Introdução
No sétimo dia de agosto de 2008, as Forças Armadas Russas (FAR) desencadearam uma campanha na Geórgia que perdurou por cinco dias. Inicialmente, o que parecia uma crise separatista de movimentos da Abecásia e da Ossétia do Sul ganhou maiores proporções quando o presidente Vladimir Putin legitimou as autoridades separatistas e os documentos legislativos que estabeleciam a independência dessas regiões1 (Nilsson, 2021; Socor, 2008).
Essas ações converteram-se em crise após o reconhecimento e sanção das autoridades abecásias e sul-ossetas. O primeiro ponto dessa crise foi o abatimento de um drone de reconhecimento da Geórgia por um avião da FAR e, depois de uma investigação realizada pela Missão de Monitoramento das Nações Unidas na Geórgia, foi concluído que era verossímil tratar-se de um avião militar de origem russa que tinha derrubado o drone em questão (Civil.ge, 2008).
O segundo ponto, e ainda mais marcante, foi justamente quando um dispositivo explosivo improvisado atingiu uma viatura da polícia georgiana, o qual feriu cinco policiais, tendo como resposta quatro sul-ossetas mortos por franco-atiradores georgianos (Barabanov et al., 2010). O que se desenvolve com base nesses dois eventos é uma escalada do conflito que gerou o ataque da Ossétia do Sul pela Geórgia, fazendo com que o então presidente Dmitry Medvedev (2008-2012) enviasse tropas russas tanto para a Ossétia do Sul quanto para a Abecásia (Sutyagin e Bronk, 2017a; Boltenkov et al., 2011).
Um terceiro ponto, descrito por Ana Teresa Gutiérrez del Cid (2009), descreve outra situação:
Este conflicto se hallaba "congelado" desde la desintegración de la Unión de Repúblicas Soviéticas Socialistas (URSS) y la guerra de resistencia oseta de 1992, y se recrudeció a partir de la intención de Georgia de ingresar a la Organización del Tratado del Atlántico Norte (OTAN) en la cumbre de Bucarest en abril de 2008, donde se declaró que, en un futuro, Ucrania y Georgia podrían ser admitidas en este mecanismo. El conflicto estalló de forma violenta cuando, sorpresivamente, el presidente georgiano Mijaíl Saakashvili, decidió atacar Osetia del Sur, generando la masacre ya descrita. (pp. 104-105)
Del Cid Gutiérrez (2009) afirma que a Guerra da Georgia não eclodiu tão somente pela questão do separatismo da Ossétia do Sul e da Abecásia, mas também por tratar-se de uma questão que não fora resolvida desde 1992 e que se agravou ainda mais quando a Geórgia anunciou sua intenção de entrar para a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) em abril de 2008. Soma-se a essa perspectiva a visão do Kremlin, também sustentada por Del Cid Gutiérrez (2009), a questão do Kosovo demonstrava que o poder diplomático da Rússia na Europa era pelo menos questionável e, caso a Ossétia do Sul, que tem fronteiras com a Rússia, fizesse parte da Otan, isso seria considerado a última de várias humilhações.
A Figura 1 apresenta o posicionamento da Geórgia, da Ossétia do Sul e da Abecásia, e suas fronteiras com a Federação Russa, mostrando também as estradas e ferrovias que perpassam ambas as regiões e a Geórgia. Ressalta-se que essa área geográfica, entre o Mar Cáspio e o Mar Negro, é marcada pelo relevo das montanhas do Cáucaso.
Em termos geopolíticos, os interesses russos na Abecásia e na Ossétia do Sul, no âmbito da região da transcaucásia, que têm como papel atuar como uma zona de contenção ante as investidas do Oriente Médio (Sushentsov e Neklyudov, 2020; Cornell, 2000). Ao disputar essa região, a Rússia também poderia controlar o envolvimento da Otan em questões do Oriente Médio (Rezvani, 2020; Cornell, 2000). Ademais, ressalta-se, nesse caso, que o interesse da Rússia na Transcaucásia reiterou um objetivo estratégico de manter uma influência direta em regiões que antes eram parte do território da antiga União de Repúblicas Soviéticas Socialistas ([URSS] Payne e Foster, 2017).
A Guerra da Geórgia ficaria marcada pela sua curta duração e pelo uso de uma campanha midiática (Markoff, 2008)2 que contava com o uso de guerra cibernética3 para que uma explicação que retratasse a Geórgia como culpada pelo conflito fosse colocada em prática pelo Kremlin (Donovan Jr, 2009).
Em que pesem as definições de transformação militar do Ocidente, em especial aquelas provin-das dos Estados Unidos da América, definiremos "processo de transformação militar" e utilizaremos a proposição de Covarrubias (2007), combinadas com as de Coutau-Bégarie (2011) e Clausewitz (1989), sobre o papel do Estado na Guerra, em que a transformação será entendida como o desenvolvimento de capacidades de combate para atingir os objetivos políticos designados pelo Estado (Coutau-Bégarie, 2011; Covarrubias, 2007; Clausewitz, 1989).
Portanto, os objetivos deste artigo são os de analisar os antecedentes históricos que precedem o processo de transformação militar russo iniciado em 2008; identificar as principais causas que levaram a Rússia a iniciar um processo de transformação militar e verificar possíveis mudanças na estrutura de força do Exército Russo após a Guerra da Geórgia. Para tanto, este texto sustentase em uma pesquisa qualitativa, baseada na revisão da literatura e de documentos estratégicos (2008-2014). O texto está dividido em quatro partes, além desta introdução e das considerações finais.
