem outros indivíduos de seu acesso à alimentação adequada. A obrigação de satisfazer (facilitar) significa que o Estado deve envolver-se proativamente em atividades destinadas a fortalecer o acesso de pessoas a recursos e meios, e a utilização dos mesmos, de forma a garantir o seu modo de vida, inclusive a sua segurança alimentar, e a utilização destes recursos e meios por estas pessoas. Finalmente, sempre que um indivíduo ou grupo está impossibilitado, por razoes além do seu controle, de usufruir o direito à alimentação adequada com os recursos a sua disposição, os Estados tem a obrigação de satisfazer (prover) o direito diretamente. Esta obrigação também deve existir no caso de vítimas de desastres naturais ou provocados por causas diversas. (Comentário Geral número 12, 1999, pp. 3-4)
Ainda, o Comentário Geral Número 12 (1999) esclarece que embora a concretização do DHAA seja progressiva, a garantia de uma vida livre da fome é essencial e deve ser realizada de forma imediata (FAO, 2011).
Por ser um direito fundamental social, o DHAA possui uma dimensão positiva e outra negativa. A primeira trata-se da função prestacional do Estado, tanto jurídica quanto material; já a dimensão negativa diz respeito à função defensiva do Estado, que veda qualquer ato que possa causar danos ou ameaçar o direito (Sarlet et al., 2013).
Tendo em vista os tratados internacionais ratificados pelo Brasil que versam sobre o DHAA e a sua positivação como direito social, o Estado não pode intervir de forma a suprimir ou revogar qualquer lei ou política pública que venha desconstituir ou afetar o grau de concretização já estabelecido ao DHAA, haja vista o princípio da proibição do retrocesso (Sarlet et al., 2013).
O princípio da proibição do retrocesso, também conhecido como “efeito cliquet”, visa, segundo Ramos (2020) , preservar aquilo que já foi concretizado no âmbito dos direitos fundamentais, vedando a eliminação do que já se foi alcançado, de modo a só serem possíveis aprimoramentos8.
De acordo com Sarlet (2015) , a vedação do retrocesso é um princípio implícito no ordenamento jurídico brasileiro, que funciona como o “limite dos limites” para proteger os direitos sociais de supressões ou diminuições.
Qualquer medida de cunho retrocessivo deve “além de contar com uma justificativa de porte constitucional, salvaguardar - em qualquer hipótese - o núcleo essencial dos direitos sociais, notadamente naquilo em que corresponde às prestações materiais indispensáveis para uma vida com dignidade para todas as pessoas” (Sarlet, 2018, p. 474).
Desse modo, o princípio da proibição do retrocesso está intimamente ligado à noção de segurança jurídica, que é essencial para o Estado de Direito e garantia da vida digna. Assim, uma vez que determinado direito social seja concretizado no plano legislativo infraconstitucional ou na esfera dos órgãos executivos brasileiros, tanto o legislador quanto órgãos executivos não podem suprimi-lo ou relativizá-lo de modo a afetar o núcleo essencial desse direito (Sarlet, 2018).
Assim, o princípio da proibição do retrocesso está intimamente ligado com a realização progressiva do DHAA, de modo que cabem aos Estados caminharem sempre no sentido de ampliar a efetividade do DHAA não apenas sobre sua positivação, mas também por meio de políticas públicas.
Nesse contexto, no âmbito do Brasil, a Losan (Brasil, 2006) previu a obrigatoriedade da atuação estatal para garantir o DHAA:
Art. 2º A alimentação adequada é direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população.
§ 2º É dever do poder público respeitar, proteger, promover, prover, informar, monitorar, fiscalizar e avaliar a realização do direito humano à alimentação adequada, bem como garantir os mecanismos para sua exigibilidade.
No momento em que um Estado se compromete com o DHAA e, consequentemente, com sua realização progressiva, qualquer medida que venha de encontro a isso, viola o DHAA.
De acordo com Valente (2002, p. 108) :
Constituem-se violações do direito humano à alimentação as iniciativas estatais e/ou governamentais que, sem a criação de mecanismos alternativos de garantir desse direito:
provoquem ou facilitem a expulsão de pequenos produtores familiares da terra onde produzem seu sustento [...];
prejudiquem a produção natural de alimentos mediante a importação de produtos abaixo do custo de produção [...];
reduzam o apoio à produção agrícola nacional;
gerem desemprego [...];
eliminem a possibilidade de sobrevivência de milhares de pescadores
artesanais e familiares [...];
extingam programas sociais e/ou alimentares dirigidos a populações e/ou grupos vulneráveis [...].
