Introdução
O Transtorno de Personalidade Borderline (TPB) tem início no final da adolescência e começo da vida adulta e envolve problemas nas relações interpessoais, na autoimagem, nos afetos e na impulsividade (American Psychiatric Association [APA], 2014). Indivíduos com TPB tendem a utilizar serviços de saúde com frequência, tanto por problemas relacionados diretamente ao transtorno quanto por comorbidades (Zanarini, Frankenburg, Reich, Conkey & Fitzmaurice, 2014). Este diagnóstico possui uma alta prevalência (1,4%-5,9%) na população geral e geralmente é comórbido com outros transtornos de personalidade (Chanen & Mc-Cutcheon, 2013; Tyrer, Reed & Crawford, 2015).
Uma das principais características do TPB é a desregulação emocional, ou seja, uma reação intensa e um retorno lento á linha de base do humor diante de estímulos com características emocionais (Bateman & Fonagy, 2016; Linehan & Wilks, 2015). Explicações etiológicas da desregulação emocional e do TPB foram elaboradas a partir do estudo de traumas infantis decorrentes de situações de abuso (Chanen & McCutcheon, 2013), do efeito, no desenvolvimento, de ambientes invalidantes (Linehan & Wilks, 2015; Sturrock & Mellor, 2014) e do apego frágil com cuidadores primários (Bateman & Fonagy, 2016; Fonagy, 2000; Nickel, Waudby & Trull, 2002) e da influencia de vulnerabilidades biológicas nas reações emocionais (Amad, Ramoz, Thomas, Jardri & Gorwood, 2014; Linehan & Wilks, 2015; Sleuwaegen et al, 2017).
Os estudos, via de regra, investigam fatores interpessoais envolvidos na etiologia do TPB (Agrawal, Gunderson, Holmes & Lyons-Ruth, 2004; Chanen & McCutcheon, 2013; Fonagy, 2000; Nickel et al., 2002). Por exemplo, em um estudo coorte de 20 anos no qual sintomas de TPB foram avaliados em indivíduos da pré-adolescência até a vida adulta, os níveis de sintomatologia borderline foram preditores de um declínio no apoio social percebido ao longo dos anos, sugerindo a existência de uma influência do componente interpessoal no quadro do TPB (Winograd, Cohen & Chen, 2008).
Buscando explicar o TPB com base na teoria do apego, Fonagy (2000) refere que relações abusivas durante a infância geram uma relação de apego inseguro entre a criança abusada e os cuidadores, o que faz com que a criança desenvolva de forma falha a capacidade de atribuir estados mentais (i.e., mentalizar) a seus comportamentos e aos comportamentos dos pais/abusadores (Bateman & Fonagy, 2016; Fonagy & Bateman, 2016). Essa hipótese sobre o desenvolvimento do TPB afirma que os indivíduos com esta patologia incorrem em episódios de desregulação emocional em situações interpessoais por atribuir negligencia, abandono e outras características negativas às intenções de outras pessoas. Portanto, o apego inseguro estabelecido na infância seria um fator de risco para os problemas na mentalização e para os episódios de desregulação emocional característicos do TPB (Bateman & Fonagy, 2016).
Agrawal et al. (2004) revisaram 13 estudos empíricos que mediram os tipos de apego em pacientes com TPB. Todos os artigos revisados encontraram fortes associações entre os tipos de apego inseguro e este transtorno, sendo que os tipos de apego inseguro variaram conforme a medida utilizada: o tipo preocupado (preoccupied) foi mais relacionado ás relações primárias de apego e o tipo temeroso (fearful) mais relacionado ás relações interpessoais atuais dos indivíduos com TPB.
