Introdução
Transições hegemônicas constituem tema relevante nos estudos internacionais. Nas últimas décadas, dois autores que as historiaram tiveram seus estudos amplamente divulgados no Brasil e nos demais países da região. Paul Kennedy (1987) abordou o impacto das transições como ascensão e queda das grandes potências, abrangendo os quinhentos anos de existência do sistema internacional. Eric Hobsbawm (1994) estudou a transição da ordem internacional - a qual definiu como "mudança de época" - sob a influência que tiveram a ascensão e declínio das potências sobre a ordem internacional durante o século XX.
Na área de Teoria das Relações Internacionais, o tema das transições hegemônicas teve lugar em uma das correntes menos privilegiadas: a teoria globalista ou marxista. Do ponto de vista teórico, o globalismo concebe as relações internacionais como um conjunto estruturado a partir das formações socioeconômicas nacionais e de suas múltiplas interligações no plano internacional, cujo conhecimento se vincula estreitamente com a área da economia política e que permite a formulação mais segura do conceito de "interdependência" (Keohane e Nye, 1977; Tarzi, 2007; Pearson e Rochester, 2007).
As raízes das concepções globalistas se encontram na tradição marxista, na vertente que se estende de Lênin a Wallerstein, passando por Cox, Tilly e Arrighi, entre outros. Na América Latina, a corrente teórica que desenvolveu estudos sobre as transições hegemônicas de forma mais apropriada foi o estruturalismo, com seu enfoque de economia política, com as contribuições de Prebisch, Furtado, Santa Cruz, Pinto e Sunkel, a partir dos anos 1950, até o neoestruturalismo de Tomassini, Ferrer, Bernal-Meza e outros, nas décadas finais do século XX. Naquelas análises, as relações internacionais eram compreendidas como um sistema mundial, no qual as diversas partes da estrutura - centro e periferia ou centro, semiperiferia e periferia - estão inter-relacionadas de forma funcional e necessária (Bernal-Meza, 2013). Novos aportes, de Gullo (2014, 2018) e de Briceño Ruiz e Simonoff (2015), somam-se a essa perspectiva, ampliando as possibilidades de compreensão dos efeitos das transições hegemônicas sobre os países latino-americanos. No caso do Brasil, a atual conjuntura internacional não tem sido vista na literatura como uma transição hegemônica, mas como uma crescente globalização, com desafios para a inserção internacional (Cervo, 2008; Lessa e Oliveira, 2013).
O artigo parte da hipótese ou do pressuposto de que esteja em andamento uma transição hegemônica do poder norte-americano para o chinês (Fiori, 1999; Arrighi, 2008; Mandelbaum, 2010; Li e Farah, 2013; Nasr, 2014; Li, 2014, 2019), o que permite fazer um contraponto da atual inserção internacional do Brasil com a que ocorreu na transição da hegemonia britânica para a norte-americana, entre o fim do século XIX e o período do entreguerras. Não se trata de uma abordagem sistêmica, mas sim da análise dos efeitos da transição hegemônica em países periféricos, no caso, o Brasil. A ascensão da China marcaria o surgimento de desafios equivalentes aos experimentados no final do Império e no início da República, e equacionados, em sua maioria, nos dez anos da gestão do Barão do Rio Branco1, entre 1902 e 1912 (Fonseca Jr., 2012).
Tomada como um pressuposto, a transição é, na verdade, uma hipótese que se comprovará ou não no futuro. Isso porque a China ainda não é um ator com as capacidades de exercer uma hegemonia em todas as áreas e agendas do sistema internacional. Tampouco é o ator mais importante nem o que exerce maior poder hegemônico nas relações internacionais do Brasil. Portanto, o que se propõe é uma hipótese prospectiva de trabalho, a qual vislumbra cenários internacionais e globais futuros.
A China tem uma posição dual na ordem capitalista mundial, uma situação complexa de hegemonia e contra-hegemonia (Li, 2020; Li, 2012). Contra-hegemonia e ordem capitalista mundial por meio do BRICS, BRICS-plus e de outros agrupamentos, como o Consenso de Beijing (Li, 2014; Vadell e Ramos, 2019); hegemonia em suas relações com a semiperiferia e a periferia: América Latina e África (Li e Farah, 2013; Becard e Lessa, 2019; Li, 2020; Bernal-Meza e Li, 2020).
Na primeira parte do artigo, é apresentada a trajetória da política exterior brasileira, do final do século XIX à década de 1960, quando surgiram as primeiras críticas à ordem internacional do pós-guerra, ao sistema interamericano e à dependência das economias latino-americanas em relação às potências centrais. O debate que permeia essa seção diz respeito à construção da hegemonia norte-americana na América Latina, à forma como o Barão do Rio Branco adequou a política exterior brasileira à conjuntura do início do século XX e sua influência nas décadas seguintes. A segunda trata do recente processo de globalização, de como o Brasil respondeu à nova conjuntura e como tem tratado de temas como a ascensão da China, o declínio relativo dos Estados Unidos e os avanços e recuos na integração sul-americana, nas décadas iniciais do século XXI. Na terceira parte, a política externa de Rio Branco e as relações com a Grã-Bretanha, com os Estados Unidos e com os países latino-americanos são comparadas com a política externa do governo Bolsonaro; além disso, é avaliado como a nova política se diferencia da política externa universalista dos governos de Lula da Silva (Lessa e Oliveira, 2013; Bernal-Meza e Bizzozero, 2014; Cervo e Bueno, 2015).
