O sítio arqueológico Justino está localizado no município de Canindé de São Francisco, numa sub-região conhecida como Xingó, no semiárido do estado de Sergipe (figura 1). A área onde foram realizadas as escavações possui um regime pluviométrico extremamente baixo durante o decorrer do ano (Reis 1976). Já a vegetação é caracterizada por espécies arbustivas, espaçadas, caducifólias, hiperxerófilas plenamente adaptadas ao clima quente e seco (Dominguez e Britcha 1997).
A exemplo da vegetação, a fauna também apresenta propriedades adaptativas referentes ao ambiente encontrado na caatinga, como a baixa retenção hídrica e a quantidade escassa das opções alimentares, em relação a outras regiões do país. Apesar das adversidades impostas pelo clima, a biodiversidade revela os mais variados taxa, tais como: mamíferos, aves, répteis, peixes e anfíbios (Leal et al. 2005).
Sobre o desenvolvimento das pesquisas arqueológicas, a região de Xingó foi estabelecida em três áreas distintas de acordo com as divisões geográficas e ecológicas que compartilham números expressivos de assentamentos de grupos humanos pré-históricos (pré-coloniais) (Martin 2005). O sítio arqueológico Justino faz parte da área 3 num total de 16 sítios, onde o potencial de estudos científicos se demonstrou multidisciplinar devido à quantidade e à diversidade da cultura material (Silva 2013).
A princípio, o sítio arqueológico Justino estaria incluído no processo de salvamento arqueológico, contudo, durante as escavações, foi observada capacidade demonstrada pela quantidade de elementos referentes aos grupos humanos que ocupações e/ou passaram nessa região. Esse sítio é até o momento considerado a maior necrópole escavada sistematicamente no nordeste brasileiro (figura 2), acreditando-se que a intervenção tenha atingido as ocupações mais antigas que existiram nessa área (Martin 1996).
O salvamento arqueológico na área impactada pela Usina Hidrelétrica de Xingó (UHE-Xingó/CHESF) foi realizado pelo Projeto Arqueológico de Xingó (PAX) e corresponde à Lei 3.924 de julho de 1961, na qual há a necessidade de salvaguardar "jazidas" ou sítios identificados como cemitérios, sepulturas ou locais com existência prolongadas de aldeamentos, nos quais oferecem vestígios da presença humana de interesse arqueológico ou paleoetnográfico. A intervenção foi necessária devido à iminência da implantação da usina hidrelétrica no fim dos anos 1980, principalmente pelo impacto ambiental e social que viria a causar (Luna 1996).
O resultado das escavações no sítio arqueológico Justino foi a quantidade de dados arqueológicos encontrados a respeito da cultura material das populações pretéritas, cujos vestígios se mostram imensuravelmente importantes para realizar inferências sobre o cotidiano desses grupos que ocuparam a região de Xingó. Entre esses remanescentes, restos faunísticos têm particular relevância para a pesquisa zooarqueológica, sobretudo em relação aos animais evidenciados em sepulturas humanas (Simon et al. 1999; Queiroz e Carvalho 2005; Carvalho 2006; Queiroz et al. 2014; Cardoso 2015).
No aspecto contextual geral do sítio Justino, o quantitativo e a variabilidade tipológica dos artefatos resgatados no Justino, onde se constatou a presença de uma indústria lítica constituída por instrumentos talhados e polidos; vasilhames cerâmicos de diversos tamanhos, alguns dos quais associados aos sepultamentos humanos, além de uma necrópole bem-estabelecida, caracterizada por diversos enterramentos primários (em sua maioria) e secundários, permitem considerar para esse sítio um modo de vida predominantemente gregário, adaptado às condições naturais oferecidas pela vegetação da caatinga e pelo rio São Francisco. As cronologias obtidas para a necrópole do Justino apontam igualmente para quatro cemitérios (A, B, C e D), cinco fases, três ocupações e oito datações não calibradas que vão de 8950±70BP a 1780±60BP (Fagundes 2007; Santana 2013).
