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Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud

Print version ISSN 1692-715X

Rev.latinoam.cienc.soc.niñez juv vol.13 no.1 Manizales Jan./June 2015

https://doi.org/10.11600/1692715x.13122090814 

Segunda sección: Estudios e Investigaciones

DOI: http://dx.doi.org/10.11600/1692715x.13122090814

O ponto de vista da criança no debate sobre comunicação e consumo*

Point of view of the child in the debate about communication and consumptio

Punto de vista del niño en el debate sobre comunicación y consumo

Maria Isabel Orofino

Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo-PPGCOM ESPM SP, Brasil. Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo-PPGCOM ESPM SP. Pesquisadora do Grupo Imagens, metrópoles e culturas juvenis da PUC SP-Brasil. Correo electrónico: isabelorofino@gmail.com

Artículo recibido en julio 1 de 2014; artículo aceptado en agosto 9 de 2014 (Eds.)


Resumo (analítico):

Este artigo apresenta uma síntese de uma pesquisa qualitativa realizada sobre o tema das relações das crianças com as mídias e o consumo na vida contemporânea. O problema da investigação focou nas potencialidades da agência infantil diante dos apelos sedutores da mídia comercial. Esta problemática que indaga sobre as competências culturais das crianças e o seu ponto de vista está ancorada no campo da comunicação social a partir da perspectiva dos estudos culturais, da teoria latino-americana das mediações e da pedagogia dialógica. Ao longo do ano de 2013 foi realizada uma pesquisa de campo com 25 crianças em uma ONG no centro da cidade de São Paulo. Os dados foram coletados com o uso de metodologias dialógicas e participativas. Os resultados demonstram que as crianças detêm um repertório sobre as textualidades midiáticas sabendo distinguir entre formatos, gêneros e formas culturais.

Palavras-chave: crianças, media, comunicação, recepção, consumo, educação (Tesauro de Ciências Sociais da Unesco).


Abstract (analytical):

The article presents some of the results of a qualitative research about the relations of children with the media and consumption. The problem of the investigation focused on the potential of the concept of agency in childhood facing the textual claims of commercial media. The theoretical problem, which seeks to verify the cultural competences and the point of view of the child focuses on Cultural Studies, Latin-American theories of mediations and dialogical pedagogy. An empirical study was conducted in 2013 with 25 children of an NGO in the city of São Paulo when evidences were collected with the use of ethnographical, dialogical, and participatory methodologies. The results suggest that children showed a repertoire about media textualities and are able to identify different formats, narrative genres and cultural forms.

Key words: children, media, communication, audiences, consumption, education (Social Science Unesco Thesaurus).


Resumen (analítico):

Este artículo presenta la síntesis de una investigación cualitativa realizada acerca de las relaciones de los niños con los medios de comunicación y el consumo en la vida contemporánea. El problema de la investigación se centró en las potencialidades de la agencia infantil frente a los reclamos seductores de los medias comerciales. Dicha problemática, que inquiere acerca de las competencias culturales de los niños y su punto de vista, está anclada en el campo de la comunicación a partir de la perspectiva de los estudios culturales, de la teoría latinoamericana de las mediaciones y de la pedagogía dialógica. A lo largo de 2013 ha sido realizada una investigación empírica con 25 niños en una ONG en el centro de la ciudad de Sao Paulo. Los datos han sido recabados con el uso de metodologías dialógicas y participativas. Los resultados indican que los niños tienen un amplio repertorio acerca de las textualidades de los medios de comunicación que les permite diferenciar formatos, géneros y formas culturales.

Palabras clave: infancias, medios, comunicación, audiencia, consumo, educación (Tesauro de Ciencias Sociales de la Unesco).


 

Como educadores progressistas
não apenas não podemos desconhecer a
televisão
mas devemos usá-la, sobretudo discuti-la.
Paulo Freire, 2002

 

1. Introdução

 

Ao longo das últimas décadas a área de comunicação social - que parecia ser uma disciplina marginal no âmbito da teoria social - ganhou importância e visibilidade, o que acontece na medida mesma em que própria mídia amplifica o tempo e o espaço que ocupa em nossas vidas. As mídias protagonizam a revolução digital, o mundo mudou, "o cenário se transforma e o tempo se dilui" como disse Paulo Freire (2002). O campo de conhecimento que articula a presença dos meios de comunicação nas sociedades contemporâneas tornou-se um corpus bastante amplo o qual se tece no entrecruzamento de diferentes disciplinas. No cerne da produção social de sentidos o fenômeno da comunicação constitui hoje um campo de estudos que se alimenta de múltiplas fontes, desde os escritos sobre a interação social, a linguagem, a socialização, as estruturas e a agência, a história social, a cultura, o cotidiano e as múltiplas faces das identidades, subjetividades e subjetivações. E é neste cenário, marcado pela inter e transdisciplinaridade, que esta pesquisa foi realizada.

Aqui no Brasil entretanto mesmo com os muitos avanços realizados no campo dos estudos de comunicação, a temática das relações das crianças com as mídias continua a ser um campo marginal. Com esta pesquisa busco avançar sobretudo na linha de investigação que compreende a criança como sujeito de direito e sujeito da pesquisa, assim o estudo que vamos apresentar aqui foca nas relações das crianças com as mídias a partir da interface comunicação, cultura e sociedade tomando como lugar da observação o ponto de vista da criança ancorando-se em duas perspectivas teóricas: os estudos de recepção (abordagem da teoria da comunicação que indaga sobre o lugar do leitor/telespectador em suas práticas culturais na esfera da vida cotidiana) e a nova sociologia da infância (uma corrente teórica que leva em consideração a agência infantil e as potências construídas pelas crianças enquanto sujeitos sociais de direito). Os autores que fundamentam estas duas abordagens serão destacados no próximo tópico. Neste sentido, a hipótese teórica o estudo que apresentamos aqui questiona as diferentes abordagens do conceito de receptor passivo em relação às crianças.