A questão é a de saber se Bolsonaro "desafia" Rio Branco ao se aproximar da potência declinante, os Estados Unidos, e se afastar da potência ascendente, a China; ainda, se, no âmbito sul-americano, a tendência seria a de esvaziar a integração regional e afirmar a "liderança" brasileira, ao contrário da busca do equilíbrio nas relações platinas adotadas por Rio Branco. Nas considerações finais, nossa conclusão é uma hipótese: as diferenças principais entre a transição hegemônica do passado e a atual - e que explicariam as opções do governo Bolsonaro - seriam: 1. os vínculos históricos entre as economias, as sociedades e as culturas britânica e norte-americana, em contraste com as diferenças políticas, sociais e culturais entre os Estados Unidos e a China; 2. a proximidade geográfica, econômica e cultural do Brasil em relação aos Estados Unidos, mais forte nos dias de hoje do que 130 anos atrás, e a distância geográfica e cultural em relação à China; 3. a dependência estrutural na área de defesa, o que praticamente impossibilita a "opção chinesa" ou a "opção dos BRICS". A proximidade das Forças Armadas brasileiras com as instituições similares estadunidenses, a provisão de equipamento militar dos Estados Unidos e de seus aliados europeus e a ausência de fornecimento por parte da China inibem a possibilidade de aproximação com a China nessa área.
O recuo ao período de Rio Branco, como contraponto à atual política externa do Brasil, advém do fato de ele ter consolidado a transição do europeísmo para o americanismo, nos termos propostos por Bueno (2003). Nesse sentido, sua gestão tornou-se um marco no posicionamento brasileiro diante da transição hegemônica do Reino Unido para os Estados Unidos da América, ilustrado pela criação da primeira embaixada brasileira, em Washington-DC.
De Rio Branco à política externa independente: autonomia e permissibilidade
Rio Branco concluiu, no plano político, a etapa de convergências entre os Estados Unidos e o Brasil iniciada com a Proclamação da República (1889) deste último. Sua gestão promoveu o apoio brasileiro às posições norte-americanas diante da Venezuela, em 1902, e da Colômbia, no ano seguinte (Doratioto e Vidigal, 2015). Essa política, com breves períodos de distanciamento - durante a "política externa independente" e o "pragmatismo ecumênico e responsável" -, tem sido mantida até o presente. Os governos do Partido dos Trabalhadores (PT), embora tenham participado e impulsionado o Fórum de Diálogo entre Índia, Brasil e África do Sul (Ibas) e o BRICS, nunca imaginaram esses agrupamentos como contra-hegemônicos ante os Estados Unidos, o que é igualmente válido para os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro.
A historiografia, em especial a partir dos trabalhos de Álvaro Lins (1996) e de Luiz Viana Filho (1959), convergiu em torno da ideia de que Rio Branco não foi um homem de Estado que tenha se orientado pelo militarismo ou pelo imperialismo. Pautado pela convicção nos sentimentos pacíficos dos governos aos quais serviu, considerava primordial o reconhecimento, pelos demais países sul-americanos, de que o país não tinha feito uso da força, não se apresentando como potencial ameaça aos vizinhos, entre os anos 1870 e o início do novo século. Certamente, não se deve receber de maneira acrítica a autoimagem que Rio Branco fazia de si e dos governos brasileiros, pois muitos foram os seus críticos, e conhecidos são os atritos com o ministro argentino Estanislao Zeballos ou o jogo entre competição e entente do Brasil com a Argentina e o Chile (Meneses, 1988), para citar apenas um exemplo.
Durante sua gestão, dois de seus colaboradores expressaram posicionamentos distintos, um mais vinculado aos desígnios de Washington, outro simultaneamente crítico e admirador: Joaquim Nabuco e Domício da Gama. Para Nabuco, a Doutrina Monroe e o corolário Roosevelt significavam que os países americanos haviam se desprendido da Europa "como a lua da terra", o que levou o historiador José Honório Rodrigues a sugerir que Nabuco tivesse, por princípio, marchar sempre com eles, ao menos sempre que possível (Nabuco, 1949; França, 2007). Domício da Gama afastava-se da visão de Nabuco sobre a Doutrina Monroe, pois a considerava carente de reciprocidade, portanto em desacordo com interesses brasileiros.
A política brasileira para a América do Sul e na região do Prata foi e talvez seja ainda matéria controversa. A amizade que deveria reger as relações com a Argentina e o Chile não excluía a criação de um poder dissuasório por parte do Rio de Janeiro. Ao lado da rivalidade tradicional entre os três países - excetuando, talvez, as relações Brasil-Chile -, havia a compreensão, por parte do Rio de Janeiro, sobre a necessidade de estabelecer relações amigáveis no Cone Sul (Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai), notadamente em sua dimensão geopolítica.
