Introdução
A mortalidade materna no mundo alcançou 303 000 mulheres em 2015, enquanto a mor talidade em menores de 5 anos de idade em 2014 foi de 5.9 milhões, sendo 2.7 milhões de óbitos neonatais 1,2. No Brasil, em 2015, a mortalidade materna foi de 59.7 e a infantil de 15,6 óbitos por 1000 nascidos vivos. No país, as taxas de mortalidade neonatal precoce e tar dia também foram expressivas, de 7.3 e 2.2, respectivamente 3.
Esse quadro relaciona-se principalmente a causas obstétricas diretas, consideradas evitáveis, como os casos de pré-eclâmpsia, eclâmpsia, infecções puerperais e hemorragias pós-parto. No Brasil e no mundo, essas condições são frequentes entre gestantes e repre sentam riscos aumentados de desfechos materno-infantis desfavoráveis 1,4. A atenção pré-natal de qualidade possibilita melhorar tais circunstâncias, com a avaliação integral da gestante, educação em saúde e ampliação do acesso à imunização, exames e orientações sobre amamentação e nutrição 2,5,6.
A assistência pré-natal tem por intuito evitar complicações clínico-obstétricas, favo recendo apoio físico e emocional, que propicie à mulher exercer a maternidade de forma saudável 7. O acolhimento e as práticas profissionais adequadas contribuem positivamente no vínculo usuário-profissional, o que dá segurança à mulher para partilhar sentimentos, dúvidas e realizar os exames clínico-obstétricos, favorecendo a integralidade e humanização do cuidado, como preconizados pelo Ministério da Saúde 8. Além disso, a inclusão de familiares durante as consultas tem sido relatado como um fator positivo para garantia do apoio continuado à gestante 9.
A qualidade dos serviços de atenção pré-natal está relacionada ao desenvolvimento de ações resolutivas e acolhedoras 5. O profissional apto para avaliar, tratar e orientar as gestantes reproduz um acompanhamento eficaz que aumenta as chances de adequação do pré-natal 10,11. Adicionalmente, a capacitação técnica para abordar as temáticas da ges tação, parto, cuidados com o recém-nascido e estímulo ao autocuidado influencia positiva mente a satisfação da mulher com os serviços prestados e dessa forma, no comparecimento às consultas 11-13.
Dificuldade de acesso aos serviços de saúde, longa espera antes do atendimento, lentidão no processo de agendamento de consultas e exames, e falta de estrutura das unidades de saúde são citados como fatores que interferem negativamente no acompanhamento pré-natal 5,14. Além disso, outras circunstâncias intrínsecas à mulher como a gestação no início da idade reprodutiva, gestações prévias, condições socioeconômicas desfavoráveis, falta de apoio social, não aceitação da gravidez, ser mãe solteira e baixa escolaridade também são fatores que podem contribuir com o pré-natal inadequado, tanto em termos das consultas preconizadas (início tardio e quantidade de atendimentos inferior ao recomendado) quanto na realização dos procedimentos e exames necessários 10,14,15. O conhecimento dessas características maternas permite proporcionar cuidado individualizado e integral, garan tindo atendimentos de qualidade 6.
Como estratégias voltadas à assistência da mulher no ciclo gravídico-puerperal, o Ministério da Saúde do Brasil instituiu o Programa de Humanização no Pré-Natal e Nascimento (PHPN) e a Rede Cegonha 16,17. De acordo com as diretrizes do PHPN, é ideal que a primeira consulta do pré-natal ocorra até o quarto mês de gestação, o atendimento de no mínimo seis consultas, a rea lização de exames laboratoriais para detecção de sífilis, HIV, diabetes e anemia no primeiro e ter ceiro trimestres, a vacinação antitetânica, o diagnóstico de risco gestacional e a participação em atividades educativas sobre gestação, amamentação, alimentação e parto, ao longo do período de acompanhamento 16. A Rede Cegonha complementa o PHPN com ênfase no cuidado ao parto, nascimento, puerpério e cuidados com a criança até os dois anos de idade. No componente pré-natal, a estratégia prevê a inclusão de novos exames como a realização de testes rápidos de sífilis, HIV e proteinúria, e a ampliação do ultrassom obstétrico para 100 % das gestantes 17. Estas recomendações compõem os parâmetros de prestação de serviços adequados no pré-natal e foram utilizadas como referencial teórico para a avaliação aqui proposta 18.