As influencias do diagnóstico de TPB e do apego na desregulação emocional foram estudadas por meio de tarefas comportamentais com diferentes tipos de estímulos (Arntz, Appels & Sieswerda, 2000; Sieswerda, Arntz, Mertens & Vertommen, 2006). Nestes, a Tarefa de Stroop Emocional (Emotional Stroop Task - TSE) é uma das medidas mais utilizadas. Nela, palavras com diversas cores são apresentadas em diferentes tempos de exposição (de 500ms a 1000ms) e o participante deve responder o mais rápido possível a cor da palavra apresentada. Atrasos no tempo de resposta para nomeação das cores quando as palavras possuem conteúdo emocional caracterizam um efeito chamado Interferência Emocional (IE), onde a valência emocional dos termos diminuí a acurácia e dificulta o processamento do estimulo relevante (Williams, Mathews & Macleod, 1996).
Aplicações da TSE em indivíduos com TPB indicaram uma IE para palavras com afeto negativo, o que fortalece a hipótese de que a desregulação emocional está vinculada ao efeito de estímulos emocionais no processamento da informação (Arntz et al., 2000; Sieswerda et al., 2006). Essa hipótese está alinhada com dados que sugerem que indivíduos com o subtipo Emocional/Desinibido de TPB, o mais comum nesta população, são mais reativos ás situações emocionais e reagem de forma impulsiva a estas circunstancias (Sleuwaegen et al.,, 2017). De forma semelhante, mulheres com apego desorganizado com IE para palavras relacionadas ao apego inseguro na TSE também demonstram uma relação de apego desorganizada com os filhos durante o experimento observacional "situação estranha" (Atkinson et al., 2009). Ademais, medidas comportamentais de atenção aplicadas em crianças e adultos, sugerem que o apego inseguro produz esquiva de estímulos visuais com conteúdo emocional (Davis et al., 2014; Vandevivere, Braet, Bosmans, Mueller & de Raedt, 2014).
O tipo de tarefa comportamental utilizada para medir IE influencia consideravelmente os resultados. Os resultados encontrados na tarefa de Stroop estão mais associados a processos conscientes de atenção do que a processos automáticos, devido aos tempos de exposição elevados dos estímulos utilizados (e.g., 1 a 2 segundos) (Baer, Peters, Eisenlohr-Moul, Geiger & Sauer, 2012; Phaf & Kan, 2007). Com isto, é relevante estudar também processos de atenção mais implícitos (observáveis com tempos de exposição abaixo de 200 ms) que explicam como estímulos ambientais Não-percebidos podem influenciar o comportamento dos indivíduos com TPB em um nível anterior à percepção (Sieswerda et al., 2006).
Os estudos supracitados revelam associações entre TPB, apego inseguro e desregulação emocional. Assim, na presente investigação foi considerada a hipótese de que os episódios de desregulação emocional de indivíduos com TPB ocorrem com frequência em situações interpessoais, devido principalmente, as influências do apego inseguro sobre a avaliação e processamento de situações de apego. Para tanto, um delineamento caso-controle foi utilizado para investigar as seguintes hipóteses: a) indivíduos com TPB avaliam imagens de apego como mais representativas de um apego inseguro do que a população normal e; b) são mais suscetíveis a IE de imagens de apego em uma tarefa de interferência emocional. Para esta investigação, dois experimentos foram realizados: 1) a avaliação subjetiva de imagens de apego de indivíduos com TPB foi comparada à avaliação de um grupo controle e de psicólogos; 2) a IE de imagens de apego sobre o tempo de resposta de participantes com e sem TPB foi comparada em uma tarefa de interferência emocional.
Método
Participantes
Os participantes deste estudo foram 12 adultos (M = 29 anos, DP = 5.493), selecionados por conveniência, divididos em dois grupos. O grupo caso foi composto por 6 pacientes de uma amostra clinica com TPB, conforme avaliação de psicoterapeutas e dos médicos psiquiatras, que estavam em atendimento no ano de 2015. Todos os pacientes com TPB estavam em atendimento de orientação psicanalítica e possuíam acompanhamento psiquiátrico em uma instituição particular. O convite para participar voluntariamente da pesquisa foi realizado pelas psicoterapeutas e reforçado pelo primeiro autor deste estudo durante a coleta. O critério de inclusão para este grupo era a concordância do psicoterapeuta e do psiquiatra com relação ao diagnóstico de TPB. O grupo controle foi formado por 6 adultos da população geral que não estavam em psicoterapia e que não utilizavam psicofármacos, pareados em idade e sexo com os participantes do grupo com TPB. No grupo controle, foi aplicado o Inventário de Personalidade Borderline (IPB), com o objetivo de excluir participantes que obtivessem um escore maior do que 20 pontos (ponto de corte indicativo de características de TPB) (Leichsenring, 1999). Os juízes psicólogos que avaliaram as imagens de apego (n = 8, M = 33.62 anos, DP = 1.92) tiveram suas avaliações comparadas com os demais grupos para acessar a validade de face dos estímulos.