A partir de 1909, as tensões na região arrefeceram, sem que a rivalidade entre a Argentina e o Brasil saísse da agenda. O símbolo dessa aproximação foi a frase proferida por Sáenz Peña: "Todo nos une; nada nos separa" (citado por Bandeira, 2003, p. 125). Na conjuntura da Primeira Guerra Mundial, a Argentina, o Brasil e o Chile assinaram o Tratado do ABC, voltado para a coordenação das políticas de defesa do Cone Sul. O ABC não foi bem-recebido nos Estados Unidos, por ser potencialmente um contrapeso à sua influência, nem nos países sul-americanos, sob o argumento de que uma política pan-americana não deveria comportar preponderâncias restritas, que eliminassem a ampla participação dos Estados nacionais da região (Bandeira, 2004).
Quanto às relações do Brasil com a Grã-Bretanha, vista como "potência decadente", estiveram subordinadas ao declínio econômico britânico. Diferentemente da Argentina, cuja orientação principal seguirá voltada para Londres até a Segunda Guerra Mundial, o Brasil priorizou os laços com Washington desde a Proclamação da República, em 1889.
Desde o início do século XX, a Grã-Bretanha passou a dar liberdade de ação para os Estados Unidos no Hemisfério Ocidental, explicitado por Balfour em 1903, ao afirmar que os britânicos não desejavam a colonização, a aquisição de territórios ou as alterações no equilíbrio de poder: "a Doutrina Monroe não estava, portanto, em tela de juízo" (citado por Bueno, 2003, p. 32). A adoção por Londres do nihil obstat diante da presença estadunidense na América Latina concorria para a adoção de práticas imperialistas por parte de Washington, mas prevalecia a ideia de que era do interesse dos capitalistas britânicos que a potência norte-americana assumisse o papel de polícia internacional. Como destacou Polanyi, em A grande transformação (Polanyi, 1957), o padrão-ouro e o constitucionalismo eram os instrumentos que tornaram conhecida a voz da City de Londres em muitos dos países menores que adotaram esses símbolos de adesão à nova ordem internacional. No caso do Brasil, a passagem da hegemonia britânica para a estadunidense se deu de forma amistosa, ao longo de algumas décadas, ainda que não isenta de momentos de desconfiança, como nos eventos da Proclamação da República e nos anos iniciais do novo regime (Bueno, 2003; Cervo e Bueno, 2015).
O processo modernizador do Brasil, nos finais do século XIX, dependeu do comércio com os Estados Unidos, pois os superávits na balança comercial geravam excedentes para atender amortizações, serviços de empréstimos britânicos e para custear o complexo exportador, nas mãos dos ingleses. A concorrência comercial entre norte-americanos e ingleses, segundo Cervo, estabeleceu-se no Brasil apenas em pequena escala. Nessa conjuntura, os Estados Unidos elevaram seu interesse no país, com a intenção de abrir mercados e equilibrar suas contas (Cervo e Bueno, 2015).
Nas décadas iniciais do século XX, o Brasil estreitou laços com os Estados Unidos, manteve boas relações econômicas e diplomáticas com a Grã-Bretanha, e atuou de forma autônoma nas questões mais delicadas das relações sul-americanas, em especial as do Cone Sul. Nas quatro décadas que se seguiram à Primeira Guerra Mundial, a política exterior brasileira foi regida principalmente pelas demandas das relações com os Estados Unidos. As ações ou ensaios de autonomia representados pela participação brasileira nas negociações do pós-guerra, pelo comércio compensado com a Alemanha, permitiriam a Getúlio Vargas - que ascendera à Presidência na Revolução de 1930, cargo no qual permaneceria até 1945 - o exercício da "política de barganha" com esse país e com os Estados Unidos (Bandeira, 2004; Seitenfus, 2003; Cervo e Bueno, 2015; Doratioto e Vidigal, 2015).
Na construção da nova ordem mundial do segundo pós-guerra, o Brasil se alinhou aos Estados Unidos na Organização das Nações Unidas (ONU) e no processo de construção do Sistema Interamericano. Durante os governos Dutra, Vargas, Café Filho e os anos iniciais de Kubitschek, o Brasil procurou buscar recursos financeiros e tecnológicos junto aos Estados Unidos para a promoção do desenvolvimento econômico. Das primeiras conferências interamericanas do pós-guerra (Chapultepec, Rio de Janeiro, Bogotá) até 1958, estabeleceu-se um diálogo de surdos: enquanto o Brasil, no que foi acompanhado pela maioria dos países latino-americanos, reivindicava uma definição explícita por parte de Washington quanto aos aportes a serem feitos na região, o governo norte-americano cobrava compromisso com as instituições internacionais, com os preceitos da Guerra Fria e com as necessidades impostas pela área de segurança. O resultado foi o crescente desconforto das lideranças políticas latino-americanas diante da atitude reticente de Washington e do anti-americanismo em alguns países.
Em maio de 1958, por ocasião da viagem do vice-presidente Nixon ao Peru e à Venezuela, o governo americano percebeu a dimensão da insatisfação dos países sul-americanos com o tratamento que Washington vinha dispensando às suas demandas e a necessidade de rever sua política para a região. Entre os desdobramentos da visita de Nixon, destacou-se a iniciativa do presidente Kubitschek de escrever a Eisenhower, propondo um esforço conjunto de cooperação econômica dos países americanos em prol de projetos nacionais de desenvolvimento, logo denominada "Operação Pan-Americana" (Cervo e Bueno, 2015; Cervo, 2008; Lafer, 2002). Diante do novo quadro na política regional, o governo norte-americano levou o debate para o âmbito do Conselho Econômico e Social da Organização dos Estados Americanos (OEA), onde foi criado o Comitê dos 21, encarregado de gerir a implementação da OPA2. Os trabalhos realizados no Comitê permitem identificar uma política protelatória por parte da representação norte-americana, com o intuito de esvaziar o conteúdo "desenvolvimentista" da proposta brasileira em favor de uma visão essencialmente assistencialista (Vidigal, 2009).