Avaliar o cumprimento dos critérios estabelecidos no PHPN e na Rede Cegonha é uma forma de verificar se medidas voltadas para a redução do número de nascimentos prematuros, bebês com baixo peso e mortalidade materno-infantil estão sendo devidamente executadas e sur tindo efeito 18,19. Nesse sentido, destaca-se que a cobertura da assistência pré-natal no Brasil atingiu proporções próximas a 100 % nos anos de 2012 (98.7 %) e 2013 (97.4 %) de acordo com a Pesquisa Nascer no Brasil 14 e a Pesquisa Nacional de Saúde 6, respectivamente. Ainda, segundo essas mesmas pesquisas, mostram-se como indicadores favoráveis os relacionados ao início do pré-natal antes do segundo trimestre da gestação (75.8 % e 92.6 %, respectivamente) e a realização de seis ou mais consultas (73.1 % e 84 %, respectivamente) 14,20. No entanto, os problemas registrados em relação ao acesso às unidades de saúde, à realização de exames e à oferta de orientações são marcas da realidade brasileira referidas à assistência pré-natal de baixa qualidade, mesmo com elevadas taxas de cobertura 6,14,20. Pesquisas de âmbito local também têm mostrado resultados semelhantes, destacando-se as deficiências nos pro cedimentos clínico-obstétricos, na realização de exames, na prescrição de medicamentos e na qualidade das orientações, como mostrado numa revisão da literatura 21.
Avaliar a assistência pré-natal constitui uma ferramenta essencial para que gestores de saúde possam conhecer os avanços e as fragilidades existentes no serviço, de forma a perpe tuar decisões sobre a necessidade de capacitação dos profissionais e reorganização da assis tência 19,22,23. No contexto da Estratégia Saúde da Família (ESF) discute-se a necessidade de estudos sobre o Programa Mais Médicos (PMM) com foco no escopo das práticas profissionais, nos efeitos sobre os indicadores de saúde e nas possíveis contribuições quando comparado com equipes de saúde da família convencionais 24. O objetivo deste trabalho foi descrever indicadores de qualidade da atenção pré-natal recebida por usuárias da ESF em municípios do estado da Paraíba e investigar diferenças conforme as características socioeconômicas, de apoio social e o tipo de equipe de saúde.
Materiais e métodos
Trata-se de um estudo transversal incluído numa pesquisa de avaliação multifacetada e multietápica da implantação das ações de alimentação e nutrição na ESF no estado da Paraíba, tendo a análise da qualidade do pré-natal dentre um conjunto de objetivos secun dários. A pesquisa teve por cenário 10 municípios (Bayeux, Cabedelo, Cajazeiras, Esperança, Mamanguape, Monteiro, Pombal, Queimadas, São Bento e Sousa) com população entre 30 000 e 149 999 habitantes que receberam em 2017/2018 incentivos financeiros do Ministério da Saúde para ações voltadas à prevenção da obesidade infantil no contexto do Programa Saúde na Escola (PSE), segundo a Portaria n° 2.706, de 18 de outubro de 2017 25. Dos 12 municípios com o benefício financeiro, dois foram excluídos, um deles por ser o único com cobertura parcial da ESF e o outro por ter sido esboçado para avaliar a implantação do PSE.
Considerando como população as mães com crianças menores de dois anos nos municí pios de estudo (n = 14 516), erro amostral máximo de 5 % sob nível de confiança de 95 %, 15 % para compensar perdas e controle de fatores de confusão, e proporção esperada de pré-natal inadequado de 35.2 %%, estimou-se a necessidade de estudar 403 indivíduos 20. A amostra foi distribuída proporcionalmente ao número de crianças em cada município.
Para cada município, as equipes de saúde (tanto do PMM quanto convencionais) e creches contempladas como locais de observação, foram selecionadas aleatoriamente. Nas equipes de saúde, selecionaram-se para participar da pesquisa as mães que frequentaram as unida des de saúde para atendimento de puericultura dos seus filhos no dia da coleta de dados e amostra aleatorizada segundo busca ativa realizada nos domicílios. Nas creches, a seleção aleatória foi realizada a partir da lista de crianças disponíveis nessas instituições. Apenas mães de crianças menores de dois anos de idade foram consideradas, com fins de minimizar o viés de memória.
A coleta de dados foi realizada nas unidades de saúde e creches, no segundo semestre de 2018, por pesquisadores entrevistadores (profissionais e estudantes da área de saúde) com experiência prévia em trabalho de campo, o qual foi supervisionado por profissional capacitado. O controle de qualidade do estudo incluiu: treinamento e padronização dos entrevistadores, construção do manual de instruções e realização de estudo piloto em um município do Estado.
