Introdução
No mundo contemporâneo, o aumento na expectativa de vida das pessoas tem sido um dos mais significativos avanços. Mesmo que este fenômeno não seja igual em todos os lugares, hoje em dia já é comum encontrar grande parte da população na fase da velhice em quase todos os países, inclusive naqueles que se encontram em subdesenvolvimento como acontece no Brasil, onde a desigualdade ainda persiste e afeta diretamente a vida das pessoas (Bezerra et al., 2020).
O Estatuto do Idoso brasileiro (Lei n. 10.741, 2003) demarca a velhice a partir 60 anos. Nesse sentido, tem-se o fenômeno do envelhecimento populacional como algo presente no território nacional, seguindo a tendência mundial. Isto se dá, principalmente, por diversos avanços nos atravessadores dessa fase, como por exemplo questões de saúde e qualidade de vida (Manhães, Istoe & Souza, 2015; Pereira & Santos, 2020).
O envelhecimento populacional é um fenômeno que se dá rapidamente: em 2019 a população idosa do Brasil demarcava um número superior a 32 milhões de pessoas, representando mais de 15,0% da população geral brasileira (IBGE, 2019); outra estimativa, de acordo com esta mesma fonte, aponta que, em 2050, os idosos representarão 21,9% da população brasileira e, no ano de 2070 essa porcentagem chegará a 35%. Logo, pode-se entender que o processo de envelhecimento se constitui a partir de particularidades que estão ligadas às mudanças nos diversos setores sociais como na economia, saúde e assistência (Veras et al., 2007).
Nesse sentido, pode-se deduzir que há diversas maneiras de viver a velhice. Assim, tem-se como algo importante o estudo, conhecimento e compreensão de como acontece essa fase da vida entre pessoas LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Queers, Intersexuais, Assexuais, dentre outras), uma vez que é um processo presente nessa população que, mesmo sofrendo discriminações cotidianamente, acompanha todo esse movimento já mencionado, mesmo que este fato seja ignorado pela maioria dos estudiosos (Santos, Carlos, Araújo & Negreiros, 2017; Jesus et al., 2019).
Dessa forma, faz-se necessária a investigação no que diz respeito a como acontece o processo de envelhecimento e a velhice dessas populações, uma vez que elas são afetadas diretamente. É importante ressaltar que estas, em suas identidades, já carregam consigo o preconceito que tender a intensificar-se por meio das relações interpessoais e institucionais, como por exemplo um contexto de privação de liberdade. Assim, a partir de estudos como esse, pode-se pensar em ações que possam contribuir com estas pessoas por meio deste grande campo a ser explorado e que ainda é pouquíssimo conhecido (Fernandes et al., 2019; Araújo, Salgado, Santos, Jesus, & Fonseca, 2020).
Com base no que foi exposto, pretende-se, nesse estudo, analisar as Representações Sociais (RS) sobre a velhice LGBTQIA+ em contexto de privação de liberdade, uma vez que as pessoas que integram esse grupo também se encontram numa conjuntura particular: segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional - DEPEN (Brasil, 2019), quase 750 mil brasileiros (as) se encontram encarcerados (as), onde 500 mil destes (as) cumprem regime fechado ou provisório.
Jodelet (2018) traz que as RS são saberes partilhados de maneira comum dentro de um grupo social, onde o conhecimento é pautado no senso comum e se dá através do pensamento coletivo. Segundo Moscovici (2012), elas têm como finalidade tornar familiar algo até então não conhecido e ocorrem por meio de dois processos básicos: a ancoragem e a objetivação. A ancoragem acontece quando ancora-se o que é previamente desconhecido em representações já constituídas, de maneira que isto passe a ser algo conhecido. Já a objetivação diz respeito à expressão da representação, onde ganha forma concreta. Dessa forma, as pessoas podem, influenciando-se igualmente, construir ideias e partilhar sentidos (Morera, Padilha, Silva, & Sapag, 2015; Jodelet, 2018).