A otimização por meios da avaliação: áreas prioritárias para a transformação do Exército Russo
Após uma avaliação pós-campanha durante a guerra, foram encontradas oportunidades de transformação que atingiam os sistemas de localização, comando e controle, e alguns equipamentos que demandaram um processo de aquisição e desenvolvimento tecnológico (Mcdermott, 2009). O que se viu na Guerra da Geórgia, além da necessidade da modernização tecnológica, era também a dificuldade de empregar o Exército principalmente na estrutura de Divisão4, em um conflito limitado e de pequena escala (Renz, 2014).
A estrutura de Divisão era o principal arranjo para o emprego da força do Exército Russo desde a Segunda Guerra Mundial, ou seja, ela era projetada para ser utilizada em situações de guerras convencionais de larga escala, e não em guerras limitadas de curta duração (Mcdermott, 2009).
Quando o primeiro-ministro da Rússia, Dmitry Medvedev, anunciou, em 26 de setembro de 2008, um pacote de otimizações militares que determinariam as futuras capacidades de combate das FAR, a aquisição tecnológica, a expansão do conceito Comando e Controle (C2) e suas tecnologias, e a prontidão de combate ao nível de Brigada estavam incluídas (Mcdermott, 2014).
Logo, o processo de transformação de 2008 atingiu três áreas cruciais para a criação de capacidades de combate:
aquisição e desenvolvimento de novas tecnologias militares;
expansão do conceito de c2 e suas tecnologias;
prontidão de combate das Brigadas.
A primeira área se deu após a constatação de tropas russas que usaram muitas barragens de artilharia e ataques aéreos sem selecionar os alvos pela ausência de armas mais sofisticadas, assim como soldados russos que viajavam no topo de seus veículos blindados de transporte pessoal (VBTP) pela blindagem inadequada destes (Haas e Solheim, 2011). Além disso, foi percebido que o equipamento das Forças Armadas da Geórgia era capturado pelo Exército Russo e levado para Moscou para ser estudado, o que sugeria a ausência de material bélico de alta tecnologia (Haas e Solheim, 2011).
A segunda área foi identificada quando se notou que o Exército Russo tinha dificuldades de coordenar sua movimentação com os ataques realizados pela Força Aérea, o que inclusive causava danos colaterais e incidentes de dano colateral, algo que apontava também para a necessidade de expandir o conceito de c2 para 14ISR5 (Renz, 2014).
A questão das Brigadas6 ainda desencadeou outro fator que seria fundamental para o processo de transformação pretendido após o conflito na Geórgia. No que se refere à terceira área, para criar uma prontidão de combate ao nível das Brigadas do Exército Russo, seria necessário modificar a estrutura de comando em que elas estavam encaixadas, o que significaria não só condensar seis Distritos Militares7 em quatro Distritos, mas também mudar as relações de comando e controle (Grau e Bartles, 2018). Assim, a terceira área de oportunidade de transformação descortina um fator que é intrínseco ao funcionamento de qualquer Força Armada: a sua doutrina.
É a doutrina que conectará essas três áreas e as articulará no sentido de permitir a criação de capacidades e fazer com que as novas capacidades pretendidas possam se concretizar. Isso porque a doutrina militar é refletida nas forças adquiridas de uma organização militar, a postura de sua força, o inventário de armas e o controle organizacional de seus efetivos (Posen, 1984).
O que Posen (1984) revela sobre a doutrina militar encaixa-se em um paradigma que existe nas FAR desde os tempos da URSS e da guerra soviético-afegã, em 1979, e das duas guerras da Chechênia. Nesse caso, o que ocorre com a doutrina das FAR até o processo de transformação do pós-Guerra da Geórgia é que ela havia sido projetada para fazer uso da força em situações de guerras convencionais em larga escala, ou seja, guerras em que o uso da força pode ser utilizado ao seu potencial pleno.
Essas três áreas de oportunidades de transformação identificadas, após a Guerra da Geórgia nas FAR, estão diretamente interligadas com o processo de criação de novas capacidades e novas missões a serem desempenhadas pelas FAR. Tanto a aquisição tecnológica para materiais bélicos, a necessidade de expandir o conceito de c2 e suas tecnologias, quanto a prontidão de combate na estrutura de brigada dependem do desenvolvimento das tecnologias militares para que seja possível a criação de capacidades.
Em uma perspectiva maior, e após a análise do desempenho russo na Geórgia, outro importante ponto fora decidido pelo governo de Moscou. O que aconteceu foi que a participação russa em uma guerra de larga escala, como se previa no passado, não era mais palpável, nem mesmo uma guerra em larga escala contra diversos adversários; logo, o que o governo russo priorizaria seria a participação em conflitos limitados regionais (Boltenkov et al., 2011).
A seguir, veremos como a Rússia lidou o desenvolvimento de tecnologias para o aprimoramento de seu material bélico.
O desenvolvimento tecnológico de material bélico no Exército Russo
A questão da aquisição e desenvolvimento de tecnologias e equipamentos militares na Rússia, no início dos anos 1990, foi uma sucessão de programas de armamento do Estado (GPV), e, desde 2008, o governo russo vem investindo consideráveis recursos políticos e econômicos no GPV 2020 (Oxenstierna e Westerlund, 2013).
Exposto dessa maneira, a Rússia em 2008 desenvolveu um programa de rearmamento de suas Forças Armadas centrado na em sua indústria de defesa, que conta com o Estado como financiador econômico e político desse programa. O GPV em questão é o que abrange os anos de 2011-2020, conhecido como GPV 2020, quando o Estado russo aumentou sua participação política e financeira em relação aos programas anteriores; esse aumento compõe a primeira justificativa para a escolha desse programa.