Obtiveram-se informações relacionadas às características socioeconômicas (trabalho da mãe fora de casa, benefício do Programa Bolsa Família (PBF), classificação socioeconómica da família e segurança alimentar e nutricional familiar), ao apoio social (convivência da mãe com companheiro, funcionalidade familiar e suporte social), ao tipo de equipe de saúde de atendimento na ESF (se do PMM ou convencional) e aos cuidados pré-natais. Para esses fins, as mães responderam um questionário.
A classificação socioeconómica da família baseou-se nos critérios da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa 26, que é usado para estimar o poder de compra de famílias bra sileiras. Para esta classificação considera-se a existência de vaso sanitário no domicílio, a contratação de empregada doméstica, a posse de bens, o grau de instrução do chefe de família e o acesso à serviços públicos. As famílias foram classificadas nos níveis socioeconómicos A/B/C (pontuação de 17 a 100) e D/E (pontuação de 0 a 16).
Para avaliar a situação de segurança alimentar e nutricional, foi aplicada a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar com 14 itens 27. Trata-se de uma escala validada que possibilita classificar as famílias em diferentes graus de insegurança alimentar: segurança alimentar quando todas as questões são respondidas de forma negativa, insegurança alimen tar leve quando se tem até cinco questões com respostas positivas, insegurança alimentar moderada nos casos de seis a nove respostas positivas e insegurança alimentar grave para 10 a 14 respostas positivas. Para as análises, a situação da segurança alimentar e nutricional da família foi dicotomizada em: segurança alimentar e nutricional/insegurança alimentar leve e insegurança alimentar moderada/grave.
A funcionalidade familiar foi medida por meio do questionário APGAR Familiar. Esse ins trumento é composto por cinco questões, uma para cada domínio de avaliação: adaptation (adaptação), a qual compreende os recursos familiares oferecidos quando se faz necessária assistência; partnership (companheirismo), que se refere à reciprocidade nas comunicações familiares e na solução de problemas; growth (desenvolvimento), relativo à disponibilidade da família para mudanças de papéis e desenvolvimento emocional; affection (afetividade), compreendendo a intimidade e as interações emocionais no contexto familiar; e resolve (capa cidade resolutiva), que está associada à decisão, determinação ou resolutividade em uma unidade familiar. O instrumento apresenta três opções de respostas (sempre, que equivale a dois pontos; algumas vezes, a um ponto; e nunca), com pontuação total que varia de 0 a 10. As famílias com pontuação de 0 a 3 são classificadas com elevada disfunção familiar; de 4 a 6, moderada disfunção familiar; e de 7 a 10, boa funcionalidade familiar 28,29. Para fins de análise, no presente estudo, as famílias foram classificadas como funcional ou disfuncional (elevada e moderada disfunção familiar).
Para o suporte social, utilizou-se o questionário do Medical Outcomes Study que é com posto por 19 itens em cinco dimensões de apoio social: material (quatro perguntas), afetivo (três perguntas), emocional (quatro perguntas), informação (quatro perguntas) e interação social (quatro perguntas). Para todas as perguntas, são cinco as opções de respostas (sempre, que equivale a cinco pontos; quase sempre, a quatro pontos; às vezes, a três pontos; raramente, a dois pontos; e nunca) 30,31. O suporte social foi analisado contemplando duas categorias, com base na mediana das pontuações, alto (>90) e baixo (<90).
As informações de interesse sobre a atenção ao pré-natal foram estabelecidas segundo as recomendações do Ministério da Saúde para o pré-natal de baixo risco 32, sendo os indicadores escolhidos com base na necessidade de minimizar o viés recordatório. As mães foram questionadas sobre o tempo de início e o número de consultas, procedimentos (imu nização contra o tétano e suplementação com sulfato ferroso) e exames (físicos, laborato riais e ultrassom) realizados, e, o recebimento de orientações durante as consultas. Para o exame físico, perguntou-se sobre a aferição do peso e o exame das mamas, pelo menos uma vez. A realização de exames laboratorias pelo menos uma vez durante a gestação, como os aqui considerados: hemograma, glicemia, exame comum de urina, detecção de sífilis (VDRL) e anti-HIV. No quesito relacionado às orientações educativas, analisaram-se a alimentação durante a gestação, o ganho de peso gestacional e o aleitamento materno.