As RS, ainda, são uma forma de saber prático que influencia nas crenças e nas opiniões, por exemplo. Dessa forma, elas orientam e organizam as condutas e comunicações sociais, bem como intervêm na disseminação e assimilação de conhecimentos e nas expressões coletivas (Jodelet, 2001; 2008; Oliveira & Werba, 2013). Logo, como as RS são uma estratégia para se conhecer ideias de um determinado grupo ou sociedade a respeito de algo, objetiva-se, com o presente estudo, contribuir para um desdobramento social dessas populações, a partir do conhecimento das compreensões acerca da temática.
É importante ressaltar que a pesquisa aconteceu durante a pandemia do Covid-19 que atingiu todo o mundo nos seus mais diversos seguimentos e públicos, inclusive a população carcerária. Em todo o planeta, o número de infectados já ultrapassa a marca de 179 milhões, sendo que 18,1 milhões desses casos foram no Brasil (OMS, 2021). No que diz respeito à população carcerária, até meados de junho de 2020, notificou-se cerca de 2100 casos em todo o país, onde 50 destes ocasionaram em óbitos (Brasil, 2020). Logo, é necessário que se leve em consideração tal fato.
Método
Locus Da Investigação
A pesquisa foi realizada em penitenciárias masculinas, femininas ou mistas no estado xxx no
Brasil.
Tipo De Investigação
O presente trabalho trata-se de uma pesquisa exploratória e descritiva, com dados transversais e amostra não-probalística por conveniência.
Participantes
O presente estudo teve a participação de 14 pessoas do sexo masculino que estão em privação de liberdade. Eles têm idade média de 29,9 anos (DP=5,02) e, em sua maioria, afirmam ser evangélicos (53,3%), de estado civil casado (48,4%) ou solteiro (40,0%), heterossexuais (100,0%), com o ensino fundamental (40,0%) ou médio (53,3%) completo e com renda entre 2 e 4 salários mínimos (73,3%).
O público feminino também contou com a participação de 14 pessoas que se encontram em privação de liberdade. Elas têm idade média de 33,4 anos (DP=9,01) e a maioria das participantes afirmam ser solteira (57,1%), evangélicas (50,0%), heterossexuais (71,4%) e com ensino fundamental completo (71,4%). Todas afirmaram não possuir renda.
Instrumentos
Utilizou-se dois instrumentos, de criação dos próprios autores, para a realização do estudo: para caracterização da amostra, foi usado um questionário sociodemográfico com dados referentes a idade, sexo, estado civil, religião, orientação sexual e renda; o segundo instrumento foi uma entrevista semiestruturada composta uma pergunta subjetiva com o intuito de conhecer as percepções dos participantes sobre o tema proposto a partir da questão norteadora “Como você entende a velhice LGBTQIA+?”. A justificativa do uso destes instrumentos se dá pela frequência de uso e adequação dos mesmos em pesquisas baseadas na teoria das Representações Sociais.
Procedimentos Éticos
Este estudo obteve aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa (CEP), da Universidade Federal xxxx (Brasil), sob parecer n° 1.755.790. Além disso, foi apresentado previamente aos respondentes o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que lhes garantia o sigilo e segurança de sua participação, havendo esclarecimentos acerta da natureza do estudo em relação aos seus riscos e implicações.
Coleta De Dados
Após a apresentação e assinatura do Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE), duas psicólogas aptas para tal aplicaram os instrumentos, esclarecendo possíveis dúvidas. Primeiramente aplicou-se o questionário sociodemográfico, seguido da entrevista semiestruturada.
Análise Dos Dados
Os dados sociodemográficos foram analisados no software SPSS for Windows versão 26.0, que fornece estatísticas descritivas e caracterizam a amostra. A entrevista semiestruturada foi analisada no software IRAMUTEQ, que permite fazer análises estatísticas de dados textuais utilizando-se da Classificação Hierárquica Descendente (CHD).
