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Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud

Print version ISSN 1692-715XOn-line version ISSN 2027-7679

Rev.latinoam.cienc.soc.niñez juv vol.22 no.1 Manizales Jan./Apr. 2024  Epub May 27, 2024

https://doi.org/10.11600/rlcsnj.22.1.5769 

Teoría y Metateoría

Dimensões política e pública da orfandade por feminicídio: uma revisão de literatura*

Political and public dimensions of being orphaned through femicide: a literature review

Dimensiones política y pública de la orfandad por feminicidio: una revisión de literatura

Mg Roberta Scaramussa da Silva 1  
http://orcid.org/0000-0001-5472-0036

Ph. D Rafael Andrés Patiño-Orozco2 
http://orcid.org/0000-0001-6492-8252

1 Universidade Federal do Sul da Bahia, Brasil. Psicóloga, mestre em Psicologia e Especialista em Relações de Gênero e Raça, Universidade Federal do Espírito Santo. 0000-0001-5472-0036. H5: 1. Correio Eletrônico: roberta.scaramussa@gfe.ufsb.edu.br

2 Universidade Federal do Sul da Bahia, Brasil. Graduado em Psicologia, Universidad de Antioquia. Mestre em Psicologia, Universidad de San Buenaventura (Colômbia). Doctor em Psicologia, Universidade Federal da Bahia. Pós-Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. 0000-0001-6492-8252. H5: 6. Correio Eletrônico: rafaelpatino@gfe.ufsb.edu.br


Resumo (analítico)

Uma das violências mais extremas contra as mulheres é o feminicídio, crime que afeta principalmente filhos e filhas sobreviventes. Este artigo apresenta os resultados de uma revisão integrativa da literatura que objetivou analisar como as dimensões política e pública da orfandade por feminicídio são apresentadas na produção acadêmica. Foram identificados vinte e dois artigos de diferentes países, publicados entre os anos de 1958 e 2022 e tratados a partir da análise temático-categorial. Os resultados apontaram que predomina um discurso a-crítico e a-histórico sobre o tema. Além da ausência de dados oficiais sobre a problemática, as políticas públicas são apresentadas como ineficientes ou inexistentes. Visando proteger e cuidar dessas crianças e adolescentes, a orfandade por feminicídio precisa ser reconhecida como um problema social relevante, objeto de ações sistemáticas e eficientes.

Palavras-chave: Feminicídio; crianças órfãs; políticas públicas; revisão de literatura. Tesauro Biblioteca Virtual em Saúde

Abstract (analytical)

One of the most extreme types of violence against women is femicide, a crime that also affects their surviving children. This paper presents the results of a comprehensive literature review that analyzed how the political and public dimensions of being orphaned due to femicide are presented in academic studies. A total of 22 articles from different countries were identified published between 1958 and 2022 and a Thematic-Categorical Analysis was applied. The results evidenced a clear a-critical and a-historical discourse on this subject. In addition to the absence of official data on this problem, public policies were identified as either inefficient or non-existent. In order to protect this population, the existence of children and adolescents who have been orphaned due to femicide need to be recognized as a social problem and targeted by systematic and efficient actions.

Keywords:  Femicide; orphaned children; public policy; literature review

Resumen (analítico)

Una de las formas más extremas de violencia contra la mujer es el feminicidio, crimen que afecta principalmente a los hijos e hijas sobrevivientes. Este artículo presenta los resultados de una revisión integrativa de la literatura, que buscó analizar cómo las dimensiones política y pública de la orfandad por feminicidio son presentadas en la producción académica. Se identificaron veintidós artículos de diferentes países, publicados entre 1958 y 2022, los cuales fueron abordados desde el análisis temático-categorial. Los resultados mostraron que predomina un discurso acrítico y ahistórico sobre el tema. Además de la ausencia de datos oficiales sobre el problema, las políticas públicas se presentan como ineficientes o inexistentes. Para proteger a estos niños, niñas y adolescentes, es necesario reconocer la orfandad por feminicidio como un problema social, objeto de acciones sistemáticas y eficientes.

Palabras-clave: Feminicidio; niños huérfanos; política pública; revisión de literatura

Introdução

Entre as distintas violências exercidas contra as mulheres, uma das mais extremas é o feminicídio, crime que afeta profundamente os familiares e, em especial, filhos e filhas da mulher assassinada por sua condição de gênero. Embora tal violência constitua um acontecimento potencialmente traumático para meninos e meninas, a orfandade por feminicídio não tem sido devidamente visibilizada por órgãos governamentais e tampouco tem sido objeto de políticas públicas em diferentes países da América Latina.

De acordo com Azambuja e Nogueira (2008), a violência contra mulheres e meninas foi considerada uma das mais graves violações aos direitos humanos e liberdades individuais em todo mundo pela Organização das Nações Unidas e uma questão de Saúde Pública pela Organização Mundial de Saúde.

Outro efeito importante nesse cenário de transformações foi a mudança da qualificação generalista de crime de homicídio para a de feminicídio. O conceito de feminicídio, ou femicídio, que abordaremos nesse estudo foi proposto pelas ativistas feministas Radford e Russel (1992), no livro Feminicídio: a política de matar mulher. Na compreensão das autoras, a categoria feminicídio demarca e torna visível a dimensão de gênero presente no assassinato de mulheres, revelando-os como crimes culturais resultantes de uma ordem patriarcal que legitima a dominação masculina em nossa sociedade. Deste modo, apontam para a dimensão política da categoria feminicídio, pois permitem desnaturalizar práticas cotidianas como os homicídios perpetrados por parceiros íntimos e justificados como passionais ou motivados pela defesa da honra, desvelando os padrões sociais e simbólicos relativos a esse tipo de crime.