A política externa de Jânio Quadros, autointitulada "Política Externa Independente", procurou superar os constrangimentos das décadas anteriores por meio de uma orientação que priorizava a expansão do comércio e a diversificação dos laços internacionais, o estabelecimento de relações diplomáticas com países socialistas, a luta contra o subdesenvolvimento e o empenho em favor da integração econômica regional, sem romper com a posição tradicional do Brasil em outros pontos da agenda internacional, como o respeito ao "mundo livre", à OEA e à ONU.
Da autonomia dos anos 2000 ao "novo alinhamento"
Embora Lula tenha incentivado e participado de alianças contra-hegemônicas no âmbito da economia política internacional, como o Ibas e o BRICS, não se pode afirmar que ele ou sua sucessora, Dilma Rousseff, tenha desenvolvido uma política internacional contrária aos Estados Unidos (Pecequilo, 2012; Cervo e Bueno, 2015). Sempre se tratou de relações "centrais" ou "cruciais" para o Brasil, mas também de grande assimetria. Para o Brasil, pensar nos Estados Unidos é pensar em sua política exterior (Pecequilo, 2012) como uma "parceria estratégica", que influencia as estruturas socioeconômicas do país ao longo do tempo (Cervo, 2008). Essa tradição que remonta a Rio Branco apresentou-se, na trajetória histórica do país, como parceria estratégica em alguns momentos ou como alinhamento em outros.
A política externa do PT se caracterizou pelo multilateralismo e pelo fortalecimento e construção de parcerias estratégicas. O que diferencia esse passado com a etapa iniciada com a presidência de Bolsonaro talvez seja a adesão à política de rechaço do globalismo e do multilateralismo.
O governo Bolsonaro começou a aproximar-se dos Estados Unidos por meio de ideias - expressas pela visão do ministro Ernesto Araújo - e de ações. Durante a campanha e nos primeiros meses de governo, manifestações do Presidente, de seu filho Eduardo e de um dos mentores de seu projeto, Olavo de Carvalho, demonstravam que o estreitamento dos laços com Washington era mais o resultado de contatos com grupos políticos norte-americanos simpatizantes de Trump do que fruto de um entendimento político consistente.
Bolsonaro introduziu cinco mudanças na política externa sul-americana do Brasil, em comparação ao período 2003-2016: 1. recolocou o país em uma relação estreita à política exterior norte-americana; 2. retirou seu apoio e logo começou a incentivar - juntamente com o presidente chileno Piñera - um novo agrupamento para substituir a União de Nações Sul-Americanas (Unasul); 3. abandonou o respaldo político ao governo venezuelano, identificando-o como a principal ameaça para a segurança e estabilidade da região; 4. passou a tratar o Mercado Comum do Sul (Mercosul) como um tema secundário na agenda; 5. reduziu a prioridade que Brasília - desde 1985 - atribuía a Buenos Aires, em favor do Chile, primeiro país a ser visitado pelo novo presidente.
Qual poderia ser a explicação de colocar o Chile como o primeiro país a visitar? Sinalizar que foi devido à sintonia política não o explica, posto que Macri é tão liberal quanto Piñera. É possível, então, Bolsonaro tenha tentado retomar a visão que Rio Branco tinha em relação ao Cone Sul e buscar uma nova aproximação com o Chile. O Brasil e o Chile compartilham hoje uma posição crítica a respeito do regionalismo político sul-americano, em particular sobre a Unasul, mas a Argentina também. Entretanto, o imaginário do Chile em relação a paradigmas e visões sobre o sistema internacional é distinto do brasileiro. São dois países com capacidades, atributos e recursos de poder enormemente diferentes. Em parte, o modelo de inserção internacional e seus instrumentos são semelhantes em ambos os países: a visão ideal do tipo de Estado, a internacionalização da economia e o papel das empresas, assim como papel que desempenha o capital privado. Mas também grandes diferenças: o Brasil tem uma histórica vocação industrialista - que não existe atualmente no Chile - e uma aspiração a concertar internamente os diversos segmentos e recursos de poder: indústria, ciência e técnica; pesquisa e desenvolvimento; papel do mercado interno de consumo e outros; todas questões que são muito relativas no modelo chileno.
O Brasil é um global trader que se pensou global player, cujos interesses são tanto econômicos como políticos e sugerem a aspiração a uma participação influente na tomada de decisões no sistema internacional e nos organismos internacionais. Na interpretação de Cervo e Bueno, esta foi a herança dos dois governos de Lula: a de desempenhar o papel que era devido no âmbito hemisférico e no cenário internacional (Cervo e Bueno, 2015). O Brasil pressupunha que seus vizinhos regionais reconhecessem a priori suas condições de liderança e hegemonia sob um soft power. Porém, nos anos recentes, sob os governos da Concertação, o Chile buscou colocar-se como modelo de inserção regional e tem procurado disputar, com o Brasil, essa condição de liderança natural (Bernal-Meza, 2015; Flisfisch, 2011).