Resultados
Por ser um estudo comparativo entre homens e mulheres, gerou-se dois corpus gerais a partir respostas dos públicos citados, respectivamente. O primeiro refere-se às respostas dos homens e foi constituído por 14 textos (entrevistas), distribuídos em 37 seguimentos de texto (ST’s), com aproveitamento de 31 ST’s (83,78%). Foram emergidas 1031 ocorrências (palavras), sendo 234 distintas, de modo que destas, 185 foram mencionadas uma única vez. A categorização de todo conteúdo ocorreu a partir de quatro classes: classe 1, com 10 ST’s (32,2%); classe 2, com 7 ST’s (22,5%); classe 3, com 7 ST’s (22,5%); e classe 4, com 7 ST’s (22,5%). Por fim, o corpus principal se subdividiu em duas ramificações.
Com o objetivo de uma melhor visualização dos subcorpus e classes citadas, organizou-se e estruturou-se um dendrograma, a partir das respostas masculinas, com a relação das palavras de cada classe estabelecida a partir do teste de qui-quadrado, levando em consideração sua significância. Isto quer dizer que as palavras que se mostraram significativas foram organizadas em classes de acordo com seu caráter semântico. O referido dendrograma, gerado a partir da CHD, está ilustrado na Figura 1.
O subcorpus A, nomeado Atitudes para com o(a) idoso(a) LGBTQIA+, é formado pela classe 2 (Preconceito baseado na cis heteronormatividade) e mostrou representações ligadas aos preconceitos que sofrem as pessoas idosas LGBTQIA+.
O subcorpus B, nomeado Vidas singulares, é composto pela classe 1 (Orientação e preferências pessoais), a qual foi a mais significativa e retrata sobre considerações de que cada pessoa vive a vida da maneira que achar melhor, de acordo com as preferências pessoais.
Já o subcorpus C, nomeado Entendimento da diversidade, é composto pela classe 3 (A felicidade priorizada) e pela classe 4 (Concepções respeitosas) e trata sobre representações de caráter respeitoso e compreensivo para com a pluralidade do ser humano, entendendo que a satisfação pessoal é o que deve vir em primeiro lugar em relação às vivências cotidianas.
Em relação às respostas das mulheres, também elaborou-se um dendrograma para melhor visualizar o conteúdo das respostas, seguindo os mesmos critérios já citados no público masculino. O corpus geral foi constituído de 14 textos (entrevistas), distribuídos em 33 seguimentos de texto (ST’s), com aproveitamento de 27 ST’s (81,82%). Foram expressas 1025 ocorrências (palavras), sendo 253 diferentes, onde destas, 198 apareceram uma única vez. A categorização de todo conteúdo ocorreu a partir de cinco classes: classe 1, com 4 ST’s (14,81%); classe 2, com 8 ST’s (29,62%); classe 3, com 4 ST’s (14,81%); classe 4, com 8 ST’s (29,62%); e a classe 5, com 4 ST’s (14,81%). Por fim, o corpus principal se subdividiu em três ramificações (Figura 2).
O subcorpus A, nomeado Respeito e felicidade, é formado pela classe 1 (Desejos considerados e valorizados) e pela classe 5 (Sexualidade livre e respeitada) mostrou representações que preconizam o respeito pela orientação e desejo de cada pessoa em seguir sua vida como quiser.
O subcorpus B, nomeado Apoio frente aos desafios, é composto pela classe 3 (Necessidade de apoio) e traz concepções acerca da fundamentalidade de que pessoas idosas LGBTQIA+ têm de serem apoiadas enquanto seres subjetivos, singulares e plurais.
Já o subcorpus C, nomeado Aspectos de enfrentamento, é composto pela classe 2 (Dificuldades constantes) e pela classe 4 (Importância dos recursos) e mostra representações sobre meios que funcionem como estratégias para manutenção da vida e enfrentamento das dificuldades e preconceitos cotidianos.