Em algumas sepulturas, foi verificada a existência de conchas e esqueletos animais associados aos indivíduos humanos (Carvalho et al. 2002), hipoteticamente como parte de rituais funerários, em que a fauna pode ter uma importância similar a uma oferenda ou sacrifício para determinados indivíduos mortos daquela população, provavelmente em função de sua posição hierárquica naquela população. As sepulturas 119 e 166 estão entre as amostras observadas por apresentarem um perfil incomum em sítios com presença de fauna no nordeste do Brasil; em ambas as sepulturas, existe uma evidente associação entre o ser humano e os vestígios animais, a qual merece uma particular observação no que se refere a esqueletos de animais completos ou parcialmente completos, ou seja, os ossos foram evidenciados ainda em conexão anatômica (Simon et al. 1999; Queiroz e Carvalho 2005; Queiroz et al. 2014; Cardoso 2015), o que provavelmente denotaria a inumação desses animais ainda com pele (um furão) e penas (uma ave de rapina), respectivamente, porém, apesar da suposição de um ritual fúnebre complexo para a necrópole do sítio arqueológico Justino, com elementos adicionais distintos de outros sítios no país, animais inteiros ou parcialmente inteiros associados aos sepultamentos humanos.
Psicopompo
As atribuições dessa terminologia não definem apenas um ser vivo ou objeto de forma específica, as referências sobre o psicopompo estão em inúmeras culturas distantes espacial e cronologicamente. Assim, os detentores da função de psicopompo possuem diversas origens conforme suas crenças, embora compartilhem de algumas propriedades em comum, tais como: as possíveis ligações culturais existentes no núcleo de determinado grupo humano, a transição da vida à morte que dependa do guia das almas (psicopompo) e, em muitos casos, os objetos e/ou animais são geralmente enterrados associados aos indivíduos mortos (Goepfert 2008).
A palavra psicopompo tem sua gênese no grego e sugere a junção de dois termos: psyché (alma ou espírito) e pompós (guia), ou seja, algo ou alguém, cuja atribuição é conduzir as almas dos mortos para o inframundo ou mundo dos mortos. A mitologia em que se originou o termo relata a literalidade da função de conduzir ou levar o espírito dos indivíduos (Goepfert 2008).
Segundo Balieiro et al. (2015), o termo descrito aponta essa função do ser ou figura, cuja propriedade é acompanhar a alma nos processos de transição. Conforme Whitmont (2002), o arquétipo psicopompo é observado como um guia interior, que atua como mediador entre a consciência e a inconsciência.
De fato, não se pretende aqui evocar todos os contextos possíveis ou buscar um amplo entendimento sobre os aspectos arqueológicos, etnoarqueológicos ou etnológicos e antropológicos relacionados ao psicopompo nem se pretende defender posicionamentos teóricos mais profundos, mas tenciona-se introduzir uma ampla discussão sobre a temática, a partir das evidências registradas num sítio arqueológico pré-colonial brasileiro, comparando com uma cultura pré-andina no tocante à complexidade dos ritos funerários e recorte cronológico.
As informações a respeito do psicopompo apresentam diversas interpretações e sofrem mudanças que dependem do núcleo cultural ou regional. Alguns casos mundiais poderiam servir como breves exemplos, ilustrando os diversos contextos, por exemplo, na mitologia hindu, em que se estabelece o falcão como raptor, como um ser sagrado que conduz a alma do morto através dos ventos para o "criador" até a libertação da "nova morte" (Jung 2011), ou como termos definidos, de acordo com a região, Exu (África), Ganesha (Índia), Hermes (grega) e Toth (egípcia), ou "condutores de almas" na Mesoamérica (Franch 1997; González Torres 2001), e mais particularmente na América do Sul (Franch 1997; García Escudero 2010). Logicamente, existem outras denominações de seres diferentes em outras culturas, isso se explica pela generalidade da compreensão dos grupos em relação ao psicopompo e à complexidade das implicações xamânicas ou arquetípicas (Jung 2011; Moreman 2014), o que suscitaria inúmeras controvérsias, em se tratando de um universo considerado por alguns estudiosos ainda como abstrato. Outros casos nos quais os "guias das almas" poderiam igualmente estar simbolizados seriam pelos vestígios animais associados aos contextos fúnebres humanos resultantes de escavações arqueológicas ou mesmo presentes nas representações iconográficas (figura 3).