Na América Latina, o feminicídio ganhou visibilidade a partir das denúncias de violência sexual, tortura, desaparecimentos e assassinatos de mulheres em Ciudad Juarez, no México, a partir da década de 1990. O cenário de violência, aliado à negligência do Estado e a impunidade dos envolvidos levou a manifestações de movimentos feministas e de direitos humanos (Pasinato, 2011).

No Brasil, seguindo o movimento internacional de lutas por direitos das mulheres, foi sancionada a Lei Maria Penha (Presidência da República do Brasil, 2006), criada como um mecanismo para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Adicionalmente, no plano jurídico, em 2015 a presidenta Dilma Rousseff sancionou a Lei 13 104 (Presidência da República do Brasil, 2015) conhecida como a Lei do Feminicídio, visando coibir o crime de assassinato contra pessoas do gênero feminino. A lei alterou o Código Penal brasileiro, incluindo o feminicídio como uma modalidade de homicídio qualificado, entrando no rol dos crimes hediondos. Nesse sentido, define-se como feminicídio o assassinato de uma mulher cometido por razões da condição de sexo feminino. Tais condições referem-se, segundo a lei, ao envolvimento de violência doméstica e familiar e/ou o menosprezo, ou discriminação, à condição de mulher (Presidência da República do Brasil, 2015).

A América Latina se caracteriza como a segunda região com o maior risco para a integridade física de mulheres e meninas no mundo. Levantamento realizado entre janeiro e dezembro de 2021 em sete países -Argentina, Chile, Colômbia, Equador, Panamá, Porto Rico e Uruguai- apontou a ocorrência de 1185 feminicídios (D’Angelo, 2022). No Brasil, ao longo de 2021, foram 1319 feminicídios: uma média de uma mulher morta por sua condição de gênero a cada 7 horas (Bueno et al., 2021). Ambos os levantamentos apontam que o crime, em sua maioria, é perpetrado por parceiros ou ex-parceiros. Além disso, a maioria das vítimas são mulheres negras em idade reprodutiva.

Entretanto, o que chama atenção nestes registros oficiais é a ausência de informações a respeito de filhos e filhas das mulheres assassinadas. Além do desconhecimento a respeito da caracterização da orfandade por feminicídio, pouco se sabe também a respeito da trajetória de vida dessas crianças e adolescentes após a violência. Quais os desafios enfrentados para o rearranjo familiar? A perda da mãe por uma violência de gênero produz efeitos específicos relacionados a processo de luto? De que modo afeta os processos de socialização e identificação com as figuras materna e paterna? Quais os laços estabelecidos com a figura do pai/agressor? Em que medida os papéis assumidos pelas diferentes políticas públicas envolvidas favorecem ou desfavorecem a garantia de direitos desses sujeitos? Como meninas e meninos ressignificam as perdas ao longo da vida?

Villanueva-Coronado et al. (2022) realizaram uma revisão narrativa de literatura a respeito da orfandade produzida por perdas violentas como homicídio/feminicídio e desa-parecimento de genitores em conflitos armados na América Latina. O estudo destacou os efeitos negativos da perda parental violenta para o desenvolvimento psicológico e social de crianças e adolescentes, assim como a estigmatização e a fragilização dos vínculos familiares. Além disso, apontou como a perda da proteção parental nessa etapa da vida pode contribuir para aumentar as violações de outros direitos fundamentais como educação, saúde e assistência social. Ressaltou, ainda, que a ausência de dados oficiais sobre a orfandade acarreta escassez de políticas públicas direcionadas a esse público nos diferentes países abordados pela literatura investigada.

Durán e Valoyes (2009) pesquisaram o perfil de crianças e adolescentes órfãos e órfãs na Colômbia em decorrência de situações de vulnerabilidade social como pobreza, deslocamento, migrações nacionais e internacionais, desastres naturais, conflitos armados e violência intrafamiliar. O levantamento bibliográfico realizado pelos autores apontou que o percentual de abandono escolar pode chegar a 27% quando há ausência de um ou ambos os pais. Por outro lado, o índice de trabalho infantil dobra em relação a crianças e adolescentes com a presença parental. A necessidade de auxiliar na produção de renda da família acolhedora é um dos motivos da inserção prematura no mercado de trabalho e abandono escolar (Durán-Strauch & Valoyes, 2009). De modo geral, o estudo destacou as severas implicações das limitadas respostas governamentais tanto para as ações de prevenção, quanto para o imediato restabelecimento dos direitos fundamentais de filhos e filhas.

Como exposto, a invisibilidade da orfandade por feminicídio compromete a oferta de intervenções qualificadas na prestação de serviços a este público; entretanto a responsabilização da sociedade civil organizada, bem como do Estado, são fundamentais para garantir a minimização dos efeitos perversos advindos dessa modalidade de violência. Considerando, então, a relevância social da questão abordada e a escassa produção de dados a respeito do assunto, objetivou-se implementar uma revisão integrativa de literatura sobre orfandade e feminicídio, buscando apresentar o conhecimento científico construído até o momento sobre a temática.