Discussão
Diante das informações obtidas, verificou-se uma explícita semelhança no conteúdo das respostas entre os dois públicos, mesmo aparecendo uma especificidade nas respostas femininas que também será discutida. Para melhor didática, optou-se por fazer a discussão unindo os pontos homogêneos presentes nos dois dendrogramas, por conta do fator de semelhança, levando em consideração os conteúdos expressos nas classes apresentadas.
Pontos De Convergência Entre Os Dendrogramas
Classe 2: Preconceito baseado na cis heteronormatividade (Dendrograma masculino) e Classe 2: Dificuldades constantes (Dendrograma feminino)
Nestas classes observa-se que são expressas ideias relacionadas ao fato da não aceitação de pessoas, vivências e atitudes que são diferentes da lógica cis heteronormativa, por meio da constatação de práticas discriminatórias, principalmente fundamentadas na religião como justificativa para tal concepção acerca de pessoas LGBTQIA+, que são ainda reforçadas pelo fato de ser uma pessoa idosa nesse contexto.
Gomes, Reis e Kurashige (2013) trazem que, levando em consideração o aspecto histórico, a sexualidade humana concebeu como parâmetro uma única forma de expressão: a cis heteronormativa. Logo, esta normatização provocou a restrição à uma ideia única de sexualidade possível, que repercutiu dando espaço para o preconceito, à invisibilidade e, até mesmo, na deslegitimação da formação de famílias entre pessoas LGBTQIA+. Um ponto importante a ser considerado, também, é o fato da maioria dos (as) participantes afirmarem ser heterossexuais, o que pode estar relacionado a esta concepção (Silva & Barbosa, 2016).
As discussões acerca de como este entendimento limita e exclui outras vivências vêm sendo construída há alguns anos. Baptista (1999) traz que esses discursos tidos como superiores acabam por conceber de forma negativa o que “foge” do enquadramento cis heteronormativo, influenciando no cotidiano e no existir destas pessoas, uma vez que o parece orientar esta visão é a ideia de menos humanidade destas populações, que sofrem cotidianamente por meio de atitudes fruto desta visão limitante.
Com isso, tem-se uma clara e evidente delimitação de espaços para corpos e sexualidades LGBTQIA+, uma vez que estas se encontram fora do considerado “normal” e, por tal fato, sofrem com processos medicalizadores, criminalizantes e até mesmo aniquilatórios (Louro, 2004). Para comprovar esta ideia, tem-se o fato de que, em vários países, é crime ser trans/travesti ou homossexual, tendo a pena de morte como consequência. Com isto, nota-se que a lógica cis heteronormativa se materializa, por exemplo, em códigos penais que limitam as vivências plurais (Han & O’Mahoney, 2018).
Cassal, Garcia & Bicalho (2011) apontam que é necessário colocar em análise todo o processo de institucionalização da sexualidade humana, pois é a partir daí que se pode entender melhor os pensamentos considerados hegemônicos. Nesse sentido, nota-se que a população LGBTQIA+ é alvo de discriminação em vários espaços e situações, como por exemplo em ambientes religiosos (Salgado et al., 2017; Bezerra et al., 2019). Isto porque as pessoas utilizam de tal fato para fundamentar práticas discriminatórias e de exclusão, mesmo nestes espaços que se propõem a acolher e integrar pessoas. É importante ressaltar que a grande maioria da amostra afirmou ser evangélica, o que pode estar entrelaçado a isto (Musskopf, 2012; Silva & Barbosa, 2016).
Nesse sentido, Torres (2011) afirma que as ditas noções baseadas na religião agem influenciando ao negar e não validar formas diversas da sexualidade. Tal compreensão, traz que, sem nenhuma reflexão, foi criada uma ideia central de que homem e mulher estão restringidos à expressão sexual baseada numa visão heterossexista e cisgênera, onde qualquer experiência que foge a esse enquadramento é considerada como invalida ou negativa.