A hipótese do receptor passivo sustentou as teorizações e os debates no campo da comunicação social e da mídia por longos anos (como destacaremos a seguir). é interessante observar que na história das teorias da comunicação o público espectador é visto como subproduto da esfera da produção, seja pelo viés instrumental da teoria funcionalista dos efeitos (que teve a psicologia comportamental e cognitiva como seu principal porta-voz) seja pela visão da crítica "ortodoxa" da indústria cultural. Em toda a sua distância epistemológica há um traço comum entre essas abordagens: a compreensão de que os meios de comunicação atingem os leitores/ouvintes/telespectadores de modo unidirecional, e de que os conteúdos atuam como vetores em linearidade. E aí tanto o voluntarismo quanto o determinismo mostraram-se insuficientes em suas abordagens e se encontram em franco questionamento, sobretudo no atual contexto em que a cultura de massas dialoga com formas mais fragmentadas e participativas oferecidas pelas mídias digitais e em redes. Mas, ainda assim, quando o sujeito em questão é a criança, a hipótese do receptor passivo insiste em permanecer como verdade universal.

Nos anos 60 e 70, tanto na América Latina quanto na Inglaterra emergiram duas correntes teóricas muito interessantes que ajudam a quebrar a linearidade dos paradigmas hegemônicos em comunicação social. Ambas estão fortemente ancoradas em uma leitura mais dinâmica da teoria marxista da cultura (Bakhtin, Gramsci y Benjamin) e indagam sobre a possibilidade de existir leituras dissidentes e formas de produção de resistências frente aos discursos midiáticos. Na América Latina surgem as teorias das mediações a partir de um grande número de pesquisas de recepção realizadas em vários países como: Fuenzalida y Hermosilla (1991), Martín-Barbero (1997), Orozco-Gómez (2007), García-Canclini (1995), Lopes, Borelli y Resende (2002) entre outros. E a partir da Inglaterra os estudos culturais do CCCS de Birmingham com: Hoggart (1973), Hall (2011) e Morley (1992) a partir das reflexões de Raymond Williams (2011) e Edward Palmer Thompson (1998).

Hoje os estudos de recepção, estudos culturais e teorias das mediações já representam um corpus de conhecimento que permite questionar uma visão simplista e linear sobre a presença das mídias na vida social. Estes aportes nos ofereceram um referencial que sustenta compreensões mais complexas sobre as relações das mídias no cenário econômico, político e cultural. Em linhas gerais argumenta-se que a presença da mídia precisa ser compreendida enquanto dinâmica de tensão e conflito na luta social em torno do significado. Argumentase que a noção de hegemonia é fundamental para se compreender estas tensões e conflitos. Defende-se também que as comunidades de apropriação e de uso são lugares historicamente situados a partir dos quais os receptores constroem redes de significados a partir de uma "economia moral" (Thompson, 1998). E que estes atendem aos seus próprios interesses culturais e históricos frente aos discursos comerciais. E aqui o conceito de identidade também se mostra muito relevante, identidade enquanto projeto reflexivo do eu.

Assim, é neste terreno que esta pesquisa se ergueu. Embora os estudos de recepção tenham avançado muito ao longo dos últimos vinte anos, não é verdade que as pesquisas com relação às crianças tenham grande apelo. Especialmente no Brasil, local onde atuamos. No campo de estudos sobre infâncias e meios de comunicação ainda prevalece a visão hegemônica da mídia todo poderosa e da criança universal, vítima frágil, leitor incompetente, sujeito manipulável, sem questionamento, corpo dócil e indefeso.

Já sob o ponto de vista do mercado, cada vez mais a criança é vista como consumidora ativa para quem são desenhadas estratégias do marketing promocional, com os mais coloridos e divertidos anúncios da sociedade do consumo conspícuo e da espetacularização.

Assim, estudar infâncias e meios de comunicação significa situar-se no fogo cruzado entre, por um lado, os interesses vorazes do mercado que veem a criança como um novo nicho consumidor e mobilizador de vendas e, por outro lado, tanto o moralismo de direita (com seus medos relacionados à sexualização precoce e aos estímulos à violência) quanto a crítica ortodoxa que não consegue transcender o determinismo econômico em favor de uma compreensão cultural mais revolucionária e transformadora.

Um dos objetivos teóricos desta pesquisa foi justamente questionar esta reiteração da condição de receptor passivo para as crianças. Superar a compreensão da criança enquanto sujeito incompetente tem sido tarefa árdua. A pesquisa demandou uma revisão do próprio conceito moderno de infância e a problematização do in-fante (aquele que não fala) como uma condição de exclusão estrutural (Qvorturup, 2010). Uma posição subordinada que é absolutamente naturalizada e que persiste ainda hoje como herança da visão biologicista. O menor naturalmente inferior. A tabula rasa, o recipiente vazio. Mas este não é o único limite destas teorias hegemônicas sobre a infância. Há também a compreensão da criança de modo individual, isolado, atomizado na visão liberal. E o que parecia ser um estudo de recepção ganhou fôlego para uma plataforma de pesquisa mais ampla que se situa no próprio âmbito da defesa dos direitos das crianças frentes às mídias, seus direitos de provisão, proteção, participação e educação.

Assim, necessariamente tivemos que enfrentar os limites do conceito moderno de infância. Este estudo pede uma crítica às teorias dominantes sobre a infância moderna e reivindica leituras que tratem da reinvenção ou até mesmo da criação de um campo novo. A psicologia cognitiva apresenta um amplo acervo sobre o tema, mas mesmo em suas traduções mais progressistas falha na medida em que compreende o criativo como um dado da inteligência pura, racional (cognitivo-afetivo) e pouco nos ajudam a entender a ação criativa dos seres humanos como resultado também das emoções, das memórias, dos sentimentos e desejos. Neste estudo, o desafio de pesquisar as competências culturais das crianças ancora-se no conceito de estruturas de sentimento como proposto por Raymond Williams (2011).