A terminologia permite a simples compreensão da função de conduzir as almas; no entanto, uma quantidade imensurável de culturas nas quais o psicopompo é parte integrante dos rituais de passagem se torna um desafio aos pesquisadores, considerando a alta carga simbólica intrínseca a essas populações. Na figura 3, observa-se uma cena de uma manifestação sexual funerária da Cultura Moche do Peru, num primeiro plano, envolve animais, celebrações, relações sexuais e um indivíduo que é inumado. No segundo plano, a representação da transição da vida à morte na qual podem ser observados artefatos como oferenda e animais possivelmente sacrificados para acompanhar o morto até o mundo dos mortos (Goepfert 2008).
A figura do psicopompo no Justino?
Os esqueletos das sepulturas 119 (Mustelídeo) e 166 (Ave) fazem parte de um universo mortuário de populações pré-históricas, cuja ocupação deixou vestígios ao longo das margens do rio São Francisco. Existem fatores que levam a acreditar na prática de oferenda ou sacrifício no núcleo mortuário desses grupos (Queiroz e Carvalho 2005; Queiroz et al. 2014).
Esses fatores observados durante a investigação são, num primeiro momento, a associação com os esqueletos humanos inumados num mesmo enterramento, além do fato de que, em ambas as sepulturas, os animais encontravam-se articulados. Num segundo momento, as observações realizadas de forma minuciosa apresentam características capazes de fornecer dados suscetíveis de inferir uma interpretação das possíveis motivações dessas populações associarem elementos da fauna em sepulturas humanas.
Os vestígios faunísticos encontrados no contexto funerário oferecem subsídios para a compreensão do cotidiano dos grupos pretéritos, sobretudo com relação às atividades, cuja realização resultou em cultura material, na qual os esqueletos de animais inumados em enterramentos humanos são fortes indícios da apropriação simbólica das populações pré-hispânicas a respeito da fauna, como os cães na Mesoamérica (González Torres 2001) e outros animais vertebrados e invertebrados (García Escudero 2010).
Tanto o furão (Galictis cuja Molina 1782) da sepultura 119 como a ave da sepultura 166, em análises de laboratório, não apresentaram estigmas da utilização de ferramentas, as quais permitiriam caracterizar esses animais em outros contextos, como fonte de dieta ou outro tipo de prática econômica. Os indícios, portanto, tornam-se mais enfáticos com a ausência de marcas nos ossos dos animais, levando em consideração a inserção dessa fauna no âmbito fúnebre que acompanhava os humanos.
De acordo com as referências até então disponíveis sobre a presença de elementos faunísticos que acompanham sepulturas humanas em cronologia pré-coloniais no Brasil, não haviam sido encontrados registros semelhantes nos contextos mortuários em outras regiões (particularmente os animais inteiros ou parcialmente inteiros associados aos indivíduos inumados).
Ao compreender as questões em torno do termo psicopompo, bem como das manifestações rituais e mortuárias, cuja cultura é claramente um fator introdutório dessa função aplicada a um ser vivo ou objeto, porém é preciso cautela ao aproximar a atribuição de psicopompo dos animais associados aos mortos nas sepulturas 119 e 166, uma vez que essa teoria ainda resta no campo hipotético, até que novos indícios possam reforçar tal colocação. Dessa forma, para fins ilustrativos com outros contextos sul-americanos, indícios apontam comparativamente esses casos ao complexo de sítios no Peru de Huaca de la Luna e Huaca del Sol, ambos formam um conjunto Huacas de Moche, principal núcleo urbano da antiga população Mochica, cujo desenvolvimento ocorreu no Vale del Moche entre os anos 2050 BP à 1450 BP (Aguilar et al. 1999; Goepfert 2008). Assim, respeitando as distinções culturais e histórico-geográficas, é possível postular a hipótese de guia das almas para a fauna do sítio Justino.