No GPV 2020, havia sido prevista a quantia de 20 trilhões de rublos, o que se traduz em quase 600 bilhões de dólares8 (Kashin, 2021; Oxenstierna e Westerlund, 2013). Participariam desse programa o Ministério da Defesa da Rússia, a Fundação Russa para Pesquisas Avançadas em Defesa (FPI) e a Comissão Militar Industrial (VPK) (Connolly e Sendstad, 2018; Oxenstierna e Westerlund 2013).
Tanto a VPK quanto a FPI são instituições que têm como fim a articulação entre o setor militar e o setor civil no sentido de desenvolver tecnologias militares que recorrem à pesquisa por intermédio das universidades russas e das indústrias de defesa per se (Connolly e Boulègue, 2018).
A segunda justificativa é que o GPV 2020 constituiu parte do processo de transformação desencadeado após o conflito na Geórgia, revelando-o como parte fundamental do processo de transformação das FAR. Não apenas isso, pois, como será visto a seguir, a diferença do GPV 2020 para os outros foi tão significativa que tal programa ganharia a reputação de transformar por completo as Forças Armadas da Federação Russa ao desenvolver ou adquirir novas tecnologias.
O GPV 2020 era um programa de 10 anos que tinha como objetivos apoiar, em larga escala, a aquisição de equipamentos militares capazes de modernizar as FAR. De início, esse programa pretendia aumentar a parcela de equipamentos modernos em pelo menos 70 % até o fim do ano de 2020 (Connolly e Boulègue, 2018). Nesse ponto, é necessário entender que, antes desse GPV e após as constatações realizadas na Guerra da Geórgia pelas autoridades russas, as FAR, em especial o Exército Russo, estavam com equipamentos militares que, além de serem tecnologicamente ultrapassados, eram até mesmo obsoletos.
Peter Rainow (2013) revela que, após a queda da URSS, o estado em que fora deixado o Exército Russo era tamanho que, desde a época de Pedro, O Grande9 (1682-1725), o país encontrava seu braço armado em uma situação de degradação tal que o avanço tecnológico externo, principalmente dos Estados Unidos, não encontrava contrapartida russa.
Por sua vez, a tecnologia que o Exército da Geórgia possuía era fruto de um programa de treinamento e fornecimento de equipamentos, que ocorria desde 2002, em parceria com o governo dos Estados Unidos. Esse programa tinha como principal objetivo reequipar e reformar o Exército da Geórgia (Department of State, 2009). Nesse programa, os carros de combate T-72 foram modernizados com novos sistemas de GPS, câmeras infravermelhas e, por meio de uma parceria com a empresa israelense Elbit Systems, foi possível, pelas vias desse programa, a modernização e a reforma militar. Havia também o intercâmbio tecnológico com a Ucrânia, outro país que recebia apoio dos Estados Unidos (Tseluiko, 2010).
Essa disparidade tecnológica ficou mais evidente após se descobrir que, durante a campanha na Geórgia, os soldados russos propositalmente adotavam material da Geórgia devido a sua superioridade tecnológica ante o material produzido pela Federação Russa (Blank, 2009). Nesse sentido, a superioridade do material bélico que as Forças Armadas da Geórgia dispunham era largamente fornecido pelos Estados Unidos, um equipamento que, em 2008, representava a ponta da linha da tecnologia militar (Blank, 2009).
Uma vez que isso foi diagnosticado, o GPV 2020 foi desenvolvido com a intenção de suprir o Exército Russo nas seguintes áreas: carros de combate T-90 modernizados (Figura 3); veículos blindados de transporte; mísseis balísticos táticos; sistema de Lançamento Múltiplo de foguetes; sistemas de mísseis anticarro e uma melhoria nas capacidades de comunicação ao melhorar o GLONASS e adquirir novas comunicações digitais, bem como sistemas de comando e controle, equipamento de visão noturna e um pacote de tecnologias para o soldado do futuro (Haas e Solheim, 2011).
De todos esses itens destacados, quatro podem ser considerados como essenciais para o processo de transformação do Exército Russo:
veículos blindados de transporte;
mísseis balísticos táticos;
melhoria no GLONASS e suas vertentes de c2;
pacote tecnológico para o soldado do futuro.
Os itens acima destacados são reforçados pela abordagem fornecida por Solheim e Haas (2011), quando explicam as áreas do Exército Russo que o GPV 2020 percebeu como necessárias para realizar um processo de transformação militar:
The GPV procurement package of 2011-2020 consisted of the following components:
[...] Army: T-90 tanks; light armoured vehicles (from Italian firm Iveco); Iskander tactical ballistic missile systems (replacing the Tochka or SS-21 Scarab systems); a new multiple rocket system (replacing the BM-30 Smerch); Anti-Tank missile systems; mechanized artillery; improving communication capabilities by upgrading the GLONASS satellite system and by procuring new digital communications and command and control systems; night vision equipment; and a future soldier package. (p. 23)
Em suma, esses quatro itens correspondem às oportunidades de transformação identificadas na campanha da Geórgia que foram mais relevantes para o Exército Russo como uma maneira de responder às tecnologias de ponta que os Estados Unidos haviam fornecido à Geórgia.