O grupo de variáveis independentes foi formado por: trabalho materno fora de casa, benefício do Programa Bolsa Família, classificação socioeconómica da família (A/B/C, ou D/E), segurança alimentar e nutricional da família (segurança alimentar e nutricional/insegurança alimentar leve ou insegurança alimentar moderada/grave), convivência da mãe com companheiro, funcionalidade familiar (funcional ou disfuncional), suporte social (alto ou baixo) e tipo de equipe de saúde da ESF (PMM ou convencional). Os indicadores relacionados aos cuidados durante o pré-natal foram os seguintes desfechos de interesse: período de início (1° trimestre da gestação ou após 1° trimestre da gestação), quantidade de consultas (>6 ou <6), imunização contra o tétano (sim ou não), suplementação com sulfato ferroso (sim ou não), medição do peso (sim ou não), exame das mamas (sim ou não), hemograma (sim ou não), glicemia (sim ou não), exame comum de urina (sim ou não), VDRL (sim ou não), anti-Hiv (sim ou não), ultrassonografia (sim ou não) e recebimento de orientações sobre alimentação durante a gestação (sim ou não), ganho de peso gestacional (sim ou não) e aleitamento materno (sim ou não).
Os dados coletados foram organizados em planilhas eletrônicas e digitados em dupla entrada em um banco de dados customizado com verificações de consistência e restrições de intervalo. O aplicativo Validate do software Epi Info (versão 3.3.2) foi usado para analisar a consistência dos dados e gerar o banco final utilizado nas análises estatísticas. Empregou-se estatística qui-quadrado, considerando o nível de significância a igual a 5 %. As análises foram realizadas com o software Stata (versão 12.0). A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual da Paraíba (71609317.9.0000.5187). Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, como condição necessária à participação no estudo, e receberam uma via do mesmo.
Resultados
Participaram do estudo 463 mulheres com filhos menores de dois anos cujos dados foram obtidos em 46 equipes de saúde da ESF e 17 creches vinculadas às mesmas no contexto do PSE. Apesar da quantidade de entrevistas realizadas ser maior do que a amostra necessária, o número de observações apresentou pequenas variações segundo as características de cada indicador. Conforme ilustrado na tabela 1 a amostra do presente estudo foi composta principalmente por mulheres que não trabalhavam fora de casa (77.3 %), beneficiárias do PBF (57.2 %) e das classes socioeconómicas inferiores (61.6 %). A proporção de mulheres que não conviviam com companheiro foi 18.8 %, as de famílias disfuncionais 26.0 °/o e de baixo suporte social 50.1 %.
Variáveis | n | % | |
---|---|---|---|
Trabalho materno | |||
Sim | 105 | 22.7 | |
Não | 358 | 77.3 | |
Beneficiário do Programa Bolsa Família | |||
Sim | 265 | 57.2 | |
Não | 198 | 42.8 | |
Classificação socioeconómica | |||
A/B/C | 178 | 38.4 | |
D/E | 285 | 61.6 | |
Segurança alimentar e nutricional | |||
Segurança alimentar e nutricional/Insegurança alimentar leve | 344 | 72.3 | |
Insegurança alimentar moderada/grave | 119 | 25.7 | |
Convivência com companheiro | |||
Sim | 376 | 81.2 | |
Não | 87 | 18.8 | |
Funcionalidade familiar | |||
Família funcional | 343 | 74.0 | |
Família disfuncional | 120 | 26.0 | |
Suporte social | |||
Alto | 231 | 49.9 | |
Baixo | 232 | 50.1 | |
Tipo de equipe de saúde | |||
Programa Mais Médicos | 187 | 40.4 | |
Convencional | 276 | 59.6 |
Das entrevistadas, 80.8 % afirmaram ter iniciado o pré-natal no primeiro trimestre da gestação e 84.8 % acusaram ter realizado no mínimo seis consultas. Procedimentos, exames e orientações recebidos durante o pré-natal mostraram altas prevalências de adequação, destacando-se a suplementação com sulfato ferroso, a medição do peso, a realização de exames (sangue, glicemia, urina, VDRL, anti-HIV) e a ultrassonografia que foram referidos por mais de 95 % das entrevistadas. A atualização da vacina antitetânica foi citada por 87.7 % das mulheres. O exame das mamas foi mencionado por 44.9 % das entrevistadas. A proporção de mulheres que receberam orientações oscilou entre 76.2 % (orientação sobre ganho de peso gestacional) e 85.3 % (alimentação durante a gestação) (figura 1).