Nessa cultura peruana, a iconografia é largamente estudada desde o século XIX; nela, é possível observar cenas de festins, que envolvem rituais mortuários e a referência à função de guia das almas, ou psicopompo, vinculados à fauna, sobretudo aos camelídeos (Goepfert 2010) e às aves strigiforrmes (corujas) inumados juntos aos mortos da cultura mochica. Esse dado é uma forte evidência da importância desses animais no contexto funerário para essa população pretérita (Arsenault 1992; 1994).
Considerando as características similares, é plenamente plausível explorar a hipótese de prática ritual em que há uma manifestação, na qual é possível apontar a fauna no Justino como psicopompo. A comparação tem, logicamente, e conforme mencionado, adversidades ligadas principalmente ao contexto histórico-cultural nas diferentes populações apresentadas neste estudo; no entanto, devido às condições observáveis em ambas as realidades, torna-se considerável o postulado para o mustelídeo e a ave associados às inumações humanas do Justino como "condutores de almas".
É importante salientar que a configuração da fauna, tanto no sítio Justino como nos sítios peruanos mochicas, parece apresentar uma função bastante específica nesses contextos. As análises realizadas em laboratório sobre os animais associados aos esqueletos 119 e 166, foram reveladoras no tocante a essa proposição, uma vez que foi evidente a ausência de estigmas que corroboram contrariamente à hipótese de apropriação simbólica desses animais pelos grupos humanos pretéritos em Xingó.
A leitura contextual dos esqueletos e sua fauna associada foi fundamental para o desenvolvimento da pesquisa a respeito dos aspectos culturais e mortuários dos grupos que habitaram a região estudada. É imprescindível refletir sobre quais circunstâncias os animais eram escolhidos para fazer parte do "cerimonial" funerário, bem como a relação existente entre o indivíduo morto e as espécies selecionadas para esse fim.
Apesar de constituírem uma pequena fração, se comparado ao quantitativo de esqueletos humanos exumados no sítio arqueológico Justino (quase 200), dos quais, ao menos 21 sepultamentos apresentavam elementos faunísticos associados (Carvalho et al. 2002), em sua maioria sob forma de artefatos (contas de colar em osso, dentes perfurados na região da raiz, "flauta" óssea perfurada e polida), os indivíduos das sepulturas 119 e 166 foram os poucos que apresentaram esqueletos de animais completos, bem-articulados e posicionados por sobre os esqueletos humanos ou parcialmente completos, visto que alguns elementos ósseos não estavam presentes e possivelmente foram dispersos por agentes naturais ou por atividades antrópicas recentes, as quais teriam provocado algum tipo de perturbação nas sepulturas em questão. Assim, essas duas sepulturas foram as que melhor apresentaram dados relevantes para a formulação de hipóteses sobre as práticas fúnebres e suas prováveis inferências simbólicas durante o período de ocupação humana pré-colonial naquela área; portanto, foram o principal foco desta investigação.
Uma outra perspectiva poderia ser considerada para explicar a complexidade da relação entre os humanos e os animais em contextos funerários, partindo da concepção do "animal de estimação", também conhecido como "xerimbabo" por alguns grupos indígenas amazônicos recentes (Erikson 1983; 2012); entretanto, optamos por manter o foco entre os contextos pré-coloniais, mesmo que oriundos de distintas regiões e culturas, devido à proximidade cronológica e a semelhanças ritualísticas.
Sepultura 119
Conforme a diagnose da sepultura, esse indivíduo foi sepultado numa posição decúbito dorsal, num sepultamento primário e individual; seus membros inferiores estavam elevados e flexionados, e peças cerâmicas foram encontradas sobre a região do crânio e do abdômen. O esqueleto em questão pertence ao sexo masculino, afirmativa resultante da análise das características dos ossos que contribuem para a determinação do sexo (Queiroz e Carvalho 2005; Carvalho 2006).
A datação estabelecida para esse indivíduo foi de 2650±160 B.P. (Queiroz e Carvalho 2005); utilizando pequenas amostras de tecido ósseo, a respeito da idade, o resultado revelou uma faixa aproximada entre 40 e 45 anos de acordo com consolidação das suturas cranianas. Devido aos fatores naturais como agentes químico-físicos, cuja ação pode afetar elementos orgânicos como ossos, pele e pelos, o esqueleto estava em estado friável e apresentava fraturas transversais, longitudinais e oblíquas somadas, ainda, a microfissuras e fissuras. Alguns ossos sofreram pressão sedimentar, além de reentrâncias e perfurações ocasionadas pela ação da erosão e de agentes fúngicos, o que comprometeu a conservação do esqueleto ao longo do tempo (Queiroz e Carvalho 2005).