Dentro desta perspectiva, percebe-se que as diversas formas de preconceito se sustentam em compreensões irracionais, moralistas e conservadoras, naturalizando lugares marginais para pessoas LGBTQIA+ (Gomes, Reis & Kurashige, 2013). Com isso, as práticas preconceituosas buscam desqualificar estes modos de vivências e existências, através de estratégias que restringem oportunidades, espaços e/ou possibilidades a estes indivíduos. Assim, Cavalcanti, Bicalho e Sposito (2019) trazem que, no meio desse emaranhado de ideias, alguns questionamentos vêm à tona: Por que esses modos de ser, existir e se expressar são perigosos? Por que eles sofrem, incansavelmente, repreensões e tentativas de eliminação?
Com isso, constata-se que o que está para além da cis heteronormatividade muitas vezes se liga a outros atravessamentos sociais, como as questões de gênero, raça ou fase do ciclo vital. Perucchi, Brandão e Vieira (2014) afirmam que o preconceito para com a população LGBTQIA+ se aproxima das outras formas de opressão por compreender estas populações como inferiores; assim, quando se tem um perfil que abrange mais de uma dimensão, como por exemplo o fato de ser idoso LGBTQIA+, isto acaba por reforçar o preconceito por meio de uma relação entrelaçada e contínua entre os atravessadores que o configuram (Rabelo, Silva, Rocha, Gomes & Araújo, 2018).
Classe 1: Orientação e preferências pessoais (Dendrograma masculino), Classe 4: A felicidade priorizada (Dendrograma masculino) e Classe 1: Desejos considerados e valorizados (Dendrograma feminino)
Diferente da temática discutida anteriormente, nestas classes nota-se que as representações aqui emergidas giram em torno de uma compreensão que considera as preferências e orientações pessoais como único fator a ser levado com conta nas formas de expressões e vivências de idosos LGBTQIA+, uma vez que estas fazem parte do que é ser feliz para estas pessoas.
Bagagli (2017) traz que os estudos mais adequados sobre gênero e sexualidade levam em consideração os conceitos e implicações múltiplas de recortes como a orientação sexual e a identidade de gênero, uma vez que estes são atravessadores diretos do tema e estratégias de visibilidade. Isto quer dizer que, nesta dimensão, as pessoas são únicas e deveriam ter o direito, a nível teórico, prático e legal, de viver sua sexualidade a partir de condutas baseadas em suas preferências pessoais e que não fossem restritas a modelos ou normatizações limitadores.
Assim, é necessário entender que a sexualidade humana está para além do campo anatômico e abrange vários fatores em seu desenvolvimento e expressão, tal como a intimidade, as preferências, o prazer, dentre outros (Silva, 2016). Logo, em tese, por ter caráter particular, não é algo que as pessoas deveriam entender como tendo o poder de decisão acerca da sexualidade de alguém, uma vez que ela é plural e pode se manifestar de formas diversas, não sendo algo engessado.
Partindo deste princípio, as representações sociais dos respondentes nestas classes acerca da velhice LGBTQIA+ expressam que o que importa é se estas pessoas buscam a felicidade ou estão num lugar de bem-estar com suas vivências. Em consonância a isso, Torres (2011) aponta que as formas de expressão e práticas da sexualidade são múltiplas; logo, a validade deste fato deve ser feita única e exclusivamente pela própria pessoa de acordo com seus desejos, orientação sexual e identidade de gênero e não por quem se encontra fora deste lugar.
Mesmo com todo preconceito e estigmatização da população idosa LGBTQIA+, na contemporaneidade entende-se que, para uma melhor qualidade de vida e valorização da existência destas pessoas, compreendendo todos os fatores que as compõem, deve existir o espaço e o total direito de viverem como desejaram, uma vez que seus corpos também carregam uma subjetividade que deve ser legitimada e reconhecida e não repreendida e desqualificada, como acontece cotidianamente (Costa, Pereira, Oliveira & Nogueira, 2010).