Essas três áreas são uma consequência direta do rearmamento da Geórgia financiado pelo programa de treinamento e fornecimento de equipamentos e suas parcerias com Israel e Ucrânia, e de uma análise do pós-guerra que fora contrastada com o equipamento da Geórgia apreendido. A Agência de Inteligência de Defesa dos Estados Unidos revela que as autoridades russas também constataram o seguinte:
Shortfalls in modern command, control, communications, computers, and intelligence, surveillance, and reconnaissance (C4ISR) equipment and capabilities were particularly notable. Russian military limitations were fully on display during the August 2008 "five-day war" with Georgia [...]. Air and artillery strikes missed their targets, and an army commander had to resort to a cell phone to contact a higher headquarters, and several aircraft were lost to Georgian Air Defenses. (Defense Intelligence Agency, 2017, p. 12)
Após isso, o Ministério da Defesa Russo separou a quantia de 20,7 trilhões de rublos para o GPV 2020, sendo 14 % (2,6 trilhões) destinados a financiar a aquisição de 2.300 carros de combate, 17.000 VBTPS e 2.000 sistemas de artilharia (Connolly e Boulègue, 2018). O desenvolvimento de todo esse material exigiu também uma política de substituição de importações e programas de apoio chamados "Programas-alvo federais" como um instrumento para apoiar a modernização e capacidade de produção da base industrial de defesa russa (Malmlöf e Roffey, 2016).
O papel central tanto das substituições de importações quanto dos Programas-alvo federais incluía mais de 2.000 projetos de investimento e tinham como objetivo uma estratégia de compensação tecnológica para alcançar o padrão de tecnologia militar atingido pelo Ocidente, em especial os Estados Unidos (Malmlöf e Roffey, 2016). Connolly e Boulègue (2018) explicam que os programas de substituição da Rússia por via dos Programas-alvo, como do FPI e VPK, pretendem fazer com que 85 % dos componentes e equipamentos militares substituídos sejam produzidos de maneira doméstica a partir de 2025.
Logo, esses programas de investimento e cooperação entre a base industrial de defesa russa e o Estado têm como principal objetivo substituir o material bélico importado pela Rússia, mas podem ser entendidos também como uma política de manutenção da soberania produtiva da Rússia. Não só isso: as políticas de substituições de importações podem servir como uma maneira de aumentar as exportações de material bélico da Rússia mediante as inovações que esse país desenvolve (Connolly e Boulègue, 2018). Isso significa que a Rússia entende, desde 1991, a necessidade de ser capaz de produzir as suas próprias inovações sem depender de outras potências militares, para explorar o mercado de exportação de armamentos.
Em outras palavras, o comportamento russo com relação às tecnologias bélicas indica que há um enfoque consideravelmente maior no desenvolvimento de tecnologias militares mais por intermédio da pesquisa do que pela compra de tecnologias para o desenvolvimento posterior. Não obstante, ainda há grande prevalência da atuação de antigas empresas e indústrias estatais10 da época da URSS, que desempenham importante papel nesse processo de desenvolvimento de pesquisas e tecnologias com fins militares.
A pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias militares na Rússia permanecem sob a égide do Ministério da Defesa, o qual é responsável por gerenciar um programa de pesquisa e desenvolvimento voltado para o futuro, e conta com a participação da VPK como coordenador entre os setores civis e militares (Kashin, 2014). O processo de desenvolvimento de tecnologias contou também com o apoio da FPI, voltada para pesquisas de alto risco. A ideia de principal é diminuir o intervalo tecnológico entre a Rússia, os Estados Unidos e a Otan num prazo de 15-20 anos (Adamsky, 2008).
O organograma apresentado abaixo (Figura 4) demonstra como funciona a cooperação entre agências civis e militares na Rússia e, dentro dessa cadeia organizacional, expõe que todas as agências dispostas nesse esquema são subordinadas ao presidente da Rússia.
Visto desse ângulo, o processo de desenvolvimento e pesquisas de novas tecnologias militares da Rússia após a Guerra da Geórgia e a criação do GPV 2020 revelam dois interessantes pontos:
uma resposta à disparidade tecnológica do país com relação aos Estados Unidos e a Otan;
a manutenção de um antigo padrão de desenvolvimento e pesquisas tecnológicas.
O primeiro se dá justamente pela criação do FPI, que é considerado por Adamsky (2014), Renz (2018) e Malmlöf e Roffey (2016) como a versão russa do Darpa11 dos Estados Unidos por focar no aprimoramento de sistemas de navegação e localização que se assemelham ao GPS e outros setores que os esse país tem vantagem em relação à Rússia.
O segundo é um reflexo que assinala para uma inspiração de inovação e desenvolvimento tecnológico que data da época do então chefe de Estado-Maior Nikolai Ogarkov, que iniciou o desenvolvimento da mudança da natureza da guerra mediante o desenvolvimento tecnológico (Adamsky, 2008). Mesmo que a natureza da guerra não tenha mudado com o desenvolvimento tecnológico, a ideia de utilizar a tecnologia para transformar o Exército é encontrada justamente nos escritos de Nikolai Ogarkov, só que voltado para uma compensação para com a tecnologia estadunidense.
O GPV 2020, portanto, reflete as estratégias industriais da Rússia para um mundo globalizado e dominado por mecanismos de mercado e da Organização Mundial do Comércio (OMC) (Platonov, 2014, como citado em Malmöf e Roffey, 2016). Por sua vez, há uma percepção russa de que seu mercado interno fora parcialmente perdido nos anos 1990 para empresas privadas, sem um aumento de suas exportações na OMC (Platonov, 2014, como citado em Malmöf e Roffey, 2016).
Isso foi possível por meio do GPV 2020 e suas agências financiadoras como a FPI e a VPK, ao adaptar conceitos que haviam sido desenvolvidos durante os anos 1980, mostrando que mesmo a inovação tecnológica precisa de aprimoramento doutrinário para que a sua plena utilização seja possível. É igualmente importante ressaltar que a questão do desenvolvimento tecnológico na Rússia se dá mediante um processo de desenvolvimento de tecnologias militares, tendo pouca aquisição de tecnologias provenientes do exterior, fazendo da Rússia um país relativamente soberano enquanto entidade fomentadora de desenvolvimento tecnológico.