Em nosso percurso de pesquisa teórica nos deparamos com alguns novos paradigmas que foram marcantes: a noção de hermenêutica performativa (Alvarado, 2014) que, em diálogo com a complexidade de Edgar Morin (2006) solicita uma leitura ampliada dos fenômenos compreendendo o ser humano a um só tempo: biológico, cultural, social e histórico e em suas dimensões subjetivas, identitárias e de subjetivação.

Deparamo-nos também com o rico e recente acervo de escritos no campo da "nova sociologia da infância" (Prout, 2010, Qvortrup, 2010, Sarmento, 2008, Corsaro, 2011, Sirota, 2001 entre outros) que mostram outros lugares de observação na pesquisa com crianças e por extensão, pedem também uma mudança nos modos como nós adultos compreendemos nossa convivência com as crianças, sua presença e participação na sociedade. Alguns conceitos são fundamentais no debate da nova sociologia da infância, como: agência infantil; também a noção de cultura de pares, e acima de tudo: a problematização do lugar do pesquisador em campo na realização de etnografias e de observação participante.

Nosso método de ação em campo foi fortemente inspirado em Paulo Freire (1987). Escolhemos a metodologia da ação cultural e da pedagogia dialógica para realizar um estudo de recepção com crianças por meio da produção de um programa de TV e assim, "brincando de fazer TV" observamos o seu repertório sobre a mesma. No conjunto das referências teóricas buscamos também as contribuições dos estudiosos da cultura na América Latina: Martín-Barbero (1997), Orozco-Goméz (2007) e García-Canclini (1995).

No plano empírico a pesquisa de campo foi realizada com 25 crianças, meninas e meninos com a idade de 8 a 12 anos, de classes populares que frequentam uma ONG no contraturno escolar. Nossa permanência em campo se deu pelo período de 8 meses e realizamos um estudo de recepção de publicidade com o objetivo de verificar o imaginário infantil em relação às mídias, o acesso e o consumo cultural, a qualidade da programação de TV e a competência cultural da criança nos usos sociais que os mesmos fazem das múltiplas telas (e qual o lugar que cada uma delas ocupa) na cultura e cotidiano destas crianças.

2. O histórico do trabalho

O projeto previu três (3) etapas em sua realização assim nomeadas: [1] Publicidade, consumo e infância no Brasil contemporâneo: sobre as tensões entre a proibição de comerciais e a educação para o consumo. TóPICOS: Aqui a pesquisa mapeou o marco legal sobre o tema. No Brasil hoje vivemos no marco da tramitação de projetos de lei no Congresso Nacional que pedem a proibição parcial e/ou integralmente a veiculação de publicidade para o público infantil. Sob a alegação de que as crianças não têm competência cognitiva os grupos organizados da sociedade civil que apresentam tais projetos defendem que a publicidade para o público infantil é imprópria, antiética, merecendo ser proibida. A pesquisa de caráter documental levantou a legislação vigente e a que tramita no Congresso. [2] Recepção de publicidade por parte do público infantil. TóPICOS: Consulta às crianças. Nesta etapa a pesquisa conduziu um estudo de recepção de caráter etnográfico (Corsaro, 2011), com crianças de 8-12 anos que participam de atividades recreativas em uma ONG. O objetivo foi ouvir o que as crianças pensam sobre a proibição da publicidade dirigida ao público infantil. Aqui a realização de uma etnografia de audiência (Hoggart, 1973) seguiu todas as etapas metodológicas pertinentes como: observação participante, engajamento com a comunidade escolar, produção fotográfica, realização de entrevistas semiestruturadas e grupos focais. [3] Comunicação, Educação, Consumo:realização de um programa de TV com as crianças. TóPICOS: Aqui a pesquisa realizou uma oficina de mídia-educação com as crianças participantes do estudo de recepção. Com isso buscou-se verificar a metodologia de mídia-educação como uma prática transdiciplinar e colaborativa e assim realizar uma leitura mais ampla do repertório cultural das crianças.

3. O ponto de partida para a realização da pesquisa

Esta pesquisa teve início do ano de 2010 quando -enquanto pesquisadora de infânciasme deparei com um evento organizado pelo Instituto Alana (uma ONG de defesa dos direitos da criança frente ao consumismo com sede na cidade de São Paulo com apoio do Itaú-Unibanco) que promoveu naquele ano o 3° Fórum Internacional Criança e Consumo. As palestras realizadas ao longo dos três dias do evento reiteravam, uma após a outra, a vulneralibilidade e a impotência da criança que nasce e cresce no contexto e na lógica da sociedade de consumo. O Instituto Alana realiza um trabalho bastante importante, mas o que questionamos aqui é a visão de receptor passivo que defende, e o referido instituto entra aqui em nossa pesquisa como "um caso"; um exemplo que ajuda a demonstrar a visão dominante e atuante no debate que acontece no Brasil hoje. O Alana expõe esta visão de modo reiterado em suas publicações e a orientação dos argumentos revela uma leitura preconceituosa, unilateral, maniqueísta a respeito da mídia. Outro exemplo é o texto abaixo, acessado em 2013:

    "Até doze anos, as crianças não possuem a capacidade para compreender o caráter persuasivo das mensagens publicitárias que as atingem diariamente nos meios de comunicação. O resultado disso são os altos índices de violência na juventude, obesidade infantil, erotização precoce, estresse familiar e tantos outros problemas."1

Este instituto é citado aqui apenas como exemplo para a nossa argumentação. Ele nos permite localizar um trabalho que reiteradamente se apoia na tese do receptor passivo ou da criança impotente diante da sociedade (de consumo e da mídia) além de responsabilizar a mídia por vários males causados à sociedade sem levar em conta outros fatores importantes como: a renda familiar, os hábitos alimentares no cotidiano da família; a reestruturação da família nuclear tradicional; a exclusão social; o abandono das classes populares nos contextos das margens das grandes cidades; a baixa qualidade da educação formal; a falta de opções em termos de esportes, consumo cultural e lazer. Nesta visão dominante a mídia é a grande responsável pela degradação da vida da criança.