Conforme pode ser visualizado na tabela 2, a proporção de mulheres que iniciaram o pré-natal no primeiro trimestre da gestação e que realizaram seis ou mais consultas foi maior entre as não beneficiárias do PBF, nas de melhor situação socioeconómica e em segurança alimentar e nutricional/insegurança alimentar leve. A atualização da vacina antitetânica foi significativamente maior entre as de melhor situação socioeconómica (p = 0.029) e em segurança alimentar e nutricional/insegurança alimentar leve (p = 0.022). A realização dos exames de sangue (p = 0.035), glicemia (p = 0.000), urina (p = 0.012) e das mamas (p = 0.041) foi maior entre as gestantes de famílias em segurança alimentar e nutricional/insegurança ali mentar leve. As proporções de mulheres que receberam orientações sobre alimentação durante a gestação e em relação ao ganho de peso gestacional foram maiores entre as não beneficiária do PBF (89.9 % e 81.3 %, respectivamente) quando comparadas às que recebiam o benefício do programa (81.9 % e 72.5 °%, respectivamente).
SAN/IAL: Segurança Alimentar e Nutricional/Insegurança Alimentar Leve.
IAM/IAMG: Insegurança Alimentar Moderada/Insegurança Alimentar Grave
As análises relacionadas às variáveis de apoio social mostraram associação positiva da convivência com companheiro com o início do pré-natal no primeiro trimestre (p = 0.010), com o cumprimento de seis ou mais consultas (p = 0.005) e com a realização dos exames de glicemia (p = 0.020) e de urina (p = 0.011). A realização do exame das mamas foi mais frequente entre as mães com alto suporte social (p = 0.022). O recebimento de orientações durante as consultas associou-se à funcionalidade familiar e ao suporte social, com maiores proporções dos desfechos nas mulheres em melhores condições de apoio social. Não houve diferença nos indicadores da assistência pré-natal de acordo com o tipo de equipe de saúde (tabela 3).
Discussão
Este estudo se propós a avaliar alguns indicadores como parâmetros de qualidade da atenção pré-natal, por meio de dados de um estudo transversal com usuárias da ESF. Nesse sentido, as evidências encontradas indicam deficiências principalmente na realização do exame clínico das mamas e reforçam a influência das características socioeconómicas e do apoio social da mãe. Esses achados são relevantes tendo em vista a importância de inves tigar periodicamente os serviços oferecidos como forma de identificar possíveis falhas e de garantir o atendimento dos critérios mínimos de assistência, contemplando as carac terísticas sociais da comunidade atendida 33.
A caracterização da população estudada, levando em consideração dados sociodemográficos, revelou maiores proporções de mulheres com condição socioeconómica desfavorável. Esse quadro social também foi encontrado em outros estudos no contexto da ESF, realizados em diferentes regiões do Brasil 15,19,34. Além disso, 87 delas não conviviam com o com panheiro, podendo repercutir negativamente nos cuidados pré-natais 9.
Nesta pesquisa, a proporção de entrevistadas que realizaram seis ou mais consultas de pré-natal (84.8 %) foi superior à obtida para a Região Nordeste do Brasil segundo a Pesquisa Nascer no Brasil (65.6 % 14 e na Chamada Neonatal (75.4 % 19. Entretanto, estudos de abrangência local em outros municípios nordestinos mostraram frequências mais próximas, de 89.9 % em João Pessoa 35, 79.2 % em Campina Grande 22 e 76 % em Santa Cruz 23. Esses achados atestam a relevância de investigações locais cujas realidades podem não estar contempladas em estudos nacionais ou regionais 20. Quanto ao início precoce da assistência pré-natal, a prevalência registrada (80.8 %) se aproxima da encontrada em outras localidades da Região Nordeste do Brasil 22,23,35. Pré-natais com tempo de início e número de consul tas adequados possibilitam ter uma gestação saudável e realizar os exames necessários 6.
A vacina antitetânica é segura e eficaz para a prevenção do tétano acidental durante a gravidez e como consequência a ocorrência de tétano neonatal 32. Considerando a pro porção de vacinação contra o tétano registrada, supõe-se a proteção da doença na maioria das gestantes e neonatos desse estudo. Entretanto, em outras pesquisas foram observadas prevalências diferentes, tanto inferiores 10,15,33,36 quanto superiores 34,35. Fatores como piores condições socioeconómicas maternas, rotatividade frequente dos profissionais de saúde que dificultam o vínculo usuário-profissional, consultas de pré-natal com orientações insuficientes, déficits nos recursos materiais e na infraestrutura das unidades de saúde e erros no preenchimento de relatórios de vacinas influenciam a cobertura vacinal durante o pré-natal, conforme revisão de literatura 37.