Devido à extensão e complexidade das informações encontradas, os resultados foram descritos em dois artigos. O primeiro dedicou-se a caracterização da dimensão emocional da orfandade por feminicídio. Já no presente estudo, apresentaremos a segunda parte da revisão, cujos objetivos são: identificar como as políticas públicas e serviços especializados são retratados na literatura sobre orfandade por feminicídio, descrever os desafios e contribuições destes serviços na trajetória de vida dos órfãos e familiares; conhecer as estratégias de enfrentamento/fatores de proteção acionados pelos sobreviventes; analisar como a dimensão de gênero atravessa a produção acadêmica sobre a temática.

Referenciais teóricos

Assumiremos, para fins deste estudo, uma compreensão sobre política e esfera pública que vai à contramão de uma perspectiva que reduz a política a uma dimensão partidária e esfera pública, à gratuidade, caridade e assistencialismo.

A filósofa Hannah Arendt (2005) buscou as origens da política na proposta de democracia da Grécia Antiga. Em sua análise, a autora diferencia as três dimensões da política: pluralidade, ação e discurso. A pluralidade é entendida como o modo de pensamento em que o mundo é concebido em permanente transformação e diferenciação; a ação é compreendida como uma aptidão dos cidadãos, em conjunto, criarem algo novo; e o discurso seria a expressão da opinião de um coletivo (Arendt, 2005).

Já a esfera pública, segundo a autora, refere-se ao espaço comum a todos ou, ao próprio mundo. O lugar no qual nos encontramos uns com os outros. Nesse sentido, a esfera pública caracterizar-se-ia pela multiplicidade de olhares sobre a realidade. Ocupar o espaço público significa, dentro de uma perspectiva de democracia grega, ser visto e ouvido por outros que vêem e ouvem de diferentes pontos de vista (Arendt, 2005). Desse modo, Arendt (2005) compreende que é por meio de discursos e ações que nos humanizamos, pois, ao agirmos (política) no mundo (espaço público), estamos praticando a verdadeira liberdade, nos arriscando e nos permitindo construir algo na processualidade.

Assim, ao tomarmos essa concepção de política e de esfera pública como direção desse estudo, caminhamos na contramão de um cenário em que a violência de gênero contra a mulher é tomada como algo restrito ao espaço privado, doméstico e particular. Empreenderemos um olhar crítico a respeito da orfandade por feminicídio, compreen-dendo a trajetória de crianças e adolescentes pós-assassinato materno a partir de um viés social e historicamente situado que dialoga, necessariamente, com a realidade material dos sujeitos envolvidos no processo.

A revisão integrativa de literatura é um método que visa agrupar resultados de estudos primários sobre uma determinada temática, tendo como referência uma questão norteadora (Cooper, 1982, 1998). Essa modalidade de revisão, embora exija o mesmo rigor estrutural das demais, possibilita a inclusão de pesquisas tanto teóricas, quanto empíricas, com diferentes delineamentos metodológicos. Cooper (1982) propôs cinco etapas para operacionalização da revisão integrativa: 1) formulação de um problema; 2) coleta de dados; 3) avaliação dos dados; 4) análise e interpretação dos dados coletados; 5) apresentação pública.

Seguindo as orientações propostas, levantamos as seguintes questões norteadoras: quais os conhecimentos construídos, até o momento, pela produção científica (inter) nacional a respeito da orfandade por feminicídio e de que modos os estudos abordam a dimensão política e pública inerentes aos processos de produção desse tipo de violência?

Percurso metodológico

Para o levantamento de estudos, realizamos uma busca de junho de 2021 até junho de 2022 nas seguintes bases de dados: Medical Publications (PubMed), Scientific Electronic Library Online (SciELO), Literatura Latinoamericana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs), American Psychological Association (PsycINFO), Scopus (Elsevier), Google Scholar.

Empregamos a chave de busca construída, tanto a partir dos termos controlados das respectivas bases, como de termos livres, visando aumentar a sensibilidade da pesquisa. Utilizamos como palavras-chave os termos: feminicídio, sobreviventes, órfãs, órfãos, filhos, filhas, crianças, homicídio de mulheres, vítimas secundárias, violência doméstica contra a mulher. A busca foi realizada em português, inglês e espanhol.

Foram excluídas teses, dissertações e capítulos de livros. Entre os artigos científicos encontrados foram excluídos aqueles que tratassem exclusivamente do feminicídio sem enfoque nos efeitos produzidos em familiares/cuidadores e filhos/filhas. Foram incluídas todas as modalidades de estudo -qualitativo, quantitativo, ensaio teórico- que tratas-sem do homicídio de mulheres por parceiros íntimos a partir da sua interface com a orfandade. Devido à relativa escassez de artigos sobre o tema, não estabelecemos recorte temporal para escolha das publicações.

No total, foram selecionados 22 artigos científicos (tabela 1), dos quais cinco foram conduzidos nos EUA; três realizados no Brasil; dois na França, Itália, Reino Unido e Equador; e Espanha, Turquia, República do Chipre, Canadá, Uruguai e Colômbia apresentaram um artigo cada. A maioria dos artigos foi encontrada na base de dados no Google Scholar (14), PubMed (04), Science Direct (02), Scielo Brasil (02). Não foram identificados artigos nas demais bases pesquisadas.