Ao longo destes últimos anos, com o patrocínio do Itaú-Unibanco (que usa imagens de crianças em sua publicidade) o Instituto Alana tem alcançado ampla repercussão no âmbito da intervenção em políticas públicas no Brasil com o objetivo de modificar a legislação que regulamenta a veiculação da publicidade para crianças no país (sugerindo a proibição da veiculação de publicidade dirigida ao público infantil). E tudo isto nos coloca diante de uma situação inusitada pois trata-se de uma ONG liberal e conservadora que alcançou forte mobilização de setores de defesa de direitos humanos articulados ao Conanda-Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente subordinado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e também de outros segmentos representativos dos movimentos sociais. No entanto, a indignação dos publicitários e empresários com as medidas restritivas alcançadas pelo Instituto Alana foi apontada pela imprensa conservadora do país (revista Veja de 28 de abril de 2014, por exemplo) como uma medida proposta pelo Governo da Presidenta Dilma Roussef do Partido dos Trabalhadores acusando-o de "patrulha governista". O que acontece no Brasil hoje é uma demonstração de que muito pouca atenção é dada aos direitos de participação das crianças nos temas que dizem respeito aos seus interesses, como é neste caso, a questão da programação televisiva. A questão que vamos debater aqui não é se a publicidade deve ou não ser proibida para o público infantil.

A questão que nos interessa e que parece urgente é: de que competências estamos falando quando o tema é a relação das crianças com as mídias: cognitivas, afetivas, estéticas, culturais? E mais: quão limitadas são as teorias do desenvolvimento cognitivo infantil que pouco consideram as outras dimensões constitutivas dos sujeitos como: a emoção, os afetos, a sensibilidade e o desejo? Quão limitadas são as teorias da socialização que não consideram a agência quando o sujeito é a criança? Quão anacrônicas são as teorias modernas da infância para compreendermos o contexto contemporâneo, quando as mídias digitais promovem uma gama de espaços de participação das crianças? Em que medida a cultura da mídia contrasta com algumas relações hierárquicas e verticais de silenciamento e disciplinarização das crianças que ainda permanecem na família, escola e sociedade?

4. Camadas abaixo da superfície: novos aportes teóricos

Como já destacamos em outro texto (Orofino, 2013) a problemática das relações entre mídia e infância tem sido objeto de um longo percurso de investigações internacionais, realizadas a partir de diferentes enfoques teórico-metodológicos. Porém, continuam raras (no campo da comunicação social) as pesquisas que se interessam pela condição da criança enquanto receptor ativo, capaz de "se defender", de escolher ou de ressignificar o que a mídia coloca em pauta.

é este o sentido de "atravessar a superfície" que destacamos aqui. é preciso problematizar estas visões dominantes as quais se manifestam de diferentes modos. Por exemplo: por meio de um viés maniqueísta (o tóxico e o bálsamo); moralista (os excessos de consumo, sexualidade e violência); ou a visada integrada e otimista (as crianças superpoderosas e totalmente competentes diante das telas e de seus apelos) e também a crítica ortodoxa ou visão apocalíptica (que reforça a submissão das crianças à ideologia de mercado).

Assim, as contribuições dos estudos de recepção (estudos culturais e de mediações) em seus diferentes formatos e lugares territoriais de abordagem (seja o Reino Unido, a América Latina, a América do Norte, entre outros) parecem oferecer uma das mais progressistas abordagens da teoria social contemporânea. Trata-se de uma concepção dialógica da cultura, com ancoragem histórica e que articula agência-estrutura e assim supera a visão maniqueísta em suas frequentes oposições binárias (dominadores-dominados). Os estudos de recepção têm buscado problematizar as complexidades (mediações) nas relações de apropriação, usos e consumos das materialidades e tecnologias, compreendendo a cena sócio-midiática como lugar de conflito e luta em torno do significado, como algo que não está dado à priori, mas que está em um permanente processo de negociação. E neste jogo, a mídia nem sempre atende aos interesses do mercado, mas atende também aos interesses dos diferentes setores da sociedade civil e dos movimentos sociais (García-Canclini, 1995, Martín-Barbero, 1997).

5. Lugares de onde se parte: a cidade e o ano

Ao longo da pesquisa teórica realizamos uma experiência empírica que nos permitiu o ir-e-vir ao encontro daquelas crianças saudáveis, criativas, bonitas, inteligentes e muito, muito pobres. O convívio com aquelas vinte e cinco crianças, meninos e meninas de classes populares, com suas bagunças e desobediências me deu muito trabalho, mas enriqueceu e alegrou os meus dias. A pesquisa aconteceu no ano de 2013 na cidade de São Paulo, a megalópole industrial brasileira com vinte (20) milhões de habitantes. Situada no sudeste do país (no alto da serra e distante do seu belo e famoso litoral) São Paulo é uma cidade que se espraia largamente e se funde ao conjunto de cidades vizinhas e conjuga em seu ritmo da vida cotidiana os mais altos índices de riqueza material e tecnológica aos mais realistas cenários da pobreza, do abandono e da exclusão social.