Instrumentos
Dados sócio demográficos: para fins de caracterização da amostra foi elaborado um questionário de dados sócio demográficos contendo perguntas sobre a situação presente dos participantes. O questionário consistia de variáveis que poderiam interferir nos resultados do experimento, como por exemplo, estado civil, uso de medicação psiquiátrica, escolaridade e ocupação.
Instrumento para controle de características Borderline no grupo controle (grupo controle): o IPB é um instrumento de 53 itens do tipo verdadeiro ou falso, compatível com os critérios do DSM para transtorno borderline de personalidade. O IPB é formado por quatro escalas: difusão de identidade, mecanismos de defesa primitivos, teste de realidade, e medo de proximidade. Na presente pesquisa, o ponto de corte de 20 pontos foi utilizado para screening diagnóstico de TPB (Leichsenring, 1999). Diversos estudos realizados com o IPB atestam a sua consistência interna (a = 0.68 - 0.91), estabilidade temporal (rtt = 0.73 - 0.89), sensibilidade (0.85 - 0.89), e especificidade (0.78 - 0.89). A versão em português utilizada foi autorizada pelo autor e elaborada pelo grupo de pesquisa da Profa. Vera Ramires, do Programa de Pós-graduação (PPG) de Psicologia da UNISINOS, em 2015. Até a data do estudo, não haviam sido realizadas análises psicométricas do instrumento na população brasileira. O escore médio do IPB no grupo controle foi de 4.17 (DP = 2.64).
Instrumento para avaliação do apego: o Instrumento de Vinculo Parental (IVP) é um instrumento de auto-relato com 25 perguntas do tipo Likert (variação entre 0 e 3) que avalia o vínculo com cuidadores. Os itens da escala contem comportamentos específicos e o entrevistado deve afirmar o quão semelhante é o comportamento citado com o comportamento dos seus pais até os seus 16 anos (Parker, 1990). O vinculo parental medido na escala é um fator diretamente associado ao apego, sendo que pais que demonstram pouco afeto e não incentivam a autonomia da criança podem estabelecer um padrão de apego inseguro (Nickel et al., 2002). O IVP mede dois construtos: afeto (afeto, calor, disponibilidade, cuidado, sensibilidade versus frieza e rejeição e controle ou proteção (controle, intrusão versus encorajamento da autonomia). A versão em português foi elaborada por Hauck et al. (2006). Para o presente estudo, foram considerados os escores totais das escalas de afeto e cuidado ou proteção para viabilizar a análise estatística. Os valores de alpha para os fatores considerando as respostas do grupo com TPB e controle são a = 0.934 para o afeto da mãe, a = 0.602 para controle ou proteção da mãe, a=0.904 para afeto do pai e a = 0.817 para controle ou proteção do pai.
Seleção das imagens de apego
A seleção das imagens relacionadas ao apego foi realizada na internet no banco de imagens com licença aberta do Google®. A opção de busca na internet foi intencional, pois não foram encontradas imagens de apego já validadas para estudos experimentais. A figura 1 ilustra o processo de seleção das imagens.