Tabela 1 Descrição das referências com base nos autores, revista, ano e país 

Quanto às áreas de conhecimento foram encontradas revistas no campo das Ciências Sociais (5); Saúde e psiquiatria (5); Psicologia e psicanálise (3); Direito e criminologia (3); Família e infância (3); Interdisciplinar (1); Educação (1).

No que se refere ao delineamento metodológico, vinte artigos caracterizaram-se como pesquisas qualitativas e dois como quantitativos. A maioria adotou procedimentos de campo tendo como instrumento de coleta de dados entrevistas direcionadas a crianças e adolescentes ou cuidadores e profissionais de equipes especializadas. Seis deles ado taram análise de caso clínico ou estudo de caso, três estudos foram documentais com enfoque na prevalência do homicídio contra a mulher e dos efeitos em covítimas, três trabalhos caracterizaram-se como ensaios teóricos sobre a temática, um estudo descrevia um protocolo de atendimento a filhos e filhas do feminicídio.

A análise da linha do tempo apontou um aumento das publicações sobre o tema a partir de 2015, totalizando 14 artigos até 2022. Além disso, a maioria dos estudos de caráter mais crítico também foi desenvolvido a partir deste período. No Brasil, foram três publicações pós 2015, enquanto os EUA e o Reino Unido foram responsáveis por todas as pesquisas realizadas entre 1958 e 2008.

Para a análise dos artigos, construímos uma planilha de Excel™ contendo título, periódico, ano de publicação, país, base de dados, objetivos, procedimentos metodológicos, resultados. Os conteúdos foram tratados tendo como referência a análise temático-categorial (Oliveira, 2008). Para tanto, foram seguidas as etapas propostas pela autora: leitura flutuante de todos os artigos selecionados com definição dos primeiros elementos dos textos para exploração, definição de hipóteses, determinação de unidades de registro referendadas nos objetivos específicos do estudo. Após estas etapas procedemos à identificação da unidades de registro nos artigos que foram organizados em sete categorias construídas após análise minuciosa dos conteúdos de cada estudo. Neste artigo, especificamente, apresentamos quatro categorias: políticas públicas e serviços especializados, relação com a figura do pai/agressor, cultura do silêncio e estigmatização da mulher as-sassinada; fatores de proteção e estratégias de enfrentamento.

Resultados

Políticas públicas e serviços especializados

O feminicídio perpetrado por parceiro íntimo é uma modalidade de violência que, por sua complexidade, exige a articulação entre diferentes políticas, setores, programas e serviços. As pesquisas (Huertas et al., 2021; Kapardis et al., 2017; León et al., 2021; Rappaport et al., 2020a; Rappaport et al., 2020b; Zafra et al., 2020; Zeanah & Burk, 1984) citam principalmente a interface do feminicídio com o poder judiciário, as políticas públicas de segurança, saúde, educação e socioassistencial de vários países. A maioria dos estudos aponta a dificuldade de elaboração de políticas voltadas para as crianças sobreviventes e a falta de informações e dados referentes aos mesmos. Nos países onde o feminicídio en contra-se tipificado como crime, a atuação da justiça se limita ao mesmo e não há políticas públicas específicas para atender as crianças afetadas.

No que se refere à interface com o poder judiciário e com as políticas de segurança pública estão incluídas: a abordagem no momento do crime, a prestação de socorro, a investigação, as audiências e julgamento, as situações de guarda, tutela e pensões. A respeito destes serviços, os artigos (Zafra et al., 2020; Zeanah & Burk, 1984) problematizam a conduta inicial na abordagem às meninas e meninos, considerando-os, na maioria das vezes, despreparados para tal intervenção. Quando a criança se configura como uma tes-temunha, os estudos também questionam os protocolos judiciais que impõem sua revitimização ao terem que reviver o acontecimento traumático nos depoimentos. Além disso, a criança é submetida a ficar frente a frente com o agressor -muitas vezes, seu próprio pai- podendo levar a conflitos emocionais em que a criança sentir-se-ia responsável pelo destino do mesmo. A respeito das decisões sobre guarda, os artigos salientam que as família possuem conflitos de interesse e afetivos que precisam ser cuidadosamente analisados pelos serviços das varas especializadas e que decisões equivocadas podem produzir uma série de consequências negativas, denominadas por alguns autores traumas secundários (Dibarboure et al., 2021; Zafra et al., 2020). Os resultados desses estudos, indicam que, embora haja avanços no âmbito jurídico, a dimensão psicossocial da problemática é frequentemente menosprezada ou ignorada pelas políticas públicas, tornando as crianças mais vulneráveis durante os processos judiciais decorrentes do crime.

As políticas, programas e serviços especializados de saúde também foram várias vezes mencionadas na literatura analisada e, de modo geral, foram considerados de extrema relevância tanto para o momento de crise imediata pósperda, quanto para o acompanhamento processual visando a prevenção de possíveis efeitos a longo a prazo no desenvolvimento psicossocial infantil. Os artigos voltados para descrição de práticas clínicas destacaram os serviços psiquiátrico e psicológico como fundamentais para o processo de enfrentamento da perda. A maioria dos artigos apontou ainda não haver um preparo das equipes dos serviços públicos e particulares e nem protocolos de intervenção para atuação junto a situações de extrema violência, trauma e luto (Bergen, 1958; Burman & Allen-Meares, 1994; Kapardis et al., 2017; León et al., 2021; Pruett, 1979; Rappaport et al., 2020b; Zafra et al., 2020; Zeanah & Burk, 1984).