A mudança na estrutura de força no Exército da Federação Russa após 2008
A transição da estrutura divisional para uma estrutura de brigadas foi um processo que também foi necessário para diminuir os níveis hierárquicos organizacionais, a fim de que houvesse uma sintonia hierárquica que coadunasse com a redução para uma estrutura de brigada.
Até antes da transformação de 2008, a estrutura organizacional e hierárquica do Exército Russo era sustentada em quatro níveis (Figura 5):
Esse sistema datava dos tempos da URSS quando houve até 16 Distritos Militares, e cada Comandante de Distrito era responsável pelo aquartelamento, pelo treinamento, pela logística de retaguarda, pela proteção de áreas vitais estratégicas e pela coordenação da Defesa Civil (Grau e Bartles, 2018).
O que acontece após o processo de transformação é que os quatro níveis são diminuídos em três, e divisões e regimentos não mais existem, fazendo as brigadas se tornarem o nível operacional de prontidão de combate (Figura 5).
Essa mudança foi significativa porque diminuiu o nível de gestão, além de tornar as estruturas de Divisão e Regimento em Brigadas Modulares de Manobra, que operavam de forma independente e tinham seu próprio apoio orgânico.
Não só isso: mas, com a criação de um Comando Estratégico-Operacional, a Rússia ficaria dividia em Cinco Comandos Operacionais-Estratégicos, diminuindo também a necessidade de dezenas de milhares de oficiais para gerenciarem o que antes chegaram a ser 16 Distritos Militares (Kuvaldin, 2010). Em termos de quantidade de unidades para comando, o recrudescimento da hierarquia organizacional, em conjunto com a prontidão de combates de brigadas, diminuiu o Exército Russo de 1.890 unidades para 172 unidades (Sutyagin e Bronk, 2017a; Vorobyev e Kiselev, 2010).
Assim, essa diminuição possibilitou uma economia de recursos que seriam gastos no plano de modernização do Exército Russo, o GPV 2020, e permitiu também que houvesse maior agilidade para a prontidão das forças terrestres quando seu emprego se fizesse necessário. Isso tudo, como visto anteriormente, foi consequência dos problemas de equipamento e descolamento decorrentes de lições aprendidas durante a Guerra da Geórgia, além de ser uma resposta direta à nova realidade internacional na qual a Rússia se inseria.
É interessante notar que o movimento realizado pela Rússia - ao reduzir o nível de prontidão operacional para brigadas, deixando de utilizar Divisões e Regimentos para prontificar seu braço armado - aponta para uma postura diferente daquelas existentes de 1993 e 2010. Stanislav Kuvaldin (2010) explica que uma das razões dessa mudança é que a Rússia renuncia qualquer possibilidade de guerra regular com a China12.
Portanto, a questão da redução tanto da hierarquia organizacional quanto do uso de brigadas como unidades para a prontidão de combate apontam para uma tendência que sinaliza para a necessidade relacionada ao Exército Russo transformar-se no sentido de corresponder à sua visão de ameaças regionais.
Por sua vez, a utilização das brigadas permite que a Rússia tenha mais agilidade quando precisar deslocar pessoal militar de um ponto para outro, algo que também fora problemático durante a preparação para a Guerra da Geórgia. Essa redução permitiu uma capacidade de emprego mais rápida e ágil, conjuntamente à permanência de efetivos treinados e plenamente equipados para operar caso necessário (Nichol, 2011).
Em suma, os recrudescimentos até aqui descritos foram fundamentais para tornar o Exército Russo um Exército capaz de atuar em conflitos regionais de escala limitada, o que demonstra a transformação militar ao adquirir essa nova capacidade, algo que antes não havia sido feito. Portanto, um dos mais importantes pontos para o processo de transformação do Exército Russo foi exatamente o de utilizar suas brigadas como nível de prontidão para o combate, ao mesmo tempo que diminuiu sua estrutura de comando para tornar a gestão militar mais ágil e descentralizada.
O que se observa nessas tendências é uma aspiração do Exército Russo de utilizar-se dos meios adquiridos pelos seus programas de desenvolvimento tecnológico para atender às suas necessidades e percepções de ameaça. Esses programas permitiram que a capacidade de combate do soldado russo fosse ampliada e novos conceitos de comando e controle pudessem ser incorporado à Doutrina Militar Russa.
Inicialmente, na Doutrina Militar Russa, uma das primeiras ameaças externas descritas nesse documento é o crescimento da Otan em relação ao entorno estratégico da Rússia (Payne e Foster, 2017; Rússia, 2014). O que se nota, nesse caso, é a preocupação russa com seu entorno regional, principalmente com os países do Leste Europeu e outros que têm fronteira com a Rússia, assim como o uso da força em territórios que fazem fronteira com a Federação Rússia e seus aliados (Rússia, 2014).
Isso consta no documento da seguinte maneira:
12. The main external military risks: a) build-up of the power potential of the North Atlantic Treaty Organization (NATO) and vesting NATO with global functions carried out in violation of the rules of the international law, bringing the military infrastructure of NATO members countries near the borders of the Russian Federation, including further expansion of the aliance. (Rússia, 2014, p. 2)
A anexação da Crimeia, em 2014, é uma expressão desse documento, principalmente no que diz respeito ao uso de meios não militares para atingir objetivos políticos, algo que é uma prática recorrente dentro do pensamento estratégico russo, ou ainda a utilização de manobras políticas para atingir objetivos militares (Robinson et al., 2018).