Embora a história do Brasil aponte a realização progressiva do DHAA, como retro destacado, a situação atual do país é delicada. Reforma trabalhista, reforma previdenciária e cortes orçamentários, são alguns exemplos que fazem parte do cenário político, econômico e social, que se agravou pós-golpe e afetou diretamente a realização do DHAA. Além disso, iniciou-se no país um processo de desmonte das instituições e das políticas voltadas à agricultura familiar, reforma agrária, proteção de quilombolas e indígenas (Santarelli et al., 2019).
Sob esse prisma, cabe destacar a extinção do Consea, no início de 2019.
Após a sua posse, o Presidente Jair Bolsonaro, no dia primeiro de janeiro de 2019, publicou a Medida Provisória nº 870/2019, que revogou o inciso II do caput e os parágrafos 2º, 3º e 4º do artigo 11 da Lei nº 11.346 - Losan.
O conteúdo, até então, revogado pela medida provisória, dispunha que o Consea era o órgão de assessoramento imediato da Presidência da República, que ele integrava o SISAN e definia suas atribuições, composição e funcionamento; assim, “essa revogação parcial levou à extinção material do Conselho, deixando de existir sua secretaria até então alocada na Presidência da República” (Santarelli et al., 2019, p. 82 ).
Após grande pressão popular e apresentação de diversas emendas reivindicando a manutenção do Consea, o Senado o recriou, vinculando-o ao Ministério da Cidadania (Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, 2019). Todavia, no momento em que a Medida Provisória nº 870/2019 foi convertida para a Lei nº 13.844, de 18 de junho de 2019, o presidente da República, por meio da Mensagem nº 254/2019, vetou o inciso XVI do artigo 24, da referida Lei, que previa que o Consea integraria o Ministério da Cidadania. A justificativa do veto foi por “contrariedade ao interesse público e inconstitucionalidade” (Brasil, 2019).
O texto da Losan (inciso II do caput e os parágrafos 2º, 3º e 4º do artigo 11), até então revogado pela Medida Provisória nº 870/2019, voltou à vigência. Todavia, por deixar o Conselho desvinculado a um Ministério ou mesmo à própria presidência, como foi em mandatos anteriores, o veto presidencial acabou por inviabilizar o funcionamento do Consea e a própria execução da Losan.
Com o esvaziamento do Consea, o funcionamento do Sisan entrou em descompasso devido à interdependência dos segmentos do sistema que são o próprio Consea, a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional e a Conferência Nacional de Segurança Alimentar - que já em 2019 não aconteceu (Brasil, 2019).
Além disso, por seu caráter intersetorial, o Sisan era extremamente importante para integrar a União, Estados e municípios na realização do DHAA e, ainda, foi o responsável por levar o Brasil ao patamar internacional como exemplo pelo combate a fome. (Brasil, 2011)
O Consea foi instituído pela Losan como órgão de assessoramento imediato vinculado à Presidência da República. O Conselho é a instância do Sisan que permite o exercício do direito de participação na concepção, na construção, na execução e no monitoramento da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN). É, por excelência, não só o espaço para que a sociedade civil incida sobre os poderes públicos, como também um canal de articulação e (in)formação da própria sociedade. É, ainda, o espaço onde o governo federal presta conta de suas ações, o que dá concretude ao princípio da transparência. (Santarelli et al., 2019, p. 82)
Desde o restabelecimento do Consea em 2003, amplos debates entre a sociedade civil e Governo foram promovidos. Sua composição era de 1/3 de representantes governamentais e 2/3 de representantes da sociedade civil, que exerciam suas funções voluntariamente. Dessa forma, o Conselho se tornou “o espaço de voz dos titulares de direito e dos movimentos e organizações dos mais variados setores sociais, para o aprimoramento das políticas públicas para a garantia da soberania e segurança alimentar e nutricional no Brasil” (Maluf et al., 2019).
Nesse sentido, em artigo para o jornal Le Monde Diplomatique, Elisabetta Recine, Maria Emília L. Pacheco, Renato S. Maluf e Francisco Menezes (2019) , ex-presidentes do Consea, ao abordarem sobre o retrocesso que a extinção do órgão apresentava, destacaram a importância do Conselho na implementação de diversas políticas públicas responsáveis por retirar o Brasil do Mapa da Fome da ONU:
O fortalecimento das políticas de combate à fome e à miséria; a inclusão do direito à alimentação na Constituição Federal e a aprovação da Lei Orgânica, a Política e o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; o Plano Safra da Agricultura Fami- liar; os Programas de Convivência com o Semiárido como Um Milhão de Cisternas e Uma Terra e Duas Águas; a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica; o Guia Alimentar da População Brasileira são algumas das propostas inovadoras construídas ou apoiadas em debates no Consea que se tornaram políticas públicas para a garantia de uma alimentação saudável para toda a população.