Foram escolhidas 60 imagens que representavam relações de apego, 30 de apego seguro e 30 de apego inseguro. As imagens continham fotos de adultos sozinhos ou em interação e fotos de mães/ pais com seus filhos. Na etapa seguinte, foi solicitado a juízes (n = 8, psicólogos) que avaliassem as 60 imagens e indicassem em uma escala Likert de 7 pontos (de -3 a +3) a sua correspondência a um apego inseguro (i.e. relacionamento inseguro, Não-afetivo, abandono) ou a um apego seguro (i.e. relacionamento seguro, afetivo), sendo o valor de 0 considerado neutro. Foram selecionadas para a tarefa as 10 imagens que mais pontuaram em cada categoria.
Tarefa Comportamental
A tarefa comportamental de interferência emocional foi criada com base nos estudos de Erthal, Volchan, Oliveira, Machado-Pinheiro e Pessoa (2004). Na tarefa, os participantes deveriam sinalizar a posição de duas barras posicionadas em ambos os lados (esquerda e direita) de uma imagem central com conteúdo emocional. As respostas foram dadas nas teclas do mouse, sendo que a tecla da esquerda foi utilizada para sinalizar barras iguais e a da direita para sinalizar barras diferentes. Como em estudos anteriores (Menezes et al., 2013), o experimento iniciou com instruções sugerindo que os participantes dedicassem atenção para as barras laterais e ignorassem a imagem central. Também foi sugerido que eles respondessem o mais rápido possível a posição das barras. A figura 2 ilustra a estrutura da tarefa comportamental e os tempos de exposição de cada estímulo utilizado no experimento. Uma cruz aparecia no centro do monitor durante 1500 ms, de forma a centralizar o olhar dos participantes para o centro. O tempo de exposição das imagens da tarefa com TPB foi de 200 ms. Na sequência, uma imagem (9°x12° de tamanho) e duas barras periféricas (0,3°x3°), 9° à direita e à esquerda da figura central, apareciam por 200ms. Posteriormente, um painel em formato de xadrez tomava o lugar da imagem até que a resposta fosse dada pelo participante ou até que 1500 ms transcorressem.
O experimento iniciava com dois blocos de treinamento contendo 20 imagens controle (neutras, sem valência emocional) cada. As imagens neutras foram obtidas no banco de imagens do IAPS -International Affective Picture System- (Lang, 1995). No treino, os participantes recebiam feedback sobre o Tempo de Resposta (TR), a acurácia e ausência de reação. A coleta dos TR dos participantes tinha início depois do bloco de treino, sem feedback. No experimento, havia 4 blocos de 20 imagens cada, dois blocos equilibrados entre imagens neutras e imagens de apego seguro (AS) e dois blocos equilibrados entre imagens neutras e de apego inseguro (AI). Haviam dois modelos, fácil e difícil, sendo que cada um continha um bloco AS e um AI. No modelo fácil havia uma diferença visível entre as barras, de 90°, e no modelo difícil havia uma diferença sútil entre as barras, de 6°. A ordem de apresentação dos 4 blocos foi randomizada entre os participantes. A condição difícil foi inserida na tarefa apenas para manter a atenção do participante e evitar distratores (Lavie, 2005).
Após terminar a tarefa de atenção o participante era convidado a avaliar as 20 imagens utilizadas no estudo (i.e., 10 de apego seguro e 10 de apego inseguro) com os mesmos critérios da avaliação dos juízes psicólogos. A tarefa comportamental computadorizada foi programada no software de criação de experimentos comportamentais E-Prime (desenvolvido pela Psychology Software Tools) em um notebook com tela de 17". A IE foi considerada a partir da diferença entre a média do TR para as imagens neutras e a média do TR para as imagens de apego, em cada bloco do experimento. Com isto duas categorias de IE foram possíveis: a IEAS (Interferência Emocional do Apego Seguro) e IEAI (Interferência Emocional do Apego Inseguro).
Análise de dados
Foram utilizados procedimentos de estatística descritiva (média, desvio-padrão e frequência) para descrever as características sócio demográficas dos participantes. Para controlar os possíveis problemas estatísticos, a normalidade dos dados foi considerada (teste de Shapiro-Wilk) e as análises foram selecionadas conforme a aplicabilidade. Além disso, estatísticas de tamanho de efeito foram reportadas para todas as análises.