Provavelmente a decisão de visitar primeiramente o Chile tenha sido resultado da influência do ministro da Economia, Paulo Guedes. Egresso do curso de Economia da Universidade de Chicago e admirador do liberalismo e do "modelo" chileno, Guedes teceu elogios ao Chile em diversas ocasiões, em visão superficial sobre o sucesso econômico daquele modelo e a viabilidade de aplicá-lo ao Brasil de hoje. Ademais, somou-se aos críticos da Unasul e da política de contemporização com Caracas.
Segundo o embaixador Pinheiro Guimarães, secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores (MRE, também chamado de "itamaraty") durante os governos de Lula, essas posições já tinham antecedentes:
no período de Michel Temer, o Brasil se juntou aos países da Aliança do Pacífico e aos países do Grupo de Lima contra a Venezuela, infringindo os princípios de autodeterminação e de não intervenção, gerando desconfianças e ressentimentos, no esforço de agradar aos Estados Unidos em sua campanha para derrubar o governo venezuelano" (Guimarães, 2018, s/p.).
No discurso de posse, o ministro das Relações Exteriores pôs a figura do presidente Bolsonaro como um libertador do Brasil e definiu a nova etapa da política exterior como aquela que se libertava do passado. Em suas palavras, "o presidente Bolsonaro está libertando o Brasil por meio da verdade. Nós vamos também libertar a política externa, vamos libertar o Itamaraty, como o presidente Bolsonaro prometeu que faríamos, em seu discurso da vitória" (Araújo, 2019, s/p.).
Segundo Cervo (2019), Bolsonaro e Cardoso coincidem:
os dois presidentes têm uma visão de mundo e da inserção internacional do Brasil semelhante: são liberais, nesse sentido, inovadores relativamente ao período anterior a seus mandatos, de governos mais nacionalistas e introspectivos. Isso significa, para a política exterior, um novo ciclo de abertura da economia a empreendimentos, capitais e tecnologias vindas de fora" (s/p.).
Para Cervo (2002), não haveria ruptura na política exterior, porque ela apresenta, há séculos, três traços que compõem a estratégia brasileira de longo prazo: universalismo, cooperação e pacifismo. Mas há que se recordar daquelas diretrizes que marcaram a política externa de Cardoso (Bernal-Meza, 2002). Nesse sentido, é possível que o vínculo com os Estados Unidos e as potências do capitalismo central, o apoio às instituições de governança global sustentada pela hegemonia norte-americana e a posição a favor do Ocidente ante os conflitos mundiais, bem como o suposto enfrentamento civilizatório deixem para trás o que Bandeira (2004) denominou de "relações perigosas".
O americanismo do governo Bolsonaro, entretanto, parece desmentir Cervo, ou seja, concilia o alinhamento político aos Estados Unidos com a repulsa ao universalismo e mesmo à cooperação e ao pacifismo. O chanceler Ernesto Araújo elogia Trump como "um cavalheiro cruzado que luta para resgatar a identidade do Ocidente". Para Araújo (2017), Trump e sua política internacional representam a disposição para uma luta global para recuperar o passado simbólico que tem representado a história e a cultura das nações ocidentais, para a sobrevivência e o domínio do Ocidente.
Um grande questionamento é o que acontecerá com o papel que a política exterior brasileira tem desempenhado na região e se ela retornará à disposição para a liderança que marcou o período Lula ou se deixará nas mãos de potências secundárias - como o Chile - essa posição; o país que Bolsonaro considera um modelo. No plano da política internacional, um posicionamento em linha com a política de Trump poderia ter grandes impactos. Uma maior aproximação - ou coincidências - com a política de Washington afastaria o Brasil de sua tendência mais tradicional, a da autonomia - cujo efeito seria um afastamento relativo do BRICS e a predisposição do presidente Bolsonaro a restabelecer uma relação de cooperação militar com os Estados Unidos (Cervo, 2019), o que despertaria na região velhos temores - nunca esquecidos - sobre o subimperialismo brasileiro.
Há que se considerar, nesses aspectos, que a política externa do governo Bolsonaro tem sido informada por diferentes grupos de interesse, o que resulta, muitas vezes, em uma prática errática, inconsistente e excessivamente ideológica (Stunkel, 2019; Spector, 2019). Diferentemente de outras situações semelhantes - Dutra, Castelo Branco ou Collor -, desta feita, o Itamaraty não atuou como contraponto à presidência, alimentando muitas vezes o discurso ideológico.
Bolsonaro e Trump parecem ter muitos pontos em comum. Entre as coincidências mais delicadas está seu rechaço ao "globalismo"3, o que revela que ambos os presidentes estão dispostos a depreciar o que as diplomacias de seus próprios países construíram sob o sistema internacional contemporâneo: a criação e fortalecimento das organizações internacionais, o sistema das Nações Unidas e as negociações mundiais sobre assuntos que importavam à sociedade internacional. Ações que se plasmaram em temas e agendas globais, como o meio ambiente e a mudança climática. Ambas seriam tendências de mudança profunda que impac-tariam todo o cenário latino-americano. O mais preocupante é imaginar o Brasil imerso em um enfrentamento a respeito do papel do Ocidente na defesa da chamada "cultura ocidental", posto que ela tem sido o instrumento mais importante do colonialismo e da dominação das potências ocidentais sobre a periferia do mundo.