Este estudo de recepção foi realizado com crianças pobres, com idade entre 8 e 12 anos ao longo de 8 meses na sede de uma Organização Não-Governamental (ONG) localizada no bairro da Barra Funda o qual fica no centro, no coração geográfico de São Paulo. As vozes são de crianças de uma favela situada no "centro" opulento do capitalismo brasileiro contemporâneo, onde os casebres estão espremidos entre shopping centers e grandes arranha-céus com suas fachadas de vidros espelhados e seus elevadores panorâmicos.

No ano de 2013 a cidade de São Paulo (e o Brasil) foi palco para muitas mobilizações populares registrando grandes marchas que reuniram em torno de cem mil pessoas e se repetiram em várias cidades do país. As grandes marchas brasileiras de 2013 eclodiram em São Paulo a partir da iniciativa do Movimento Passe-Livre, uma organização juvenil que protagonizou protestos em denúncia e recusa ao aumento de R$ 0, 20 (vinte centavos de reais) na passagem dos ônibus urbanos. A agressiva resposta da Polícia Militar do Governo do Estado de São Paulo na noite de 13 de junho de 2013 impediu a passagem dos manifestantes com o uso de bombas de efeito moral e balas de borracha causando ferimentos sérios em manifestantes. Esta ação repressiva acabou por gerar um estopim de indignação que fez desencadear um grande número de marchas nas principais cidades do Brasil reunindo representantes dos mais diferentes setores da sociedade civil. Um movimento com contornos políticos muito difusos (os quais não me deterei aqui por não ser o foco desta pesquisa), mas que ficou conhecido como as marchas de junho; as manifestações dos vinte centavos. A partir de então as manifestações em São Paulo passaram a fazer parte da rotina dos moradores de todos os bairros da cidade.

Com a proximidade da Copa do Mundo de Futebol da Fifa 2014 estes movimentos em grande medida ganharam unidade a partir da reivindicação: "queremos escolas padrão Fifa"; "queremos hospitais padrão Fifa"; "queremos transportes padrão Fifa" e se mantêm ativo até os dias em que se realiza a Copa do Mundo, momento em que escrevo este texto. Assim, o imaginário social (tanto na mídia como na vida do bairro e da ONG) estava fortemente mobilizado por estes eventos de agitação social e política (o povo nas ruas reivindicando) no momento em que a pesquisa de campo foi realizada, e isto incidiu diretamente nos dados coletados. E creio que não poderia ser diferente.

Não tenho qualquer pretensão de alcançar alguma generalização ou validação para os resultados apresentados com este trabalho. Eu espero sim apresentar evidências que colaborem para o debate em torno de questões fundamentais como o conceito de infância, a competência cognitiva (individual), a competência cultural (coletiva) e também formas para a participação das crianças nos processos que dizem respeito a elas.

6. Categorias de análise

Retomando o conjunto da reflexão teórica e na tentativa de articular teoria e empiria, volto à pesquisa sobre os autores citados para identificar no conjunto estudado as categorias selecionadas para a operacionalização em campo. Estes quatro eixos e os aportes teóricos que os fundamentam são citados a seguir:

Competência cultural (na leitura da publicidade): Aqui nos apropriamos do conceito como está exposto na obra de Jesús Martín- Barbero (1997) quando estudou os sentidos sociais da telenovela junto às classes populares na América Latina. Longe de compreender a telenovela como modo de dominação, Martín- Barbero nos oferece uma reflexão sobre as competências culturais dos receptores e os modos de reconhecimento tanto da identidade popular quanto das estratégias da produção no jogo ambivalente da hegemonia. Aqui, deslocamos tal conceito buscando compreender a agencia infantil e as competências culturais da criança (competências sensíveis e cognitivas; ou a reflexividade estética e a cognitiva, como ressaltam Giddens & Lash, 1995).

Imaginário infantil (apelos ao consumismo): Para o conceito de imaginário recorremos ao trabalho de Morin (1997) e de Laplantine (2003) buscando localizar os modos como o imaginário social do consumo atua como um repertório reconhecível pela criança, articulando-o ao conceito de competência cultural e buscando mapear ambivalências entre "dominação" (estratégias do mercado) e "formas de resistências" produzidas pelas crianças pelas vias do reconhecimento identitário, das leituras dos códigos da produção; da denúncia; da recusa e ressignificação pela imaginação da criança.

Economia moral (valores, família, classe): Este conceito foi identificado na obra de Edward Palmer Thompson (1998) destaca como os repertórios culturais das classes populares são informados por sistemas morais que desafiam os valores hegemônicos. Este conceito foi fundamental para que pudéssemos compreender algumas nuances da sociabilidade entre as crianças. E aqui nos chamou especial atenção o grau de violência entre as crianças. Muito agressivas, em nossa entrada em campo nos deparamos com crianças que gritavam, umas com as outras, o tempo todo. Superar a agressividade entre eles e mediar conflitos foi uma necessidade permanente em uma estada em campo que exigiu a compreensão de crianças que gritam, não falam. Gritam todas ao mesmo tempo, não ouvem os adultos e não ouvem a si próprias. Crianças alteradas. Infâncias alteradas. A produção de vídeo gerou ampla mobilização entre as crianças mas no mesmo dia da projeção do vídeo elas estavam altamente agressivas com cenas de brigas dentro da sala de aula, sobretudo entre os garotos, mas as meninas não hesitam em "vir para cima".

Usos das tecnologias (inclusão): Aqui parece que há um uníssono entre os autores. A categoria "usos sociais das tecnologias" busca a leitura da presença da técnica na sociedade muito em diálogo com a perspectiva do "materialismo cultural" como oferecida por Raymond Williams (2011). E aqui convém destacar a ampla afinidade deste com Martín-Barbero (1997) e Orozco-Gomez (2007). A tecnologia não é o lugar da alienação, da massificação, da dominação mas é também "das demandas que emergem do tecido social e das formas de ver" (Martín-Barbero, 1997) Tecnologia significa também aqui uma questão de direito ao consumo cultural e à participação nos novos cenários de sociabilidade midiatizados.