Dessa maneira, é necessário o olhar crítico sobre as normas explícitas ou implícitas, diretas ou indiretas que se fazem presentes nos discursos e comportamentos que agem na tentativa de classificar ou atribuir algum julgamento valorativo acerca das práticas diversas da sexualidade humana, também levando em conta a fase do ciclo vital que a pessoa se encontra (Silva, 2016; Bezerra et al., 2019). Logo, a hierarquização que é posta sobre a sexualidade humana, como traz Rubin (1993), que valida as relações cis e hétero e desqualifica as vivências trans/travestis e homossexuais, como por exemplo, funciona como reforçadora de ideias que enquadram e normatizam a sexualidade humana, sendo algo que impede e controla, muitas vezes, até mesmo a existência, literalmente falando, das pessoas LGBTQIA+.
Classe 3: Concepções respeitosas (Dendrograma masculino) e Classe 5: Sexualidade livre e respeitada (Dendrograma feminino)
Diretamente ligada à temática geral discutida na seção anterior a essa, aqui, nestas classes, percebe-se que as representações giram em torno de compreensões respeitosas para com os idosos LGBTQIA+. Isto quer dizer que, dentro desta perspectiva, as pessoas que se encontram na velhice também têm que ser respeitadas no direito de viver sua sexualidade levando em conta suas formas plurais e diversas, não sendo limitadas a normas cis heterocêntricas.
Nessa lógica, é importante ressaltar que, mesmo com inúmeros obstáculos, a luta contemporânea por respeito de ser, existir e se expressar, por parte da população LGBTQIA+, vem sendo construída há algum tempo. A maioria dos autores são consensuais quanto às várias etapas marcantes em seu percurso sócio-histórico que contribuíram diretamente na luta para a visibilidade. Como exemplo disto, um divisor de águas foi o acontecido de Stonewall no ano de 1969, em Nova York nos Estados Unidos, onde a população que frequentava o referido local (majoritariamente LGBTQIA+), mostrou uma forte resistência, traduzida em forma de luta direta frente às humilhantes repressões policiais (Colling, 2011; Reis, 2012; Calixto, 2015).
Bezerra et al (2019) apontam que concepções respeitosas acerca da velhice LGBTQIA+, como mostram as palavras destas referidas classes, também estão baseadas na Declaração Universal dos Direitos Humanos (2018), sobretudo nos artigos II e VII, que trazem, respectivamente, sobre o direito a usufruir de sua liberdade, independentemente de qualquer condição e sobre a igualdade de todas as pessoas sem qualquer distinção, sendo protegidas perante qualquer discriminação que viole este direito.
É importante ressaltar que este entendimento também está ligado à construção e implantação de políticas públicas voltadas a estas populações, influenciadas por movimentos nacionais como a parada LGBTQIA+, criada em 1990, como forma de enfretamento à desigualdade e à intolerância vivenciadas, uma vez que elas são essenciais para a concretização e legitimação acerca da cidadania e liberdade de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Queers, Intersexos, Assexuais, dentre outros (Calixto, 2015).
A aceitação e respeito para com os idosos LGBTQIA+ se constituem como uma forma de romper com padrões socialmente estabelecidos, onde se considera e valoriza a diversidade do ser. Nesse sentido, Herz e Johansson (2015) afirmam que tal percepção configura-se enquanto crítica a uma única forma de vida, identidade, sexualidade, constituição familiar, dentre outros aspectos. Isto quer dizer que, aqui, ao invés da normatização, tem-se uma valorização sobre a sexualidade LGBTQIA+, visto ser algo válido e potente em seus sentidos e expressões.
Logo, baseando-se nesta perspectiva, Moskolci (2017) traz que a problematização sobre o espaço e oportunidades para vivências plurais é constantemente necessária. Aqui, a diversidade, é então reconhecida e concebida enquanto maneiras de tolerância e respeito para com todas as pessoas, reconhecendo as diferenças e aceitando-as como forma de transformação social no que diz respeito, também, às relações interpessoais e de poder, aos espaços acessados e às identidades, formas e lugares possíveis.