As proporções de suplementação e de medição do peso durante o pré-natal, superiores a 90 %, registradas em pesquisas de abrangência nacional 6,14,19,34, foram confirmadas por meio das entrevistas realizadas com as gestantes do atual estudo. Resultados seme lhantes também foram observados em João Pessoa 35, Ponta Grossa 38 e em países da África Subsaariana 36. A boa adesão à suplementação durante a gestação está relacio nada à prescrição e incentivo pelo profissional de saúde, assim como ao conhecimento das mulheres acerca da importância desse procedimento no período gravídico-puerperal 39. A suplementação com sulfato ferroso configura uma forma efetiva de corrigir a anemia na gestação e reduz os riscos de infecções puerperais e de prematuridade 40. Por sua vez, o estado nutricional materno e o ganho de peso gestacional são importantes para a prevenção de complicações clínicas na gestação, no pós-parto e no neonato 41.
Na presente pesquisa apenas 44.9 % das gestantes tiveram as mamas examinadas, o que se assemelha aos achados obtidos na Chamada Neonatal (50.2 %) 19 e com base nos dados do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB) (56.3 %) 34. Razões como deficiências na estrutura das unidades de saúde e nas atribuições dos profissionais, podem ter conduzido para a baixa prevalência de realização do exame das mamas 34. Mulheres em situação de vulnerabilidade socioeconómica e que realizam o pré-natal no serviço público, como as desse estudo, têm menos chances de serem examinadas, reforçando as desigualdades sociais que determinam a forma de cuidado prestado às mulheres na fase da gestação 42. Tendo em vista que diversas alterações mamárias ocorrem na gestante, devido a hormónios como estrogênio, progesterona e prolactina, é necessário que as mamas sejam examinadas com fins de encontrar possíveis anormalidades e sinais de câncer de mama 43. Além disso, o exame das mamas também contribui na detecção de alterações que possam vir a prejudicar mãe e recém-nascido no processo de amamentação 44.
A realização dos exames laboratoriais nesse estudo teve proporções superiores a 95 %, sendo maiores do que as encontradas entre gestantes do Espírito Santo, que variaram entre 70 % e 80 % 33. Prevalências acima de 90 %% para exames laboratoriais de sangue (hemo grama, glicemia, VDRL e anti-HIV) e de urina também foram constatadas em estudos realizados nas cidades de Rio Grande do Norte 23 e Rio de Janeiro 15, assim como em pesquisas de âmbito nacional 6,19,20,34 e em outros países 36,45. Entretanto, revisão da literatura sobre a atenção pré-natal no Brasil evidenciou que a qualidade satisfatória da assistência (indica dores relacionados ao início e número de consultas) teve uma queda quando se consideram os procedimentos e exames de rotina 21. Os modelos de agendamento e a disponibilidade de recursos suficientes para realizar as análises laboratoriais são citados entre os possíveis influenciadores da realização desses exames 10,33, possibilitando prevenir, identificar e tratar de forma oportuna morbidades que possam causar prejuízos à saúde materna e fetal 21,38.
A frequência de ultrassonografia de 98,1 % nas participantes do atual estudo foi similar à registrada em observações nacionais 6,14,20 e locais 38. A partir da implementação da Rede Cegonha em 2011, a ultrassonografia passou a ser parte da rotina do pré-natal na atenção básica 17, sendo importante sua disponibilidade gratuita pelos serviços de saúde 40. A realização de ultrassom possibilita detectar anomalias congênitas, avaliar a anatomia fetal e determinar a idade gestacional de forma adequada, e representa um meio de tranquilizar a mulher no decorrer da gestação 40,46.