7. A pesquisa de campo

Nossa entrada em campo buscou a maior afinidade possível com a etnografia, buscando uma inserção em campo que permitisse se aproximar da comunidade e de seu contexto para poder compreender o mundo com o outro, buscando compreender o seu ponto de vista. Embora haja críticas no interior da antropologia sobre a possibilidade de compreendermos o mundo a partir do ponto de vista do Outro, e mesmo correndo o risco da denúncia de um empirismo ingênuo, acredito que continua importante a aventura de sair da zona de conforto, atravessar a cidade, se expor às intempéries, à poluição e ao engarrafamento em busca de ouvir o que as crianças têm a dizer sobre a mídia, a sociedade e o mundo que imaginam para o seu futuro. A pesquisa empírica com crianças tem seus desafios: a entrada em campo, a minimização da relação hierárquica adulto-criança; a compreensão do ritmo da criança; o dar tempo ao tempo para que a confiança se consolide. Isto requer dedicação.

A observação buscou identificar em que medida "as certezas das indústrias culturais se defrontam com as incertezas produzidas pelos contextos do bairro" (Silverstone, 1994), indagando sobre os "entrelugares" (Bhabha, 1985), os espaços intersticiais em seus cenários de subversões e resistências, e compreender como as crianças convivem com as mídias e como produzem sentido a partir de seus contextos concretos de experiência. Isso exige entrega por parte do pesquisador. Essa aventura antropológica precisa de tempo para a sua realização.

8. Sobre a pesquisa-ação, pesquisa participante e pedagogia dialógica

Com relação à metodologia, os pilares teóricos que sustentam a investigação trazem referências que, mesmo datadas, continuam de fundamental importância, são elas: a pedagogia dialógica de Paulo Freire (1987); a pesquisaação de Michel Thiollent (1985) e os escritos sobre pesquisa participante segundo Carlos Rodrigues Brandão (1983). Todos eles autores que produziram suas reflexões nos anos 1970 (no auge dos regimes totalitários e repressivos na América Latina) estavam fortemente motivados em compreender a cultura popular como lugar de repertórios particulares que operavam no contraponto às ideologias do capitalismo imperialista. Paulo Freire foi altamente precursor nesta empreitada e os dois outros autores mencionados produzem em diálogo com as suas proposições. Os primeiros textos de Paulo Freire (Ação cultural para a liberdade; comunicação ou extensão; Educação como prática da liberdade e Pedagogia do oprimido) são tão surpreendentemente precursores que merecem ser retomados no debate sobre os estudos culturais e as teorias das mediações. Nossa tentativa neste trabalho foi retomar alguns de seus pressupostos metodológicos em nossa intervenção em campo com as crianças.

Assim, o trabalho metodológico contou com as seguintes etapas de realização:

    1) Pesquisa bibliográfica no campo da nova sociologia da infância (buscando identificar os autores que se detêm no conceito de agencia infantil); teorias das mediações e estudos culturais com crianças; comunicação, consumo e infância; teorias sobre metodologias participativas e colaborativas com crianças (educomunicação e pedagogia dialógica).

    2) O trabalho de campo foi realizado em uma ONG que atende crianças de classes populares no contraturno escolar. A experiência em campo incluiu o uso das seguintes técnicas na coleta de dados: produção de desenhos, fotografias, recepção provocada com comerciais de TV, grupos focais, a produção de um vídeo de 15 minutos e 8 entrevistas em profundidade.

8.1 O estudo de recepção com crianças

Segundo Jacks (2008) do conjunto de teses e dissertações realizadas no campo da comunicação social no Brasil na década de 1990 "a problemática da infância foi enfrentada por apenas 21 pesquisas dentre as 1.769 realizadas e neste número apenas 6 abordam o tema a partir da perspectiva da recepção". Isto demonstra o quão periférico tem sido o estudo sobre o ponto de vista da criança na pesquisa em comunicação social no Brasil. E isto demonstra também que temos muito que avançar. Assim, estamos construindo o campo, e necessariamente o diálogo precisa ser aberto às contribuições oferecidas pelas outras disciplinas que se detêm nesta mediação geracional, exatamente como estamos buscando, o diálogo inter e transdiciplinar.

Em síntese, a pesquisa de recepção busca localizar os modos como as audiências se apropriam dos conteúdos da mídia, ressignificando-os a partir de seus contextos. Para que se realize um estudo de recepção com crianças você precisa de uma longa permanência em campo para que possa minimamente compreender o cotidiano das crianças, seus gostos, seu consumo cultural e como estes se inserem em suas dinâmicas familiares, escolares e em sua cultura de pares.

Com relação à publicidade realizamos uma recepção provocada, uma técnica de pesquisa em que proporcionamos a assistência a vários comerciais de TV previamente selecionados de modo aleatório e que estavam presentes na grade de programação das TVs comerciais. Como nosso ponto de partida nesta pesquisa era indagar sobre a presença da publicidade no repertório das crianças com quem convivemos, foi possível verificar alta competência na identificação do produto "publicidade".