O que parecia ser manifestações de desinteresse (ao menos) a respeito de seu sócio estratégico sul-americano, Bolsonaro, ao não incluir a Argentina em sua primeira viagem ao exterior e as declarações de seu ministro da Economia a respeito do Mercosul, o que indicava que este não seria uma prioridade para o Brasil, pode trazer consequências negativas para as relações sul-americanas. Deve-se recordar que a base de qualquer entendimento de cooperação, governança regional e continuidade para fazer da região uma zona militarmente desnuclearizada passa por uma relação cordial entre o Brasil e a Argentina. A construção de uma "zona de paz" no Atlântico Sul, por meio da superação das hipóteses de conflito entre a Argentina e o Chile, tem se baseado na continuidade dessa relação de cooperação. A partir dessas perspectivas, a presidência Bolsonaro não só implicaria o retorno da América do Sul às concepções ideológicas radicalizadas que se supunham superadas, que incluem novos vínculos estreitos em matéria de segurança com os Estados Unidos, mas também o início de uma etapa de incerteza na região.
Alinhamento com Washington, incertezas quanto a Pequim
O alinhamento com Washington à época de Rio Branco seguia um roteiro previsível diante da potência ascendente: a adesão aos princípios do Direito Internacional, a incorporação acrítica do conceito de "bom governo" e a convicção de que o progresso da nação dependia dos desígnios do norte. Nada parecido se via em relação a Londres, que ainda conservava o status de principal centro financeiro internacional, mas que perdia importância no intercâmbio de mercadorias. Mais de um século depois, o novo alinhamento - e este é o contraponto que se mencionou na introdução - mantém o principal das relações internacionais do país voltado para os Estados Unidos. De acordo com a hipótese de trabalho inicial, a de estarmos em meio a uma transição hegemônica dos Estados Unidos para a China, Bolsonaro estaria em dissonância com Rio Branco.
Os primeiros meses de 2019 revelaram que o governo Bolsonaro sustentava, na política externa, o principal das promessas de campanha, acompanhadas do mote "o Brasil acima de tudo". Inspirado no governo de Trump, o discurso de supremacia contrastava com o silêncio diante da política protecionista de Washington, que elevara a tarifa para a importação do aço e subsidiava a produção de soja, ambas as medidas prejudiciais para os interesses brasileiros. Ante eventuais perdas setoriais, o governo seguia fiel ao princípio do alinhamento, em dissonância com o legado de Rio Branco.
A crise na Venezuela e os interesses econômicos do agronegócio no mercado chinês levariam o governo a modificar em parte a retórica inicial, o que indicaria estar em curso ajustes e reorientações na área. No dia 23 de fevereiro, o autoproclamado presidente interino da Venezuela, Juan Guaidó, liderou um esforço de tentar fazer com que caminhões com alimentos adentrassem a Venezuela, como forma de pressionar o governo Maduro. Em Pacaraima, o chanceler brasileiro explicava se tratar de um ato humanitário, altruísta, "um momento de criação de uma nova realidade na Venezuela". Quanto à possibilidade de intervenção, Araújo considerava que "não há menor expectativa de conflito, mas claro que o Exército está preparado caso isso possa se materializar" (Cronologia, 2019, s/p.).
Na visão do vice-presidente Mourão, que não ocultava a influência estadunidense, a crise venezuelana só seria superada com a neutralização de agentes externos, em especial a presença cubana. Se essa situação continuasse, a Venezuela correria o risco de se tornar um "não Estado" (Araújo, Rittner e Murakawa, 2019). Mourão, ao mesmo tempo que não contemporizava com o governo Maduro, indicava não estar de acordo in totum com o alinhamento com Washington nessa questão, ao colocar em dúvida a legitimidade de Juan Guaidó.
Em relação à China, a visita de Mourão e seu encontro com Xi Jiping marcaram a superação de desconfianças manifestadas durante a campanha e os meses iniciais de governo. Para Mourão, a prioridade era restabelecer o funcionamento da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (Cosban) e reorganizar sua estrutura, para que voltasse a ser um mecanismo de alto nível. Em sua percepção, a China tem sido um parceiro confiável do Brasil desde 2009, ano em que se tornou seu maior parceiro comercial e no qual ocorreu a I Cúpula do BRICS. Nesses dez anos de parceria estratégica, o fluxo comercial bilateral alcançou USD$ 100 bilhões, embora o Brasil exportasse muito mais produto in natura que produtos com valor agregado, uma das reclamações que teria apresentado ao primeiro mandatário chinês.
A China vinha se transformando em um enorme desafio regional e internacional para o Brasil.
Em vinte anos, a China transitou de ser vista como "a oportunidade" para ser percebida como desafio (Bernal-Meza, 2014); de potencial grande mercado para as importações e a exportação de capitais, a fazer de seus sócios latino-americanos periferia primário-exportadora. A evolução das relações econômicas entre a China e o Brasil, de maneira bilateral e no âmbito das relações no BRICS, estaria sinalizando uma tendência estrutural da configuração de um padrão de relações centro-periferia (Beckerman e Moncaut, 2016; Becard, 2017; Bernal-Meza, 2019a, 2019b).