Dois artigos franceses (Rappaport et al., 2020a; Rappaport et al., 2020b) descrevem em detalhes o protocolo de atendimento a crianças testemunhas de feminicídio. Este protocolo terapêutico experimental foi estabelecido em parceria entre o Ministério Pú blico do tribunal de Bobigny e o Conselho Departamental de Seine-Saint-Denis, através do Observatório da violência contra a mulher e assistência social à criança e o Centro do Hospital Intercomunal Robert-Ballanger em Aulnay-Sous-Bois. Já um artigo norte-americano (Black & Kaplan, 1988), baseado em casos clínicos, oferece orientações para a prática de cuidados em saúde mental de crianças órfãs de mães assassinadas, apontando para a necessidade de uma equipe interdisciplinar para estratégias que vão desde a re-construção da história de vida dos sujeitos, até visitas às escolas e comunidades. Os estudos também mostram que a adesão ao tratamento é pequena. Segundo os mesmos, a adesão é maior na crise imediata após homicídio e gradualmente, com o alívio dos sintomas, o tratamento vai sendo abandonado. As famílias declaram que a atenção prestada pelos serviços de saúde é generalista e focada em sintomas, o que impediria um acompanhamento singular e continuado. Dificuldades financeiras ou de transporte também foram citadas como limitações à continuidade do tratamento. Essa observação aponta para uma patologização do luto, embora o mesmo seja um processo normal e necessário, que pode requerer acompanhamento psicossocial e apoio familiar, mas que não por esse motivo configura um transtorno.

As políticas e serviços educacionais são menos citadas, mas aparecem como importantes estratégias de suporte comunitário para crianças e adolescentes. Embora as professoras entrevistadas relatem se sentirem despreparadas para lidar com tal situação no contexto escolar, também se destacam como principal fonte de acolhimento e acompanhamento das mudanças comportamentais de crianças que passaram por essa perda (León et al., 2021; Zafra et al., 2020;). As políticas socioassistenciais também são pouco citadas, entretanto, têm papel fundamental na oferta de serviços básicos como renda, alimentação e ajuda nos preparativos para o funeral. Tais serviços também se tornam centrais em situações em que o abrigamento institucional se faz necessário (Almeida, 2016; Zafra et al., 2020).

De modo mais geral, Huertas et al. (2021) descrevem, brevemente, iniciativas criadas por países latinoamericanos para assistir órfãs e órfãos do feminicídio. República Dominicana, Peru, Argentina, Equador, Uruguai, Paraguai e Bolívia, por exemplo, adotam leis de proteção, alguns serviços especializados para acompanhamento de vítimas e, em alguns casos, até mesmo auxílio financeiro. O estudo destaca ainda que a Colômbia estaria entre os países latinoamericanos com poucos avanços em relação ao desenvolvimento de políticas de atenção aos órfãos do feminicídio. Outro estudo (Vélez et al., 2018) realizado no Equador usando o método geral de resolução de problemas e diagrama de Ishikawa apontou uma série de indicadores produzidos por especialistas para orientar o Estado na elaboração de suas políticas, entre quais se cita: proposição de leis com maior abrangência; quebrar o ciclo de violência intrafamiliar a partir de projetos contínuos e escalonados; desenvolver centros especializados de apoio e tratamento das vítimas secundárias; atuar em estreita relação com as instituições de acolhimento; desenvolver programas de apoio econômico às crianças e adolescentes vítimas de feminicídio.

Um instrumento também citado pelos estudos que vale a pena destacar, embora não se configure como política pública ou serviço especializado, foram os meios de comunicação de massa, por exemplo, programas de televisão, rádios e jornais impressos. Por um lado, foram retratados como veículos fundamentais para levar até a sociedade uma perspectiva crítica e um debate comprometido com a luta por justiça nas situações de feminicídio. Por outro, as pesquisas apontaram que, na maioria das vezes, estão a serviço do sensacionalismo, que expõe e vulnerabiliza os sobreviventes enquanto estigmatiza a mulher assassinada (Huertas et al., 2021; Zafra et al., 2020).

Há consenso entre os estudos de que o desenvolvimento de políticas, serviços e programas em todas as áreas, dirigidos à crianças e adolescentes sobreviventes do feminicídio é ainda incipiente. Aos que estão sendo implantados, falta qualificação, visibilidade e, muitas vezes, continuidade.

Cultura do silêncio e estigmatização da mulher assassinada

A ocorrência de comportamentos de cuidadores que decidem ocultar ou reconstruir a história da morte da mãe foi denominada de «cultura do silêncio» (Almeida, 2016; Dibarboure et al., 2021; Zafra et al., 2020). Em tais situações, os familiares chegam a pressionar para que a criança esqueça o ocorrido, não fale sobre o assunto e não faça perguntas a respeito do que aconteceu, ações que podem produzir o efeito adverso de obstaculizar os caminhos do luto. Vários motivos são usados para justificar tal atitude; em muitos casos, utilizam a crença: «ele ainda não entende» para referirse ao fato de que a criança não consegue compreender o ocorrido, portanto, deve ser poupada. Apontam que em certas situações a intenção é proteger a criança de memórias negativas e dos danos psicológicos causados pelo trauma. Além disso, tais estratégias podem também ser usadas em situações que visam proteger o agressor e confundir os testemunhos dados pela criança à justiça. De todo modo, a literatura (Black & Kaplan, 1988) aponta que tal ato pode dificultar o processo de luto e desenvolver a sensação de desenraizamento e alienação em relação à própria história.