A confiabilidade da avaliação das figuras de AS e AI foi avaliada considerando as respostas dos três grupos de avaliadores: juízes (psicólogos), grupo com TPB e grupo controle. Os escores de -3 a +3 foram transformados em número inteiros, para tabulação (de 1 a 7). Os escores de avaliação foram classificados como não-paramétricos (Shapiro-Wilk, p < .05). As avaliações dos estímulos foram comparadas entre grupos com o teste de Kruskal-Wallis. Análises post hoc com correção de Bonferroni (0.05/número de testes) foram realizadas com o teste de Mann-Whitney.
As diferenças no TR para cada categoria de imagem, da IEAS e da IEAI para cada condição do experimento e dos escores de apego foram examinadas através de Análises de Variância Mista (ANÜVA - General Linear Model), considerando o grupo com TPB e controle como fator entre grupos para todas as análises. Análises post hoc com correção de Bonferroni foram realizadas e interações entre variáveis foram consideradas. Um teste t foi realizado com todos os resultados de IE para verificar se os valores encontrados eram diferentes de zero, pois desta forma o valor da IE pode ser considerado um valor significativo. Todos os procedimentos estatísticos foram executados no programa SPSS (Statistical Package for Social Sciences) versáo 21.0.
Procedimentos
O projeto foi submetido e aprovado no Comité de Ética em Pesquisa da UNISINOS (n° CEP 14/181). Os participantes preencheram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido, conforme a resolução 466/12, para participarem da pesquisa. A todos os participantes, antes da assinatura do TCLE, foram explicados os procedimentos do estudo e solicitada a colaboração voluntária. Foram garantidos sigilo e anonimato aos mesmos. Foi também explicado a todos os participantes que realizaram a tarefa que o experimento não apresentaria riscos á saúde e a integridade física e emocional, mas que, no entanto, existiria a possibilidade do aparecimento de tensão ou ansiedade durante a tarefa comportamental. Foi garantido a estes a possibilidade de interromper a participação caso sentissem necessidade.
Durante a coleta, após a ler e assinar os TCLES, os participantes eram instruídos a preencher a ficha de dados sócio demográficos. Antes de realizar a tarefa comportamental, os participantes foram solicitados a sentar-se a uma distância de 60 cm do monitor. Qualquer dúvida com relação ao experimento poderia ser sanada com o experimentador antes e após o bloco de treino. A avaliação das imagens de apego seguro e inseguro utilizadas na tarefa de atenção foi realizada logo após o fim do experimento. A coleta com o grupo clínico foi aplicada no ambiente onde os pacientes faziam psicoterapia, sem a presença do terapeuta, e a coleta com o grupo controle foi realizada na universidade. Todos os ambientes de coleta possuíam mesa e cadeira disponível para a realização da tarefa comportamental.
Resultados
Características da amostra
Os grupos deste estudo foram pareados em idade e sexo. A idade média dos participantes foi de 29 anos (DP = 5.493). As variáveis sócio demográficas se encontram descritas na tabela 1.
Todos os pacientes com TPB faziam psicoterapia (M = 6.93 anos, DP = 5.567) durante a coleta de dados em 2015, sendo que cinco realizavam também algum tratamento farmacológico concomitante.
Diferenças no apego
Para verificar possíveis diferenças no apego entre os grupos com TPB e controle, foi realizada uma ANOVA (2x2) com os fatores do IVP (afeto e controle ou proteção) para cada figura parental (pai e mãe). Houve diferença significativa nos escores da dimensão de afeto (M = 21.9, DP = 1.826) quando este foi comparado ao escore da dimensão de controle ou proteção (M = 15.1, DP = 1.442) para ambos os grupos (F [1.10] = 11.41, p = .007, ηp 2 = 0.53), o que indica que tanto no grupo com TPB quanto no grupo controle as dimensões de afeto receberam escores mais elevados. Houve interação entre os grupos e os tipos de apego (F [1.10] = 5.51, p = .041, ηp 2 = 0.35), indicando uma diferença significativa entre os grupos com TPB e controle nas dimensões da escala IVP, conforme o gráfico representado na figura 3.