O ingresso da China na economia política da América do Sul deslocou o Brasil do lugar preponderante que ocupava dentro do bloco Mercosul e no contexto regional. A respeito dos processos de integração latino-americanos - em particular do Mercosul -, a China se transformou em um fator de profundo desequilíbrio, porque foi se transformando no principal e segundo sócio mais importante da inserção econômica internacional da América do Sul (Hiratuka, 2016; Dussel, 2016). Isso afetou igualmente a posição do Brasil como a principal economia para seus vizinhos. No plano interno, a presença econômica chinesa parece estar condicionando a eventual autonomia do desenvolvimento industrial e tecnológico brasileiro, ao exercer um crescente controle sobre a estrutura energética no setor elétrico (Becard, Lessa e Silveira, 2020; Becard, 2017).
A presença chinesa na América Latina concorreu para enfraquecer a influência brasileira sobre a integração regional. Entre os interesses brasileiros, figurava a ideia de não seguir a política adotada por Washington em relação a algumas empresas chinesas, em particular a gigante de telecomunicações Huawei. Nesse sentido, Mourão, que foi "alertado" pelo governo norte-americano sobre os riscos das operações da empresa chinesa, teria sugerido a Xi Jinping a criação de um ambiente de confiança quanto à companhia, "de modo que nenhum país que vá receber a empresa e a tecnologia que vocês vão instalar e fique preocupado com que todos dados que estarão em seu poder pertencerão também ao governo [chinês]. Esta é a discussão" (Araújo et al., 2019, s/p.). A expectativa de abertura brasileira à tecnologia 5G chinesa se vinculava ao fato de o país ainda não estar integrado digitalmente e de ter um marco regulatório defasado no setor. A presidência brasileira passava a se posicionar de forma equidistante em relação aos interesses de Washington e Pequim, o que se estendia à política adotada diante da guerra comercial entre as duas maiores economias. Poucos casos ilustravam com tanta transparência um dos mais importantes efeitos da transição hegemônica em curso.
Mourão fora convencido pelo secretário-geral do Itamaraty, Otávio Brandelli, quanto à adequação de uma conduta flexível e pragmática. Em face de uma guerra comercial dessa natureza, o governo brasileiro deveria saber explorar as oportunidades. Por exemplo, como a administração Trump taxou parcela das importações da China, inicialmente em torno de USD$ 250 bilhões, os produtos envolvidos passaram a chegar mais caros no mercado norte-americano e, eventualmente, poderiam ser substituídos por produtos brasileiros, o que acrescentaria USD$ 5 bilhões ou mais nas nossas exportações. A guerra comercial deveria, assim, ser tratada com paciência.
O limite da visão do vice-presidente brasileiro - que dava vazão às pressões do agronegócio - era evidente. Temas como transferência de tecnologia e cooperação industrial não foram abordados. Indagado sobre o fato de o conflito de interesses entre Estados Unidos e China não ser apenas comercial, mas também tecnológico, a resposta foi igualmente simplista: "Você olha o 5G. As quatro empresas que detêm a tecnologia são duas chinesas e duas finlandesas. Cadê a americana?" (Araújo et al., 2019, s/p.). Ou seja, o governo brasileiro - afastadas as desconfianças iniciais em relação à China - voltava a se ocupar dos temas tratados em governos anteriores: exportações de alimentos e minérios, investimentos diretos com geração de empregos, acordos de cooperação em tecnologia; estes últimos, sem vínculo claro com qualquer projeto mais amplo de industrialização e desenvolvimento tecnológico.
O governo Bolsonaro aparentemente estava satisfeito com o status internacional do país, sem atentar minimamente ao processo de desindus-trialização das últimas décadas (Benaion, 2006; Cano, 2012; Oliveira, 2018). Para Chang (2018), nos anos 1980 e 1990, o Brasil conheceu o ponto mais alto da industrialização, que atingiu 35% da produção nacional. No final de 2017, representava apenas 12%, e a tendência era de declínio. O Brasil tem, nesse sentido, voltado no tempo. Empresários de São Paulo não parecem estar preocupados com o declínio da indústria manufatureira. No longo prazo, essa política é prejudicial para o país. No governo Dilma Rousseff, vários subsídios foram canalizados para a indústria, mas as altas taxas de juros não favoreceram mudanças efetivas (Oliveira, 2018).
O processo de desindustrialização, as políticas econômicas e o conformismo com a condição "subordinada" do país instruíram, em outro momento, o uso do conceito de "periferia próspera" para o crescimento econômico de meados da década de 2000, sustentado pela demanda chinesa (Doratioto e Vidigal, 2015). As taxas de crescimento da China beneficiaram as exportações latino-americanas de produtos agrícolas, minérios, petróleo e produtos manufaturados de baixo valor agregado. Concorreram, por sua vez, para reforçar o caráter liberal periférico de economias como a brasileira (Filgueiras e Gonçalves, 2007).
Na política externa, era clara a intenção de reduzir o peso do Itamaraty nas decisões relativas aos assuntos de segurança e defesa, fronteiras, narcotráfico e outros delitos internacionais, e imigração, como no tema da crise na Venezuela e em outros assuntos sensíveis na área da política internacional. Quanto ao chanceler Ernesto Araújo, que havia impressionado negativamente a maioria dos estudiosos de política externa e internacional em razão de certo "messianismo" na defesa do Ocidente e da administração Trump, passou a atuar de modo mais comedido e profissional, como na ocasião da assinatura do acordo Mercosul-União Europeia, no dia 28 de junho de 2019.