Dois artigos (Almeida, 2016; Zafra et al., 2020) apresentam uma discussão sobre os efeitos de narrativas reconstruídas que alteram a percepção da criança/adolescente sobre a violência sofrida, descaracterizam a perspectiva de gênero presente no ato e contribuem para a estigmatização da mulher assassinada. Em um caso relatado por Almeida (2016), por exemplo, um adolescente órfão por feminicídio, ao ser entrevistado pela pesquisadora descreve duas versões para a morte da mãe. Na primeira delas, conta que sua mãe morreu durante o parto, realizado após ser agredida pelo padrasto; na outra versão, relata que ela teria morrido somente em função violência sofrida e não em decorrência de um parto complicado. Cada uma das histórias demarca uma perspectiva diferente a respeito da violência de gênero que atravessou a vida deste sujeito.

Além disso, os estudos (Dibarboure et al., 2021; Zafra et al., 2020; Zeanah & Burk, 1984) apontaram brevemente como os estereótipos de gênero estão presentes também nos discursos de profissionais de diferentes serviços, contribuindo para estigmatização da vítima e desculpabilização do agressor.

Relações de crianças/adolescentes com o agressor

Um dos aspectos mais perversos do homicídio perpetrado por parceiro intimo é que, em sua maioria, a criança órfã passa pela perda forçada dos dois genitores, um para morte e outro para a prisão ou suicídio. Diferentes estudos apontaram que a idade e a fase do desenvolvimento da criança podem ter grande influência na constituição da percepção/ relação que será estabelecida entre eles (Almeida, 2016; Bergen, 1958; Burman & Allen Meares, 1994; Dibarboure et al., 2021; Hardesty et al., 2008; Kapardis et al., 2017; Pruett, 1979; Rappaport et al., 2020a). Exemplo disso está em um artigo norte-americano que investigou como cuidadores e crianças de dez famílias se ajustaram às mudanças provocadas pelo feminicídio e apontou como um grupo de quatro irmãos apresenta compreensões completamente diferentes dos fatos, o que refletiu na relação estabelecida com o agressor. Um menino de 5 anos (tinha 11 meses na época do crime) não se lembra do ocorrido e relata ter uma relação saudável com o pai, se comunicando por telefonemas e visitas na prisão. Uma menina de 7 anos (tinha 3 anos na época do crime) acredita que outro homem matou sua mãe. Outro menino de 9 anos (5 anos na época do crime) se recusa a visitar o túmulo da mãe e a visitar o pai na prisão. Por fim, o irmão mais velho de 10 anos (6 anos na época do crime) expressa raiva pelo pai estar na prisão e acredita que ele é inocente (Hardesty et al., 2008).

No entanto, as pesquisas também apontam a influência dos cuidadores no processo de construção das memórias, percepções e afetos das crianças (Almeida, 2016; Black & Kaplan, 1988; Dibarboure et al., 2021; Zafra et al., 2020). Como já mencionado, é comum a crença de que a criança não compreende o ocorrido para silenciar ou distorcer as narrativas sobre o feminicídio. Há, de fato, um conflito de interesses entre as famílias materna e paterna que estão, ambas, vivenciado um processo de luto e, na maioria das vezes, participando de um processo judicial. Esses conflitos podem se intensificar na disputa pela guarda dos menores. A maneira como as narrativas vão se constituindo produzem um cenário relativamente propício à aproximação ou distanciamento da criança com o pai agressor. Há tanto relatos de crianças que queriam visitar e retomar o contato com o pai, como também aquelas que se negaram a vêlo.

Nos casos em que o pai ou padrasto é o agressor, o pátrio poder ou a autoridade parental, embora possa ser suspenso durante a pena (a depender de cada legislação de cada país), ainda assim, não impede a retomada da guarda e nem o direito às visitações após cumprimento da mesma (Black & Kaplan, 1988; Zafra et al., 2020). Burman e Allen-Meares (1994) relatam dois casos em que o pai retoma a guarda dos filhos após cumprimento da pena e destaca o fracasso dessas tentativas. Hardesty et al. (2008) descreveram a situação de um pai que, mesmo preso, ameaçava a família materna para garantir uma aproximação com a criança. Simultaneamente, a criança, que havia sido testemunha do homicídio, temia o contato com o pai. Black e Kaplan (1988) também descrevem cinco casos em que os pais presos solicitaram acesso aos filhos, o pedido foi negado devido à recusa das próprias crianças. Esses cenários gerariam insegurança e mal-estar entre aqueles que assumiram a responsabilidade legal (Zafra et al., 2020). De modo geral, a percepção dos cuidadores entrevistados pelos autores é de que tal contato iria contra os interesses do menor, sendo prejudiciais ao seu desenvolvimento. Em contrapartida, o estudo de Black e Kaplan (1988) destaca que é direito de toda criança e adolescente ter acesso ao conví-vio paterno e orienta que, em determinadas situações, o acesso ao pai pode ter benefícios terapêuticos para a criança.