As proporções de orientação sobre aleitamento materno durante o pré-natal registradas na Pesquisa Nascer no Brasil 14, na Chamada Neonatal 19, segundo os dados do PMAQ-AB 34 e com gestantes de Fortaleza 46 foram de 69.5 %, 78.6 %, 91 % e 74.1 %%, respectivamente; enquanto nas mulheres desse estudo foi de 80.3 %. Por sua vez, as orientações sobre alimen tação durante a gestação (85.3 %) e ganho de peso gestacional (76.2 %) aproximaram-se às observadas por outros pesquisadores em relação à orientação nutricional, em pesquisa de abrangência nacional (88.9 %) 34 e em estudo desenvolvido na cidade de Campina Grande (80 %) 44. Essas frequências são superiores às encontradas em outros países subdesenvol vidos, de 6 % de orientação sobre amamentação no Paquistão 10 e 61.8 °% de orientações nutricionais no Haiti 45, por exemplo. O fornecimento de orientações durante o pré-natal pode estar ligado ao relacionamento entre o profissional e a gestante, dificultando ou favo recendo o esclarecimento de dúvidas que as mulheres consideram significativas 12. Ao depender unicamente das atitudes dos profissionais, o aconselhamento ganha significados sui generis por não implicar em custos para os serviços de saúde 34.
O Ministério da Saúde preconiza que sejam ofertadas informações à gestante sobre aleita mento materno, assim como em relação à alimentação e ao ganho de peso durante a gestação, tendo em vista sua importância para a grávida conhecer sobre o peso ideal que deve ganhar durante a gestação e a relevância no desenvolvimento saudável do feto 32. A orientação sobre aleitamento materno, além de empoderar a mulher e lhe oferecer segurança para a amamentação, associa-se à prevalências mais elevadas de aleitamento na primeira hora de vida e exclusivo até os seis meses da criança 13,14. Sugere-se, ainda, que as orientações sobre alimentação durante a gestação e ganho de peso gestacional produzam benefícios nos hábitos alimentares da gestante 12, os quais podem contribuir com a adequação do estado nutricional materno gestacional e, assim, prevenir o aparecimento de intercorrências na gravidez e promover a saúde materna e fetal 47. Tal fato é relevante, pois se trata de fatores de risco modificáveis que devem ser identificados e enfrentados durante o acompanhamento pré-natal 47.
A associação do tempo de início e do número de consultas de pré-natal com a situação socioeconómica observada por outros pesquisadores 34,48-51 foi confirmada por meio dos achados da atual pesquisa. Sugere-se que entre mulheres de menor nível socioeconómico, a falta de conhecimento, os cuidados limitados nos lugares em que elas vivem e os comporta mentos de saúde inadequados podem influenciar negativamente os cuidados de pré-natal 51. Nesse estudo, a vacinação contra o tétano também se associou à classificação socioeconómica da família, o que poderia estar condicionado tanto à preocupação com a saúde 51 quanto ao início mais tardio do pré-natal e à realização de menor número de consultas durante a gestação, conforme registrado em outra localidade com resultados semelhantes 15.
O benefício do PBF constitui importante marcador da condição social e económica que, como nesse trabalho, também pode estar associado ao tempo no qual a gestante começa a frequentar as consultas de pré-natal e à quantidade das mesmas 19. Entretanto, outro estudo com resultados diferentes explica que as condicionalidades do PBF podem estimular as mulheres a procurar os serviços de saúde como meio de prevenir agravos materno-infantis 52. Entre as participantes desse trabalho não beneficiárias do PBF, o resultado mais favorável relacionado ao recebimento de orientações durante o pré-natal, pode estar condicionado às melhores condições socioeconómicas das mesmas, como mostrado em um estudo populacional 34, ainda que as condicionalidades de saúde deveriam propiciar melhorias nos cuidados de saúde 52.
Apesar de não se ter conhecimento sobre outros estudos brasileiros que mostrem os resultados encontrados nessa pesquisa no que diz respeito à associação da insegurança alimentar moderada/grave com o tempo de início de pré-natal e com o número de consultas, além da imunização contra o tétano e a realização dos exames laboratoriais e das mamas, a plausibilidade de tais achados está no fato da segurança alimentar e nutricional constituir importante indicador de iniquidade social e de saúde que pode levar a estresse, ansiedade e depressão durante a gestação 53. Estudos desenvolvidos em outros países registraram resultados semelhantes, verificando melhorias nos níveis de segurança alimentar e nutricional na gestação e no pós-parto associado à qualidade do pré-natal, por meio de ações de educação em saúde, da troca de informações e da transmissão de conhecimentos que podem contribuir positivamente nas habilidades relacionadas à administração dos recursos financeiros e redução da insegurança alimentar 54,55.