Com a recepção provocada realizada junto ao grande grupo, mostramos os comercias e recolhemos os depoimentos das crianças que facilmente identificaram o formato publicitário distinguindo-o dos demais formatos de telejornalismo, ficção seriada, desenhos animados, entre outros. As crianças também "reproduziram" discursos críticos sobre a publicidade denunciando o seu caráter enganoso e narrando experiências de pessoas próximas que foram iludidas com a compra de produtos: "a fulana comprou um xampu e o cabelo caiu"; "a pessoa comprou um produto que não fez efeito". Houve também declarações de desgosto com a presença de comerciais que interrompem a programação e atrapalham a assistência a seus programas favoritos. As crianças se mostraram desconfiadas com relação às narrativas publicitárias. E no conjunto geral de seu repertório audiovisual a publicidade foi timidamente mencionada, figurando em alta proporção o telejornalismo, a ficção seriada e os desenhos animados. A publicidade, neste exercício de "perguntas abertas" a partir do repertório das crianças, teve pouquíssima expressão. E na sequencia dos trabalhos, quando foram convidadas a participar da atividade de redação livre e criativa para a produção do roteiro tampouco as crianças tiveram vontade ou afinidade para produzir publicidade.

8.2 A oficina de mídia-educação no estudo de recepção

Para realizar um estudo de recepção sobre o repertório das crianças a respeito da publicidade foi realizada uma oficina de mídia-educação. Isto significa que antes de usar as ferramentas de coleta de dados que buscam atingir a profundidade da narrativa produzida pelas crianças (como as entrevistas em profundidade, por exemplo), nossa estratégia foi "brincar de fazer TV". Assim, com a produção de um vídeo de 15 minutos (todo realizado pelas crianças) foi possível recolher um elenco de evidências sobre o seu consumo cultural e suas competências frente à TV.

9. O que a pesquisa mostrou? O jornalismo sangrento e sensacionalista

As crianças demonstraram grande familiaridade com os programas jornalísticos. é certo que a técnica da palavra geradora (Freire, 1987) trouxe para o debate as manifestações políticas que agitaram o país nos meses de maio e junho de 2013 (como mencionado no inicio deste artigo). Em primeiro lugar realizamos a "leitura de mundo" perguntando às crianças o que elas tinham assistido na mídia nos dias recentes. E as crianças estavam bastante informadas a respeito das manifestações que tomaram as ruas na cidade de São Paulo a partir do mês de junho. Houve ampla discussão sobre o que estava acontecendo na cidade com diferentes pontos de vista. O debate aconteceu a partir da pergunta: o que está acontecendo na cidade e o que eles e elas tinham assistido nos meios de comunicação? E, na escolha que eles e elas fizeram para abordar os eventos no país o gênero narrativo escolhido foi o jornalismo. Após a realização da técnica da recepção provocada sobre publicidade, demos início à etapa da oficina de mídia-educação.

Quando perguntei se as crianças podiam participar das manifestações políticas elas foram unânimes em dizer: "Não!". E isto demonstra que naquele momento não havia participação daquelas crianças nas manifestações que aconteciam em SP. Diante da constatação de que as crianças não podem participar dos movimentos de reivindicação política eu perguntei se elas gostariam de fazer um programa de TV sobre o tema. Elas acataram! E prontamente começaram a brincar com o formato jornalístico imitando um determinado apresentador da TV brasileira.

As crianças falavam: "Corta pra mim!"; "Me dá a câmera dois!"; "Me dá a repórter!". Eu, na minha ignorância sobre o que as crianças de classe popular na cidade de São Paulo assistem me deparei com o Programa Cidade Alerta, cujo apresentador é o jornalista Marcelo Resende que realiza um programa sensacionalista e de jornalismo mórbido o qual fica no ar por mais de três (3) horas por dia. No meu julgamento moral do gosto, os programas de jornalismo sensacionalistas que exploram as narrativas de morte na cidade, uma após a outra, não tinham passado pelas minhas escolhas profissionais e nem pessoais.

Foi possível verificar então que, em sua cotidianidade familiar (Martín-Barbero, 1997) as crianças convivem com este tipo de programação que é apreciada/frequentada pelas classes populares na cidade de São Paulo (há uma longa tradição neste estilo de programa de jornalismo policial sensacionalista, desde Afanásio Jazadji, Gil Gomes, Ratinho, Datena, entre outros). Trata-se de um estilo de jornalismo chamado de "imprensa popular" em que "é só girar o botão que o sangue desce pela antena" (Soares,1998).

Foi possível perceber que aquelas crianças estão expostas a este gênero de programa que domina as grades de programação das TVs brasileiras de canal aberto, gênero este que se estende por longas horas durante todas as tardes, justamente o período em que as crianças estão diante da TV. O repertório das crianças sobre este estilo de jornalismo era bastante rico. No entanto houve aqui uma primeira subversão: as crianças usaram aquele estilo de telejornalismo na produção de um "conteúdo" definido por elas. Na sequência realizamos os roteiros com a redação de textos, individuais e coletivos, que foram produzidos livremente sobre o tema dos direitos das crianças.

Os textos foram então organizados em um roteiro final a partir do qual se podem identificar os seguintes temas geradores, como proposto por Paulo Freire (1987):

1. Aumento do salário dos pais (consciência de classe e renda);

2. Mais passeios (reivindicação por lazer);

3. Melhores escolas (reivindicação por educação);

4. Melhor atendimento de saúde;

5. Mais esportes;

6. Mais brinquedos;

7. Bullying (denúncia)

8. Maconha e cigarro nas escolas (denúncia ao consumo de drogas);

Estes temas foram trabalhados no programa de vídeo, em forma de reportagem com apresentadores em "estúdio", realização de entrevistas, enquetes e vinhetas. Embora estivessem brincando com o estilo do programa Cidade Alerta de Marcelo Resende pela metalinguagem utilizada pelo apresentador (Corta pra mim; Me dá a câmera 2) e pelo formato de jornalismo, em momento algum as crianças reproduziram o seu conteúdo. De todo o trabalho realizado na roteirização o conteúdo do programa Cidade Alerta foi identificado uma única vez, evidentemente, em relação ao caso Marcelo Pesseghini2, (o que seria impressionante que não aparecesse dada a característica dramática e o apelo infantil deste crime) que transcorreu durante a nossa permanência em campo. Este caso foi bastante chocante pelo grau de violência exercida, supostamente pela criança. Não demos ênfase alguma a este caso na pesquisa de campo. Nas atividades criativas este caso foi timidamente mencionado por duas meninas. O que mostra também que a atenção da criança é seletiva.