Nota: Valores mais próximos de zero indicam apego inseguro. A imagem 6 foi avaliada como diferente entre os grupos, * p < .05. O grupo de TPB avaliou as imagens 4 e 8 como mais indicativas de um apego inseguro que os juízes, ** p < .0025.
Para entender os efeitos da interação e especificar em quais das duas dimensões e em qual figura parental houve diferença entre os grupos, foi realizado um Teste t para amostras independentes, revelando assim uma diferença significativa no valor das médias da dimensão de afeto na figura parental da mãe (t [2.457] = 8.372, p = 0.034, d = 3.52). Estes resultados revelam que a dimensão de afeto da figura parental da mãe foi o principal fator de diferenciação entre os grupos com relação à escala IVP. A tabela 2 mostra a média dos escores das dimensões da escala IVP para o grupo com TPB e controle e os valores da comparação entre grupos.
Imagens de apego
Uma análise de confiabilidade das avaliações de todos os avaliadores (juízes psicólogos, pacientes com TPB e indivíduos do grupo controle, n = 20) para as imagens de apego foi realizada para verificar a concordância entre os grupos. O alpha de Cronbach para as imagens de AS foi α = 0.842 e o alpha das imagens de AI foi a = 0.832, indicando que houve concordância na avaliação das imagens.
Para verificar diferenças entre os grupos com relação à avaliação das imagens de AS e AI, os escores para cada imagem foram comparados entre os três grupos de avaliadores. As avaliações que os juízes (psicólogos) e os participantes do grupo com TPB e controle fizeram sobre as imagens foram comparadas através do teste de Kruskal-Wallis. Quando os três grupos foram comparados, houve diferença significativa na avaliação de uma das imagens da categoria AI (imagem 6) (H[2] = 8.12, p = .017). Os resultados das análises post hoc de Mann-Whitney com correção de bonferroni (p < .0025) indicaram diferenças significativas apenas entre a avaliação dos juízes e do grupo com TPB em duas imagens da categoria AI, imagem 4 (U=0.00, p < .001, r = 0.87) e 8 (U = 0.00, p < .001, r = 0.87), sendo que o grupo com TPB avaliou estas imagens como mais representativas de um apego do tipo inseguro do que os juízes. A figura 3 ilustra a diferença na avaliação das imagens de AS e AI.
Interferência emocional
O experimento realizado gerou valores de IE para imagens sugestivas de apego seguro (IEAS) e de apego inseguro (IEAI). O Teste t aplicado nos escores da IEAS e da IEAI tanto na condição difícil quanto na condição fácil do experimento revelou que os resultados encontrados não foram significativamente diferentes de zero (p > .05), o que sugere que não houve um efeito de interferência das imagens sobre a resposta dos participantes. A tabela 3 mostra os valores do IEAS e da IEAI nas condições fácil e difícil entre os grupos.
Nota: IEAS = Interferência Emocional de imagens Apego Seguro, IEAI = Interferência Emocional de imagens Apego Inseguro
Para examinar se houve diferença significativa na IEAS e IEAI entre os grupos, uma ANOVA mista (2x2) considerando condições e tipo de IE foi realizada. Não houve diferença na IE entre as condições (p = .505), entre IEAS e IEAI (p = .397) e não houve interação entre condição e IE (p = .327).
Uma ANOVA mista (2x2x2) foi utilizada para avaliar as diferenças no TR entre as condições, considerando os blocos de apego (AS ou AI) e o tipo de imagem (apego x neutras). Houve uma diferença significativa no TR da condição fácil e difícil (F[1,10] = .334, p = .031, ηp2= .39) sendo que o TR na condição fácil (M = 45.4 ms, DP = 58.8 ms) foi maior que na condição difícil (M = 339 ms, DP = 51.53), o que indica que os participantes responderam de forma mais automática na condição difícil do experimento. Duas ANOVAS (2x2) foram realizadas para verificar alterações específicas no TR dos participantes considerando os blocos AS e AI das condições. Não houve diferença no TR para imagens neutras versus imagens de apego seguro (p = .456) e para imagens neutras versus apego inseguro (p = .657) em nenhuma das condições do experimento. Juntos, estes resultados indicam que não houve uma interferência significativa das imagens de apego sobre o TR dos participantes.