Conforme revisão de literatura, o apoio social representa um fator importante na ade são a tratamentos e no uso dos serviços de saúde. O apoio familiar tem sido visto como um mecanismo de humanização do cuidado e assistência pessoal. Mulheres que vivem sozinhas, apenas com seus filhos, podem tornar-se vulneráveis e não aderir aos cuidados de saúde 56. Nesse contexto, destaca-se que o marido/companheiro pode facilitar a adesão aos cui dados de pré-natal, pois sua presença nessa fase da vida, que demanda muita estabilidade emocional, proporciona maior controle do ambiente e autonomia por parte das gestantes, assim como contribui para a saúde mental e no enfrentamento de momentos de estresse 9. Essa relação foi comprovada na atual pesquisa e em outras, que analisaram a associação da presença do companheiro com o tempo de início e/ou o número de consultas de pré-natal 9,14,15,48,49, reforçando-se a importância do suporte social para os cuidados com a gra videz 15. Nesse estudo, achados semelhantes também foram encontrados ao se verificar a associação entre: a) presença do parceiro e realização dos exames de glicemia e de urina; b) suporte social e realização do exame das mamas, e c) apoio social (funcionalidade familiar e suporte social) e as orientações recebidas pelos profissionais de saúde. Tais constatações, ao serem pioneiras na literatura brasileira, sugerem a importância do apoio social não apenas nos indicadores referidos ao cumprimento das consultas, senão também naqueles relacio nados aos procedimentos, exames e orientações recomendados. Sugere-se a necessidade de novos estudos com esse tipo de análise.
Apesar das constatações anteriores, também merece destaque a possibilidade da presença do companheiro representar um obstáculo na procura por serviços de saúde, fato associado à violência contra a mulher. Mulheres envolvidas no contexto da criminalidade caracterizam-se por sentimento de inferioridade que lhes gera maior vulnerabilidade social e por danos de ordem física, emocional, sexual e moral com consequências diversas na qualidade de vida 57.
Até onde é de conhecimento dos autores, este constitui o primeiro estudo com análises da atenção pré-natal comparando equipes de saúde do PMM e convencionais, sem discrepâncias. Contudo, avaliações das equipes tradicionais e nos moldes da ESF apontaram ausência de dife renças entre as mesmas em relação ao tempo de início e número de consultas de pré-natal, mas melhor desempenho quando o serviço de saúde utilizado foi o da ESF para alguns exames clínicos e laboratoriais 18,58. Estas diferenças podem decorrer das práticas profissionais (maior solicitação dos exames na ESF) e das atitudes do usuário (maior probabilidade de não realização de exames em unidades de saúde tradicionais) 58. Ainda, deve-se considerar que o processo de trabalho na ESF favorece o vínculo entre o profissional e o paciente através de atividades educativas sobre o cuidado pré-natal e da continuidade do cuidado 59.
As limitações deste estudo incluem a possibilidade de viés de memória e a não investi gação da repetição dos exames no terceiro trimestre, o que impossibilita verificar o atendi mento de todos os procedimentos preconizados. Além disso, o foco quantitativo da pesquisa impede conhecer os motivos de inadequação nos indicadores de qualidade do pré-natal. Seria necessária a obtenção de dados qualitativos para melhor compreensão da realidade, a exemplo das questões de gênero referidas ao suporte do companheiro para a adesão ao pré-natal. Entretanto, mostram-se achados válidos para usuárias da ESF, as quais representam uma grande parcela da população brasileira.
Conclusão
O presente estudo mostrou adequação do pré-natal entre usuárias da ESF na maioria dos pro cedimentos, exames e orientações avaliados, considerando o preconizado pelo Ministério da Saúde. O exame clínico das mamas foi o indicador mais insatisfatório, o que sugere defi ciência na atuação do profissional nos cuidados prestados às gestantes, pois este procedi mento depende exclusivamente da conduta dos profissionais. O fornecimento de orientações durante o pré-natal, a vacina antitetânica e o tempo de início e número de consultas, mostra ram prevalências inferiores a 90 %%. A adequação do pré-natal esteve influenciada tanto pelas características socioeconómicas quanto pelo apoio social da mulher, sugerindo a necessi dade de considerar esses aspectos na assistência. Considera-se necessário o desenvolvimento de novas pesquisas que possibilitem uma melhor compreensão da relação do PBF, e suas condicionalidades de saúde com a qualidade do pré-natal. Este estudo avança no conhecimento ao sugerir fatores que podem influenciar a prestação de serviços de saúde pré-natal, como a segurança alimentar e nutricional, a funcionalidade familiar e o suporte social, assim como ao comparar a atenção das equipes convencionais e do PMM.