Segundo Queiroz e Carvalho (2005), nessa mesma sepultura, foi evidenciado um esqueleto de animal parcialmente completo, articulado, com esqueleto em conexão anatômica, com poucos ossos menores dispersos, tratando-se de um representante da família Mustelidae, um furão Galictis cuja (Molina 1782), cujas características morfológicas levam a acreditar que este teria sido inumado antes da fase adulta (figura 4). Torna-se importante considerar que o registro dessa espécie em contextos funerários no Brasil, até o presente momento, configura-se como inédito e que, devido às particularidades de sua inumação (posição do corpo em relação ao esqueleto humano, ausência de estigmas ou marcas de violência, ossos articulados), não se considerou a possibilidade deste ser um animal intrusivo (bioturbação).
O furão (Galictis cuja Molina 1782) foi depositado sobre o abdômen do indivíduo humano na sepultura. Ao levar em consideração que esse animal apresentou um esqueleto com os ossos articulados e em conexão, foi possível propor a hipótese de ato simbólico ao inumar no mesmo enterramento um ser humano e um animal. Nesse sentido, um fator a se tratar são os valores provavelmente atribuídos ao Galictis cuja (Molina 1782), que podem estar associados à esfera funerária, quando esse animal foi inserido no contexto fúnebre exclusivamente para a cerimônia de enterramento ou numa representatividade material, referindo-se a uma ligação pré-morte do indivíduo humano com o animal (mascote ou animal de companhia).
Sepultura 166
Nessa sepultura, foi evidenciado um indivíduo humano adulto com sexo indeterminado, inumado de forma primária num recipiente cerâmico, provavelmente como parte de um ritual mortuário. O esqueleto humano estava em mau estado de conservação, com ossos friáveis, fissurados e fraturados, de forma similar ao do indivíduo 119. A bioerosão foi provocada pelos processos tafonômicos do sedimento. A datação apontou para uma cronologia de 1770 B.P. (Queiroz e Carvalho 2005).
Um fato que distingue essa sepultura da do sepultamento 119, na qual foram depositados vasilhames cerâmicos que recobriam a região cranial e abdominal do indivíduo humano, com o esqueleto do animal, refere-se à inumação dos indivíduos (humano e animal) dentro de uma peça cerâmica. Embora exista um ponto em comum entre as duas sepulturas, a presença de animais completos (com ausência de alguns ossos devido à dispersão e a agentes tafonômicos), com esqueleto articulado e em conexão anatômica. Quanto ao esqueleto humano da sepultura 166, foi evidenciada uma ave de médio porte, cujas análises morfológicas -em particular do bico, alongado, ligeiramente recurvado e pontiagudo- apontaram para uma ave de rapina (figura 5). As observações realizadas sobre o exemplar faunístico não foram bem-sucedidas na determinação de espécie. No mesmo sentido, as análises resultaram em informações aproximadas, em virtude de o conjunto sepulcral ter sido completamente recoberto por resina acrílica (Paraloid), o que impossibilitou a inumação completa da sepultura. Em estudos posteriores, procedeu-se com a remoção química e mecânica dessa resina acrílica (Cardoso 2015), contudo se observou que a continuidade do procedimento comprometeria a integridade das peças ósseas; assim, o procedimento foi interrompido.
Conforme informado, essa ave foi encontrada articulada e com ossos em visível conexão anatômica e associada ao corpo de um indivíduo humano; grande parte dos ossos do animal estava presente. A descoberta de elementos ósseos de animais que acompanham os esqueletos humanos é uma amostra bastante plausível da existência de interações entre o homem e a fauna nessa população pré-colonial no âmbito sepulcral, e cuja relação amplia as hipóteses suscetíveis diante das evidências encontradas na sepultura, principalmente com referências às práticas de teor ritual nos sepultamentos dessas populações (Queiroz e Carvalho 2005).