Já o estudo realizado na República do Chipre (Kapardis et al., 2017), analisou as percepções de 14 órfãos, de diferentes idades, que testemunharam o feminicídio materno e concluiu que cada grupo de irmãos estabeleceu relações diferentes com o pai e o padrasto. Em quatro casos o pai/padrasto havia cometido suicídio, em dois casos a relação era ruim, em dois casos a relação com o pai preso era considerada boa, em um dos casos a relação era considerada inexistente, mas os filhos almejavam uma aproximação quando o mesmo saísse da prisão.

Outro aspecto relevante refere-se a situação de crianças que testemunharam o assassinato sendo compelidas a depor contra o pai em audiências judiciais (Hardesty et al., 2008; Zeanah & Burk, 1984). Nestes casos, os sentimentos de culpa, traição, conflitos emocionais estão presentes e caracterizam um possível complicador tanto para o processo de luto, quanto para a relação da criança com o genitor; além de um perigoso dispositivo de conflitos familiares. As crianças, nestes casos, se encontram em uma posição conflitiva entre seus próprios interesses e necessidades afetivas, por um lado; e as demandas sociais, familiares e jurídicas.

Estratégias de enfrentamento/fatores de proteção

As estratégias utilizadas por familiares e órfãos no enfrentamento das adversidades impostas pela violência do feminicídio foram identificadas por Hardesty et al. (2008) em estudo realizado com 10 cuidadores e concluíram que o apoio familiar e comunitário (manutenção ou criação de vínculos afetivos fortes e seguros), os rituais (rotina de visitar o túmulo da mãe, fazer orações, visitar o pai preso) e o envolvimento das crianças em atividades ocupacionais (escola, atividade física) foram fundamentais na percepção dos mesmos. Zafra et al. (2020) também identificaram a rede de apoio comunitário do núcleo familiar extenso e a sensibilidade de alguns profissionais dos serviços de atendimento. O estudo destacou ainda o termo resiliência mencionado pelas famílias, referindo-se a uma força interna dos sujeitos envolvidos para superação das adversidades. No caso clínico estudado por Zeanah e Burk (1984) verificou-se que os vínculos afetivos e sentimentos de segurança e proteção estabelecidos com a cuidadora foram fundamentais para a promoção da saúde da criança enlutada.

A literatura identificou ainda fatores de proteção que, quando presentes, podem favorecer o enfrentamento dos efeitos perversos da violência sofrida, como delegar as crianças aos cuidados de pessoas com as quais possuam vínculo de afeto e proteção. Destaca-se que tais pessoas não devem ser necessariamente parentes. Há casos, ao contrário do que se presume, de familiares que podem não estar disponíveis emocionalmente para assumir tais crianças. Outro fator de proteção seria avaliar a possibilidade de não separação de irmãos para minimizar a fragmentação dos laços já tão fragilizados. Destacam ainda como medida protetiva oferecer espaço de escuta e acolhimento para que a criança se sinta à vontade para se expressar sobre o ocorrido (Black & Kaplan, 1988; Erükçü Akbaş & Karatas, 2020; Hardesty et al., 2008; Huertas et al., 2021; Zafra et al., 2020).

Black e Kaplan (1988) orientam que toda criança e adolescente órfão por feminicídio deveria ter acesso a serviços de intervenção em crise oferecidos por equipamentos públicos qualificados. Segundo os autores, esse seria um dispositivo fundamental para promoção da saúde mental, pois a criança teria a oportunidade de reconstituir o evento traumático e expressar as emoções imediatas após o ocorrido. Além disso, destaca a importância do aconselhamento para situações de luto e em casos necessários, encaminhamento para psicoterapia.

Os artigos citados acima apontam ainda para a importância de redes de apoio comunitário consolidadas, da qualificação das equipes escolares, da implementação de serviços especializados e qualificação dos serviços e políticas já existentes, da promoção de políticas de enfrentamento à vulnerabilidade econômica e do apoio aos movimentos de luta e combate à violência contra a mulher.

Discussão

Ao empreendermos um olhar sobre as dimensões política e pública presentes nos estudos sobre orfandade por feminicídio, foi possível perceber que ainda predomina uma perspectiva individualizante, psicologizante e patologizante nos discursos científicos a respeito da temática, tais características são herdadas de uma cultura acadêmica, em especial no campo da Psicologia e áreas afins, pautada num ideário individualista hegemônico que reduz as subjetividades e os processos psicossociais -como a violência- a uma dimensão pessoal, a-histórica e a-política (Dimenstein, 2000).

A dimensão de gênero, por exemplo, foi abordada de forma insipiente na literatura revisada considerando-se sua relevância para compreensão dos efeitos do assassinato materno causado pela violência de gênero perpetrada contra a mulher. Entretanto, ainda que de forma tímida, observamos que começa a emergir, entre pesquisadores e pesquisadoras, o interesse genuíno por uma análise crítica e historicamente situada desse tipo de violência. Tais estudos são fundamentais para o desenvolvimento de olhar crítico sobre o tema sem o qual consideramos ser impossível elaborar ações condizentes com as necessidades de crianças e adolescentes sobreviventes desta modalidade de violência.