Discussão
No presente estudo a avaliação subjetiva e a interferência emocional de imagens de apego foi avaliada em indivíduos com e sem diagnóstico de TPB. Os resultados indicaram que o grupo com TPB avaliou como mais negativo o vínculo parental com a figura materna. Análises de confiabilidade da avaliação das imagens de apego indicaram que houve concordância entre os avaliadores com relação ao tipo de imagem, no entanto, pacientes com TPB avaliaram de forma mais negativa as imagens de apego inseguro do que os psicólogos e o grupo controle. Juntos, os resultados da presente investigação podem ser utilizados para compreender de que forma características de apego de indivíduos com TPB influenciam na percepção e reação de estímulos interpessoais.
O processo de validação dos estímulos visuais utilizados em tarefas de atenção é muito importante. A seleção dos estímulos por juízes é um método que pode atestar a validade de constructo (Lopes et al, 2012); no entanto, a avaliação dos estímulos por uma população clínica, a priori, atestaria a validade de face das imagens selecionadas no presente estudo. O escore de confiabilidade das imagens foi a maneira encontrada pelos autores de verificar a concordância entre avaliadores com relação ás imagens de apego seguro e inseguro. A avalição de algumas imagens como mais indicativas de apego inseguro pelo grupo com TPB está de acordo com a hipótese de que pessoas com este transtorno possuem uma avaliação mais negativa de pessoas e de situações interpessoais (Baer et al, 2012; Bateman & Fonagy, 2016). Apesar do conceito de apego ser utilizado na pesquisa psicológica, os resultados da avaliação subjetiva dos estímulos deste estudo sugerem que o conhecimento de profissionais de psicologia talvez seja insuficiente para a escolha das imagens com validade para o grupo clínico com TPB. Portante, sugere-se que em estudos futuros os estímulos de apego sejam selecionados a priori por uma população de indivíduos com TPB.
Considerando que a população clínica deste estudo é composta de indivíduos com TPB e que este transtorno está associado a padrões de apego inseguro na infância e nos relacionamentos interpessoais da vida adulta (Agrawal et al, 2004; Bateman & Fonagy, 2016; Fonagy, 2000; Fonagy & Bateman, 2016), presumidamente o grupo com TPB deveria destoar do grupo controle com relação aos padrões de apego. Os resultados evidenciaram diferenças no escore da dimensão de afeto da figura parental da mãe nos grupos com TPB e controle. Esse dado demonstra que os participantes do grupo com TPB perceberam suas mães como mais frias e menos cuidadosas com eles. A ausência de cuidado da figura materna avaliada pelo IVP e o apego inseguro são correlatos e ambos são preditores de sintomas de TPB (Nickel et al, 2002). Portanto, os achados estão de acordo com teorias que consideram os padrões de apego inseguro como fatores de risco para o desenvolvimento do TPB (Bateman & Fonagy, 2016; Fonagy, 2000).
As principais evidências de diferença diagnóstica entre os grupos neste estudo, foram as diferenças nos escores de vinculação com a figura materna e a disparidade na avaliação das imagens de apego inseguro, sendo que ambos os resultados estão de acordo com a literatura sobre o TPB (Agrawal et al, 2004; Baer et al., 2012; Nickel et al., 2002; Fonagy & Bateman, 2016).