Como comprovação de tal ideia, alguns avanços são significativos dentro desta luta por respeito e igualdade: no Brasil, por exemplo, na década de 80, atrelado ao contexto sócio-histórico da época, tem-se a campanha, liderada pelo Grupo Gay da Bahia, que questionava e exigia a revogação do parágrafo 302.0 do Código de Saúde do Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (INAMPS) que tratava a homossexualidade enquanto um desvio ou transtorno na área sexual. (Carneiro, 2015; Sousa & Cavalcanti, 2016; Cannone, 2020).
Além disso, outro significativo progresso que demonstrou consideração ao referido público, foi a regulamentação do direito, por parte da legislação brasileira vigente, à união homoafetiva, concebendo-a o direito à união estável e a adoção (Bomfim, 2011; Santos, 2020). Nesse interim, mais recentemente, ainda pode-se citar a despatologização da transexualidade pela Classificação Internacional de Doenças, em sua décima primeira versão (CID-11) no ano de 2018 (Coacci, 2019). Assim, percebe-se que essas representações respeitosas vêm se desenvolvendo e ganhando espaço na sociedade, mesmo com passos lentos, a base de muita luta e resistência, sendo necessários mais avanços.
Particularidade Do Dendrograma Feminino
Classes 3: Necessidade de apoio e Classe 4: Importância de recursos
O dendrograma feminino apresentou uma especificidade quanto ao conteúdo das representações emergidas que não apareceu nas respostas masculinas. A partir das palavras e do conteúdo mais aprofundado das entrevistas, percebe-se que as mulheres têm a concepção de que os idosos LGBTQIA+ precisam de determinados suportes para conseguir enfrentar o preconceito diário e fazer valer sua existência e identidade.
Nesse sentido, isto significa dizer que tais pessoas podem e devem ter abertura, espaços e oportunidades para vivenciar essa fase de suas vidas, usufruindo dos recursos necessários para uma vida de qualidade e bem-estar. É importante ressaltar que por conta dos estereótipos negativos e da intolerância que estas populações sofrem diariamente, a velhice LGBTQIA+ não acontece da mesma forma que a velhice cis e heterossexual, havendo desigualdade entre elas que muitas vezes a coloca em um lugar de vulnerabilidade e marginalização social (Salgado et al., 2017).
Partindo deste pressuposto, tem-se o fato que muitos desses idosos vivem em condições de desproteção e desacesso a aspectos básicos da vida humana como a saúde. Os idosos LGBTQIA+ têm demandas particulares: como por exemplo as pessoas trans/travestis que enfrentam grandes dificuldades ao tentar acessar os serviços sanitários, onde muitas vezes o preconceito se reflete nos olhares de condenação, no desrespeito ao nome social e na negligência das visitas domiciliares, repercutindo negativamente em suas vidas (Fernández-rouco, Sánchez & Gonzáles, 2012; Fredriksen-Goldsen et al., 2015).
Além do campo da saúde, pode-se citar que as pessoas que se encontram dentro dos grupos LGBTQIA+ também enfrentam desafios no contexto educacional. Albuquerque e Albuquerque Williams (2015) afirmam que a escola pode ser um espaço bastante negativo para tais pessoas, uma vez que neste lugar também acontecem discriminações de formas verbais, físicas ou psicológicas, como por exemplo. Como consequência disto, esses indivíduos acabam, muitas vezes, deixando a escola por sofrerem violências cotidianas advindas de vários componentes educacionais, o que representa mais uma dificuldade que influencia no envelhecimento e na velhice destas populações (Santos, Silva & Menezes, 2017).