A Doutrina Militar de 2014 e a anexação da Crimeia pela Rússia são expressões das capacidades desenvolvidas pelo processo de transformação de 2008, principalmente no que se relaciona ao uso de Brigadas de pronto emprego para ocupar posições-chave da Crimeia, contando com o uso de forças especiais para explorar essas posições (USASOC, 2016). Logo, o processo de transformação de 2008 articulam-se com a Doutrina Militar Russa de 2014, mediante a capacidade que o Exército Russo desenvolveu de operar em conflitos regionais (Sutyagin e Bronk, 2017a).
A preocupação russa com seu entorno estratégico é justificada na doutrina militar ao explicar a necessidade de proteger a esfera de interesse, pois:
Despite the enormous size of Russia, the strategic depth of its European territory is limited, and it has regularly been attacked and occasionally invaded by different enemies throughout history [...]. The 2014 doctrine, as did its predecessors, addresses a multitude of geographical threats [...] and so called emerging security challenges. (Sinovets e Renz, 2015, p. 3)
Abaixo está o mapa que ilustra o entorno estratégico da Rússia tanto no Leste Europeu quanto na Escandinávia, na Ásia Central e no Leste Asiático.
Assim, a Doutrina de 2014 expõe como a Rússia percebe seu entorno estratégico como sua principal área de interesse, principalmente a região do Leste Europeu que tem fronteira com o território russo e procura utilizar suas Forças Armadas como instrumento de garantia de influência nessa região. Dessa maneira, o que é assinalado por Renz e Sinovets (2015) é uma preocupação que atinge a capacidade da Rússia de manter sua condição de potência militar no sentido de garantir sua presença com relação à crescente expansão da Otan13.
Continuando, a transformação de 2008 foi fundamental para a manutenção da presença regional russa em territórios que antes pertenciam à URSS no Leste Europeu. Não apenas isso: mas permitiram que o Exército Russo fizesse isso utilizando as capacidades adquiridas após sua transformação. Portanto, é possível afirmar que a Doutrina de 2014 é um produto das capacidades desenvolvidas pelo Exército Russo durante seu processo de transformação, logo a Doutrina Militar Russa é um instrumento que expressa tanto as preocupações regionais russas quanto suas capacidades militares.
Isso pode ser notado na própria Doutrina Militar de 2014, conforme apresentado abaixo.
12. Os principais perigos militares externos:
a) o aumento da capacidade de poder da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e suas funções globais, implementadas em violação das normas de direito internacional, a abordagem das infraestruturas militares dos países membros da OTAN para as fronteiras da Federação Russa, nomeadamente através da maior expansão do bloco. (Rússia, 2017, p. 4)
As capacidades tecnológicas, durante o processo de transformação de 2008, principalmente os conceitos de C4ISR, guerra informacional e guerra eletrônica, desenvolvidos durante esse processo, projetam-se sobre a Doutrina de 2014. Inicialmente, um dos desafios emergentes de segurança é a crescente utilização de meios cibernéticos como vetores que têm fins militares (Cohen e Hamilton, 2011). Ressalta-se que a própria Rússia, durante a campanha da Geórgia, utilizou-se de ataques cibernéticos aos servidores da Geórgia para impedir a divulgação de notícias ou ainda criar a impressão de que a Rússia havia sido vítima de um ataque vindo da Geórgia (Beehner et al. 2008).
A Doutrina Militar de 2014 destaca tanto ameaças cibernéticas quanto informacionais como desafios emergentes, algo que, na sua essência, não é novo dentro do pensamento estratégico russo. A utilização da informação como instrumento a serviço de objetivos políticos, como visto anteriormente, está presente no pensamento estratégico russo-soviético desde a época da Guerra Fria.
O que surgirá de novo com relação às capacidades que o Exército Russo desenvolveu para si, durante seu processo de transformação, é justamente a questão cibernética que vem sendo utilizada pelo Estado russo, seja por meios diretos, seja indiretos. O fato de ações cibernéticas terem sido utilizadas na Guerra da Geórgia, junto aos conceitos de guerra política e informacional, aponta para a tendência presente no pensamento estratégico russo-soviético de "maquiar" (maskirovka) suas ações militares com acontecimentos políticos.
Portanto, a ideia de guerra político-infor-macional estava muito presente no pensamento estratégico soviético durante a Guerra Fria, principalmente durante a época da distensão, quando se procurava camuflar ações militares com atividades diplomáticas e políticas (Sinclair, 2016).
Assim, a junção de novas capacidades como C4ISR e guerra informacional, conduzidos por meios cibernéticos, carregada por antigos conceitos de guerra política, distingue a tendência que existe no comportamento militar russo de adaptar conceitos do passado para o contexto em que se encontra. Assim, os desafios emergentes de segurança dispostos na Doutrina Militar Russa de 2014 são uma consequência do contexto internacional em que a Rússia está inserida, isto é, um contexto de competição e expansão militar pela hegemonia internacional em questões militares.
Em outras palavras, a Doutrina de 2014 foi influenciada tanto pelas capacidades militares, desenvolvidas seis anos antes, quanto pelos antigos conceitos encontrados no ideário militar russo-soviético. Dessa maneira, é mantida a máxima clausewitziana de que a natureza da guerra é a mesma de um camaleão, que a mantém conservada no seu interior e apenas muda suas características externas com relação ao meio em que se encontra. No caso russo, desenvolvem-se os avanços tecnológicos da era da informação e adaptam-se antigos conceitos às novas tecnologias.