Bolsonaro, no final de reunião do G-20 em Osaka (28 e 29 de junho de 2019), se disse satisfeito com os resultados do encontro do BRICS e do próprio G-20, além de destacar a importância da conclusão do acordo Mercosul-União Europeia. Na reunião dos BRICS, Bolsonaro desistiu de propor aos demais líderes o apoio a uma mudança de governo na Venezuela. Foi também a oportunidade para reconhecer o interesse brasileiro em manter bom diálogo com o principal parceiro comercial do país.
Os ajustes percebidos na condução da política externa não significaram uma mudança de rumo do governo Bolsonaro, no que tange à priorização dos laços com os Estados Unidos, a Europa e o Japão, parceiros preferenciais nas décadas de 1960, 1970 e sob o governo de Cardoso. Nesse sentido, as relações com a China, a despeito do discurso em prol de uma parceria estratégica ou coisa que o valha, têm sido tratadas de forma setorial - comércio, investimentos, cooperação tecnológica - e descompromissada com qualquer planejamento. Os laços históricos com os Estados Unidos, em todas as suas dimensões, favorecem a acomodação e a recusa em tratar seriamente a hipótese da "opção chinesa", o que não necessariamente é negativo.
Conclusão
As transições hegemônicas no marco da economia política mundial têm constituído um problema externo e interno para os países inseridos em uma relação centro-periferia. A ascensão da China e sua presença econômica na América do Sul têm levado alguns países a incluí-la em seus cálculos estratégicos. A Argentina, o Brasil e o Chile podem desempenhar um papel crucial nesse processo, tendo em vista a relevância geopolítica e econômica do Cone Sul, pois a polarização Estados Unidos-China cria janelas de oportunidade e gera maior permissibilidade no sistema internacional, como diria Hélio Jaguaribe.
Destacamos a identificação das grandes linhas de continuidade e de ruptura que têm implicado o discurso do presidente Bolsonaro e dos principais colaboradores, em relação à tradição da política externa brasileira. O contraponto inicial com a política e o pensamento de Rio Branco, com destaque para as boas e privilegiadas relações com os Estados Unidos, permitiu identificar períodos de maior proximidade ou de distanciamento de Washington. Bolsonaro está próximo dessa tradição, a de ver o Brasil como sócio próximo dos Estados Unidos, mas se afasta de práticas autonomistas como a da política externa independente e a do pragmatismo responsável. Práticas essas que permitiriam avaliar de modo desassombrado as relações com a China.
Tanto a ascensão da China como a posição que ocupa Pequim na estrutura econômica brasileira planteiam desafios equivalentes ao que o Brasil experimentou no começo do século XX. À diferença da visão de Rio Branco, durante a transição da hegemonia, não parece haver, no governo de Bolsonaro, um olhar seguro sobre os impactos da transição hegemônica nem do papel que o Brasil deveria desempenhar na estratégia global da China.
Um terceiro tema de preocupação é o das relações com a Argentina. A visita subsequente a Buenos Aires, a assinatura do acordo para negociar um tratado de livre-comércio entre o Mercosul e a União Europeia, e o anúncio de que ambos os governos iniciariam gestões conjuntas para a assinatura de acordos de livre-comércio com os Estados Unidos restabeleceram o bom diálogo entre Brasília e Buenos Aires, ainda que persistam dúvidas no governo Macri (Landim, 2019). As incertezas se estenderam ao governo eleito em dezembro de 2019, em decorrência de críticas de natureza ideológicas realizadas tanto por Bolsonaro quanto por Alberto Fernández. Entretanto, o diálogo bilateral tende a se normalizar, sem maiores pretensões no plano regional.
O vínculo estratégico entre Brasília e Buenos Aires tem sido chave para sustentar um espírito de cooperação e integração na América do Sul, que se baseia na credibilidade das ações e na boa fé de uns e outros governos. Desde 1985, o Brasil e a Argentina desenvolveram o que Cervo (2008) denominou de "relações em eixo", que se estabelecem "quando, precisamente, a imagem um do outro corresponde à do parceiro que consegue estabelecer uma união co-responsável. [...] Em outros termos, o eixo comporta uma vertente exógena que o transcende porque abarca as relações regionais, mesmo que coletivas [...]" (pp. 211-212). É esse tipo de relações e sua projeção no Cone Sul que foi potencialmente afetada pelas primeiras declarações e ações do governo Bolsonaro. Ao promover um alinhamento com os Estados Unidos - ou "sem recompensa", como diria Gerson Moura -, reproduz o que o Brasil e outros países latino-americanos adotaram como "estratégia" na década de 1990, sem os resultados esperados. E, ao abandonar a tradição iniciada em 1961 e adaptada às diferentes conjunturas que se sucederam, abriu mão de exercer o poder de barganha do país para fazer concessões sem contrapartidas equivalentes. Nas circunstâncias atuais, diante da transição hegemônica Estados Unidos-China, considerando os interesses do Brasil na América do Sul, a equidistância talvez seja o melhor caminho. Diálogo estreito com Washington e autonomia em temas de interesse do país foram as opções de Rio Branco.