Além disso, as questões socioeconômicas também se fazem presentes dentro desse contexto. Nessa lógica, a conjuntura sociopolítica brasileira ajuda a entender como o fator de identidade de gênero e/ou orientação sexual pode evidenciar a realidade desigual vivenciada por pessoas idosas LGBTQIA+. Para melhor explicar tal fato, além do já exposto, é possível citar aspectos como as possibilidades restritas de acesso ao mercado de trabalho, a ausência de apoio familiar em alguns casos, além de outras formas discriminatórias que influenciam diretamente em cenários de situação de rua e em casos de expulsão de casa, como por exemplo (Kalume, Itaborahy & Moreira, 2016).
Como consequência disto, nota-se que as populações idosas LGBTQIA+ acabam por viver com oportunidades e uma renda bem menor que a população cis/hétero, o que as coloca num lugar social marginalizado, principalmente em relação à população trans/travesti. Tal fato, está diretamente ligado ao desenvolvimento histórico de estratificação social brasileiro, que gera uma acentuada desigualdade entre os indivíduos. Como produto disto, tem-se a privação de direitos básicos a uma considerável parte da população, como os idosos LGBTQIA+, que ficam no centro destes atravessadores negativos (Itaborahy, 2015).
Logo, a palavra aposentado que foi expressa representa um dos importantes recursos que os idosos LGBTQIA+ têm para se manter e sobreviver frente às inúmeras dificuldades enfrentadas cotidianamente. Além disso, também é importante ressaltar a potência dos grupos de convivência social, da sensação de pertencimento comunitário e o acesso a espaços que fornecem serviços essenciais e de lazer, que funcionem, semelhantemente ao benefício social da aposentadoria, como pontos de apoio necessários para tais pessoas (Salgado et al., 2017).
Considerações finais
Como pôde ser percebido, o presente estudo comparou as representações sociais da velhice LGBTQIA+ entre homens e mulheres em privação de liberdade no contexto brasileiro. Levando em consideração o exposto, pôde-se perceber que as concepções emergidas foram diversificadas, e perpassaram por vários entendimentos, fazendo com que elas abarcassem distintas visões que foram distribuídas nas classes apresentadas a partir dos dendrogramas.
A partir da investigação realizada neste trabalho, verificou-se que algumas representações seguem caminhos de preconceito e discriminação sobre os idosos LGBTQIA+, principalmente fundamentadas na visão religiosa, que acaba por causar marginalização e exclusão social; outras vão pela lógica de que o que importa é se a pessoa está feliz em ser e viver dessa forma, uma vez que isto diz respeito somente a ela e outras pessoas não devem interferir nessa circunstância; por fim, outras compreensões seguem a lógica de que estas pessoas devem ser respeitadas no que tange à sua identidade de gênero e/ou orientação sexual, visto que são iguais em direitos e deveres como qualquer outra população e também devem ter oportunidades. Particularmente ao público feminino, ainda houve a compreensão de que os idosos LGBTQIA+ necessitam de recursos que funcionem como apoio e ajuda na luta contra as desigualdades enfrentadas.
Assim, considera-se que o objetivo da pesquisa foi alcançado, tendo por base que as representações sociais do referido público foram conhecidas e analisadas. O estudo também contou com algumas limitações, principalmente porque foi diretamente afetada pela pandemia do COVID- 19, fazendo com que o aceso a estas pessoas fosse dificultado. É importante ressaltar que estas representações sociais aqui obtidas não devem ser generalizadas, uma vez que o contexto social, histórico e cultural de cada ser interfere diretamente na construção destas.
Dessa forma, é importante entender que as formas identitárias são diversas e construídas a partir dos processos subjetivos e de socialização. Logo, para que haja uma transformação social no que diz respeito à desconstrução das estruturas desiguais para idosos LGBTQIA+, a Psicologia se faz fundamental para o entendimento da diversidade da sexualidade humana, que está para além do campo biológico e/ou cis heterossexual, sendo possíveis outras formas de ser e se expressar, as quais também são válidas e devem ser respeitadas enquanto legítimas.