Na próxima seção, a redução no nível operacional do exército russo será analisada com fins de entender os efeitos da transformação militar de 2008 sobre a estrutura de força14 do Exército Russo.
A prontidão de combate das brigadas e sua relação com a Doutrina Militar de 2014
É necessário entender o que de fato significa uma redução no nível de prontidão de combate, isto é, descer do nível de prontidão divisional para o nível de prontidão de Brigadas dentro da realidade do Exército Russo. Não só isso, mas entender também as razões pelas quais as Divisões eram o principal corpo de exército que estavam prontas para o combate e desde que época esse fato se concretizou.
A estrutura divisional, dentro da realidade russo-soviética, é algo que pode ser datado após 1806, durante as Guerras Napoleónicas (1803-1815)15, quando o antigo sistema de colunas e regimentos fora abolido (Seaton, 1979). O advento das duas Grandes Guerras fez o Sistema Divisional alcançar seu ápice na realidade russo-soviética entre 1914 e 1945, principalmente a partir de 1944, quando técnicas refinadas para o manejo das Divisões de Infantaria Motorizadas foram publicadas nos Manuais de Campo Soviéticos da época (Glantz, 2012).
Após a Segunda Guerra Mundial e até o ano de 1953, a estrutura divisional ainda permanecia como a principal unidade de prontidão de combate na antiga URSS. De maneira geral, não apresentou mudanças significativas na discussão de temas doutrinários, algo que mudaria entre 1968 e 1980 com o debate sobre a Revolução Militar Técnico-Científica (Glantz, 2012). Mesmo com essa revolução e seus debates sobre uma possível mudança na natureza da guerra como consequência dos avanços tecnológicos, a Divisão permanecia como a principal unidade das forças terrestres russas, e assim permaneceria como tal na Guerra Soviético-Afegã (1979-1989), nas duas Guerras da Chechênia (1994-1996 e 1999-2009) e até a Guerra da Geórgia (2008).
A queda da URSS e consequentemente as dificuldades financeiras encontradas pela Federação Russa após esse evento também contribuíram para que as Divisões permanecessem como a principal estrutura militar de prontidão. A Doutrina Militar da Rússia do ano de 1993 previa que as divisões devessem permanecer como a principal estrutura de militar, pois, naquele momento, a principal função das FAR era a de garantir a soberania de seu território até superar a crise econômica que afetava o país (Rainow, 2013).
Durante esse conflito, havia sido notado que toda a estrutura material, organizacional que uma Divisão tem trazia consigo problemas que atingiam não só o deslocamento das tropas russas, mas também sua coordenação, organização e equipamento. De maneira geral, na Guerra da Geórgia, foram utilizadas, em sua maior parte, as Divisões Motorizadas de Infantaria, que apresentavam problemas de modernização de equipamento, treinamento abaixo da média ou ainda insuficiente, e até mesmo equipamentos obsoletos sem melhorias para sua utilização (Lavrov, 2010).
Além disso, de todas as divisões utilizadas na Geórgia, apenas a 42a Divisão Motorizada de Infantaria tinha suas colunas plenamente preenchidas, assim cumprindo com as ordens de preenchimento de quadros militares em tempos de guerra em 2008, além de ser a única que contava com contava unicamente com soldados profissionais (Lavrov, 2010). O quadro geral das outras Divisões que foram empregadas na Geórgia, portanto, era um cenário de unidades com pouco treinamento propício para um conflito regional, baixo profissionalismo e obsolescência, o que fez a Rússia precisar adotar uma linha de pensamento estratégico alicerçado em fundamentos soviéticos (Sutyagin e Bronk, 2017b; Mcdermott, 2014).
As Divisões apresentavam a oportunidade perfeita para isso, mesmo que com problemas de equipamento e pessoal, pois o principal objetivo da estratégia russa na Geórgia era o de atingir a vitória usando a sua superioridade numérica e combinar isso com o grande emprego de forças aéreas e navais (Pallin e Westerlund, 2009). Isso significou que uma considerável parte das Divisões russas mantiveram conceitos soviéticos de estratégia, operações e táticas16 no decorrer da guerra, o que resultou em problemas relacionados a operações conjuntas.
Esses problemas teriam como consequência a dificuldade no coordenar das forças terrestres, forças aéreas e forças navais da Rússia, de tal maneira que analistas internacionais, a exemplo de Cohen e Hamilton (2011), classificaram o desempenho russo como conjunto somente no nível operacional mais superficial, mesmo havendo coordenação e sincronia das operações conjuntas. Dado que a Guerra da Geórgia havia sido a primeira vez em que as FAR haviam atuado em conjunto desde a Segunda Guerra Mundial, a falta de treinamento das Divisões fez a liderança militar russa não confiar nas capacidades das Divisões de Infantaria Mecanizada (Cohen e Hamilton, 2011).
Assim, a falta de treinamento, conjuntamente aos equipamentos deficitários em tecnologia e à carência de coordenação entre diferentes armas das FAR, deixou a liderança militar russa sem muitas opções a não ser empregar conceitos soviéticos de doutrina militar e operações em sua campanha na Geórgia. Em particular, a estrutura divisional coadunava com a necessidade de garantir a superioridade numérica contra o Exército da Geórgia, porém tornava dificultosa a coordenação de seus elementos menores em relação às outras armas do Exército Russo e os destacamentos da força aérea (Cohen e Hamilton, 2011).