Destacamos também o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) que realiza compras institucionais de alimentos da agricultura familiar e comunidades tradicionais para escolas, creches, asilos e outros órgãos públicos; a ampliação do atendimento e o aperfeiçoamento do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que alcançou o ensino médio, garantiu a compra de no mínimo 30 % dos alimentos da agricultura familiar e comunidades tradicionais e ampliou educação alimentar e nutricional nas escolas. (Maluf et al., 2019)
Em nota técnica, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (Brasil, 2019) manifestou-se afirmando que o veto do Presidente é inconstitucional, pois viola os artigos 3º, III e 6º, da Constituição (que, respectivamente, estabelecem como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil: a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais; e a alimentação como um direito fundamental-social) e ofende o princípio da vedação ao retrocesso.
Não há dúvidas que a extinção do Consea trata-se de uma violação direta ao DHAA e, consequentemente, à própria Constituição Federal. Ao inviabilizar seu funcionamento, o Estado brasileiro descumpre seu compromisso em “respeitar, proteger, promover, prover, informar, monitorar, fiscalizar e avaliar a realização do direito humano à alimentação adequada” (Brasil, 2020).
Mesmo que a vedação do retrocesso não seja uma máxima, tal ato não possui justificativa plausível ou proporcional e não pode ser tolerado, pois fere, entre outros, os princípios do Estado Democrático e Social de Direito, da dignidade da pessoa humana e da máxima eficácia e efetividade as normas definidoras de direitos fundamentais (Sarlet, 2015).
Cabe ressaltar que a garantia do DHAA se confunde com a garantia da própria dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial. Dessa forma, como já exposto, a existência do Consea se tornou instrumento essencial para a realização progressiva e preservação do núcleo essencial do DHAA e sua extinção nega e desestabiliza a proteção do DHAA bem como todos os avanços que o país tivera ante então.
Por fim, corroborando com a ideia da importância do Consea para o DHAA no Brasil, destaca-se que mesmo com a decisão federal, que o extinguiu na esfera nacional, muitos Conseas estaduais e os municipais (Comseas) foram mantidos.
Um exemplo disso, mencionado anteriormente, é o estado do Paraná que, mesmo após a decisão federal, manteve a estrutura proposta pela Losan. Em 2019, 383 municípios do estado realizaram as suas conferências municipais, incentivados pelas Coresans - Comissão Regional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea, 2019), o que demonstra o reconhecimento do Consea como pilar essencial para a execução da Losan e, consequentemente, realização do DHAA.
CONCLUSÕES
O DHAA é um direito holístico que possui dimensões culturais, sociais, econômicas e ambientais. Sua construção ao longo da história permitiu que ele não só garantisse o direito a uma vida livre da fome e da má nutrição, mas também o direito a uma alimentação e nutrição adequadas.
Ao longo dos anos, o DHAA ganhou espaço na agenda global, sendo amplamente debatido. Todavia, embora as inúmeras conquistas no tocante a construção desse direito, ressalta-se que ainda existem muitos desafios para sua efetivação.
No tocante a América Latina e ao Caribe cabe frisar que, embora a região seja referência em diversas ações visando a realização do DHAA, a fragilidade democrática é um empecilho para a continuidade destas ações. Questão que tem refletido no aumento do número de pessoas em situação de insegurança alimentar e obesidade na região.
O Brasil também se insere nesse contexto. Não obstante, o progresso obtido na implementação de leis e políticas voltadas ao DHAA, o país nunca conseguiu de forma efetiva solucionar a situação da justiça social e melhor distribuição de renda. Embora tais questões sejam basilares na realização do DHAA, elas são uma realidade histórica nunca superada pelo país, assim como já apontava Josué de Castro antes de ser exilado por denunciar as agruras da fome, sobretudo no Nordeste brasileiro.
Além disso, o cenário político, econômico e social brasileiro demonstra um caminho oposto ao compromisso da realização progressiva do DHAA, assumido pelo país. O desmonte de políticas públicas voltadas ao DHAA, bem como a extinção do Consea, violam diversos princípios constitucionais, entre eles o da proibição do retrocesso.
Diante da árdua luta pela construção do DHAA, suas conquistas precisam ser preservadas e a luta pela sua realização progressiva precisa permanecer. O DHAA precisa ser efetivado na mesa de cada cidadão, que tem direito não apenas a uma vida livre da fome, mas a uma alimentação digna, saudável, que o respeite enquanto ser humano, ser social que está inserido em uma cultura, em uma sociedade e em um ecossistema