A presença de restos faunísticos pode determinar uma parcela do cotidiano de vida dessas populações em que a fauna silvestre parece deter um caráter importante diante desses grupos pré-coloniais que habitaram a região Nordeste, em particular a sub-região de Xingó.
Assim como na inumação do indivíduo 119, existe uma palpável possibilidade de que o esqueleto 166 tenha sido sepultado por meio de práticas rituais, fator esse que sugere uma considerável carga simbólica e pode envolver múltiplas interpretações sobre os motivos que levaram essa população a inserir animais em sepulturas ocupadas por humanos.
Resultados e discussão
No universo das complexas relações humano-animais, existem diversos questionamentos e hipóteses sobre as origens e as formas de representação no decorrer do tempo. No Brasil, ainda existem diversas lacunas quanto ao estudo e à busca do entendimento sobre o quão importante o elemento animal é na psique e como compreender sua presença no ambiente funerário.
No caso particular da necrópole do sítio arqueológico Justino, os dados obtidos nas análises empreendidas sobre as duas sepulturas que apresentaram animais completos ou parcialmente completos associados aos sepultamentos humanos consideram o pressuposto em que os vestígios zooarqueológicos estavam incluídos no contexto simbólico presente na inumação dos indivíduos, o que caracteriza um exemplo de relação multifacetada entre as populações humanas pré-coloniais e a fauna. Apesar de poucas amostras, é possível que haja uma reincidência de esqueletos completos desses animais encontrados no sítio Justino e talvez em outras regiões arqueológicas do país, ainda pouco representativas na literatura zooarqueológica, mas que abrem a possibilidade de se propor padrões de enterramentos humanos com a inserção de elementos faunísticos depositados simbolicamente como psicopompo.
Estudos sobre o modo de vida das populações pretéritas na Mesomérica e na América do Sul, bem como de grupos indígenas recentes na Amazônia, apontam para a importância de alguns animais símbolos de poder ou mesmo como "guias das almas", ainda que o status de "psicopompo" não figure claramente nos trabalhos (González Torres 2001; García Escudero 2010; Erikson 2012).
Dessa forma, para o sítio Justino, os resultados baseados em evidências obtidas em escavações forneceram dados promissores sobre os animais presentes nos enterramentos 119 e 166, além de permitirem subsidiar as primeiras inferências a respeito do comportamento simbólico, aqui proposto, entre os indivíduos das populações ocupantes daquelas áreas arqueológicas estudadas em Xingó e a arqueofauna presente em suas práticas funerárias. Ainda, apresentaram uma pretensa importância e influência social exercida pelos indivíduos e a motivação desses grupos para inumar os animais associados aos humanos nas sepulturas nessas sociedades.
Neste estudo, o parâmetro de comparação utilizado foram os resultados das escavações arqueológicas no vale peruano onde, em enterramentos mochicas (Goepfert 2008; 2010), foram encontrados animais completos associados a humanos numa mesma sepultura, muito semelhantes aos encontrados no Justino em Xingó (Simon et al. 1999; Queiroz e Carvalho 2005; Queiroz et al. 2014; Cardoso 2015). Dessa forma, acreditamos que se possa elaborar hipóteses a respeito das possíveis relações existentes entre ambos, mesmo diante de regiões e contextos distintos. Assim, é possível considerar os prováveis aspectos simbólicos dos indivíduos inumados na região nordeste do Brasil, uma vez que os esqueletos de animais se encontravam de forma organizada dentro das sepulturas humanas relacionadas neste estudo, o que poderia estar relacionado à posição social diferenciada do indivíduo com respeito aos demais.
O tratamento diferenciado do morto na prática funerária estaria diretamente vinculado ao status social dele; assim, todo o mobiliário mortuário, inclusive os elementos da fauna, corroboraria com legitimação da influência social desse indivíduo em vida. Além disso, a ideologia do psicopompo demonstrada na iconografia Moche poderia ser seletiva, ou seja, somente os indivíduos privilegiados socialmente acabariam sendo conduzidos por esses animais (Goepfert 2008). Será que tais princípios poderiam ser considerados nos casos apresentados para o sítio Justino?