Foi desse contexto que surgiu a necessidade de fazer com que as Brigadas fossem empregadas em caso de necessidade do uso da força ao invés das Divisões, o que não foi uma tarefa uníssona dentro das FAR, já que havia expoentes que defendiam a permanência da prontidão de combate do nível divisional (Pallin e Westerlund, 2009). A atuação russa na Geórgia, portanto, possibilitou às FAR constatar o seguinte quanto a seu exército, sua doutrina, a estrutura de suas forças, seu treinamento e seus equipamentos:
The war served as a wake-up call that revealed Russia's military deficiencies, both in terms of its outdated doctrine, strategy, and status of forces [...] the war was primitively fought, employing organizational tactics and technologies left over from the twentieth century- a conventional war fought using maneuver warfare. [...] It was fought in a way that even Clausewitz would have recognized: focusing on an enemy's center of gravity, fighting with overwhelming force, and utilizing combined arms. (Beehner et al., 2008, p. 50)
Esse chamado foi respondido quando a Rússia decidiu, logo após a Guerra da Geórgia, transformar uma estrutura militar que antes era sustentada literalmente por uma rede saturada por milhares de divisões, regimentos e batalhões, resultado de improvisos do pós-URSS, sendo que a maioria dessas unidades tinha o número mínimo de soldados ativos para se manterem existentes (Bartles, 2011).
Conclusões
O movimento realizado pela Rússia após as suas avaliações no que concerne ao desempenho de seu Exército durante a Guerra da Geórgia resultou em uma mudança que atingiu não apenas a questão da pesquisa e do desenvolvimento tecnológico de material bélico, mas também a Doutrina Militar e a própria estrutura de força desse exército. O que se absorveu por meios dos objetivos dispostos no início deste artigo foi que, ao identificar no desempenho do Exército Russo na Guerra da Geórgia três áreas consideradas prioritárias para atingir novas capacidades operacionais, a Rússia mudou também as suas percepções de ameaça em seu entorno imediato.
Isso significa que, ao primar por transformar as capacidades e as missões que o Exército Russo desempenharia no futuro, a Rússia precisou ao mesmo tempo realizar uma mudança na forma que ela analisava o sistema internacional. Se, na Guerra da Geórgia, perdurou uma tendência de operar com conceitos que foram desenvolvidos desde a Segunda Guerra Mundial e aprimorados ao longo da Guerra Fria, isso também foi uma consequência da percepção que esse país tinha de si em relação ao sistema internacional em que estava inserido.
A avaliação foi, consequentemente, responsável por iniciar um processo de mudança no Exército Russo e nas suas missões, já que, anteriormente, conforme visto ao longo deste artigo, havia uma tendência de utilizar esse exército como um instrumento de manutenção de soberania nacional, sem que houvesse intenção de projeção de poder no âmbito regional, como fora realizado no caso da Guerra da Geórgia. Se a estrutura divisionária havia se mostrado insuficiente para conflitos regionais limitados, as Brigadas mostraram-se adequadas tanto pela sua estrutura de força quanto por esse movimento ter causado um recrudescimento na organização de comando e controle do Exército Russo.
Em outras palavras, a organização de comando e controle foi diminuída no sentido de torná-la mais apta ao pronto emprego das tropas russas, algo que também foi possível graças aos avanços tecnológicos atingidos com a criação do GPV e da agência de fomento à pesquisa FPI. A modularidade das Brigadas e o Comando Estratégico-Operacional foram notáveis avanços que o processo de transformação militar de 2008 trouxe para o Exército Russo.
Uma característica também de igual valia para esse esforço fora a interligação entre a Doutrina Militar de 2014 e a transformação militar com fins de atingir novas capacidades iniciada em 2008. Essa interligação aponta para uma sincronia entre os objetivos políticos que a Rússia tem para seu Exército, mas também assinala para uma intenção de utilizar suas Forças Armadas efetivamente como um instrumento de projeção de poder e influência regionais. Ao alinhar a sua doutrina militar com as lições e soluções encontradas em 2008 após a Guerra da Geórgia, a Rússia tem, em sua essência, conforme disposto em sua Doutrina Militar, a intenção de contrabalancear a presença da Otan em seu entorno estratégico.
O processo de transformação militar iniciado em 2008 foi, portanto, um movimento que teve como causa uma percepção da necessidade de capacidades e missões militares diferentes daquelas existentes ao seu início, mas teve como consequência a mudança da postura russa na sua Doutrina Militar no que concerne a suas percepções de ameaça. Não menos importante são as constatações que houve a necessidade de aproximar a pesquisa e desenvolvimento de tecnologias de uso militar da Rússia daquela da Otan, utilizando de mecanismos de desenvolvimento e pesquisa que são utilizados desde a URSS.
Mais adiante, o enfoque geopolítico dado pela Rússia ao apoiar a independência de duas regiões, Abecásia e Ossétia do Sul, que contam com estradas, acesso ao Mar Negro e funcionam como uma zona de contenção ao avanço da Organização das Nações Unidas, além de possibilitar a projeção de poder russo em direção ao Oriente Médio, demonstra o interesse russo em manter sua influência sobre as áreas da antiga URSS ao mesmo tempo que consegue acesso ao Mar Negro, aos portos quentes e estradas dessas regiões.
Pelo lado da Geórgia, a perda das duas regiões trouxe consigo o apoio russo aos movimentos separatistas, a projeção de poder russo em dois enclaves que antes eram território georgiano, além de não lograrem o ingresso na Otan como pretendiam em 2008. Em suma, a perda de ambas as regiões para a Geórgia foi um agravante para a situação geopolítica de um país que tem fronteiras com uma potência militar, Rússia, e possui a capacidade de funcionar como uma ponte entre a Europa e o Oriente Médio.