Outro conceito fundamental e verificado com esta pesquisa foi o de "reprodução interpretativa" (Corsaro, 2011) o qual tornou-se evidente na medida em que as crianças recusaram o conteúdo sangrento e sensacionalista do apresentador Marcelo Resende e ressignificaram o seu "estilo" por completo não citando suas matérias grosseiras, moralistas, homofóbicas, que defendem espancamentos, e relatam roubos e chacinas e criaram reportagens comprometidas com os direitos das crianças.

Assim, as meninas e os meninos com quem trabalhamos souberam distinguir entre forma e conteúdo usando um formato específico para atingir seus objetivos. Isto demonstra que, enquanto nos preocupamos em demasia com a publicidade (como se este formato industrial fosse o causador de todos os malefícios da cultura contemporânea), nós estamos esquecendo de olhar para o conjunto da programação de TV e o quadro geral da sua qualidade, o qual - em grande medida - demonstra-se inapropriado para o público infantil em particular.

10. Para encerrar: programa Criança Alerta como signo para a compreensão da agência infantil

Produzir um programa de TV com as crianças mostrou-se uma metodologia valiosa em muitos sentidos: ela proporcionou uma longa permanência em campo a partir da intervenção coletiva e criativa; ela permitiu também um convívio pautado por um objetivo que atendia aos interesses das crianças; ela permitiu verificar o repertório das crianças de modo dedutivo; ela permitiu observar a "cultura de pares" das crianças (Corsaro, 2011) na lida e convívio cotidiano evitando assim as situações hierárquicas e artificiais, entre outras.

Ao longo de nossa permanência em campo convivemos com crianças que disputavam espaço para poder falar, mostrando iniciativa e motivação. Crianças que acataram a proposta de uma atividade coletiva e colaborativa, mostrando o potencial transformador deste tipo de prática de pesquisa e intervenção. Crianças que souberam distinguir entre formatos, gêneros narrativos e formas culturais. Crianças que souberam reivindicar seus direitos de participação em uma sociedade mais justa e mais equitativa.

Nosso trabalho mostrou que não apenas estas crianças (com que convivemos) sabem identificar a publicidade como também sabe desprezá-la e criticá-la pelo simples motivo de que "propaganda é chata porque interrompe o filme!" Mas de fato, uma preocupação pontual com os efeitos da publicidade impede uma compreensão de que o problema é muito maior, pois a criança nasce e cresce imersa em uma sociedade de capitalismo neoliberal excludente. O problema é tão maior e mais amplo que proibir única e exclusivamente a publicidade para a criança não vai tirá-las de frente dos comerciais e apelos sedutores que invadem todas as esferas de nossa vida cultural e social. A criança vai continuar sofrendo todo tipo de apelo textual construído por diferentes ações midiáticas persuasivas e terá que aprender a lidar com isso (o que aumenta a responsabilidade da família, da escola e dos próprios comunicadores sociais). O que esta medida de proibição da publicidade pode sim é prejudicar (e muito) a produção cultural para este público porque atinge diretamente as cotas de patrocínio e apoio cultural e isto já vem acontecendo no Brasil: a programação de TV para as crianças em canais abertos (os quais são assistidos ainda pela maioria da população) está encolhendo, diminuindo a cada ano que passa. E os programas de jornalismo sangrento e sensacionalista continuarão a ocupar a maioria dos horários das grades de programação.

Mesmo que este trabalho ofereça resultados circunscritos à uma pequena comunidade porque alcançados com uma pesquisa qualitativa, espera-se que a profundidade e o sentido destes resultados ofereçam subsídios para que possamos pensar questões urgentes sobre as diferentes experiências das infâncias nas sociedades contemporâneas, os direitos das crianças e o respeito às suas vozes na superação de uma realidade adultocêntrica que pouco, ou quase nenhum espaço de participação oferece aos nossos meninos e meninas. Ainda que tenhamos trabalhado com apenas 25 crianças, estes foram os pressupostos que informaram as nossas ações, tanto em campo quanto na pesquisa teórica e epistemológica, durante todo o percurso da investigação.


Notas

* Artigo de investigação científica e tecnológica. Este artigo é uma síntese da investigação denominada "Crianças, consumo cultural e participação: a questão dos direitos de mídia e suas políticas para a infância", realizada pela autora no marco do Programa Postdoctoral de Investigación en Ciencias Sociales, Niñez y Juventud da Rede Clacso de Posgrados. A pesquisa foi realizada ao longo dos anos de janeiro de 2012 e dezembro de 2013. Grande área do conhecimento: Ciências Sociais, Interdisciplinar. Subárea: Jornalismo e Comunicação.

1 http://defesa.alana.org.br/post/29103602505/alana-defesa - acesso em 07/03/2013

2 O caso Marcelo Pesseghini ocorreu em 05/08/2013. No bairro Vila Brasilândia na Cidade de São Paulo, segundo os laudos periciais divulgados pela mídia na ocasião, um menino de 12 anos assassinou o pai, a mãe, a vó e a tia avó na madrugada, em seguida saiu com o carro dos pais e passou a noite em frente a escola. Na manhã seguinte assistiu a todas as aulas, pegou uma carona para casa e ao entrar, ele se matou. O caso perturbou as audiências e todo o país.


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    Referencia para citar este artículo: Orofino, M. I. (2015). O ponto de vista da criança no debate sobre comunicação e consumo. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, 13 (1), pp. 369-381.