De modo geral, as pesquisas descrevem alguns avanços e os principais desafios das políticas públicas e serviços especializados em diferentes países no que se refere a garan tia de direitos de órfãs e órfãos do feminicídio. As conquistas como benefícios socioas-sistenciais, atenção em saúde e auxílio financeiro embora fundamentais, são, geralmente, compreendidas como ações pontuais e sem continuidade. Os artigos também apresentam pistas sobre as possíveis atribuições dos sistemas de Justiça, Segurança Pública, Saúde, Assistência Social e Educação diante da problemática. Ao mesmo tempo, denunciam ausência ou despreparo para a abordagem e intervenção junto à orfandade por feminicídio. De acordo com Villanueva-Coronado et al. (2022) tais lacunas comprometem uma reparação real dos danos causados pela violência, além de contribuírem para novas situações de vitimização destes sujeitos envolvidos.

Os meios de comunicação, no que lhes concerne, são compreendidos como fundamentais para dar visibilidade à causa, mas acabam sendo cooptados por uma lógica sen-sacionalista e estereotipada da tragédia. É consenso, entre os estudos com viés crítico, como o realizado por Carvalho et al. (2022) a urgente necessidade de um sistema de informação oficial e qualificado, que leve em consideração as dimensões interseccionais que atravessam o feminicídio e outras violências de gênero e que inclua, prioritariamente, crianças e adolescentes órfãos, para que se possa subsidiar políticas efetivas de proteção. Para os autores, tão importante quanto produzir indicadores sobre a problemática é possibilitar uma reflexão sobre os sujeitos históricos que o vivenciam.

A revisão também possibilitou identificar que as narrativas sobre o assassinato relatadas às crianças pelos familiares são, muitas vezes, impregnadas de preconceitos de gênero e podem interferir na construção das memórias de filhos e filhas sobre o ocorrido, destituindo-lhes do direito de construir um olhar crítico, político e social sobre a violência à qual foram submetidos. Esses posicionamentos indicam o desconhecimento e insegurança das famílias para tratar sobre o feminicídio. Ações de acompanhamento e orientação dessas famílias poderiam contribuir com a facilitação dos processos de luto e com a compreensão e construção de sentidos sobre tais acontecimentos.

Além disso, os estudos apontaram que crianças que perdem a mãe e ainda se deparam com a realidade de um pai agressor, encontram-se em um período da vida de maior dependência e necessidade de cuidado em diversas dimensões, mas especialmente na afetiva. De acordo com Durán e Valoyes (2009) a perda dos dois progenitores as coloca em uma posição de desamparo que precisa ser acompanhada no processo de desenvolvimento subjetivo. Nesse sentido, para os autores, é necessário que o Estado atue na garantia de direitos fundamentais como: cuidados imediatos no âmbito da saúde mental e assistência econômica, inserção em famílias com as quais a criança mantenha vínculo afetivo, qualificação dos serviços especializados visando impedir a evasão escolar e o trabalho infantil são algumas das ações possíveis, urgentes e necessárias.

No entanto, a ausência e a falta de consolidação das políticas públicas e serviços de atendimento especializado das crianças sobreviventes desses crimes indicam que, apesar das mudanças na legislação (que agora reconhece o feminicídio como crime em alguns países), as consequências familiares e sociais da violência contra as mulheres, em especial as que afetam filhos e filhas sobreviventes, não têm se consolidado como um problema social relevante, que comprometa as políticas públicas. Os movimentos sociais, mas também a pesquisa acadêmica, são fundamentais no processo de reconhecimento e intervenção dessa problemática, objetivando a necessária proteção e acolhimento das crianças e de suas famílias. De modo geral, os cenários de violência contra a mulher no mundo e especialmente na América Latina, estão ainda fortemente condicionados social e culturalmente.

Do anterior decorre que seja fortemente recomendável a realização de estudos que possuam um valor prático, orientados a produzir tecnologias sociais para a intervenção desta problemática que, não somente na sua dimensão jurídica ou com ênfase em saúde, mas especialmente psicossocial.

Por fim, a literatura visitada deu pistas sobre estratégias de enfrentamento e fatores de proteção considerados fundamentais por familiares, órfãos e órfãs. Desse modo, ficou evidenciado como a rede de apoio social e comunitária, além de políticas públicas eficientes, podem contribuir sobremaneira para o fortalecimento das famílias vulnerabilizadas pela violência.

Agradecimientos

Agradecimentos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, que apoiou o trabalho por meio da chamada n. 28/2018 Universal e também à Universidade Federal do Sul da Bahia pelo apoio por meio dos Editais 01/2021 e 03/2022.

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* Este artigo é parte é do projeto de tese de doutorado intitulado «Orfandade por feminicídio: trajetórias emocionais narradas por filhos e filhas de mulheres assassinadas por sua condição de gênero» realizado no Programa de Pós-graduação em Estado e Sociedade da Universidade Federal do Sul da Bahia. O estudo foi iniciado em fevereiro de 2020 com previsão de finalização em fevereiro de 2024. Área: ciencias sociales. Subárea: psicología, estudios de género, políticas públicas.

Para citar este artículo: Scaramussa, R., & Patiño-Orozco, R. A. (2024). Dimensões política e pública da orfandade por feminicídio: uma revisão de literatura. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, 22(1), 1-21. https://doi.org/10.11600/rlcsnj.22.1.5769

Recebido: 13 de Dezembro de 2022; Aceito: 13 de Junho de 2023

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