A rejeição da hipótese de IE para imagens de apego em pacientes com TPB pode estar relacionada ao fator implícito da atenção. Erthal et al. (2004) e Menezes et al. (2013) encontraram um efeito significativo na IE quando imagens de corpos mutilados foram utilizados como imagens-alvo para a mesma tarefa de atenção utilizada neste estudo. Considerando que imagens com função aversiva ou apetitiva com alta ativação emocional (arousal) estão sujeitas a afetar mais a atenção seletiva (Lang, 1995), as imagens do presente estudo podem não ter sido suficientes para causar interferência por possuírem pouca ativação. É também relevante considerar que as imagens utilizadas não são idiossincráticas, o que pode diminuir o processamento emocional das mesmas. Dados que corroboram esta ideia advém do estudo de Guerra, Sánchez-Adam, Anllo-Vento, Ramírez e Vila (2012), que descobriram que imagens de pessoas amadas (i.e., família e amigos) pelos participantes de seu estudo produziam reações fisiológicas representativas de emoções positivas.
Outro fator que pode ter influenciado os níveis de IE foi o curto tempo de exposição dos estímulos (Phaf & Kan, 2007). A IE para palavras negativas avaliadas na versão emocional da tarefa de Stroop ocorre quando os estímulos são expostos em tempos acima de 500ms (Arntz et al., 2000; Sieswerda et al., 2006). Além disso, no estudo de Sieswerda et al. (2006) estímulos expostos em tempos de exposição anteriores á percepção (i.e., menores que 30 ms) não tiveram efeito de interferência no desempenho de participantes com TPB. Dadas estas evidências, é plausível considerar que indivíduos com TPB possuem interferência emocional apenas em um nível consciente de percepção (e.g. entre 400-1250 ms, Baer et al., 2012; Petrova, Wentura & Bermeitinger, 2013), o que poderia explicar a ausência de efeitos de interferência no presente estudo. Esta interpretação está de acordo com a premissa de que o TPB está associado a problemas na mentalização e metacognição, que são constructos associados a funções cognitivas de "alta-ordem" (Fonagy & Bateman, 2016).
Os resultados apresentados devem ser interpretados com cautela devido a algumas limitações do estudo, entre as quais destacam-se o tamanho reduzido da amostra e os critérios e procedimentos de seleção dos grupos. Por outro lado, foram adotados cuidados para controlar possíveis problemas estatísticos (i.e., erros do tipo I e tipo II), como o uso de análises paramétricas e não-paramétricas quando necessário e reportando os valores do tamanho de efeito das análises significativas. O uso de uma entrevista diagnóstica poderia aumentar a validade do diagnóstico do grupo clínico e da sua ausência no grupo controle. Para controlar esta limitação, o grupo controle foi selecionado por possuir escores abaixo do ponto de corte do instrumento IPB. Além disso, as diferenças encontradas entre o grupo clínico e controle com relação à vinculação parental estão de acordo com a diferença esperada entre pessoas com e sem TPB (Nickel et al., 2002). Assim, apesar das limitações apontadas, o estudo apresenta contribuições importantes para a investigação da relação entre apego e desregulação emocional no TPB. Seus resultados deverão servir para aprimorar estudos futuros interessados na influência de variáveis de apego sobre o processamento emocional de indivíduos com TPB.
Considerares finais
Este estudo investigou a hipótese de que as características de apego de indivíduos com TPB influenciariam na avalição de imagens de apego e na interferência emocional destes estímulos em uma tarefa de interferência emocional. Esta hipótese foi parcialmente confirmada: indivíduos do grupo com TPB apresentaram um apego frágil com a figura materna e avaliaram de forma mais negativa imagens de apego inseguro do que o grupo controle sem TPB. Contudo, a hipótese de interferência emocional das imagens de apego na tarefa comportamental utilizada não foi confirmada, possivelmente em virtude do processo de escolha das imagens e/ou do tempo de exposição dos estímulos definidos na tarefa. Além de produzir conhecimentos sobre a influência do apego sobre a avaliação de estímulos visuais, o estudo também contém contribuições metodológicas para pesquisas futuras interessadas no processamento emocional de indivíduos com TPB. Caso a conexão entre apego e desregulação emocional no TPB seja melhor compreendida, será possível elaborar estratégias que visem tratar os problemas interpessoais característicos deste transtorno.