Essa hipótese ocupa grande parte da pesquisa a partir da observação das estruturas, já que parece expor um comportamento de interação entre o homem e os animais no contexto ritual/funerário, que envolve o papel de psicopompo desses elementos faunísticos e as inumações com seres humanos. Essa associação é evidente no sítio Justino, embora seja necessário estabelecer mais evidências que relacionem os aspectos ligados à função de psicopompo do furão (Galictis cuja Molina 1782) e da ave de rapina em outra sepultura. Além dos aspectos que relacionam os humanos aos animais no sítio arqueológico Justino, existem igualmente fatores ecológicos e paleoecológicos relevantes a se considerar, uma vez que o furão é um animal raramente relatado para a sub-região semiárida de Xingó, mesmo sendo um animal também ocorrente no Bioma da Caatinga (Bornholdt et al. 2013). Já entre as aves de rapina frequentemente encontradas naquela localidade, a espécie Caracara planctos (Miller 1777), conhecida em boa parte do nordeste brasileiro como "carcará", com outros nomes regionais ("caracará", "carancho", "gavião-de-queimada", "caracaraí"). Em revisões sobre a zooarqueologia brasileira, em particular no tocante aos vertebrados terrestres, não ocorrem registros em outras regiões sobre a presença de Galictis cuja (Molina 1782) relacionado a contextos culinários ou mortuários, nem mesmo para as aves de rapina em geral (Queiroz 1999; Queiroz e Carvalho 2008; Queiroz 2010).
Tomando-se como exemplo os diversos aspectos da cultura Moche, enquanto significado da fauna no universo simbólico e na psique mochica, os camelídeos seriam normalmente utilizados como meio de transporte de carga. Assim, nessa ideologia, esses animais teriam o papel, uma vez sacrificados, de levar as almas dos mortos para o plano espiritual; já as aves com sua habilidade de voo, eram vistas como "raptoras de almas", cuja função seria levar (roubar) o espírito do morto (Goepfert 2012).
Conclusão
Levando-se em consideração as particularidades observadas na necrópole do Justino, caracterizada pela presença de acompanhamentos faunísticos sob a forma de adornos e artefatos, em particular as duas sepulturas humanas cujos ossos animais se encontravam articulados e em conexão anatômica, muito diferente do registrado em outros sítios continentais brasileiros, foi possível propor, ainda que de forma preliminar, uma comparação com outras áreas arqueológicas com contextos similares em estrutura funerária. Nesse sentido, este estudo buscou compreender o possível status dos animais considerados como "psicopompo".
Seguindo os princípios teóricos e as observações empíricas no contexto peruano como um provável exemplo, a partir de suas semelhanças com as duas amostras brasileiras do sítio arqueológico Justino, o conceito de psicopompo poderia ser atribuído à fauna em algumas práticas funerárias da considerada "cultura xingoana". O aspecto comum encontrado nas escavações arqueológicas daquele contexto sul-americano com o registrado no sítio arqueológico Justino ocorreu pela observação das estruturas funerárias, onde foram encontrados animais completos associados aos enterramentos humanos. No Justino, existem igualmente inumações humanas com conchas, ossos e esqueletos de animais incompletos, o que caracteriza um modo de vida bastante adaptado às condições ambientais, o que poderia promover a subsistência desses grupos pré-coloniais nos últimos três milênios e permitir, assim, o desenvolvimento de práticas mortuárias complexas.
No caso das sepulturas humanas 119 e 166, em que os esqueletos animais se encontravam em perfeita conexão anatômica, além da ausência de marcas de violência nos ossos, as quais poderiam igualmente indicar uma das formas violentas de sacrifício, há um tratamento diferenciado, bem distinto daqueles comumente observados no processamento dos animais para finalidades culinárias e econômicas, assim como no tratamento e na produção de subprodutos, artefatos e utensílios.
As semelhanças estruturais com o caso peruano nos levam a defender a hipótese de que esses animais possuíam um significado diferencial quanto à sua representatividade simbólica, assim como, rituais fúnebres desenvolvidas pelos indivíduos que habitaram a sub-região de Xingó.